Título: AS PRÁTICAS DE LEITURA NA ESCOLA NAS VOZES DE
CAROLINA, JOSÉ E DANIEL... (1)
Área Temática: Didática, Metodologia e Prática na Educação Escolar
Autora: MARIA HERMÍNIA LAGE FERNANDES LAFFIN
Instituição: Universidade Federal de Santa Catarina - Professora do
Departamento de Metodologia de Ensino do Centro de Ciências da Educação
Ao refletir sobre os motivos que me instigaram a pesquisar o tema “O
gosto pela leitura” preciso dizer que certamente esta opção é resultado de
minhas próprias histórias de leitura e de professora. Estas vivências
proporcionaram-me uma maior interação com a fala alheia: de autores, de
meus colegas professores e dos alunos, falas que denunciavam a existência de
uma ausência de leituras por parte desses alunos provocadas por um não
gostar de ler.
Estas falas, aparentavam ser contraditórias se analisadas a partir da
experiência como professora das séries iniciais do ensino fundamental, que me
possibilitou perceber nos alunos que ingressam na escola uma vontade imensa
de aprender a ler, de “devorar” histórias com verdadeira paixão!
Se, a escola é o lugar historicamente legitimado para as ações de
ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, intrigou-me muito o fato de
escutar os adolescentes dizerem não gostar de ler e de escutar os pais e
professores dizerem que os adolescentes não lêem e não gostam de ler.
Considerando estes aspectos, desenvolvi a pesquisa numa escola
pública da rede Estadual de Ensino em Joinville/SC objetivando desvelar este
suposto não gostar de ler, com o título “As Vozes de Carolina, José e Daniel...”,
vozes que representam os sujeitos desta pesquisa.
A opção pelas vozes das crianças deve-se ao fato de acreditar que ‘ouvir
as vozes destas crianças’ permite pensar a sua não exclusão enquanto sujeitos
de suas histórias de leitura.
Estas vozes interagem dialogicamente com as minhas palavras, aquelas
que internalizei no processo histórico de minha constituição, e com a minha
pesquisa. Para BAKHTIN (1992), só é possível a constituição de um texto pela
polifonia, pelos momentos de interlocução, pelo constante diálogo entre os
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sujeitos. Vozes que se encontram num lugar social, num determinado tempo e
espaço e refletem a realidade social dos sujeitos que dialogam.
...a consciência dos sujeitos forma-se neste universo de discurso e é
deles que cada um extrai, em função das interlocuções de que vai participando,
um amplo sistema de referências no qual, interpretando os recursos
expressivos, constrói sua compreensão de mundo. (GERALDI, 1993 :33)
Acreditando que a linguagem, enquanto um elemento constitutivo da
existência humana, permite olhar o dizer do outro e compreender os sentidos e
a importância da palavra alheia, busquei compreender, nesta pesquisa, através
do movimento histórico do cotidiano de sala de aula as relações possíveis entre
as práticas escolares de leitura e a constituição de sujeitos leitores.
Este olhar, voltado para a sala de aula, possibilitou conhecer melhor
esses alunos, saber o que pensam, o que sentem com relação ao seu
processo de escolarização, modo formal pelo qual nossa sociedade insere as
crianças no mundo da leitura e da escrita. Além disso, pude verificar
concretamente o quanto estas crianças e adolescentes sabem, o quanto eles
conhecem a realidade que os cerca e o quanto eles tiveram o que dizer.
Considerar isto é importante se pensarmos que, atualmente, na escola ainda
existem poucas oportunidades para que o aluno diga o que pensa e o que
sente. Muitas vezes, quando o aluno fala ou escreve algo na escola não é para
dizer o que pensa, mas para ser avaliado e para se verificar se houve a
apropriação de determinado conteúdo, ou se soube usar a escrita e a leitura de
uma forma dita padrão, ou seja, aquela esperada pela escola.
Deste modo, é importante ouvirmos as falas dos alunos, pois
Enquanto não se atribuir à infância uma dimensão sociológica e
enquanto não se estudar a criança nas suas relações com o outro, a educação
será uma conta aproximada entre a sociedade e o indivíduo, integração e o
imaginário.(MOLLO, 1977:50).
Aos alunos se atribui o possível não gostar e não querer ler dentro e fora
da escola. E o que nos dizem eles sobre este possível não gostar? Se assim o
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for, como, no que, onde e em que tempo se produz a internalização do
des/gostar de ler?
É este aparente paradoxo que pretendi averiguar através desta pesquisa
numa abordagem etnográfica, constituída por observações na sala de aula e de
entrevistas com os alunos, para saber como eles experienciam a leitura na
escola: Como será que a escola desenvolve os procedimentos com a leitura,
para que ouçamos tantas vezes tais reclamações? Será que este possível
“desgostar de ler” tem mesmo relação com a escola? Quando e como esses
alunos passam a não mais querer ler? Quais as responsabilidades e méritos da
escola neste processo? Até onde este “desgostar” pode significar uma recusa
da cultura letrada e da metodologia de leitura trabalhada na escola?
Para poder ter um melhor mapeamento das histórias escolares de
leitura, trabalhei com três turmas de alunos: uma de primeira série (composta
por 26 alunos), uma de quarta série (20 alunos) e por último, com uma de
oitava série (35 alunos), procurando estabelecer três momentos de suas
histórias de leitura: o início, o momento intermediário e o de conclusão do
ensino fundamental.
Porém, antes disso, para entender as falas dos alunos, fez-se
necessário estudar e configurar o contexto histórico: as rupturas e
continuidades, em que se produziram e como se situam as escolas
contemporâneas, assim como, também, foi necessário mapear as vozes
teóricas da década de 80 e do início de 90, para detectar a forma da presença
destas vozes nas ações de hoje com a leitura na sala de aula. Por que optar
por ouvir as vozes teóricas deste período?
Exatamente porque as produções teóricas sobre leitura da década
passada podem ser consideradas como um marco histórico na elaboração de
um novo conceito de leitura e ao mesmo tempo denunciavam um momento de
crise e de ausência de trabalhos significativos de leitura na escola. Estes
elementos são perceptíveis até pelo forte tom de críticas feitas à escola nos
títulos dessas produções: “Leitura em Crise na Escola”, “A Escolarização do
Leitor - A Didática da Destruição da Leitura”, “O Ensino é Livresco, mas sem
livros”, “Leitura ou Lei-Dura”, entre tantos outros, que indiciam, como situa
Lilian Lopes da Silva, em seu livro “A Escolarização da Leitura”, que havia uma
economia da leitura escolar, que se caracterizava pela imposição da leitura na
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escola. Leitura que seguia um ritual em que todos liam o mesmo livro para
fazer fichamento, leitura que era realizada em casa ou nas férias, por não
“haver” tempo, recursos e nem espaços para a leitura nessa escola.
A leitura era vista como um hábito, como algo que poderia ser
condicionado, por repetição a despeito do pensamento e da vontade dos
alunos, sendo a escola a definidora da quantidade de leitura a ser realizada.
Mas o que se lia então na escola?
Liam-se os textos fragmentados dos livros didáticos, que apresentavam
fortes ideologias de ajustamento à ordem social vigente, os clássicos pátrios,
familiares e escolares - um tipo de literatura de celebração de datas cívicas,
autores e estilos - enfim uma leitura para formar o cidadão desejado.
Se voltarmos um pouco na história verificaremos que estas práticas têm
semelhanças com a organização curricular dos jesuítas, no pós-descobrimento
do Brasil: técnicas de leitura e escrita, classes de gramática, de retórica e de
poética, das humanidades e o estudo dos clássicos da erudição e da filosofia
(Cícero, Plutarco, Aristóteles...), sendo permitido falar somente em latim no
espaço escolar.
Deste modo, o tempo destinado à linguagem na escola, tanto nos seus
primórdios como até há bem pouco tempo silenciava a expressão.
Os trabalhos da década de oitenta, mais especificamente o livro “A
escolarização do leitor” de Lilian Lopes da Silva, realmente revelam um
desgostar muito acentuado por parte dos alunos com relação ao ler, e às
formas como era trabalhado na escola, mesmo havendo alguns espaços de
rupturas. Este não gostar permeia os discursos de professores e alunos de
hoje.
Tais críticas possibilitaram aos seus autores uma série de alternativas e
propostas, via entrada de diferentes portadores de texto na sala de aula como
forma de transição até o livro, o literário:
Com efeito, é o recurso à literatura que pode desencadear com
eficiência um novo pacto entre as crianças ou jovens e o texto, assim como
entre aluno e professor.” e também que “a proposta de que a leitura seja
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reintroduzida na sala de aula significa o resgate de sua função primordial,
buscando sobretudo a recuperação do contrato do aluno com a obra de ficção.
(ZILBERMANN, 1986: 21)
Estas vozes ao mesmo tempo que denunciam “a crise da leitura” e
fazem propostas diferenciadas, acabam apontando para uma nova noção de
leitura que inclui outros textos de leitura, que não a do livro didático e outro
convívio com a escrita para alcançar o livro como instrumento primordial para
interagir no mundo letrado.
Que diferença percebemos hoje, na leitura na escola com relação às
propostas desses autores?
Para marcar esta diferença foi necessário observar as aulas e ouvir os
alunos, permitir-lhes o direito de serem autores de suas vozes, para que sejam
perceptíveis as concepções de aprendizagem e de leitura que se manifestam
hoje nas formas de organização na sala de aula, nas atividades e nos tempos
destinados para a leitura na escola.
O que se percebe hoje é uma nova forma de organização na sala de
aula: com atividades e tempos destinados para a leitura, o que não existia há
dez anos atrás:
Hoje há um tempo e um espaço para a leitura, mesmo que nem sempre
seja o desejável, mas o suficiente para que possamos detectar o não
imobilismo do professor diante do conjunto das vozes teóricas da década de
oitenta, que se manifesta, por exemplo, no funcionamento da biblioteca de
classe, nas feiras de livros, na existência de revistas e jornais, na aula semanal
para leitura com livros de histórias, romances, narrativas mais longas, nos
concursos de poesias, na elaboração de livros pelos alunos...
Elementos estes que sinalizam que alguma coisa aconteceu neste
tempo, ou seja, houve um movimento histórico, que permitiu a apropriação
dessas reivindicações pelo professorado, mesmo não sendo sempre aquele
idealizado, o esperado, até mesmo por aquilo que dizem ainda hoje muitos
alunos (que muitas vezes a aula de leitura é uma chatice, que coisas que eles
gostariam de ler nem sempre são permitidas, como por exemplo as revistas...)
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Aqui eu gostaria de recorrer a MICHEL DE CERTEAU, no seu livro “A
Invenção do Cotidiano”, quando nos diz que O cotidiano se inventa de mil
maneiras de caça não autorizada. (CERTEAU, 1994:38), para situar
exatamente essa apropriação do discurso teórico como mediador da mudança
nas nossas práticas pedagógicas com a leitura.
Ao buscar, exatamente “nas mil maneiras” do cotidiano das práticas de
leitura, “um murmúrio das maneiras de fazer...” (CERTEAU, 1994: 51) foi
possível perceber na realidade objetiva da sala de aula, com todos os seus
determinantes e problemas, que de certo modo os professores se propuseram
a atender as reivindicações da década de 80, até para buscar a superação das
contradições que nós professores percebíamos em nossas práticas, e que
portanto, se estabeleceu a atual organização da leitura na escola.
Foi este olhar, sensível ao que efetivamente acontece na sala de aula,
que me permitiu tentar explicar o que acontece com relação à leitura hoje na
escola.
Temos então hoje, em termos metodológicos, grupos de professores que
trabalham com as chamadas bibliotecas de classe, as salas de leitura, a leitura
de caráter utilitarista que ainda acontece como mero pretexto de aprendizagem
para e na escola, com a imposição de um tipo único de portador de texto, o
escolar, sendo ainda muitas vezes totalmente ignorada a funcionalidade social
da linguagem escrita. Hoje se desenvolvem nas nossas escolas outros projetos
que visam incentivar a leitura. Porém, muitas vezes, apesar de existirem livros,
estes enquanto recursos materiais para a leitura, cuja aquisição fez-se
necessária pelas reivindicações da década de oitenta, nem sempre são
distribuídos às crianças, para um maior contato com o texto e seu portador.
Servem apenas como forma de passatempo, situando a leitura adotada para
preencher o tempo ocioso.
Quer dizer, a escola, apropriou-se de uma prática nova de leitura, mas a
concepção de leitura não se alterou, ainda é uma leitura para e na escola.
Temos pela falas das crianças, a valorização da concepção de leitura que é a
do mundo letrado, o beletrista, o literário, quer dizer apostou-se no tempo e nos
recursos, no que deveria ser lido e não nos sentidos que estas leituras fazem
no tempo. Sentidos que passam a circular na sala de aula, mas que não são
aceitos como objetos de reflexão válidos nesse espaço.
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As propostas fizeram entrar o heterogêneo para a sala de aula, só que
este não é aceito pela escola.
Sabendo que a construção de sentidos não ocorre sempre do mesmo
modo pelo mesmo sujeito nas diversas leituras, quanto mais por sujeitos
diferentes em tempos diferentes, com diferentes condutas de leitura, não
podemos fechar os olhos para a diversidade enorme de portadores de texto
com os quais as crianças hoje interagem. Portadores que correspondem a
funções sociais diferenciadas dependendo o projeto de leitura do leitor ou do
escritor.
Estes sentidos do texto passam até a se constituir no espaço da sala de
aula, como no exemplo observado durante a pesquisa, em uma aula de leitura
de oitava série, em que aqueles que realmente liam eram os que tinham
preferido as revistas sobre informática e vídeo-games, para os quais no final da
aula a professora sentencia que na próxima semana não poderiam mais ler
revistas:
“Observei que dos trinta e cinco alunos oito mantiveram-se tranqüilos
durante a aula, acho que estavam lendo, seis leram revista e interagiram
dialogicamente sobre os assuntos lidos. Para estes a professora sentencia:
Professora - Vocês já ficaram lendo revistas na aula passada, a próxima
aula têm que ler livros!”
(8a. Série - Diário de Campo 3:13)
Ou então, se prestarmos atenção na fala de Carolina, aluna de primeira
série, que assume a posição de Sujeito Leitor, ao afirmar que interage com
outros portadores de texto que não são nem escolares, nem literários: cartas,
receitas de bolo, tiques de cobrança que são enviados para o seu pai, jornais,
revistas e, também um outro portador que parece ter exercido grande influência
na sua vida, a Bíblia com a qual ela convivia na escola dominical.
Além disso, Carolina expressa uma noção de leitura: como um processo
de interação (com cartas, papéis...) e de aprendizagem imediatamente útil
(receitas), que aprende a fazer, processos estes que caminham juntos.
Também Carolina quando fala da utilização da leitura na sua vida, nos
diz que a leitura é “Para nós saber mais e mais... Daí, pode pegar ler e
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escrever em outro papel o que tava dali.” ou seja, como forma necessária para
reproduzir informações ou de tornar suas, de internalizar as palavras alheias do
texto.
Na perspectiva de Carolina, as linhas que ligam ler e escrever não são
linhas paralelas, elas se intercruzam, ler é também escrever.
“... ler e escrever em outro papel o que tava dali”
Eu posso dizer de outro jeito o que estava escrito no texto, quer pela
cópia, quer pela paráfrase. A escrita permite que eu tire dali um enunciado e
utilize em outro lugar, e aí a leitura é algo produtivo. Tirar dali, para Carolina é
extrair do texto e ela sabe o que significa esse extrair por causa da receita de
bolo.
A leitura, nesta perspectiva, representa um processo vivo e social de
aprendizagem, pela qual a criança interage com o universo conceitual
produzido ao longo da história humana. O aprendizado humano pressupõe
uma natureza social e um processo através do qual as crianças penetram na
vida intelectual daquelas que as cercam. (VYGOTSKY, 1989: 99)
Através de sua vivência evangélica e cotidiana Carolina deparou-se com
o funcionamento da leitura como uma atividade constante, e vive envolvida em
escritos diversos: bíblia, receitas, cartas, papéis. Sabe de um processo que o
pai está sofrendo (2): “... eles tão mandando papéis, mais papéis para ele...”, e
aqui, a escrita funciona enquanto cobrança e como representação da
burocracia. Compartilha com seus pais de todos esses momentos, sendo uma
leitora em ação. Relaciona sua vivência e sua linguagem com o texto escrito e
nos relata sua proximidade com a leitura em casa, e sua distância na escola.
FOUCAMBERT, afirma que para aprender a ler é necessário
...estar envolvido pelos escritos os mais variados, encontrá-los, ser
testemunha de e associar-se à utilização que os outros fazem deles - quer se
trate dos textos da escola, do ambiente, da imprensa, dos documentários das
obras de ficção. Ou seja, é impossível tornar-se leitor sem essa contínua
interação com um lugar onde as razões para ler são intensamente vividas mas é possível ser alfabetizado sem isso ... (FOUCAMBERT, 1994: 31).
E o que dizem os alunos de 4ª. e de 8ª. séries?
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“ Ler é saber em silêncio...” (Luciane - 8ª. Série)
Luís, Paulo, Cláudio, Márcia, Iara, Isabel, Tiago, Rubens e Luciana,
assim como Carolina da 1ª. série, também manifestam a dicotomia que
percebem através da proximidade e intimidade com o mundo da leitura que
permeia a nossa sociedade e a distância com a leitura estática que a escola
desenvolve. Porém, até pelos seus depoimentos durante a pesquisa, é possível
afirmar que uma vez que a escola proporciona um maior contato com a leitura
não tem como voltar atrás e, para aqueles que desde cedo, por qualquer
motivo aprendem a gostar de ler, ninguém conseguirá lhes remover este
gostar. Após acontecer uma maior intimidade, como diz Daniel Pennac, entre
leitor e leitura, não acredito que esta se perca, pois, como ele mesmo diz
depois do contato com a leitura
Ninguém se cura dessa metamorfose. Não se retorna ileso de uma
viagem dessas. A toda a leitura preside, mesmo que seja inibido, o prazer de
ler; e, por sua natureza mesma - essa fruição de alquimista -, o prazer de ler
não teme imagem, mesmo televisual e mesmo sob a forma de avalanches
cotidianas. Se, entretanto, o prazer de ler ficou perdido (se, como se diz, meu
filho, minha filha, os jovens não gostam de ler), ele não se perdeu assim tão
completamente. Desgarrou-se apenas. Fácil de ser reencontrado. Ainda que
seja precisa saber por qual caminhos procurá-lo... (PENNAC, 1995: 43)
Não estou levantando a hipótese de que o prazer de ler não foi
destruído, de que ele apenas está perdido, estou afirmando baseada nos
dados empíricos desta pesquisa que o gostar de ler, como diria Daniel Pennac,
apenas desgarrou-se, andou por caminhos e lugares diversos, até mesmo na
escola. Nós é que não sabíamos e não sabemos onde procurar, não ouvíamos
e nem sempre ouvimos os principais interessados para saber o que pensavam
e o que pensam sobre o gostar de ler: os alunos!
E olhar esse gostar, esse amor é imprescindível pois a leitura é acima de
tudo um ato de amor! E um ato de amor não aceita imposição, ele é gratuito,
mas envolve preferências. “Talvez porque, justamente, é próprio do sentimento,
como do desejo de ler, preferir.” (PENNAC, D. 1995: 84) Afinal não gostamos
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mais de certas coisas do que de outras, por que haveria de ser diferente com a
leitura?
Nas falas dos alunos este preferir e o gostar se manifestam:
Sueli - Bem, já que o assunto é leitura, eu não sou muito de ler, mas é
claro que com um livro do meu gosto, a história muda de figura!
Pesquisadora - E que tipo de livros você prefere?
Sueli - Eu prefiro romance, mas também um pouco de aventura.
(8a. Série - Diário de Campo 6:35)
Claudia - Eu gosto muito de ler, adoro ler.
Pesquisadora - E como é que você vê, os seus colegas também gostam
de ler?
Claudia - Tem uns que gostam, outros que não, tinha uns que gostavam
da aula de leitura só porque não precisavam escrever, outros que não
gostavam de leitura e que preferiam ficar escrevendo a aula toda, mas tem
bastante alunos que gostam da aula de leitura.
Pesquisadora - E o que você mais gosta de ler?
Claudia - Eu gosto de ler revistas. Essas de jovens, assim de meninas,
revista Capricho, Carícia e gosto de ler bastante livros. Eu tenho bastante livros
em casa, tenho é mais livros engraçados, comédias. livros românticos eu
também gosto.
(8a. Série - Diário de Campo 6:27/28)
Pesquisadora - Você gosta de ler?
Joana - Mais ou menos.
Pesquisadora - Que tipo de coisas você prefere ler?
Joana - Livros de aventuras, revistas, gibis...
(8a. Série - Diário de Campo 6:4)
Pesquisadora - Você gosta de ler?
Fernanda - Adoro ler!
Pesquisadora - Que tipos de livros você gosta de ler?
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Fernanda - Eu leio de tudo quanto é tipo de livro: livros como Pollyana,
revistas como Claudia, revistas de adolescentes e outros.
(8a. Série - Diário de Campo 6:11)
Pesquisadora - Você gosta de ler?
Luciane - Gosto, dependendo do livro.
(8a. Série - Diário de Campo 6:14)
Luís - Eu gosto de ler revistas, assim assuntos que sejam mais
interessantes. Nós homens gostamos de ler Playboy, tem assuntos sobre sua
vida pessoal. Livros, eu gosto de aventuras, romance eu não gosto de ler,
assim de amor. Só de aventuras!
(8a. Série - Diário de Campo 6:17)
Márcia - Gosto muito de ler!
Pesquisadora - De que tipo de livro você mais gosta?
Márcia - Terror, suspense, porque a gente fica mais vidrado no que vai
acontecer no final do livro.
(8a. Série - Diário de Campo 6:46)
Isabel - Eu gosto um pouco de ler, prefiro textos de aventuras.
(8a. Série - Diário de Campo 6:30)
Pesquisadora - Você gosta de ler?
Olívia - Depende do assunto, tenho preferência pelas leituras mais ou
menos da minha idade, como revista Capricho, Querida, Gatos, Carícia. Gosto
também de saber novidades, ler reportagens interessantes....
(8a. Série - Diário de Campo 6:32)
Rosana - Ah, dependendo da leitura, eu gosto de ler, mas tem que ser
um livro interessante, de preferência que seja de aventura, pois tem mais
emoção.
(8a. Série - Diário de Campo 6:37)
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Iara - Eu gosto de ler, leio todas as noites, quando não estou com sono!
(8a. Série - Diário de Campo 6:38)
Liane - Não são todas as pessoas que gostam de ler, eu sou uma. Mas
às vezes eu dou umas lidas, eu sei que é preciso. Se for para eu ler um livro,
ou um texto, prefiro ler de aventura ou romantismo.
(8a. Série - Diário de Campo 6:42)
Pesquisadora - Você gosta de ler?
Jorge - Não gosto. Às vezes gosto de olhar livros de piadas, às vezes eu
leio jornal. (8a. Série - Diário de Campo 6: 50)
Neiva - Eu gosto de ler livros de adolescente, coisas que se relacionam
com a minha vida, revistas Carícia, Querida... Adoro ler também revistinhas
infantis, Cebolinha, Mônica, mesmo que eles falem meio errado, mas eu
sempre tento ler falando certo (3). (8a. Série - Diário de Campo 6: 55/58)
Muitas outras falas poderiam interagir dialogicamente sobre o gostar e o
não gostar de ler, a maioria revela um gostar, principalmente um preferir, o que
implica em opções de leitura. Os alunos dão referenciais do que já leram,
daquilo que costumam ler, indiciam os projetos que os levaram ao ato de ler,
ora para se distraírem, ora para aprenderem, ora para a execução de
atividades escolares. Como mostra esta pesquisa se “você vai além do desejo
... dos estudantes, ou se trabalha fora de sua linguagem e de seus temas, verá
os resultados, a resistência deles.” (SHOR, 1986: 73) O que demonstra
também que a escola não é uniforme na reprodução da ideologia, pois mesmo
impondo um currículo e programas oficiais, em seus espaços geram-se
momentos de resistência e a construção de subjetividades.
Subjetividades que têm diferentes gostos, preferências e concepções do
que significa ler.
Luciane - Ler é saber em silêncio. É aprender para a vida, para conhecer
o mundo que está aí. (8a. Série - Diário de Campo 6: 61)
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O que realmente revelam as falas dos alunos com relação ao ato de ler
e às práticas escolares de leitura?
Ao olharmos o que hoje se passa na sala de aula, ao escutarmos as
vozes dos alunos, podemos perceber práticas de leitura não ideais, mas é
possível perceber um movimento de mudanças com relação às práticas de
leitura mapeadas pelos estudos da década de oitenta. A escola viabilizou
novas atuações, recursos e espaços, mas a valorização de outro tipo de
objeto/objetivo de leitura não se alterou: é uma leitura para a aprendizagem de
conhecimentos, como forma de acesso ao mundo culto.
Hoje, na escola, estão autorizados novos portadores de texto - a revista,
o jornal, histórias em quadrinhos, folhetins... - porém, estes não são aceitos
como os escolarmente rentáveis, como se percebeu na aula observada na
oitava série.
Este fato, que de certa forma, é coerente com as propostas da década
passada: aceitar o heterogêneo para que se alcançasse o ideal - os livros.
Como a literatura é um instrumento que permite perceber e incluir um
maior número de representações da realidade e do imaginário, não posso
deixar de ouvir nas falas dos alunos que tanto a escola, através de seus
professores, como os estudos teóricos, visualizavam como objetivo a ser
alcançado, em suas diferentes alternativas, o mundo culto, o literário, o
beletrista. Esta concepção é hoje ainda muito forte e funciona como paradigma
para a valorização cultural e social, compondo o que significa “ser letrado”.
Exemplo interessante encontramos numa pesquisa publicada recentemente
pelo jornal “Folha de São Paulo”, intitulada “Maioria diz que não lê por falta de
tempo” (Folha de São Paulo, 11/08/96), pesquisa de respostas fechadas e de
algumas alternativas, o principal parâmetro para a afirmação da inexistência de
leitura é ausência de leitura de livros.
A pesquisa, realizada a partir do evento da Bienal do livro, referencia-se
apenas em livros, considerando a leitura em três funções básicas - lazer ou
cultura, escola e trabalho.
Nas alternativas de respostas não há espaços para a valorização da
heterogeneidade de portadores de textos, e o econômico atua como forte
determinante para a não leitura. Associados, os aspectos econômicos e a
afirmação da falta de tempo - afinal dizer que não tem tempo para ler é uma
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forma de ao mesmo tempo dar valor social para a leitura, reconhecido pelo
entrevistado, sem que ele se exponha publicamente como “sem recursos” ou
“sem cultura” - mostram o que a ordem social parece ter construído em relação
ao ato de ler.
O não gostar de ler e a distância que aparentemente se estabelece com
o sujeito leitor são produzidos culturalmente, pelos valores e atribuições que
nossa sociedade concede à leitura. Ao olharmos o cotidiano verificamos a
presença da linguagem escrita. É exatamente no movimento de busca dos
sentidos, do que significa ler, nos dizeres das crianças e adolescentes, nas
suas vivências cotidianas de leitura, que percebo que o conceito do que é ler e
do que pode ser considerado como leitura se amplia e ‘escapa’ ao controle da
norma instituída socialmente. Foi necessária a mudança da concepção de
leitura, para que a diversidade e o heterogêneo fossem autorizados a entrar na
escola. Hoje, vemos que este heterogêneo faz circular sentidos na sala de
aula. Sentidos que ainda não são aceitos pela escola e pela cultura letrada.
Ao aceitar, na escola, estes sentidos que apresentam outras funções
sociais, que não somente representar o mundo escolar e culto - pois posso ler
cartas, revistas, jornais, documentos, a bíblia... - então, eu posso perceber uma
sociedade de sujeitos leitores que percebem os sentidos vividos nos textos
lidos. Desta forma, estas vozes talvez nos indiquem alguns caminhos a serem
seguidos: envolvermos nossos alunos na construção dos “seus e tão nossos”
projetos de leitura e, principalmente de os ouvirmos, para que captemos suas
preferências, e os sentidos de suas leituras, e possamos perceber que ler
também pode ser “saber em silêncio!” (Luciane, 8ª. Série)
Isto implicaria a construção de uma nova noção do que significa ser
letrado e do que significa ser leitor, para que possamos acreditar que há
Uma só condição para se reconciliar com a leitura: não pedir nada em
troca. Absolutamente nada. Não erguer nenhuma muralha fortificada de
conhecimentos preliminares em torno do livro. Não fazer a menor pergunta.
Não passar o menor dever. Não acrescentar uma só palavra àquelas das
páginas lidas... Proibir-se completamente “rodear o assunto”. Leitura-presente.
Ler e esperar. Não se força uma curiosidade, desperta-se. (PENNAC, 1995:
121)
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Ao perceber o gostar precisamos ficar atentos aos sentidos e forças que
se manifestam nas histórias de leitura dos alunos e constata-se que atualmente
se estabelece uma nova contradição com a questão da leitura na escola: a
construção de sentidos não ocorre do mesmo modo pelo mesmo sujeito em
diferentes momentos de leitura, e muito menos por sujeitos diferentes em
tempos diferentes. Não é possível ignorar que a maioria destes alunos vivencia
e interage no seu cotidiano com uma diversidade de portadores de textos e têm
interações diferenciadas com estes textos. Esta heterogeneidade e estas
interações permitem que estes leitores/escritores não sejam passivos mas que
expressem
suas
opiniões
e
que
construam
sentidos
nas
suas
leituras/escrituras. Hoje, estes sentidos e forças do texto escolarmente não
valorizado passam a circular na escola como constituídos no tempo da sala de
aula, mas ainda não são aceitos escolar e socialmente como objetos de leitura
pertencentes ao mundo letrado.
Aceitar que ler é navegar na heterogeneidade de textos e na sua
funcionalidade social, produzindo sentidos, é buscar noções de leitura e de
letramento mais amplos em construção neste momento histórico. No entanto, a
escola ainda não sabe como lidar com tal heterogeneidade, o que indicia que é
preciso construir novas relações de leitura na escola, que só se estabelecerão
através de outra noção do que significa ser letrado, do que significa ser culto.
Deste modo, será possível pensar um novo exercício de cidadania da
leitura que se inscreva nas condições concretas de vida humana e que permita
ao sujeito lutar por estas condições.
Para situar nos dizeres dos alunos o gostar ou o não gostar de ler foi
necessário ultrapassar os limites da vida escolar, e considerar as relações
sociais e comunitárias mais abrangentes, que lhe dão sentido e dignidade.
(GIROUX, e MCLAREN, 1994, in MOREIRA, e SILVA: 148). É exatamente nas
relações sociais e comunitárias mais abrangentes que podemos verificar a
existência dos vários tipos de letramento que estes alunos têm e vivenciam,
indiciando uma nova concepção de letramento já presente nas relações sociais
mas ignorada pela escola e pela cultura escolar.
Esta ampliação, redefinindo o que significa ler e ser leitor, nos mostra
que a crise da leitura foi e é construída social e culturalmente face a valores,
organização e funções do mundo da escrita em nossa sociedade.
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Nesta visão, até mesmo porque o olhar se volta para o heterogêneo,
também a existência do não gostar de ler se enfraquece. Como os espaços e
as escolhas de leitura não acontecem somente na escola, este não gostar a
que nos habituamos foi institucionalizado pela escola e ao seu vínculo a uma
definição muito precisa dos objetos de leitura aceitáveis. Hoje, quando se
ouvem as vozes dos alunos, encontramos na escola momentos de intimidade
entre textos e leitores e no forte tom do dizer destas vozes, o gostar de ler,
desde que estes alunos possam definir suas escolhas.
Para que aconteça a reconciliação entre leitura e escola faz-se
necessário refletir e analisar criticamente os sentidos e significados das ações
pedagógicas que envolvem hoje a leitura. Possibilitando deste modo
desenvolver projetos concretos de leitura coerentes com as forças e os
sentidos dos tipos de letramento presentes em nossa sociedade.
Com certeza não podemos abrir mão dos espaços já conquistados, mas
é preciso avançar mesclando saberes e sabores, buscando os sentidos da
diversidade e da heterogeneidade, permitindo ao leitor navegar nos seus textos
produzindo sentidos, para que a leitura possa deixar de ser considerada um
privilégio de certas classes. Desta forma, a escola poderá ser o local para a
redescoberta do gostar e do prazer de ler.
Que as vozes das ‘Carolinas, dos Josés e dos Daniéis’ tenham eco
suficiente para nos fazerem buscar a mobilização concreta e cotidiana na
direção de novos caminhos. Navegar, na imprecisão do heterogêneo, agora
mais do que nunca, é preciso!
Notas
(1) Este artigo foi elaborado a partir da pesquisa de Dissertação de Mestrado
intitulada “AS VOZES DE CAROLINA, JOSÉ E DANIEL...” , sob a orientação
do Prof. Dr. João Wanderley Geraldi.
(2) Segundo a entrevistada o pai é pedreiro e construiu uma casa e, mesmo
após ter pago as taxas no CREA (Conselho Regional de Engenheiros e
Arquitetos) este órgão continuava enviando cartas de cobrança.
(3) Note-se que a entrevistada faz e incorpora a crítica ao modo de falar e
escrever que não é aceito como dito padrão pela sociedade e logo pela escola.
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as práticas de leitura na escola nas vozes de carolina, josé e daniel