III Simpósio Gênero e Políticas Públicas
Grupo de Trabalho: 600 - MC2: Gênero, Cuidados e Políticas Públicas
Título do trabalho: A centralidade da família na Política Nacional de Assistência Social: um breve
estudo
Autora: Cristiana Maria Venâncio
Titulação: Assistente Social da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura Municipal de
Florianópolis, graduada na Universidade Federal de Santa Catarina, com especialização em
Violência Doméstica contra a criança e o adolescente, Universidade de São Paulo, 2004, e em
Serviço Social, Universidade de Brasília, 2010.
Co-autora: Ana Paul Hoffmann
Titulação: Assistente Social da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura Municipal de
Florianópolis, graduada na Universidade Federal de Santa Catarina, ano de 2008, com
especialização em Educação Especial e Educação Inclusiva, Faculdade Internacional de Curitiba,
ano de 2012.
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A centralidade da família na Política Nacional de Assistência Social: um breve estudo
Cristiana Maria Venâncio*
Ana Paula Hoffmann**
RESUMO
A conquista dos direitos sociais protagonizada no século XX, o desenvolvimento do Estado
capitalista, o acirramento das sequelas das questões sociais decorrentes do capitalismo monopolista
e os rebatimentos dessas equações na família são aqui tratados de forma a identificar os avanços no
âmbito da assistência social enquanto direito do cidadão e dever do Estado, os entraves para a
garantia desse direito social e o papel atribuído à família na proteção e no cuidado de seus
membros, diante de um contexto de agravamento das desigualdades sociais.
Palavras-chave: Direitos sociais, Política Social de Assistência Social, Família.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no artigo 16, identifica que a família
“é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”.
A Constituição Federativa do Brasil de 1988 define, no art. 226, § 4º, a entidade familiar como
“comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes” e em seus artigos 227, 229 e
230, consolida a importância da família na garantia da proteção e cuidado de seus membros, assim
como dispõe sobre o dever do Estado de proteção especial à família.
A organização da Política Nacional de Assistência Social – PNAS, baseada na Constituição
de 1988 e na LOAS, confere a centralidade na família para concepção e implementação dos
*Assistente Social da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura Municipal de Florianópolis, Especialista em
Violência Doméstica contra a criança e o adolescente, Universidade de São Paulo, 2004;Especialista em Serviço Social,
Universidade de Brasília, 2010.
** Assistente Social da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura Municipal de Florianópolis, graduada na
Universidade Federal de Santa Catarina, ano de 2008, com especialização em Educação Especial e Educação Inclusiva,
Faculdade Internacional de Curitiba, ano de 2012.
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benefícios, serviços, programas e projetos, assumindo a matricialidade sociofamiliar como diretriz e
eixo estruturante do Sistema Único de Assistência Social – SUAS.
A família na Política Nacional de Assistência Social é entendida como um “conjunto de
pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e, ou, de solidariedade” (PNAS,
2004, p. 25). Trata-se de um conceito que considera a parentalidade socioafetiva, a desbiologização
dos laços familiares. A família é percebida como uma unidade alargada, ou seja, que não se
restringe à consanguinidade ou à convivência sob o mesmo teto, incluindo, também, a rede de
solidariedade composta de amigos e vizinhos.
Entretanto, o conceito de família da PNAS não se aplica para concessão do Benefício de
Prestação Continuada (BPC) preconizado na Lei Orgânica da Assistência Social. Verifica-se aqui
uma diminuição significativa da abrangência da concepção de família, a qual se restringe ao
“conjunto de pessoas que vivem sob o mesmo teto, assim entendido, o requerente, o cônjuge, a
companheira, o companheiro, o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou
inválido, os pais, e o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido”.
Dessa forma, constata-se que os conceitos de família utilizados na política de assistência
social brasileira estão diretamente relacionados à contrapartida que se espera do Estado. No caso
brasileiro, fica configurada a proposição de um Estado Social mínimo para a maioria da população e
máximo para o capital.
Diante da minimização da função de proteção social por parte do Estado, Boschetti (2009, p.
329-331) pontua que o sistema de proteção social brasileiro restringe a previdência aos
trabalhadores inseridos no mercado formal de trabalho, universaliza a saúde e limita a assistência
social. Nessa lógica, deixa sem acesso aos direitos da seguridade social mais de 50% da população
economicamente ativa, considerando-se que grande parcela da população não está inserida no
mercado de trabalho formal; que o sistema de saúde está cada vez mais sucateado, fator que
favorece a procura por planos privados; e que a assistência social não consegue atender toda a
demanda decorrente do aumento do desemprego estrutural, de modo que oferece serviços e
benefícios apenas aos mais pauperizados.
Para Pereira (2009, p. 25), o modelo de proteção social brasileiro identifica-se como misto1
ou plural, pois apresenta características dos regimes liberais, conservadores e social democrata.
Outra característica deste modelo de proteção social, que é imprescindível para a sua efetivação, é a
corresponsabilidade estabelecida entre o Estado, o mercado e a sociedade civil (família, vizinhos,
1 “Intervenções públicas tópicas e seletivas – próprias dos regimes liberais -; adoção de medidas autoritárias e
desmobilizadoras dos conflitos sociais – típicas dos modelos conservadores – e, ainda, o estabelecimento de
esquemas universais e não contributivos de distribuição de benefícios e serviços – característicos dos regimes
social-democratas”. (PEREIRA, 2006b, apud Andrade, 2009, p. 65).
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comunidade). No contexto da contemporaneidade e diante das transformações no modo de
produção e reprodução social, decorrentes da reestruturação produtiva e do ideário neoliberal, essa
corresponsabilidade vem sendo bem acolhida pelo Estado e pelo mercado, considerando-se que:
[...] o Estado não mais reivindica o posto de condutor-mor da política social;
pelo contrário, dele se afasta. O mercado [...] prefere aprimorar-se na sua
especialidade, que é satisfazer preferências, visando o lucro, e não
necessidades sociais. Ambos – Estado e mercado - […] cedem cada vez
mais espaço à sociedade [...] para que esta exercite a sua “vocação solidária”
e emancipe-se da tradicional colonização do Estado”. (PEREIRA, 2009, p.
34).
Com relação à proteção social da família, a citada autora, avalia que no Brasil, assim como
em muitos países capitalistas centrais, não existe uma política de família, “se por política entenderse um conjunto de ações deliberadas, coerentes e confiáveis, assumidas pelos poderes públicos
como dever de cidadania, para produzirem impactos positivos sobre os recursos e a estrutura da
família”. (idem, p. 27).
Carvalho (2000, p. 16) corrobora com Pereira (2009), sinalizando que no Brasil, assim como
na América Latina, há um Estado-Providência frágil e uma Sociedade-Providência forte, o que
caracteriza o Welfare Mix, que se operacionaliza na partilha da responsabilidade da proteção social
entre o Estado, a sociedade civil e a iniciativa privada. Para a autora,
a reforma do Estado em curso, as compressões políticas e econômicas
globais; as novas demandas de uma sociedade complexa; os déficits
públicos crônicos; a revolução informacional; a transformação produtiva; o
desemprego e a precarização nas relações de trabalho; a expansão da
pobreza e o aumento das desigualdades sociais, são alguns dos tantos fatores
que engendram demandas e limites e pressionam por novos arranjos e
modos de gestão da política social.
No que tange às políticas sociais que apresentam como eixo estruturante a família, Saraceno
e Naldini (2003) desenvolveram um estudo sobre a política familiar de alguns países europeus e dos
Estados Unidos. As autoras identificam que são muitos os países que desenvolvem a política
familiar como estratégia para o combate das novas questões sociais que afetam a família e a
sociedade, mas que são poucos os países que adotaram uma política familiar explícita, na qual é
criado “um conjunto de programas de política social intencionalmente destinado a alcançar
finalidades específicas relacionadas com o bem-estar familiar” (idem, p. 337). As autoras citam
como exemplos de política familiar explícita aquela desenvolvida na França, na Bélgica e em
Luxemburgo, países onde se aplicam generosa transferência monetária e desenvolvem serviços para
a infância, possibilitando à mulher a conciliação dos papéis sociais de mãe e de trabalhadora, assim
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como preconizando a igualdade entre os sexos.
Outro tipo de política familiar, citado pelas referidas autoras, é o de cunho liberal, ou seja, o
da não intervenção do Estado nas questões familiares em virtude de a família situar-se na esfera
privada. Essa política familiar é, como se percebe, de natureza predominantemente seletiva, sendo
destinada a famílias pobres e em situação de risco.
Saraceno e Naldini (idem, p. 339-341) sinalizam ainda as características da política familiar
desenvolvida nos países de Portugal, Espanha e Itália, que em muito se assemelham às da política
social brasileira. São características dessa política: fragmentação dos serviços, valor baixo das
transferências monetárias, seletividade dos sujeitos demandatários, escasso desenvolvimento de
serviços para a infância, ausência de política de conciliação família-trabalho. As autoras salientam
que diante das fragilidades da política familiar recorre-se ao modelo de solidariedade de obrigações
familiar e de parentesco, cujo limite vão além da residência e da consanguinidade; investe-se,
também, na ideia de que a reprodução social e a prestação de cuidados são exclusividades da
família e, de modo subsidiário, do Estado.
Ao encontro dos estudos de Saraceno e Naldini (2003), Carvalho (2000, p. 18) afirma que
no Brasil a família se constitui como rede de sociabilidade e solidariedade na proteção social, uma
condição de resistência e sobrevivência para as camadas populares. Nesse sentido, “[…] a família
retoma um lugar de destaque na política social. Ela é ao mesmo tempo beneficiária, parceira e podese dizer uma “miniprestadora” de serviços de proteção e inclusão social”.
Segundo a referida autora, constituem-se em premissas para a reflexão sobre o lugar da
família na política social brasileira, na década de 90: as expectativas construídas no imaginário
coletivo, que estão impregnadas de idealizações e têm a família nuclear como símbolo, com ênfase
nas expectativas de que a família “produza cuidado, proteção, aprendizado dos afetos, construção de
identidades e vínculos relacionais de pertencimento capazes de promover melhora na qualidade de
vida a seus membros e efetiva inclusão social na comunidade e sociedade em que vivem” (idem, p.
15); a necessidade de perceber a família no seu movimento de organização-desorganizaçãoreorganização, o qual está diretamente relacionado com o contexto sociocultural.
Diante das idealizações impregnadas na percepção de família, Pereira (2009, p. 36)
identifica que
[...] a família, como toda e qualquer instituição social, deve ser encarada
como uma unidade simultaneamente forte e fraca. Forte, porque ela é de fato
um lócus privilegiado de solidariedade, no qual os indivíduos podem
encontrar refúgio […] porque é nela que se dá, de regra, a reprodução
humana, a socialização das crianças e a transmissão de ensinamentos que
perduram pela vida inteira das pessoas. Mas é frágil, “pelo fato de não estar
livre de despotismo, violências, confinamentos, desencontros e rupturas.
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Carvalho (2000, p. 19) pontua que a família somente estará apta a cumprir com a função de
proteção social de seus membros, se ela, a família, também for protegida. Nesse sentido, a autora
afirma que “o potencial protetor e relacional aportado pela família, em particular daquela em
situação de pobreza e exclusão, só é possível de otimização se ela própria recebe atenções básicas”.
Nesse contexto, constata-se que a centralização da política de assistência social na família,
configura-se como uma estratégia da política neoliberal para minimizar a função social do Estado.
Observa-se que o carro-chefe da política assistencial concentra-se nos programas de transferência
de renda, enquanto que os serviços de proteção básica, como os de média e alta complexidade do
SUAS - cujas ações são focadas na orientação, no acompanhamento e no apoio familiar, portanto
espaço socioassistencial imprescindível para a implementação de uma “política de família” -, estão
relegados a um segundo plano e sujeitos a precarizações: escassez de recursos humanos, materiais e
estruturais, carência de recursos assistenciais. Dessa forma, ao fazer-se uma aproximação com os
dispositivos legais e operacionais que subsidiam a política de assistência social na realidade
brasileira, percebe-se a responsabilidade repassada à família na proteção social de seus membros,
garantindo-lhes a reprodução.
Observa-se que a centralidade da família na política de assistência social não se reporta a
qualquer família, mas às famílias com registros de fragilidades, vulnerabilidades e violência
intrafamiliar, constata-se que o público alvo das ações da política de assistência social é as famílias
multiploblemáticas pobres2, ou seja, àquelas que, em decorrência da pobreza, ficam vulneráveis a
intervenção pública na esfera privada. A intervenção do Estado nas famílias pobres, corrobora com
a ideia de impotência ou fracasso familiar, considerando-se que, historicamente, a atuação do
Estado no âmbito privado se deu de duas formas: para normatizar e/ou moldar o sujeito ideal; para
vigiar e controlar de forma a garantir-se a economia social. (DONZELOT, 2001, p. 66-68).
Diante das considerações elencadas e apesar dos avanços constitucionais, são vários os
autores que caracterizam a política de assistência social brasileira como de cunho Familista.
Zimmermann (2006, apud Andrade, 2009, p. 16) afirma que, “sob a ótica dos direitos, não se pode
imputar a responsabilidade do bem-estar aos indivíduos e à família, e sim responsabilizar os
poderes públicos por não garantir direitos que atualmente são tratados como condicionalidades”.
Para Mioto e Campos (2010, p. 184), o “familismo” resulta de uma alternativa (exigência)
das políticas públicas para que as unidades familiares assumam a responsabilidade pelo bem-estar
social. Nessa perspectiva, as autoras pontuam que, no familismo, a família passa a ser analisada
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Souza, Hespanha, Rodrigues e Grilo (2007, p. 20) identificam a família multiploblemática pobre como “aquelas
onde não existe um problema ou um sintoma preciso, mas que apresentam múltiplos problemas graves que afectam
vários elementos da família, vividos em simultâneo e/ou em sequência”.
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sobre duas óticas: enquanto unidade econômica e como unidade prestadora de cuidados.
a tradição “familista” no âmbito da política social tem se construído a partir
do pressuposto que existem dois canais “naturais” para satisfação das
necessidades dos cidadãos: o mercado (via trabalho) e a família. Somente
quando falham estes canais é que o Estado intervém, e de forma temporária.
Diante dessas reflexões, que são incipientes e que merecem um estudo mais aprofundado,
conclui-se que no Brasil a política de assistência social apresenta característica seletiva,
fragmentada, compensatória e alicerçada no familismo. Nessa equação, subtraíram-se as famílias
que “aptas” para serem “protegidas” pelo Estado, e multiplicam-se as responsabilidades da família
diante da condição de pobreza, individualizando os problemas, buscando-se respostas na esfera
privada a questões referentes à violência estrutural, as quais são decorrentes do modo de produção e
reprodução do capitalismo monopolista.
Referências Bibliográficas
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breve análise dos sistemas de proteção social na região. Disponível em:<
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______ Lei nº 8.742 de 07 de dezembro de 1993. Lei Orgânica da Assistência Social.
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PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Mudanças estruturais, política social e papel da família:
crítica ao pluralismo de bem-estar. In: Política Social, Família e Juventude: uma questão de direitos.
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SARACENO, Chiara; NALDINI, Manuela. Sociologia da família. Lisboa: Estampa, 2003.
SOUZA, Liliana; HESPANHA, Pedro; RODRIGUES, Sofia; GRILO, Patrícia. Famílias pobres:
desafios à intervenção social. Lisboa: CLIMEPSI. 2007.
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