ISSN 1982 - 0283 EDUCAÇÃO INFANTIL NO CAMPO Ano XXIII - Boletim 11 - JUNHO 2013 EDUCAÇÃO INFANTIL NO CAMPO SUMÁRIO Apresentação........................................................................................................................... 3 Rosa Helena Mendonça Introdução............................................................................................................................... 4 Fernanda de Lourdes Almeida Leal e Jaqueline Pasuch Texto 1 - Educação Infantil no e do campo: uma história a ser descoberta e escrita ............. 13 Ana Paula Soares da Silva Texto 2 - Educação Infantil do campo: o desafio de cuidar/ educar bebês e crianças pequenas.........................................................................................23 Jaqueline Pasuch Texto 3: Olhando para a educação formal de crianças pequenas que residem em área rural do país: uma abordagem a partir do dispositivo legal............................................................30 Fernanda de Lourdes Almeida Leal Apresentação Educação Infantil no campo A publicação Salto para o Futuro comple- A edição 11 de 2013 traz como tema Educação menta as edições televisivas do programa Infantil no campo e conta com a consultoria de mesmo nome da TV Escola (MEC). Este de Fernanda de Lourdes Almeida Leal, pro- aspecto não significa, no entanto, uma sim- fessora da Unidade Acadêmica de Educação, ples dependência entre as duas versões. Ao Universidade Federal de Campina Grande contrário, os leitores e os telespectadores (UAEd-UFCG) e Jaqueline Pasuch, professora – professores e gestores da Educação Bási- da Universidade do Estado do Mato Grosso ca, em sua maioria, além de estudantes de – UNEMAT. cursos de formação de professores, de Faculdades de Pedagogia e de diferentes licen- Os textos que integram essa publicação são: ciaturas – poderão perceber que existe uma interlocução entre textos e programas, pre- 1. Educação Infantil no e do campo: uma servadas as especificidades dessas formas história a ser descoberta e escrita distintas de apresentar e debater temáticas variadas no campo da educação. Na página 2. Educação Infantil do campo: o desafio eletrônica do programa, encontrarão ainda de cuidar/educar bebês e crianças pe- outras funcionalidades que compõem uma quenas rede de conhecimentos e significados que se efetiva nos diversos usos desses recursos nas 3. Olhando para a educação formal de escolas e nas instituições de formação. Os crianças pequenas que residem em textos que integram cada edição temática, área rural do país: uma abordagem a além de constituírem material de pesquisa e partir do dispositivo legal estudo para professores, servem também de base para a produção dos programas. Boa Leitura! 1 Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro (TV Escola/MEC). Rosa Helena Mendonça1 3 Educação Infantil no campo INTRODUÇÃO Fernanda de Lourdes Almeida Leal 1 Jaqueline Pasuch 2 A temática “Educação Infantil do/no campo” relação à qualidade do atendimento para os é nova no Brasil. Sua trajetória de constru- bebês e as crianças pequenas que residem ção vem desafiando pesquisadores, gesto- no campo. res, professores, movimentos sociais e sindicais a dialogarem entre si. As questões que Consideramos que se faz necessário abordar se apresentam para a efetivação de políti- aspectos centrais para compreendermos cas públicas para a Educação Infantil do/no em que se fundamenta a Educação Infantil campo implicam a inextricável relação dia- do/no campo: resgatar a própria história de lógica entre os saberes pertinentes à Educa- emergência desta temática, evidenciar os ção Infantil e suas bases legais, assim como marcos legais que acompanham e mesmo às discussões, demandas e conceitos advin- dão suporte à sua trajetória, problematizar dos da Educação do Campo. A nosso ver, um em que consiste esta nova temática que se primeiro e primordial passo a ser dado na apresenta como desafio tanto à Educação garantia de direitos ao exercício pleno da ci- Infantil como à Educação do Campo e, por dadania é o reconhecimento de que esse é fim, elencar aspectos político pedagógicos um debate que precisa avançar em ambas para a Educação Infantil do/no campo. as áreas, com vistas à superação de invisibilidades, seja em relação ao acesso, seja em 1 Professora da Unidade Acadêmica de Educação, Universidade Federal de Campina Grande (UAEdUFCG). Coordenadora adjunta do Projeto Unicampo – pela Universidade Camponesa. Membro do NIEPI – Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre as Infâncias (UFCG-UEI). Consultora da edição temática. 2 Professora da Universidade do Estado do Mato Grosso – UNEMAT. Coordenadora do Fórum Matogrossense de Educação Infantil (MIEIB). Participou da coordenação do GT “Orientações Curriculares Nacionais para a Educação Infantil do Campo” (MEC/SEB-COEDI e SECAD/CGEC). Integra a equipe de coordenação da Pesquisa Nacional Caracterização das práticas educativas com crianças de 0 a 6 anos moradoras nos territórios rurais brasileiros (MEC/ UFRGS/UNEMAT). Consultora da edição temática.Eslovaca, Turquia. 4 BASES LEGAIS PARA UMA EDUCAÇÃO INFANTIL DO/NO CAMPO lazer, por exemplo. A Resolução n. 5, de 17 de dezembro de 2009 (CNE/CEB), que fixa as Diretrizes Curricula- A Educação Infantil, em sua história de con- res Nacionais para a Educação Infantil (DC- quistas legais, conceituais, teóricas e práti- NEI), incorporando a noção de que a criança cas, revela avanços que podem ser vislum- é sujeito de direitos, afirma, em seu artigo brados através de dispositivos legais – como 4º., que a LDB de 1996, que estabeleceu os marcos para a integração de creches e pré-escolas As práticas pedagógicas da Educação Infantil aos sistemas de ensino – e de construções deverão considerar que a criança, centro do epistemológicas próprias, que lhe garantem planejamento curricular, é sujeito histórico um lugar de atuação específico, capaz de e de direitos que, nas interações, relações e dialogar com os outros níveis da educação e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua com outras áreas do conhecimento (BRASIL, identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, 2011). fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre Do ponto de vista legal, é importante a natureza e a sociedade, produzindo cultura. ressaltar, ainda, o papel que tem a Constituição Federal brasileira de 1988, ao estabe- Como podemos perceber, essa compreensão lecer um novo olhar em relação à criança, e determinação legal, embora, em muitos reconhecendo-a como sujeito de direitos. A casos, não verificada nas práticas pedagó- Educação, em geral, e a Educação Infantil, gicas das instituições de Educação Infantil em particular, pautadas nessa concepção de do país, coloca em um novo patamar os de- criança, têm à sua frente um longo caminho bates em torno da criança, pois ela passa a de lutas a ser percorrido na direção da ga- ocupar um lugar de centralidade, para onde, rantia desses direitos, dentre eles o direito em tese, devem convergir, os discursos, as à vida, à saúde, à educação, à cultura e ao leis, as teorias, as práticas pedagógicas. 5 Esse lugar de centralidade vai motivar o deslocamento de olhares que, historicamente, estiveram mais orientados aos “outros” que interagem com a criança ao longo de sua trajetória, como, por exemplo, a família. Assim, ter direito à educação é uma asserção diretamente vinculada à criança e, pensando nela, enquanto sujeito, é que se devem construir parâmetros, propostas pedagógicas, enfim, todo um conjunto de reflexões e práticas que a tenham como referencial. Isso não significa a exclusão da família desse cenário, mas o direcionamento das perspectivas pedagógicas ocorre ou deverá ocorrer com ênfase primordial na criança, sendo que a instituição de Educação Infantil assume o caráter complementar à educação familiar. Sendo assim, as mais recentes DCNEI, que citamos acima, traduzem esse entendimento ao longo de seu texto. Do ponto de vista da Educação Infantil relacionada às crianças inseridas em culturas vinculadas aos diversos contextos que compõem o campo brasileiro, gostaríamos de ressaltar o parágrafo 3º, do artigo 8º, das referidas Diretrizes, que afirma: As propostas pedagógicas da Educação Infantil das crianças filhas de agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, quilombolas, caiçaras, povos da floresta, devem: 6 I – reconhecer os modos de vida no campo como fundamentais para a constituição da iden- tidade das crianças moradoras em territórios rurais; II - ter vinculação inerente à realidade dessas populações, suas culturas, tradições e identi- dades, assim como as práticas ambientalmente sustentáveis; III – flexibilizar, se necessário, calendário, rotinas e atividades respeitando as diferenças quanto à atividade econômica dessas populações; IV – valorizar e evidenciar os saberes e o papel dessas populações na produção de conheci- mentos sobre o mundo e sobre o ambiente natural; V – prever a oferta de brinquedos e equipamentos que respeitem as características ambien- tais e socioculturais da comunidade. A visibilidade específica dada, nessas Diretri- crianças”. Em segundo lugar, porque, de acordo zes, às crianças que residem no campo bra- com as Diretrizes complementares, normas e sileiro, cujo pertencimento, enquanto gru- princípios para o desenvolvimento de políticas po, está vinculado a atividades e a culturas públicas de atendimento da Educação Básica diversas, faz emergir a necessidade de reco- do Campo, tanto a Educação Infantil como os nhecermos e perguntarmos sobre as crianças anos iniciais do Ensino Fundamental deverão pequenas que habitam o campo brasileiro e a ser sempre oferecidos nas comunidades rurais, oferta, em termos de acesso e qualidade, de evitando-se os processos de nucleação de esco- uma Educação Infantil para elas. las e de deslocamento das crianças (artigo 3º), e, ainda conforme as Diretrizes complementa- O que se tem observado até então é que a res, “em nenhuma hipótese serão agrupadas situação dessas crianças tem tido, historica- numa mesma turma crianças de Educação In- mente, pouca ou nenhuma consideração em fantil com crianças do Ensino Fundamental” termos de um atendimento educacional públi- (artigo 3º, parágrafo 2º). co destinado a elas, sobretudo no lugar onde moram. Em geral, quando esse atendimento O arcabouço legal nos instiga a pen- ocorre, ele se dá de maneira irregular – crian- sar a respeito das práticas pedagógicas a se- ças com idade para frequentar a Educação In- rem constituídas nas instituições de Educação fantil inseridas, matriculadas ou não, em salas Infantil como aspectos vinculados à política multisseriadas do Ensino Fundamental, em es- de Educação Infantil. Há que se considerar os colas da zona rural – ou sendo transportadas modos de ser e viver dos bebês e das crianças para creches e pré-escolas da cidade. pequenas de maneira vinculada à organicidade de seus mundos de pertencimento. Também as Essas duas situações ferem o que prevê tanto as questões estruturais relativas à locomoção, à mais recentes DCNEI, como as Diretrizes Ope- alimentação, aos espaços internos e externos, racionais para a Educação Básica nas Escolas do aos brinquedos e aos demais materiais e uten- Campo (Resolução n. 1, de 3 de abril de 2002, sílios pedagógicos precisam ser consideradas. CNE/CEB) e as Diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de A formação dos professores da Educação In- políticas públicas de atendimento da Educação fantil para atuarem no campo certamente Básica do Campo (Resolução n. 2, de 28 de abril deverá constituir-se de conhecimentos teó- de 2008, CNE/CEB). Em primeiro lugar, porque, rico-metodológicos que levem em conta as conforme o parágrafo 5º. , do artigo 5º. das especificidades da vida no campo. DCNEI, “as vagas em creches e pré-escolas devem ser oferecidas próximas às residências das 7 POR QUE PENSAR NUMA EDUCAÇÃO INFANTIL DO CAMPO? A perspectiva de uma Educação Infantil do campo instiga a uma reflexão sobre a razão ou os motivos de se problematizar a situação das crianças de 0 a 6 anos que residem em áreas rurais do Brasil. Será mesmo necessário provocar debates, encontros, seminários, pesquisas, sobre uma Educação Infantil voltada às crianças que residem no território rural brasileiro? Na direção de levantar dados sobre a Pesquisa Nacional da Educação na Reforma realidade educacional do campo brasileiro, Agrária apontava ainda que apenas 3,5% das vamos encontrar argumentos para defender instituições educacionais do campo possuíam a urgente necessidade de nos ocuparmos atendimento para crianças de 0 a 3 anos. com a questão das crianças de 0 a 6 anos, habitantes do território rural brasileiro. Segundo Rosemberg (apud BRASIL, 2011, p. 4), referindo-se às desigualdades étnicas, re- Dados apontados, em 2005, pelo Ministério gionais e de classe que atingem as crianças da Educação e o Ministério do Desenvolvi- de 0 a 6 anos: mento Agrário (apud BRASIL, 2011, p. 4) levam a afirmar que No que se refere à questão territorial, a desigualdade entre o oferecimento da educação As crianças de 0 a 6 anos do campo encon- infantil urbana e do campo é particularmente tram-se praticamente excluídas da educação preocupante, uma vez que no campo concen- infantil. Os indicadores nacionais evidenciam tram-se os maiores indicadores de pobreza. a desigualdade de acesso e a praticamente ine- Num processo de múltiplas desigualdades, as xistência de instituições no caso do segmento populações do campo sofrem com a ausência de 0 a 3 anos de idade. Enquanto que na po- de políticas públicas. pulação infantil urbana a taxa de frequência à creche, de acordo com a PNAD 2008, era de Historicamente, a criança passou a ocupar 20,52%, nos territórios rurais era de 6,83%. um lugar de reconhecimento, sob o nome Para as crianças de 4 e 5 anos, as porcentagens de “infância”, muito recentemente. De acor- eram de 63,37 e 42,66 respectivamente. Mais es- do com Ariès (1981, p. 17), pecificamente nas áreas de reforma agrária, a realidade das crianças assentadas em 2005 era [...] até por volta do século XII, a arte medieval des- a seguinte: 0,1% frequentam creche familiar ou conhecia a infância ou não tentava representá-la. É informal; 0,8% frequentam creche organizada difícil crer que essa ausência se devesse à incompe- como escola; 5,1% frequentam pré-escolas e tência ou à falta de habilidade. É mais provável que 2,3% frequentam classes de alfabetização. A não houvesse lugar para a infância nesse mundo. 8 É somente no século XVII, como resultado de respondidas, ajudar a mapear a situação das um processo lento de descoberta da infân- crianças pequenas que habitam os referidos cia iniciado já no século XIII e flagrado por territórios. E, por conseguinte, a resposta a Ariès (1981) a partir de seu clássico estudo elas possibilitaria a visibilidade e a inclusão iconográfico, que a criança passa a figurar desses sujeitos em políticas públicas de edu- no cenário social com status diferenciado cação, bem como em outras. do adulto e digno de atenção. Não obstante essa “aparição” da criança no âmbito das Nesse sentido é que entendemos que produ- preocupações das sociedades, vemos, no zir um campo de interesse, capaz de gerar caso brasileiro, a reedição da experiência de estudos, pesquisas e ações efetivas voltadas um certo “desaparecimento” a partir de ou- às crianças de 0 a 6 anos residentes em re- tras bases: as crianças existem, mas, no caso giões rurais do país poderia fazer avançar que estamos refletindo aqui, estão alijadas a Educação Infantil nesses espaços e para de um atendimento às suas necessidades e esses sujeitos. Até o presente momento, o aos seus direitos mais fundamentais a par- que se observa é a promoção de ajustes pre- tir da produção de uma invisibilidade, que, cários para responder às demandas educa- conforme Sarmento (apud BRASIL, 2011), é cionais dessas crianças, que, como dissemos homóloga da exclusão. acima, não atende a seus direitos e, além disso, perpetua uma situação de exclusão E de que invisibilidade estamos falando? É que, historicamente, esteve atrelada àque- consenso entre alguns estudiosos da Educa- les que habitam o campo brasileiro. ção Infantil e da Educação do Campo que, até o presente momento, pouco se sabe, em Do lado dos que atuam no âmbito da Educa- termos de dados confiáveis, acerca das reali- ção do Campo vamos encontrar avanços em dades das crianças pequenas brasileiras que termos de conquistas relacionadas às várias residem no campo no que se refere às suas etapas da educação formal: o Programa Esco- necessidades educacionais e de suas famí- la Ativa (SECAD/MEC) que, guardadas as críti- lias. Qual é a real necessidade delas? As fa- cas que lhe são dirigidas por pesquisadores e mílias querem ou necessitam de instituições militantes da Educação do Campo, está vol- de Educação Infantil – creches e pré-escolas tado para a ação metodológica e pedagógica – para atender aos seus filhos? Há uma de- do ensino multisseriado em salas do Ensino manda neste sentido? Essas instituições Fundamental, anos iniciais, em escolas loca- têm chegado, dentro de um patamar míni- lizadas nas zonas rurais do país; o Procampo mo de qualidade, aos territórios rurais bra- (SECAD/MEC) – Programa de Apoio à Forma- sileiro? Questões como essas poderiam, se ção Superior em Licenciatura em Educação 9 do Campo – que vem se desenvolvendo em foi composto um grupo coordenado pelas várias universidades públicas do Brasil e visa professoras Ana Paula Soares Silva (CIN- formar professores para atuarem no Ensino DEDI, USP/RP) e Jaqueline Pasuch (MOPEC/ Fundamental (anos finais) e Ensino Médio, UNEMAT/Sinop-MIEIB). Esse grupo foi com- em escolas também localizadas em terri- posto por: integrantes do MST (Edna Ros- tórios rurais ou que tenham como sujeitos setto, Márcia Ramos, Isabela Camini); CON- alunos provenientes desses territórios; o Pro- TAG (Eliene Novaes Rocha, Tânia Dornellas); nera – Programa Nacional de Educação na Re- FETAG-RS (Sonilda Pereira); Universidades forma Agrária (INCRA) que, em uma de suas (Anamaria Santana – UFMS-MIEIB, Antônia modalidades, promove a alfabetização de jo- Fernanda Jalles – UFRN-MIEIB, Eliete Avila vens e adultos de assentamentos da Reforma Wolf – UnB, Fernanda Leal – UFCG, Isabel de Agrária. Com ações e filosofias diversas, esses Oliveira e Silva – UFMG, Maria Natalina Men- três exemplares de programas ilustram certa des Freitas – UFPA, Sônia Regina dos Santos “cobertura” quanto ao atendimento no Ensi- Teixeira – UFPA). O GT propôs à SECAD e à no Fundamental – anos iniciais e finais –, no SEB a realização de discussão ampliada so- Ensino Médio, no Ensino Superior e na Educa- bre o tema. Essas Secretarias acolheram a ção de Jovens e Adultos. Quanto à existência proposta de realização de cinco Reuniões de uma ação dirigida à Educação Infantil das Técnicas regionalizadas, que ocorreram no crianças que moram em áreas rurais, não se período de agosto a outubro de 2010 em Ma- localiza um investimento mais consolidado naus, Porto Alegre, Belo Horizonte, Sinop e em termos de programas e projetos, ou mes- Natal. Os objetivos dessas reuniões foram: mo de políticas públicas. • debater as Orientações Curriculares para Educação Infantil do campo; Em dezembro de 2009, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para • promover a interface entre a Educação a Educação Infantil (DCNEI – Resolução n. Infantil e a Educação do Campo; 5/2009, CNE/CEB). Dessa aprovação, decorreu a necessidade de que o MEC elaborasse • identificar experiências que sirvam as Orientações Curriculares para a Educação como referências para políticas, programas e Infantil. Sensível às discussões realizadas no projetos na Educação Infantil do campo. âmbito das políticas e dos movimentos sociais e sindicais do campo, a COEDI/SEB/MEC lO grupo colaborou, também, com a organi- incorporou à proposta das Orientações Cur- zação do I Seminário Nacional de Educação riculares um texto específico sobre Educa- Infantil do Campo, ocorrido em dezembro de ção Infantil do campo. Para esse trabalho, 2010, em Brasília, realizado pelo Ministério da 10 Educação por meio da COEDI, da Secretaria de políticas públicas para a Educação Infantil Educação Básica, e da Coordenação Geral de do/no campo implicam a inextricável rela- Educação do Campo (CGEC), da então Secre- ção dialógica entre os saberes pertinentes à taria de Educação Continuada, Alfabetização Educação Infantil e suas bases legais, assim e Diversidade. Em 2011, uma pesquisa nacional como as discussões, demandas e conceitos passou a ser desenvolvida como resultado do advindos da Educação do Campo. Estas e ou- processo desencadeado pelo MEC e, em de- tras questões serão apresentadas e debati- zembro do mesmo ano, ocorreu o II Seminário das nos textos desta edição temática. Nacional de Educação Infantil do Campo, em um movimento de troca de experiências e de construção de uma área interdisciplinar. texto1: A referida pesquisa nacional, da qual fazem Infantil no e do campo: parte as autoras, poderá ser um elemento Educação aglutinador das discussões, debates e locali- uma história a ser zação das experiências a serem observadas e descoberta e escrita debatidas. 11 O primeiro texto da edição temática aborda os aspectos históricos relativos à educação TEXTOS DA EDIÇÃO TEMÁTICA infantil em creches e pré-escolas nos centros urbanos e na área rural. Destaca, entre Educação Infantil no campo3 outros temas relevantes, o papel da Coordenação Geral de Educação Infantil – COEDI, do Ministério da Educação, em articulação com a Coordenação Geral de Educação do A temática “Educação Infantil do/no Cam- Campo – CGEC, que vêm promovendo deba- po” é nova no Brasil. Sua trajetória de tes, seminários e produção de documentos construção vem desafiando pesquisadores, específicos, na tentativa de democratizar o gestores, professores, movimentos sociais acesso e a qualidade à creche/pré-escola nas e sindicais a dialogarem entre si. As ques- áreas rurais. tões que se apresentam para a efetivação de 3 Os textos desta publicação eletrônica são referenciais para o desenvolvimento dos assuntos abordados na edição temática Educação Infantil no campo, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola nos dias 17 e 19 de junho de 2013. texto2: Educação texto3: Olhando para Infantil do campo: a educação formal de o desafio de cuidar/ crianças pequenas que educar bebês e crianças residem em área rural pequenas do país: uma abordagem O segundo texto da edição temática destaca a importância de garantir aos bebês e crian- a partir do dispositivo legal ças pequenas das áreas rurais do país um processo educacional de qualidade no O terceiro texto da edição temática discute a realidade educacional relativa às crian- próprio campo, nas proximidades de suas re- ças que residem em área rural do país, com sidências, em creches e pré-escolas de Edu- idade para frequentar a Educação Infantil. cação Infantil. Para atender às especificida- Segundo a autora do texto: “A abordagem des desse atendimento, a autora apresenta desta realidade se dará pela ótica do direi- algumas das sugestões propostas no docu- to à educação – que integra o conjunto dos mento Orientações Curriculares para a Edu- direitos sociais fundamentais, desde a Cons- cação Infantil do Campo (COEDI/SEB/MEC). tituição de 1988 (BRASIL, 1988) – e, para tal, acompanhará os principais avanços normativos que, em grande medida, têm subsidiado as políticas de educação voltadas a este segmento específico da sociedade brasileira”. 12 texto1:Educação capazes Infantil no e do campo: uma história a ser descoberta e escrita de reescrever acontecimentos. Esse entendimento é importante para compreendermos os movimentos recentes no país de construção de uma nova etapa na história de atendimento educacional às crianças de 0 a 6 anos moradoras em área rural. Ana Paula Soares da Silva 1 A história da Educação Infantil, geralmente, Iniciamos essa edição temática no reconhecimento de que nós, pesquisadores e militantes, professo- res e gestores, adultos e crianças, somos sujeitos na e da história. Os discursos e as práticas sociais e coletivos, construídos história, na atravessam- -nos, impregnando nossas formas de agir no mundo hoje. No nosso é contada a partir de experiências situadas em centros urbanos; frequentemente, grandes centros urbanos. A educação dos sujeitos do campo é hoje entendida como direito, nos marcos da equidade, o que inclui a justiça social e o reconhecimento das diversidades e especificidades dos sujeitos de direito. caso, impactam nossas relações intergeracionais, assim como as relações entre campo e cidade, rural e urbano. Ao mesmo tempo, se somos submetidos à história, somos também sujeitos dela, construímos história e somos Por sua vez, no caso da educação em áreas rurais, as crianças bem pequenas recebem ainda atenção reduzida frente às demandas e aos enormes desafios para a universalização da educação obrigatória no campo brasileiro. A história da Educação Infantil no e do campo, a nosso ver, necessita ser (re)escrita a partir do alinhavo, da junção de histórias de duas áreas que se constituíram e vêm sendo registradas e documentadas, na política e na ciência, de forma paralela: a história do 1 Docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Coordenadora do subgrupo Subjetividade, Educação e Infância nos Territórios Rurais e da Reforma Agrária (SEITERRA) vinculado ao Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil. 13 atendimento educacional das crianças pe- dado das inúmeras crianças órfãs ou abando- quenas e a história da educação para as po- nadas, frutos da exploração sexual da mulher pulações rurais. negra e índia do senhor branco. Já na zona urbana, bebês abandonados pelas mães, por A história da educação das crianças bem pe- vezes filhos ilegítimos de moças pertencentes quenas é composta por práticas e discursos a famílias com prestígio social, eram recolhi- que se relacionam a diferentes áreas como dos nas ‘rodas dos expostos’ existentes em al- a Assistência Social, o Direito, a Psicologia, a gumas cidades desde o início do século XVIII Educação. Mais recentemente, a Sociologia (p.91). e a Antropologia passam a dedicar-se aos estudos da infância. As creches, no contexto da abolição da escravatura e de mudanças econômico-so- Sobre as instituições educacionais, hoje, po- ciais, provocadas pelo desenvolvimento da demos contar essa história no âmbito do que indústria, por transformações na organiza- já consolidamos chamar de Educação Infan- ção agrária e pela migração da população til, que engloba a creche e a pré-escola. Nem para os centros urbanos, aparecem como sempre ela teve um nome tão claro e único um artefato social para o acolhimento de para se referir às instituições educacionais crianças filhas de mulheres escravas libertas para as crianças de até 6 anos de idade. e de trabalhadoras de camadas pobres. Tam- Sabe-se que, no Brasil, na história das cre- bém foram profundas as mudanças nas con- ches e das pré-escolas, existem elementos figurações e redes de apoio familiares. No diferenciadores em suas origens relaciona- campo, havia a família extensa e a ocupa- dos à classe social, às relações étnico-raciais, ção feminina nas lidas econômicas não fazia a aspectos econômico-culturais, dentre ou- grande distinção entre local de moradia e de tros. Entretanto, pouco ainda sabemos so- trabalho. Na realidade urbana, essa configu- bre as diferenciações ou semelhanças relati- ração se modifica e a distância entre local vas ao atendimento no campo e na cidade. de trabalho e moradia cria necessidades di- Sobre isso, Oliveira (2005) afirma que: ferenciadas para as famílias, repercutindo na educação dos pequenos. Assim, pode-se Até meados do século XIX, o atendimento de supor que as primeiras creches criadas nos crianças pequenas longe da mãe em institui- centros urbanos acolhiam também popula- ções como creche ou parques infantis prati- ções que sofriam de uma transição entre a camente não existia no Brasil. No meio rural, vida no campo e sua inserção na cidade. onde residia a maior parte da população do país, famílias de fazendeiros assumiam o cui- Nesse contexto, num momento de influên- 14 cia das chamadas teorias higienistas e de na área rural, com caráter médico-sanitário, concepções que atribuíam à mulher a total apoiados no alto índice de mortalidade em responsabilidade pela educação e cuidado área rural na época (50%) e nas precárias das crianças, essas instituições são marca- condições de vida dessas populações: “Não das por uma forte orientação assistencial. devemos esquecer o abandono em que vi- Surgiram no bojo da criação de asilos e in- vem as pequenas cidades e as imensas zonas ternatos e numa mistura com situações, por rurais de nosso país” (VASCONCELOS; SAM- exemplo, de abandono, desnutrição, morta- PAIO, 1938, p. 206). Defendiam a maternida- lidade infantil. Fundamentavam suas ações de e a creche na área rural no âmbito do que educacionais em concepções advindas da chamavam de Centros de Saúde Rural. medicina e da filantropia. Por outro lado, as creches também foram Uma publicação de 1938, de Vasconcelos & objeto de luta da classe operária, principal- Sampaio, cientistas e pediatras, reflete bem mente a partir da chegada ao país de tra- o ideário da época. Denominada Problemas balhadores europeus com tradição no mo- médico-sociais da infância: o comércio das vimento anarquista e sindical. Aparecem as criadeiras, a publicação discutia os impac- primeiras instituições vinculadas às indús- tos do trabalho extradoméstico da mulher trias, uma forma de concessão da classe pa- de camada popular, associando-o a uma si- tronal às reivindicações dos trabalhadores. tuação de abandono da criança. Os autores afirmavam que “no nosso meio, a forma Ao longo do tempo, essa história se modi- mais perfeita de lar é aquela em que o mari- ficou e, em virtude do movimento de luta do trabalha para a manutenção e a mulher por creche, empreendido pelo movimento cuida da higiene e educação dos filhos” (p. de mulheres, nas décadas de 1970 e 1980, 15). Esse discurso esteve presente, inclusive, ocorreu uma ampliação das creches e pré- nas normativas nacionais que começavam a -escolas. O Estado cada vez mais é cobrado ser construídas no âmbito da Justiça e dos a assumir a educação pública das crianças primeiros tribunais de menores. Para Vas- bem pequenas, compartilhando essa tarefa concelos & Sampaio, um dos fatores que com a família e criando condições que sus- contribuíam para as altas taxas de mortali- tentem a igualdade de oportunidades entre dade infantil era o comércio das criadeiras, homens e mulheres. ou seja, das mulheres que tomavam conta de criança, em ambientes, segundo eles, in- Paralelamente, conhecimentos produzidos salubres. Para Lima (2012), Vasconcelos & por pesquisas na psicologia e na educação Sampaio defenderam a abertura de creches passam a questionar algumas concepções 15 que colocavam sob suspeição o atendimento à criança bem pequena em contextos coletivos e diferentes do familiar. Estudos sobre as interações que as crianças estabelecem entre si imprimiram novas visões sobre o papel das creches e pré-escolas e ressignificaram esses espaços como contextos possíveis de desenvolvimento da criança. Também, nesse período, consolidaram-se, no país, legislações que incorporam as crianças no mundo dos direitos humanos. Os direitos consubstanciados na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente2 , referentes a direitos básicos da pessoa humana, incluindo a educação, tornaram-se pauta da agenda pública voltada à infância. Os programas e ações des- tinados às crianças foram assim submetidos Em suma, a consideração das creches e à necessidade de se adequarem a um novo pré-escolas como um direito da criança ca- modelo de relacionamento intergeracional. racteriza uma transformação profunda em relação aos seus primórdios. O direito a fre- Em 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da quentar uma creche e uma pré-escola de Educação Nacional – LDB, as histórias das qualidade passa a ser estendido a todas as creches e pré-escolas se juntam, compondo crianças, independentemente da vinculação um segmento único, submetido a regula- de classe ou geográfica. mentações únicas. Ou seja, na medida em que ocorreram esNesse momento, a Educação Infantil já é sas modificações nas funções da Educação entendida como parte da educação básica Infantil, ela se expandiu como direito para e, portanto, como vinculada ao sistema for- todas as crianças, distanciando-se das pro- mal de ensino, composta por instituições postas presentes na origem das creches que compartilham o cuidado e a educação e pré-escolas. da criança com a família, que se caracteri- dos gestores e professores mudanças no zam por espaços de promoção do desenvol- ideário acerca dos sujeitos da Educação vimento integral da criança e, principalmen- Infantil, inicialmente vinculados à identi- te, como direito das crianças, e não apenas dade de filhos de trabalhadores urbanos. de seus pais trabalhadores urbanos e rurais. Se apenas recentemente as histórias das Esse fato vem requerendo creches e pré-escolas se juntam comple2 A Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, expresso na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 estão disponíveis na página oficial do governo federal: http://www.planalto.gov.br 16 tamente, e somente com a LDB de 1996 creta das crianças e famílias. definimos uma área denominada Educação Infantil, é ainda mais recente a junção dessas histórias com a história da educação ofertada às populações do campo, incluindo as crianças bem pequenas. Os elementos da história das políticas educacionais para as populações rurais são bem caracterizados por Calazans (1993) e Leite (2002). É evidente que, no dia a dia, muita experiência de Educação Infantil do campo Pode-se dizer que foram também o fim da aconteceu e acontece. Entretanto, o que escravidão e as mudanças ocorridas na di- a conjuntura atual requer é que haja uma nâmica agrícola, no final do século XIX e documentação histórica que, diferentemen- nas primeiras décadas do século XX, jun- te das práticas destinadas às crianças dos tamente com o processo de industrializa- centros urbanos, ainda em muito está por ção, que impuseram ao país a necessidade ser realizada. Essa documentação é impor- de pensar a qualificação dos trabalhadores tante por se tratar de parte de um projeto tanto urbanos como rurais. Até esse pe- de sociedade que deveria ter como preocu- ríodo, a formação educacional voltava- pação central compreender como a Educa- -se exclusivamente para as elites, da mes- ção Infantil é oferecida nos mais variados ma forma como no contexto urbano. contextos do território nacional, a fim de garantir esse direito dos bebês, meninos Nas décadas iniciais do século XX, são cria- e meninas do campo, da melhor forma dos os Patronatos Agrícolas e os Aprendi- possível e em respeito à opção da família. zados Agrícolas em uma relação bastante orgânica com o processo de modernização, Fazendo agora uma breve retomada da his- num momento em que a política agrícola tória da educação para as populações rurais, estava posta no eixo do projeto de desen- verificaremos que, se por um lado existem volvimento social e econômico do país. Se- elementos bastante específicos e diferen- gundo Oliveira (2003), essas instituições ciados em relação à história da Educação agiram de maneira articulada às propostas Infantil em contextos urbanos, por outro, de atenção à infância pobre, destinando há também relações de similaridade e apro- principalmente aos meninos órfãos e po- ximações. Essas histórias, embora não te- bres a educação pelo trabalho no campo. nham sido suficientemente documentadas Esse ato servia tanto ao controle das famí- de forma articulada na academia e nas po- lias e crianças pobres como ao controle e líticas públicas, entrecruzam-se na vida con- moralização das populações nos centros 17 urbanos, intensificados, naquele momento, a consideração da educação como uma es- pela sedução por um projeto de modernida- tratégia para o desenvolvimento dos territó- de referenciado em padrões externos. Essa rios rurais. postura decorria de um ideário que tinha na higienização das cidades e na culpabilização da pobreza os pilares para a manutenção da ordem social vigente. Essas instituições tinham, assim, um viés marcadamente assistencialista, prático, técnico e orientado para as políticas disciplinares e de repressão das populações e crianças empobrecidas. Na década de 1930, no bojo da crise na agricultura cafeeira e do embate entre um projeto de sociedade rural e outro dito moderno, caracterizado pelo desenvolvimento da indústria, a educação das “massas rurais”, em particular do jovem, é pautada como problema necessário de solução no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, nas suas linhas gerais. Nas décadas seguintes, outros projetos para a educação rural servem à mesma lógica assistencialista e de preparação de mão de obra, comprometida com uma política econômica que atendia aos interesses das elites agrária e industrial. Com o crescimento dos centros urbanos e a intensificação de problemas decorrentes, fortalecem-se os discursos e as políticas que buscam fazer da educação um instrumento para a “fixação” do homem no campo. Esse quadro se modifica principalmente a partir da década de 1980, com os novos movimentos de luta dos camponeses e com A proposta de educação rural, efetivada historicamente no país, é bastante criticada: em sua proposição; em suas formas de implantação e financiamento; em sua organização e estrutura; por suas concepções de campo. Esse modelo, nos anos 1990, é confrontado por uma proposta que emerge dos sujeitos do campo, que exige o reconhecimento de seus saberes e suas práticas na consideração de que são também construtores de conhecimento na relação com o mundo. Esse movimento ganha força a partir de 1998, com a realização da I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, organizada por movimentos sociais e sindicais ligados à luta pela terra e pela reforma agrária. Foi nessa conferência que se inaugurou mais amplamente o conceito de Educação do Campo, que veio a se tornar hegemônico nas Resoluções Nacionais que tratam da educação em área rural, nos anos 2000, no âmbito do Conselho Nacional de Educação – CNE. Segundo Caldart (2004), faz parte do desafio da construção do paradigma da Educação do Campo a produção de teorias e a disseminação das concepções que o embasam, que passa tanto pela luta política como pela construção de seu projeto político-pedagógico. 18 A educação dos sujeitos do campo é hoje Resultado desse processo é que a defasagem entendida como direito, nos marcos da de vagas na Educação Infantil, que sabida- equidade, o que inclui a justiça social mente afeta os grandes centros urbanos, e o reconhecimento das diversidades e em particular no segmento de 0 a 3 anos de especificidades dos sujeitos de direito. idade, afeta mais fortemente as populações do campo. A recuperação breve das histórias da Educação Infantil e da educação do campo, em- O que se pode dizer nessa seara é que exis- bora nos permita reconhecer que essas duas te uma complexidade nas questões relativas linhas de história foram tecidas muitas ve- ao campo e essa complexidade se reflete zes de modo paralelo e fragmentadas, deixa também na Educação Infantil. Ou seja, os evidente que existem semelhanças, fios que dados relativos à Educação Infantil no cam- alinhavam pontos de encontro nas concep- po precisam ser situados em relação aos da- ções que marcam suas origens. Entre esses dos gerais da distribuição dos serviços para fios, podemos destacar: as populações de 0 a 6 anos de idade e para as populações do campo. - o uso das instituições educativas como forma de controle social a favor de um deter- Além disso, há que se considerar, no caso da minado grupo e projeto; Educação Infantil, que até mesmo as informações, face visível para as políticas públi- - o governo sobre a infância, particularmen- cas, possuem também grandes fragilidades. te as crianças das camadas populares; A pesquisadora Renata Mendes Velloso, em seu mestrado sobre o controle das políticas - a precarização das formas de atendimento. públicas para a infância no campo, publicado em 2008, realizou uma análise dos dados A realidade, contudo, é arena de negocia- sociodemográficos sobre a população infan- ções e embates entre as práticas e os dis- til e demonstrou a dificuldade em discutir as cursos historicamente construídos. A efe- políticas para a Educação Infantil no campo, tivação dos direitos conquistados requer a tendo em vista os poucos dados encontra- continuidade e a organização da luta social. dos, sempre de maneira dispersa. Por vezes, Nessas histórias, apenas recentemente o di- eles se encontram inseridos nos resultados reito à educação em espaços coletivos das sobre o Ensino Fundamental ou possuem crianças do campo de até 6 anos de idade um recorte referente apenas ao atendimen- vem sendo pautado. to às crianças de 4 a 6 anos. Essa precariedade dos dados sobre as crianças de 0 a 6 anos 19 do campo foi enfrentada por Rosemberg & Declaração de 2002, produzido no Seminá- Artes (2012), na pesquisa que analisou os mi- rio Nacional por uma Educação do Campo, crodados coletados pelo Censo Demográfico a Educação Infantil foi pautada no bojo de 2010 e Censo Escolar 2010. suas reivindicações. Em 2011, o Movimento Interfóruns de Educação Infantil Brasileira De qualquer forma, as discrepâncias dos indi- (MIEIB) iniciou o debate dessa questão em cadores entre campo e cidade deixam evidente seus encontros regionais e nacional. que é difícil e ainda longo o processo de construção e consolidação da democracia no país, O Ministério da Educação, por meio da Coor- principalmente quando consideramos não ape- denação Geral de Educação Infantil – COEDI nas sua dimensão política, mas também as di- e em articulação com a Coordenação Geral mensões econômica, social e cultural. de Educação do Campo – CGEC, desde final de 2007, também vem promovendo debates, Como afirmam Silva, Pasuch & Silva: seminários e a produção de documentos específicos, na tentativa de democratizar o No campo, há diferentes formas de organização acesso e a qualidade à creche/pré-escola nas familiar e de relação das famílias com o sistema áreas rurais. 20 de produção, além de diferentes formas de educar os bebês e as crianças pequenas. Algumas Atender a esse direito requer um movimento dessas famílias podem não necessariamente de construção intensa na atualidade, um es- demandar vaga para seus filhos em creche/ forço coletivo de professores, gestores, pes- pré-escola. Contudo, outras podem requerer a quisadores das áreas da Educação Infantil e complementaridade da creche/pré-escola para da Educação do Campo, numa escuta dos ho- a educação de suas crianças, e esse direito lhes mens e, principalmente, mulheres do campo. deve ser garantido (2012, p.48). Necessita, fundamentalmente, uma escuta das crianças do campo, um aprendizado com Iniciativas recentes vêm tentando colocar seus modos de vida, suas brincadeiras, as na agenda pública o direito à Educação In- organizações de tempo, de espaço e as prá- fantil da criança pequena e problematizar ticas educativas familiares e comunitárias. acerca das melhores formas de efetivar os É esse conhecimento que permitirá cons- direitos das populações do campo. truir uma identidade da Educação Infantil para as crianças do campo. Uma história a No contexto dos movimentos sociais e sindi- ser construída pelos diferentes sujeitos mas, cais do campo, no início dos anos 2000, no fundamentalmente, pelos e com os sujeitos documento Por uma Educação do campo: crianças do campo. No processo de cons- tituição da Educação Infantil no Brasil, as valorize a contribuição de experiências em áreas rurais estiveram marginalizadas. Sua desenvolvimento nas diferentes regiões do história deve ser recuperada para que seja país. Esse movimento de descoberta é o que possível a construção e/ou consolidação de nos permitirá escrever e dizer que conhece- uma proposta educacional que reconheça e mos a história da educação no e do campo. REFERÊNCIAS CALAZANS, Maria Julieta Costa. Para compreender a educação do Estado no Meio Rural: traços de uma trajetória. In: Therrien, Jacques & Damasceno Maria (coords.). Educação e escola no Campo. Campinas: Papirus, 1993. CALDART, Roseli Salet. Elementos para a construção do projeto político pedagógico da Educação do Campo (p. 8-30). In: MOLINA, Mônica & JESUS, Sônia Meire Santos Azevedo de (orgs.). Educação do Campo: contribuições para a construção de um projeto de Educação do Campo. Brasília, DF: Articulação Nacional “Por uma Educação do Campo”, 2004. (Coleção Por uma Educação do Campo, nº 5). LEITE, Sérgio Celani. Escola Rural - Urbanização e Políticas Educacionais. São Paulo: Cortez, 2002. LIMA, Luciana Pereira de. A relação entre a Educação Infantil e as famílias do campo. Tese (Doutorado em Psicologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP, Ribeirão Preto, 2012. OLIVEIRA, Milton Ramon Pires de. Formar cidadãos úteis: os patronatos agrícolas e a infância pobre na Primeira República. Bragança Paulista: EDUSF, 2003. OLIVEIRA, Zilma Ramos de. Educação infantil: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2005. (Coleção Docência em Formação). ROSEMBERG, Fúlvia; ARTES, AMELIA. O rural e o urbano na oferta de educação para crianças de até 6 anos. In: BARBOSA, Maria Carmen Silveira [et al.] organizadoras. Oferta e demanda de educação infantil no campo. Porto Alegre: Evangraf, 2012. 21 SILVA, Ana Paula Soares da; PASUCH, Jaqueline; SILVA, Juliana Bezzon da. Educação Infantil do campo. São Paulo: Cortez, 2012. (Coleção Docência em Formação). VASCONCELOS, J. Freire de; SAMPAIO, Silveira. Problemas médico-sociais da Infância: o comércio das criadeiras. 1938. Disponível http://www.fcc.org.br/pesquisa/jsp/educacaoInfancia/index.jsp. VELLOSO, Renata Mendes. As políticas públicas para a infância e a municipalização da educação infantil no campo. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008. SAIBA MAIS: KUHLMANN JR., Moysés. Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998. KRAMER, Sônia. A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982. LEITE, Maria Isabel Ferraz Pereira. Crianças do campo: os mudos da história? Revista Estudos Sociedade e Agricultura, n. 6, p.170-191, 1996. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org. ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/seis/isabel6.htm. Cadernos SECAD. Caderno Temático 2 – Educação do Campo: diferenças mudando paradigmas. Brasília: MEC, 2007. Disponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&vi ew=article&id=13605:cadernos-tematicos-da-secad&catid=194:secad-educacao-continuada. CALDART, Roseli Salete. Educação do Campo: notas para uma análise de percurso. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 35-64, 2009. Disponível em: http://www. revista.epsjv.fiocruz.br/upload/revistas/r235.pdf. FERNANDES, Bernardo Mançano; MOLINA, Mônica Castagna. O campo da Educação do Campo (p. 30-53). In: MOLINA, Mônica & JESUS, Sônia Meire Santos Azevedo de (orgs.). Educação do Campo: contribuições para a construção de um projeto de Educação do Campo. Brasília, DF: Articulação Nacional “Por uma Educação do Campo”, 2004. (Coleção Por uma Educação do Campo, nº 5). MUNARIM, Antônio. Movimento nacional de Educação do Campo: uma trajetória em construção. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1trabalho/GT03-4244--Int.pdf. 22 2 texto cação Infantil, seja em instituições localizadas na zona rural como na zona urbana, as Educação Infantil do campo: o desafio de cuidar/educar bebês e crianças pequenas Jaqueline Pasuch1 famílias e as próprias crianças. A Educação Infantil brasileira é a primeira etapa da Educação Básica e vem se constituindo como uma área própria de conhecimentos, com saberes e fazeres específicos, no diálogo e na articulação com os outros níveis da Educação. Porém, existem desafios que necessitam ser enfrentados para que as Neste texto, convidamos o leitor para um diálogo crianças filhas de agricultores familiares, extrativistas, pescado- comprometido a respeito da educação e cuidados dos bebês e das crianças pequenas residentes em áreas rurais do nosso país. Estamos desafiando a sociedade brasileira a entrar numa grande “roda de conversas” para garantir o direito das crianças do campo à Educação Infantil de qualidade “no” e A educação dos sujeitos do campo é hoje entendida como direito, nos marcos da equidade, o que inclui a justiça social e o reconhecimento das diversidades e especificidades dos sujeitos de direito. res artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, quilombolas e caiçaras e de outros povos ou comunidades tradicionais tenham acesso com qualidade a este direito. Reconhecemos que existem avanços na Educação Infantil, “do” campo. Assim, con- expressos em consi- sideramos derável acervo de arti- importantes interlocutores os/as gestores e dirigentes gos, livros e materiais municipais, professoras e professores que didáticos que contribuem para a socializa- trabalham com crianças do campo na Edu- ção dos conhecimentos gerados e para a orientação pedagógica dos trabalhos dos 1 Professora da Universidade do Estado do Mato Grosso – UNEMAT. Coordenadora do Fórum Matogrossense de Educação Infantil (MIEIB). Participou da coordenação do GT “Orientações Curriculares Nacionais para a Educação Infantil do Campo” (MEC/SEB-COEDI e SECAD/CGEC). Integra a equipe de coordenação da Pesquisa Nacional Caracterização das práticas educativas com crianças de 0 a 6 anos moradoras nos territórios rurais brasileiros (MEC/ UFRGS/UNEMAT). Consultora da edição temática. 23 professores, entretanto, são raras as pro- e regras. Brinca de faz-de-conta, pula, corre, fala duções que levam em conta a singularidade e narra suas experiências, conta com alegria e das infâncias vividas em contextos diversi- emoção as grandes e pequenas maravilhas no ficados como o das crianças do campo e o encontro com o mundo (SILVA, PASUCH, 2010). dos povos tradicionais, por exemplo. Neste sentido, é necessário incluir, na pauta de Na educação e cuidados dos bebês e das pesquisas, processos de formação continu- crianças pequenas que vivenciam suas in- ada de professores, constituição de políticas fâncias em ambientes culturais diversifica- públicas municipais, propostas pedagógicas dos, será necessário levar em consideração e demais ações educacionais, a especificida- que os contextos coletivos institucionais de da Educação Infantil do/no Campo. serão diferentes daqueles vividos no contexto familiar, onde pessoas socioafetivas É preciso questionar e conhecer os modos se relacionam, se identificam e pertencem de vida das populações, as rotinas e tempos, a estes modos culturais de viver. Assim, as as relações com o ambiente natural, físico e práticas pedagógicas a serem desenvolvidas social para propor uma ação vinculada, con- nas instituições educacionais deverão ser creta e participativa entre os sujeitos que dão contextualizadas, possibilitando a constru- sentido às políticas públicas. É preciso consi- ção de sentido para as crianças, otimizando derar as crianças como sujeitos ativos e par- as qualidades das relações próprias da vida ticipativos deste processo de construção. No no campo e o reconhecimento, por parte texto Orientações Curriculares para a Educa- dos profissionais, de que grande parte dos ção Infantil do Campo (COEDI/SEB/MEC), es- municípios brasileiros possui perfil rural e, crito a partir de um amplo diálogo nacional, portanto, sem rupturas e/ou precariedades, em 2010, chegamos à seguinte formulação: valorizar os aspectos sociais e culturais, de modo que a Educação Infantil do/no cam- Como todas as crianças, a criança do campo po seja organicamente vinculada aos mo- brinca, imagina e fantasia, sente o mundo por dos de vida dos seus sujeitos. Não podemos meio do corpo, constrói hipóteses e sentidos so- submeter as crianças do campo às lógicas, bre sua vida, sobre seu lugar e sobre si mesma. A aos modos de relação com os saberes e criança faz arte, faz estripulias e peraltices, so- com os colegas e professores, aos tempos fre e se alegra. A criança do campo constrói sua e aos espaços característicos dos centros identidade e autoestima na relação com o espa- urbanos, e muitas vezes, de grandes cen- ço em que vive, com sua cultura, com os adultos tros urbanos. Elas precisam e têm direito à e as crianças de seu grupo. Ela constrói amiza- afirmação de suas identidades coletivas e des, compartilha com outras crianças segredos individuais características de suas culturas. 24 Assim, queremos afirmar ações de continui- do campo e suas relações com os saberes. dades entre cidade e campo, considerar as Acreditamos que a dicotomia rural-urbano relações existentes, os saberes produzidos ou campo-cidade deva ser superada quando em ambos espaços e garantir aos bebês e nos propomos a planejar ações pedagógicas crianças pequenas o acesso aos conheci- com os sujeitos do campo. É essa sensibili- mentos acumulados historicamente pela dade ética, estética, política e epistemológi- humanidade, num processo educacional de ca que se considera indispensável aos profis- qualidade no próprio campo, nas proximida- sionais da Educação Infantil do campo. des de suas residências, evitando o transporte escolar de distâncias longas e com preca- Segundo Bernard Charlot (2000), ao formu- riedade de atendimento, assim como para lar a teoria da “Relação com o saber”: as instituições localizadas nas cidades, em instituições cuja infraestrutura seja inade- (...) nascer significa ver-se submetido à obri- quada. Muitas vezes o atendimento à Educa- gação de apreender. Aprender para construir- ção Infantil limita-se a uma sala com adap- -se em um triplo processo de “hominização” ( tações precárias ou a matrícula de crianças tornar-se homem), de singularização (tornar- em turmas multisseriadas de Ensino Funda- -se membro de uma comunidade, partilhando mental, desrespeitando o que preconizam seus valores e ocupando um lugar nela). Apren- as DCNEI (MEC, 2009) e, der para viver com outros homens com quem o mundo é partilhado. Aprender para apropriar- sem colocar no centro da ação pedagógica a -se do mundo, de uma parte desse mundo, e concretude da vida da criança do campo: seus para participar de um mundo pré-existente. espaços de convívio, seus ritmos de viver o Aprender em uma história que é, ao mesmo tempo, sua participação na produção coletiva tempo, profundamente minha, no que tem de de seus familiares e de suas comunidades, seus única, mas que me escapa por toda a parte. brinquedos e brincadeiras organicamente vin- Nascer, apreender, é entrar em um conjunto de culados aos modos culturais de existir (SILVA, relações e processos que constituem um siste- PASUCH, SILVA, 2012). ma de sentido, onde se diz quem eu sou, quem é o mundo, quem são os outros. Nossa preocupação é a de garantir a identidade e a autoestima das crianças, valorizar Percebe-se que, neste processo de sociali- os seus modos de vida, vincular as práticas zação humana, onde os adultos têm a tare- educativas e as formas de organização do fa de introduzir as crianças no mundo, há atendimento à criança, considerando o cam- singularidades e pluralidades. Ao mesmo po como lugar de constituição de sujeitos tempo em que oferecemos às crianças tudo 25 aquilo que sabemos e gostamos, também dica, do faz-de-conta, que permite à criança ensinamos o que valorizamos, o que nem recriar o mundo para si. Para a criança, sobre- sempre significa um consenso do que é bom tudo a criança pequena, brincar é aprender. e belo. Este aspecto é cultural e, portanto, cabe aos educadores organizar a vida cole- Entendemos que o processo de formação de tiva institucional em propostas pedagógicas professores que atuam com bebês e crianças discutidas no coletivo em que as questões pequenas residentes em área rural deman- relativas à Educação Infantil e à educação da estudos e aprofundamentos dos saberes no/do campo – duas áreas na educação que e fazeres específicos, os quais poderão ser possuem saberes acumulados que, até re- iniciados a partir do acesso aos acúmulos le- centemente, foram construídos de maneira gais e teóricos das duas áreas: Educação do paralela –, passem a acolher e a formalizar Campo e Educação Infantil, mas também do as ações específicas expressas na diversida- que se vem construindo na Educação Infan- de populacional. til do/no campo. Para que o/a professor/a da Educação Infantil possa identificar-se como Outro aspecto que precisa ser considera- professor/a da Educação Infantil do Campo, do diz respeito à formação e atuação dos um acompanhamento pedagógico sistemá- professores da Educação Infantil, o qual é tico deverá ser realizado, como: momentos bastante apropriado na especificidade que de encontros entre professores do campo e vemos percorrendo neste texto. Para Craidy, da cidade; momentos de reflexões para atuação com bebês especificamente, também As justas exigências de formação da LDB têm com professores da pré-escola; mobilizar a muitas vezes sido interpretadas de forma dis- prática de registros e documentações das torcida. Por um lado, o fato de reconhecer o produções realizadas com as crianças, as caráter educativo de toda a relação com as observações de suas brincadeiras; organiza- crianças leva muitos a entenderem que a re- ção de rodas de conversas com as comuni- lação existente entre professores e crianças dades de pertencimento da instituição edu- nas instituições de educação infantil deverá cacional; visitas às comunidades e famílias; ter um caráter “instrucional” o que pode le- promover estudos acerca de conhecimen- var creches e pré-escolas a tornarem-se cari- tos sobre o campo brasileiro, as atividades caturas do ensino fundamental, massacrando econômicas e a produção das populações crianças com aulas e exigências de domínio do campo, as lutas pela terra, a vida dos de conhecimentos inadequados à faixa etária. quilombolas, ribeirinhos e povos da flores- Na primeira infância, a apropriação do mun- ta, práticas ambientalmente sustentáveis, do se dá, sobretudo, através da atividade lú- dentre outras que considerarem necessá- 26 rias para atender ao caráter específico deste preveem as DCNEI (2009), no artigo 3, o cur- atendimento. rículo como: Consideramos que este processo deve ser [...] conjunto de práticas que buscam articular organizado democraticamente, com a par- as experiências e os saberes das crianças com os ticipação ativa de todos os sujeitos envolvi- conhecimentos que fazem parte do patrimônio dos, comprometendo e desafiando as uni- cultural, artístico, ambiental, científico e tecno- versidades, os fóruns estaduais de Educação lógico, de modo a promover o desenvolvimento Infantil e de Educação do Campo, as secre- integral de crianças de 0 a 5 anos de idade. tarias estaduais e municipais de educação, os conselhos estaduais e municipais respectivos, numa articulação entre os entes da federação: União, Estados e Municípios. Um currículo para a Educação Infantil do/no campo precisa enfatizar algumas características do pensamento infantil e afirmá-los em sua potência constitutiva, valorizando Ao desafio da formação profissional as crianças e suas sensibilidades, instigan- soma-se o da infraestrutura necessária para do a convivência das crianças entre si e com o atendimento com qualidade nos espaços educacionais localizados nas proximidades das moradias das crianças. Pensamos, portanto, que há especificidades na Educação Infantil do/no campo que precisam ser conhecidas pelo conjunto de profissionais, famílias e comunidade em geral para que se possa efetivamente organizar políticas públicas desta etapa educacional. Será necessário elencar os elementos constitutivos do proces- os adultos que fazem parte de sua vida na instituição educacional e familiar. Neste processo de convivência com as pessoas de seu círculo de pertencimento e com os ambientes naturais, precisamos instigar a imaginação, as sensibilidades e sensorialidades, as percepções de mundo, dos outros e de si mesmos. Ampliarmos as experiências das crianças, de suas ações em pensamentos e lógicas, onde gradativamente as experiências se tornem cada vez mais complexas. so de construção da política pública na concretude da vida das populações camponesas, Dessa maneira, cabe ao professor/a prepa- seus modos de relacionar-se com o tempo e rar um amplo repertório de brincadeiras e espaço, seus modos de produção, distâncias interações, organizando os ambientes e va- geográficas, espaços de convívios coletivos, lorizando os existentes, onde os elementos infraestrutura educacional, dentre outros. naturais e culturais de seu entorno tornem- Nas propostas pedagógicas das instituições -se constitutivos do cotidiano institucional. de Educação Infantil do/no campo estarão Resgatar com as famílias as brincadeiras, evidenciadas, de maneira singular, conforme poesias, cantos e cantigas, parlendas, jogos motores, característicos de suas culturas 27 para ensinar e nelas, através delas, propiciar daquele grupo cultural. A elaboração de um o conhecimento. Destaca-se que os saberes currículo para os bebês e as crianças peque- a serem mobilizados partirão das pergun- nas na especificidade do campo é importan- tas, curiosidades, atenções e detalhamentos te porque, segundo Barbosa: produzidos nestas interações das crianças. As relações com os saberes que as crianças [...] nos faz refletir e avaliar nossas escolhas e mobilizam nos espaços/tempos das intera- nossas concepções de educação, conhecimen- ções e experiências lúdicas serão constituí- to, infância e criança, reorientando nossas op- das pelas complexas perguntas significativas ções. E essas são sempre históricas, sempre re- e não apenas fragmentos de “conteúdos” de dutoras diante da imprevisibilidade que é viver conhecimentos específicos, muitas vezes no mundo. Afinal, elaborar um currículo como determinados pelos adultos ou em planos construção, articulação e produção cultural de previamente realizados, sem a observação conhecimentos plurais não é apenas uma esco- sensível do/a professor/a e a participação lha entre modelos de educação, é uma decisão das crianças. Afirmamos, assim, que o pro- política acerca do futuro de uma sociedade. fessor deve observar e compreender que na com carga horária mínima de 40 horas. ação, nas interações e experiências significativas das crianças consigo mesmas, com os outros e com o mundo, o conhecimento vai se configurando, e que o seu papel é o de instigar mais, auxiliar com novas informações, organizar os espaços de maneira que os materiais, jogos e brincadeiras provoquem o pensamento infantil a continuar pensando e a ampliar os seus conhecimentos. Portanto, estamos considerando o currículo da Educação Infantil do/no campo centrado nas crianças e nas suas relações, nas aprendizagens significativas construídas através de experiências pedagógicas planejadas com a participação das crianças, com o envolvimento delas e de suas famílias, pois acreditamos que os sentidos emergentes destas relações são permeados pela vida cotidiana As informações coletadas na pesquisa TDEBB agregam outras dimensões que nos permitem, de forma inédita, conhecer melhor o perfil dos sujeitos docentes na Educação Infantil no Brasil, Assim, consideramos que a questão específica que o rural nos provoca, seja em termos de políticas públicas como também em práticas cotidianas, nos remete ao profundo compromisso com as crianças e seus direitos constitucionais, destacando o direito à Educação Infantil de qualidade, pública, gratuita e laica. Este desafio nos convoca a refletir e a propor ações a favor dos bebês e das crianças pequenas do campo em locais próximos de suas residências, em instituições de Educação Infantil “no” campo, organizadas de maneira organicamente vinculada aos seus modos de existir e produzir os sentidos para a vida, em instituições de Educação Infantil “do” campo. 28 REFERÊNCIAS BARBOSA, M. C. S. Qual currículo para os bebês e crianças bem pequeninhas? Programa Salto para o Futuro/TV Escola. CHARLOT, Bernard. Da Relação com o Saber. Porto Alegre: Artes Médica, 2000. CRAIDY, C. M. A Formação de Educadores para a Educação Infantil: exigências, desafios e realidade. Disponível em: www.grupos.com.br/group/ped430. SILVA, A. P. S.; PASUCH, J. Orientações Curriculares Nacionais para a Educação Infantil do Campo. In: I Seminário Nacional: Currículo em Movimento - Perspectivas Atuais, 2010, Belo Horizonte, I Seminário Nacional Currículo em Movimento – Perspectivas Atuais, 2010. SILVA, A. P. S.; PASUCH, J.; SILVA, J. B. Educação Infantil do campo. São Paulo: Cortez, 2012. 29 TEXTO 3 acompanhará os principais avanços normativos que, em grande medida, têm subsidia- OLHANDO PARA A EDUCAÇÃO FORMAL DE CRIANÇAS PEQUENASQUERESIDEMEM ÁREA RURAL DO PAÍS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO DISPOSITIVO LEGAL do as políticas de educação voltadas a este segmento específico da sociedade brasileira. O levantamento de conquistas de cunho jurídico-legal alcançadas em duas áreas de conhecimento e de atuação política representará parte importante deste texto. Estas áreas são a Educação Infantil e a Educação do Campo. Os avanços verificados nestas áreas se apresen- Fernanda de Lourdes Almeida Leal 1 tam como um caminho que se abre à instauração de um patamar importante na luta pelo Este texto objetiva discutir a realidade educacional relativa às crianças com idade para frequentar a Educação Infantil, tendo estas a particularidade de residir em área rural do país. A abordagem desta realidade se dará pela ótica do direito à educação – que integra o conjunto dos direitos sociais fundamentais, direito à educação da Os termos invisibilidade, insuficiência, discriminação e precariedade, quando relacionados à realidade das crianças pequenas que residem em área rural do país, particularmente no que tange à oferta de Educação Infantil, refletem conclusões a que análises e investigações recentes têm chegado. população de crianças pequenas que reside em área rural do 30 Brasil. As reflexões aqui realizadas integram o conjunto de textos dessa publicação eletrônica que, se articulados, ofere- cem uma visão mais ampla do objeto de estudo que perpassa todos eles: a desde a Constitui- Educação ção de 1988 (BRASIL, do e no Campo2 . Infantil 1988) – e, para tal, 1 Docente da Unidade Acadêmica de Educação, Universidade Federal de Campina Grande (UAEd-UFCG). Coordenadora adjunta do Projeto Unicampo – pela Universidade Camponesa. Membro do NIEPI – Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre as Infâncias (UFCG-UEI). 1. A Educação Infantil: apontamen- tos de avanços no quadro normativo e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da ci- No Brasil, a década de 1980 é reconhecida dadania e sua qualificação para o trabalho. como sendo aquela na qual ressurgem movimentos sociais tolhidos pelo regime mili- Barbosa, Gehlen e Fernandes (2012), ratifi- tar que vigorou nas décadas de 1960 e 19703 cam esta compreensão, proporcionada pela . Como expressão de uma intensa movimen- análise da Constituição Federal de 1988, ao tação no âmbito na sociedade civil, a Cons- identificarem que a Educação Infantil, como tituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) revela parte da educação a ser trilhada pelos cida- parte das conquistas alcançadas por vários dãos brasileiros, foi considerada no rol dos segmentos da referida sociedade e, no que deveres do Estado e como direito de todos. toca à educação, assiste-se, pela primeira vez, ao seu reconhecimento enquanto di- No que tange ao atendimento de crian- reito social fundamental e dever do Estado, ças com idade entre 0 e 6 anos, o arti- conforme se pode verificar nos artigos abai- go 208 da referida Constituição (BRASIL, xo da Carta Magna 1988) estabelece que o atendimento destas será feito através de creches e pré- Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, -escolas, conforme se pode ver abaixo: a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção Art. 208 – O dever do Estado com a educa- à maternidade e à infância, a assistência aos ção será efetivado mediante a garantia de: desamparados, na forma desta Constituição. [...] IV – Atendimento em creches e pré-escolas às Art. 205. A educação, direito de todos e de- crianças de 0 a 6 anos de idade. ver do Estado e da família, será promovida 2 Neste sentido, ver os textos de Ana Paula Soares da Silva e Jaqueline Pasuch, que compõem esta edição temática, e formam, com este, o conjunto acima referido, constituindo-se como importantes fundamentos à compreensão do recente debate que se coloca no cenário educacional do nosso país. 3 Maria da Glória Gohn (2010) é uma das autoras que fazem este reconhecimento, além de apontar que, ao tempo que se observa o ressurgimento de “velhos” movimentos sociais, também se verifica na década de 1980 o nascimento de “novos”. No que diz respeito à educação, foi nesta década que foi lançado, em nível nacional, o Movimento em Defesa da Escola Pública. 31 No que diz respeito à Educação Infantil, Ro- ças a partir dos 4 anos de idade – a Emenda semberg &Artes (2012) observam que é so- Constitucional n. 59 (BRASIL, 2009a). O ou- mente na Lei de Diretrizes e Bases da Edu- tro dispositivo são as Diretrizes Curriculares cação Nacional de 1996 - LDB (BRASIL, 1996) Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, que será encontrada uma conceituação ofi- 2009b). cial dela. Conforme salientam as autoras, a referida LDB: Estes dispositivos têm suas especificidades, particularmente quanto aos seus alcances: [...] a define como primeira etapa da educa- enquanto a referida Emenda Constitucional ção básica, oferecida em creche (para crian- dirige-se à questão da obrigatoriedade da ças de até 3 anos e 11 meses) e pré-escola oferta, as Diretrizes Curriculares Nacionais (para crianças entre 4 e 5 canos e 11 meses), para a Educação Infantil são muito mais am- entendidas como estabelecimentos de ensi- plas em seus objetivos e dialogam com di- no públicos ou privados. Ou seja, a expres- versas questões relacionadas, dentre outros são educação infantil, quando referida ao aspectos, às propostas e práticas pedagógi- sistema educacional, tem uma conceitua- cas da Educação Infantil, exibindo, ainda, ção própria e específica não abrangendo a uma concepção de currículo na Educação educação não-formal destinada à popula- Infantil. ção de crianças no geral, como aquela sob responsabilidade familiar ou oferecida em Quanto à Emenda Constitucional n. 59 (EC domicílio ou instituições não educacionais 59), que aumenta o tempo relativo à obriga- (ROSEMBERG; ARTES, 2012, p. 24). toriedade da oferta da Educação Básica (dos 4 aos 17 anos), é importante dizer aqui que Depreende-se desta definição que a Edu- o debate em torno desta obrigatoriedade a cação Infantil é aquela que se realiza em partir dos 4 anos é polêmico e tem possibili- espaços institucionais de educação, dife- tado muitas discussões favoráveis e contrá- rentes dos espaços domésticos, e que con- rias a ela. Embora, neste espaço, não se vá cerne ao âmbito da educação, fato que aprofundar este debate, é certo dizer que um lhe confere uma identidade educacional dos seus efeitos diz respeito ao fato de que (BARBOSA, GEHLEN e FERNANDES, 2012). ela “cinde” a oferta da Educação Infantil e que tal cisão tem efeitos no interior da ofer- Em 2009, dois importantes dispositivos nor- ta e da demanda por creche e por pré-escola mativos relacionados à Educação Infantil fo- (LEAL e RAMOS, 2012, p. 159). Ainda no que ram regulamentados. Um deles diz respeito tange à oferta de novas matrículas de crian- à obrigatoriedade da matrícula para crian- ças de 4 e 5 anos, interroga-se onde elas se- 32 rão criadas: em escolas localizadas na zona nais, ribeirinhos, assentados e acampados rural ou na zona urbana (ROSEMBERG; AR- da reforma agrária, quilombolas, caiçaras, TES, 2012)? Em síntese, os efeitos da obriga- povos da floresta (artigo 8º, parágrafo 3º). toriedade da oferta da Educação Básica desde os 4 anos de idade podem refletir, negativa- Em relação aos povos do campo, o pa- mente, na oferta de creche e, no que tange rágrafo 3º, do artigo 8º, afirma que: à Educação Infantil do Campo, mais ainda nesta modalidade de oferta na zona rural. § 3º - As propostas pedagógicas da Educação Neste sentido, se a EC 59, ao ampliar o tem- Infantil das crianças filhas de agricultores fa- po de oferta obrigatória da Educação Básica, miliares, extrativistas, pescadores artesanais, mostra-se potencialmente importante no ribeirinhos, assentados e acampados da refor- diálogo com a universalização da Educação, ma agrária, quilombolas, caiçaras, povos da flo- no que diz respeito aos efeitos desta obriga- resta, devem: toriedade para a realidade das crianças de 0 a 6 anos que residem em área rural, é preciso problematizar os seus desdobramentos. I - reconhecer os modos próprios de vida no campo como fundamentais para a constituição da identidade das crianças moradoras em terri- Quanto às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), que se propõem como fundamento para a organização de propostas pedagógicas na Educação Infantil, destaca-se a sua importância no contexto deste texto, uma vez que neste tórios rurais; II - ter vinculação inerente à realidade dessas populações, suas culturas, tradições e identidades, assim como a práticas ambientalmente sustentáveis; documento se encontra o reconhecimento III - flexibilizar, se necessário, calendário, rotinas de que as propostas pedagógicas da Edu- e atividades respeitando as diferenças quanto à cação Infantil, voltadas a grupos culturais atividade econômica dessas populações; específicos existentes no país, devem, além de outros aspectos, considerar os modos IV - valorizar e evidenciar os saberes e o papel próprios que os referidos grupos instituíram dessas populações na produção de conhecimen- para educar suas crianças pequenas. Dentre tos sobre o mundo e sobre o ambiente natural; os grupos culturais destacados nas DCNEI (BRASIL, 2009) estão os povos indígenas (artigo 8º, parágrafo 2º) e os povos do campo, estes últimos definidos como agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesa- V - prever a oferta de brinquedos e equipamentos que respeitem as características ambientais e socioculturais da comunidade (BRASIL, 2009 b). 33 É importante reter que são as DCNEI (BRA- berg & Artes (2012, p. 64), após realizarem SIL, 2009b), do lado do aparato normati- pesquisa e análise de microdados oriundos vo concernente à Educação Infantil, que do Censo Demográfico de 2010 e do Censo vão estabelecer uma ponte com o debate Escolar de 2010, no âmbito de uma pesquisa em torno da Educação do Campo. Especi- nacional que buscou conhecer, dentre ou- ficamente, as DCNEI abrem um espaço de tros objetivos, a oferta e demanda de Edu- diálogo com um dos dispositivos norma- cação em áreas rurais do Brasil, avaliam tivos da Educação do Campo: as Diretri- que os três principais qualificativos para zes Operacionais para a Educação Básica caracterizar a oferta de educação (incluin- nas Escolas do Campo – DOEBEC (BRASIL, do educação infantil) em contexto rural são 2002), ao reconhecerem, como o fazem as insuficiência, discriminação e precariedade. DOEBEC, as populações do campo como matriz cultural na qual as crianças, perten- Os termos invisibilidade, insuficiência, dis- centes a elas, constroem suas identidades. criminação e precariedade, quando relacio- Deste modo, no que tange ao quadro nor- nados à realidade das crianças pequenas que mativo da Educação Infantil, está nas DCNEI residem em área rural do país, particularmen- um chamado ao diálogo não só com o deba- te no que tange à oferta de Educação Infantil, te legal, político e acadêmico da Educação refletem conclusões a que análises e investi- do Campo, mas, sobretudo, com a realidade gações recentes têm chegado. Tais conclu- específica das crianças pequenas, filhas das sões requerem um posicionamento mais ati- populações acima descritas. Neste sentido, vo e objetivo na direção da superação deste as DCNEI se oferecem como um instrumen- quadro. Um expressivo alerta é feito por Ro- to normativo estratégico, potencialmente semberg & Artes (2012, p. 64), neste sentido: capaz de lançar luz sobre uma realidade que, apesar de existente, ainda é invisível do pon- Nós, acadêmicos/ativistas, reiteramos o aler- to de vista da oferta de qualidade da Edu- ta: estudiosos/ativistas da educação infantil cação Infantil (em creche e pré-escola), que necessitam olhar o campo, as crianças resi- deve ser proporcionada pelo Estado brasilei- dindo em área rural; estudiosos/ativistas da ro para garantir que estas crianças possam educação do campo necessitam olhar as crian- ter assegurado o direito à educação. Rosem- ças de até 6 anos, particularmente os bebês. 4 Trata-se da Pesquisa Nacional “Caracterização das Práticas Educativas com crianças de 0 a 6 anos residentes em áreas rurais” (MEC/UFRGS, 2012). Esta pesquisa realizou o primeiro levantamento de dados, quantitativos (primários e secundários) e qualitativos, em nível nacional, sobre a oferta e a demanda de Educação Infantil para crianças residentes em área rural. Tem, por isto, uma contribuição a dar no sentido da construção de uma política pública para este segmento (crianças de 0 a 6 anos) da população rural do país. 34 Deste alerta, pode-se concluir que seu cerne está campo (BRASIL, 2008) e o Decreto n. na urgente necessidade de um olhar recíproco en- 7.352/2010 (BRASIL, 2010). tre as áreas da Educação Infantil e da Educação do Campo para o foco que cada uma delas tem se de- As Diretrizes Operacionais para a Edu- dicado mais: do lado da Educação Infantil, é pre- cação Básica nas Escolas do Campo – DOEBEC ciso um avanço na direção de pensar as crianças instituem um conjunto de princípios que pos- que habitam o campo brasileiro, escapando assim sam garantir a universalização do acesso da de uma limitação ao contexto urbano. Do lado da população do campo à Educação Básica e à Educação do Campo, é preciso que a criança apa- Educação Profissional de Nível Técnico. Em seu reça com maior protagonismo em suas lutas pela artigo 6º, comunica-se mais diretamente com educação dos povos do campo. a Educação Infantil, ao instituir que o poder público deverá proporcionar Educação Infantil e Na direção de verificar, no quadro normativo da Ensino Fundamental nas comunidades rurais. Educação do Campo, como as crianças pequenas que residem em área rural e a Educação Infantil As Diretrizes Complementares, de 2008, diri- destinada a elas têm sido consideradas, o item a gem-se mais especificamente à Educação In- seguir se propõe a delinear alguns dos principais fantil e ratificam o que as DOEBEC já trazem dispositivos legais da Educação do Campo. em relação à proximidade da oferta da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino 2. A Educação do Campo: aponta- Fundamental das comunidades rurais, mas mentos de avanços no quadro normativo versam, ainda, sobre a necessidade de se evitar os processos de nucleação de escolas e de No que tange às conquistas alcançadas pelos deslocamento das crianças (artigo 3º), sobre teóricos e ativistas da Educação do Campo5 não se permitir, em hipótese alguma, o agru- no contexto jurídico-legal, ressaltam-se as pamento, numa mesma turma, de crianças DOEBEC (BRASIL, 2002), já referidas acima, da Educação Infantil com crianças do Ensino as Diretrizes Complementares, Normas e Fundamental e sobre a rigorosidade da fis- Princípios para o Desenvolvimento de Po- calização que se tem que ter em relação ao líticas Públicas para a Educação Básica no transporte escolar (artigo 8º). 5 Entende-se que a Educação do Campo é um espaço de reivindicação política que se estrutura em torno de um conceito original – Educação do Campo – e de um movimento que reúne movimentos sociais e sindicais do campo, docentes de universidades e da educação básica, militantes relacionados às lutas pela educação de qualidade e pela terra, dentre outros sujeitos coletivos. Por esta razão, em trabalhos anteriores (LEAL; CANIELLO; LIMA, 2010 e LEAL, 2012), concebeu-se a Educação do Campo enquanto conceito-movimento por se compreender que é uma expressão coerente com o que diz respeito à Educação do Campo. 35 O Decreto n. 7.352/2010 dispõe sobre a Políti- dar as próprias DOEBEC. ca Nacional de Educação do Campo e sobre o Programa Nacional de Educação na Refor- ma Agrária (PRONERA). Este Decreto confir- até aqui, referentes à Educação Infantil e à ma concepções e princípios já observados Educação do Campo, indicam aspectos im- nas DOEBEC e Diretrizes Complementares – portantes em termos de garantia do direito como o reconhecimento de que a identida- à educação voltada às crianças pequenas e de da escola do campo diz respeito à escola aos povos do campo. A intersecção entre es- que atende predominantemente a popula- tas duas áreas pela via do aspecto jurídico- ções do campo, ampliando, assim, a ideia de -legal constitui-se numa possibilidade bas- que escola do campo é apenas aquela que tante expressiva de, efetivamente, levar a se localiza no espaço rural – e incorpora o avanços no plano da realidade das crianças PRONERA como política de Estado. pequenas que residem em área rural do Bra- Os dispositivos legais apresentados sil. O nascimento de uma área de atuação Além destes avanços relativos ao recente, denominada Educação Infantil do quadro normativo relacionado à Educação Campo (EIC), oferece-se como uma via de do Campo, a LDB (BRASIL, 1996) possibilitou conexão capaz de promover o olhar simul- o debate sobre a importância do reconhe- tâneo para a criança e para a sua realidade cimento de especificidades existentes no cultural, que é vinculada ao espaço, à tradi- conjunto da população brasileira. Conforme ção, enfim, à cultura camponesa. Leal (2012, p. 77), se a Constituição de 1988 universaliza o direito à educação, a LDB de 1996 avança no sentido de reconhecer que 3.Educação Campo: direito Infantil do e concepção o universal deve ser atendido considerando o específico concernente a cada população Como foi dito acima, a EIC é uma área de para a qual a educação deve ser ofertada. atuação recente. Além disso, ela carrega consigo uma novidade estruturada a partir A este respeito, na LDB podem ser de duas trajetórias de luta que têm suas his- encontradas referências à possibilidade de tórias construídas tendo como foco a crian- adequação da escola à vida do campo (ar- ça pequena (caso da Educação Infantil) e as tigo 28), ao reconhecimento da diversidade lutas dos camponeses pela terra e por ou- sociocultural e ao direito à igualdade e à di- tros direitos que deveriam estar garantidos, ferença6 , servindo estas de base para respal- mas que, historicamente, foram-lhes nega- 6 A este respeito, conferir os artigos 3º, 23, 27 e 61. 36 dos. Dentre estes direitos, ressalta-se o direi- sua efetivação (MOLINA, 2012, p. 451). to à educação (caso da Educação do Campo). Uma das possibilidades de se entender a A via jurídico-legal é imprescindível na Educação Infantil do Campo é enquanto garantia de direitos. Mas, além disso, ela é área que chama a atenção para as crianças uma estratégia para construir concepções, pequenas que habitam o espaço rural bra- mentalidades. Neste sentido, Molina (2012), sileiro, recolocando concepções, apontan- dialogando com a filósofa Marilena Chauí do fundamentos legais e iluminando uma acerca do significado da positivação de um realidade que precisa ser, urgentemente, direito, observa que a prática de declarar vista e superada. Aqui, uma breve expressão direitos os inscreve nos âmbitos social e dos avanços legais que podem subsidiar o político, requerendo o reconhecimento de enfrentamento desta realidade, conduzindo todos sobre estes direitos e exigindo, por- a um outro patamar de dignidade e cidada- tanto, consentimento social e político para nia as crianças camponesas do Brasil. REFERÊNCIAS BARBOSA, Maria Carmen S.; GEHLEN, Ivaldo; FERNANDES, Susana Beatriz. A oferta e a demanda de Educação Infantil no Campo: um estudo a partir de dados primários. 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Presidência da República Ministério da Educação Secretaria de Educação Básica TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO Supervisão Pedagógica Rosa Helena Mendonça Acompanhamento pedagógico Grazielle Avellar Bragança Coordenação de Utilização e Avaliação Mônica Mufarrej Fernanda Braga Copidesque e Revisão Magda Frediani Martins Diagramação e Editoração Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil Gerência de Criação e Produção de Arte Consultoras especialmente convidadas Fernanda de Lourdes Almeida Leal Jaqueline Pasuch E-mail: [email protected] Home page: www.tvbrasil.org.br/salto Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro. CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ) JUNHO 2013 40