O HOMEM QUE BATEU NO JUIZ
O Dr. Oscar não acreditava no que acabara de ler. Para ele aquilo só podia ser uma
brincadeira, e uma brincadeira de péssimo gosto. Aquele assunto o importunara
demasiadamente nas últimas semanas. Estava cheio daquilo. E aquela carta era a gota d´água.
O fato é que ao chegar ao seu escritório, pela manhã, encontrou uma carta sobre a sua
mesa. Vinha dentro de um envelope que constava como remetente a Presidência da República.
Intrigado, e até mesmo assustado, abriu a missiva e pôs-se a ler. Dizia o texto:
“A presidenta da República informa que, nos termos da Lei Complementar nº 331,
houve por bem criar a Esmurradoria da União, e tem a honra de convidar Vossa Excelência
para chefiar esta entidade, sob o título de Esmurrador-geral da República”.
- Que aleivosia deslavada! – Resmungou, acendendo um cigarro.
Quando estava sisudo ou taciturno, o Dr. Oscar costumava acender um cigarro e
entortar a boca para a direita. Parecia o Popeye, com a boca de um lado e o cigarro de outro.
Mantinha apenas uma imperceptível abertura bucal, a fim de expelir a fumaça dos pulmões,
que saía lenta e esticada, quase como uma fita branca.
Cogitou que a carta devia ser uma travessura do seu estagiário. Era um rapaz
inteligente e estudioso, a quem o Dr. Oscar nutria especial afeição. Mas ele exibia um defeito:
era um gozador inveterado, inclinado ao sarcasmo. Exercitava a ironia como se modalidade
esportiva fosse, e ele, um expoente olímpico.
Por outro lado, o Dr. Oscar tinha de admirar aquela falcatrua. Era uma perfeita obra de
falsificação. A carta possuía todos os timbres, marcas e selos das correspondências oficiais.
Pelo jeito o estagiário trabalhara assiduamente naquele engodo. Não fosse o conteúdo
absurdo, aquela epístola seria tida como genuína por qualquer um que a lesse.
- Esmurrador-geral da República. Ha, ha, ha, ha! Que engraçado! – Disse com a voz
amargurada, esmagando seu cigarro num cinzeiro.
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Mais resignado, o Dr. Oscar teve de admitir que tudo aquilo era culpa sua. Ele não
devia ter perdido o controle. Cerca de três semanas antes, acompanhado de seu estagiário, fora
ter com um juiz de uma pequena comarca. O assunto era uma decisão interlocutória que
prejudicava sobremaneira o seu cliente. O Dr. Oscar tinha conhecimento e reunira provas de
que aquele despacho fora proferido sob o manto da corrupção.
Que aquele juiz era corrupto, todos o sabiam. Choviam representações na
Corregedoria de Justiça, mas todas esbarravam na falta de evidências e iam parar no silêncio
claustral dos arquivos. Agora seria diferente. O Dr. Oscar intentava jogar na cara do juiz as
provas da sua improbidade, e assim, obrigá-lo a reconsiderar a antijurídica decisão, sob pena
de sofrer uma representação mais robusta que as anteriores.
Recebido no gabinete do iníquo magistrado, o Dr. Oscar foi logo ao assunto. Espalhou
o arcabouço comprometedor sobre a mesa e passou a exigir a revogação do despacho. O juiz
olhou aquilo tudo com tranquilo desdém. Tinha a face de um verdadeiro sociopata, com olhos
enervados, testa enrugada e sudorenta, e o cabelo longo, mal cuidado, exalando um cheiro
rançoso que denunciava o excesso de oleosidade.
Furioso o juiz ordenou, aos berros, que o Dr. Oscar se retirasse do gabinete. Mandaria
prendê-lo se não saísse imediatamente, pela audácia impertinente de chantagear um ilustrado
membro da magistratura.
O Dr. Oscar estava indignado. Estava até mesmo enojado. Não se contendo, apanhou o
asqueroso juiz pelo colarinho, fechou o punho direito e desferiu um poderoso murro, que
atingiu diretamente o olho esquerdo do magistrado. Tamanha foi a força do golpe, que o
esmurrado deu com as costas numa estante repleta de livros atrás da mesa.
Uma miríade de doutrina jurídica teve a queda amaciada pela cabeça pretoriana. Foi
possível divisar obras de direito público e privado. O corolário irônico foi um volume dos
Comentários de Nelson Hungria, que o infeliz magistrado mantinha mais para fins de
decoração que de consulta. Esse livro, depois de atingir o crânio agredido, abriu-se justamente
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na página que discorre sobre o art. 129 do Código Penal. O ladino estagiário interpretou
aquilo como um sinal divino.
O supercílio do juiz se abriu e uma torrente vermelha cobriu-lhe a face.
Instintivamente ele limpou o sangue com a mão e enxugou a mão no cabelo. A fusão de
sangue com sebo endureceu quase que instantaneamente as madeixas judiciárias, dando-lhes a
forma perfeita de um arco.
O juiz levantou-se, zonzo, proferindo impropérios:
- O senhor está preso! – Gritou, buscando o telefone com a mão ensanguentada.
- Chame a polícia, vamos! Chame a polícia que eu chamo a imprensa! – Retrucou o
agressor, sacando o seu celular.
O juiz quedou-se. Levar um murro era uma coisa. O ferimento cicatrizaria, o olho
desincharia e uma dose de xampu seria suficiente para desfazer aquela armadura capilar.
Enfrentar a ignomínia pública, no entanto, era algo muito mais doloroso. Assim, para manter a
toga, engoliria o orgulho.
- Vá embora! – Disse simplesmente. – Vá embora e não volte nunca mais!
O Dr. Oscar juntou seu estagiário e partiu.
Naquela noite, não conseguira dormir. Não temia um processo criminal, nem de
Ordem, nem mesmo a prisão. Temia ter prejudicado irremediavelmente os interesses de seu
constituinte. Temia o descrédito junto à classe dos togados, a ponto de não mais obter êxito
para nenhuma causa sob o seu patrocínio.
Feitas essas considerações, decidiu retornar ao local do delito. Iria pedir desculpas ao
juiz.
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- O senhor aqui outra vez! Eu disse para não voltar mais! Está querendo ser preso?
- Excelência. – Disse o Dr. Oscar com sincera humildade. – Eu vim lhe pedir
desculpas. O que eu fiz foi injustificável. Por favor, me perdoe.
- Não! – Respondeu o juiz. A arrogância recobrada. – Eu não te perdoo porcaria
nenhuma. O senhor é um bandido, um sem-vergonha. Vai à merda Dr. Oscar!
Aquilo era demais. Ser chamado de bandido por um celerado daqueles era inaceitável.
Ainda mais num momento de contrição, em que o Dr. Oscar humildemente reconhecia o erro.
Ah não! Poria um fim na petulância daquele homenzinho.
Novamente o Dr. Oscar puxou o juiz pelo colarinho e lhe desferiu um soco, atingindo
agora o olho bom. Outra vez o juiz bateu na estante e os livros despencaram sobre sua cabeça.
Outra vez o sangue escorreu copiosamente pelo rosto, indo parar na mão e seguindo daí para o
cabelo, que assumiu mais uma vez o efeito arquitetônico de antes.
Porém, nesta ocasião, o juiz estava com um assistente em seu gabinete, que saiu
assustado, berrando pelo Fórum:
- Socorro! Ajudem! Guardas, aqui, socorro!
Sabendo que seriam presos, o Dr. Oscar e seu estagiário correram dali. Entraram no
carro e deixaram às pressas a cidade. Conseguiram evadir-se, mas o estrago fora feito. Ao
saber que o Dr. Oscar voltaria para vê-lo, o juiz decidira secretamente filmar tudo. O vídeo foi
parar na Internet e se tornou um sucesso no Youtube, com milhões de acessos.
Nos dias que se seguiram ao violento episódio, o Dr. Oscar se tornou uma celebridade.
Sua história foi contada no noticiário nacional. A imprensa o perseguia incansavelmente, na
tentativa de convencê-lo a uma entrevista.
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Não foi preso, já que sua fuga espetacular fez cessar o estado de flagrância. Todavia,
contra ele passou a tramitar uma ação penal, além de uma representação junto à Ordem dos
Advogados.
Alhures, o juiz hostilizado também penava. Sem ter nada mais a perder, o Dr. Oscar
liberou as provas cristalinas do tráfico de sentenças. Diante dessas irretorquíveis evidências, a
Corregedoria de Justiça foi obrigada a agir. Afastou preliminarmente o magistrado da direção
da comarca, designando-lhe um juizado especial, para que aquele não mais presidisse
processos envolvendo quantias vultosas.
E por derradeiro, aquela carta.
O Dr. Oscar refletia sobre esses acontecimentos quando um telefonema trouxe-o de
volta à realidade. Era sua secretária, bastante nervosa.
- Dr. Oscar, Dr. Oscar!
- Que é menina? Fala!
- Dr. Oscar, estão dizendo que a presidenta da República quer falar com o senhor.
O Dr. Oscar suspirou. Até imaginava o que aconteceria. Provavelmente era o
estagiário ou algum amigo querendo tirar sarro da sua cara. Assim que atendesse a ligação,
alguma gracinha seria proferida.
- Pode transferir. – Disse, com a voz desanimada.
- Dr. Oscar? É um prazer finalmente conversar com o senhor. Reconhece a minha voz?
O Dr. Oscar arregalou os olhos e sentiu um frio na barriga. Reconhecera de imediato a
voz do outro lado da linha. Com efeito, tratava-se da presidenta da República.
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- Senhora presidenta. – Respondeu, gaguejando. – Em que posso servi-la?
- Ah, Dr. Oscar! O senhor já me serviu. O que o senhor fez, além de corajoso, foi
muito inspirador. Decidi criar a Esmurradoria da União. Será um órgão independente, como o
Ministério Público, ao qual será entregue a guarda última dos princípios da eficiência,
moralidade e equidade. O senhor recebeu o ofício que lhe enviei?
- Sim, senhora presidenta.
- Bom, como o senhor foi a minha fonte inspiradora, eu pensei que não haveria
ninguém melhor para chefiar a Esmurradoria. Eu não quero apressá-lo, mas se o senhor
aceitar o encargo mandarei um avião trazê-lo até Brasília, onde o senhor será oficialmente
empossado Esmurrador-geral da República. O senhor aceita essa tarefa, Dr. Oscar?
O tempo passou e a Esmurradoria se tornou uma instituição amada e respeitada por
todos. A frente do órgão, o Dr. Oscar tratou de ampliá-lo e fortalecê-lo. Criou as 27
superintendências regionais e abriu concurso público para provimento do cargo de agenteesmurrador. Além de nomear seu estagiário Vice-esmurrador-geral da República.
Brasil afora juízes corruptos, incompetentes e preguiçosos eram diligentemente
identificados e esmurrados. Primeiro um soco no olho esquerdo, seguindo a tradição do
Esmurrador-geral. Depois, se não houvesse emenda, outro soco. E tantos socos quantos
fossem necessários para a garantia da justiça. A população apoiava, pois bastava olhar para o
rosto e saber se esse ou aquele juiz era bom ou mau.
Sozinho em seu gabinete, entre uma reunião e outra, o Dr. Oscar gostava de levantar
seu braço com o punho fechado. Esboçava um sorriso e ficava longos minutos admirando seu
membro superior direito. Aquele era o verdadeiro braço da lei. Até que alguém o interrompia
com um assunto que exigia sua atenção. Então ele voltava a ficar sério. Acendia um cigarro e
entortava a boca, em formato de Popeye.
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O homem que bateu no juiz