3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS:
UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS
e
100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL
A IRONIA ROMÂNTICA E O LUGAR DO NARRATÁRIO
EM CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO
Ena Lélis 1
Nascido em Lisboa, no ano de 1825, Camilo Castelo Branco foi um dos grandes
nomes da prosa literária do século XIX em Portugal. Órfão de mãe aos dois anos de
idade e de pai aos dez, foi entregue, juntamente com a irmã, a parentes de Vila Real.
Nessa altura, Camilo já questionava Deus sobre o seu próprio nascimento, tentando
entender por que razão o Criador tinha-o condenado à vida. Este momento da sua
história foi contado quando já adulto, em página autobiográfica, intitulada No Bom
Jesus, no livro Boémia do Espírito.
Há cem anos que este Senhor crucificado vê umas poucas de gerações
prostradas diante do seu altar – uns a agradecer, outros a suplicar.
Pois, talvez no transcurso de um século, nenhuma outra criança de 10
anos repetisse, diante desta sagrada imagem, as palavras de Job:
Quare de vulva eduxisti me? – Porque me deste o nascimento?
(CASTELO BRANCO apud CHORÃO, 1998, p. 19)
É sabido que Camilo teve uma vida conturbada. Casou-se ainda muito jovem e
teve uma filha. Como “não era ave para nenhuma gaiola” (CHORÃO, 1998),
abandonou esposa e filha, que morreram logo em seguida. Teve amantes, foi preso e,
uma vez residindo no Porto, dedicou-se à literatura e ao jornalismo. Como jornalista,
ganhou muitos inimigos por conta do seu estilo, notadamente ferino e provocador. Meio
a tudo isso, tentou estudar Medicina e Direito, sem sucesso. Camilo não gostava de
seguir programas, era um estudante voluntário e autodidata, afeito a uma vaidade
intelectual que era muito maior que o seu desejo de conquistar um diploma. Por conta
disso, não fez outra coisa na vida além de escrever, tendo sido o primeiro escritor
português a viver das e para as letras. Escrevia por amor, dor, dinheiro e necessidade.
Conforme Bigotte Chorão (1998), Camilo foi “escritor a tempo inteiro, conhecendo,
como criador, o paraíso, e, como escravo das letras, o inferno.”. Notadamente conhecido
1
Pós-graduanda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana ― UEFS.
ISBN 978-85-7395-210-0
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pela sua versatilidade, dele leem-se não apenas contos, novelas e romances, mas sabe-se
também de seus tantos outros textos, como cartas e mesmo sermões que escrevia,
mediante honesto pagamento, para abades pouco íntimos da escrita. O próprio Camilo
confessava-se versátil e vendedor das próprias insônias.
Eu posso escrever romances jesuítas, romances franciscanos,
romances carmelitas, romances jansenistas, romances despóticos,
monárquico-representativos, cabralistas e até romances regeneradores:
o que eu quiser, e para onde me der a veneta. [...] dou formas
dramáticas ao diálogo dos meus fantasmas, e convenço-me de que
pertenço bem aos vivos, ao meu século, ao balcão social, à indústria,
mandando vender a Ernesto Chardron [o editor] as minhas insónias.
(CASTELO BRANCO apud CHORÃO, 1998, p. 9-22)
Aos 25 anos, conheceu Ana Plácido. E porque ela era casada quando iniciou
nova relação com ele, foram presos por conta desse adultério e absorvidos após um ano,
quando se mudaram para São Miguel de Ceide, onde tiveram filhos. Dona e governanta
da sua casa, secretária, enfermeira, amante, mãe, esposa e irmã pelas afinidades
literárias; era Ana Plácido para Camilo. Ainda que numa relação que migrou da paixão
para a rotina – mais para ele que para ela –, viveram juntos até o fim, quando, aos 65
anos, em 1890, cego, sifilítico e desestruturado financeiramente, Camilo suicida-se.
A vida de Camilo foi fortemente marcada por paixões, tragédias e desavenças.
Marcas essas que se mostram proeminentes em sua produção literária, a qual
acompanha o momento em que o Romantismo se desenvolvia em Portugal. A sua vasta
obra, aliás, fez parte da construção desse período naquele país. Entre poesia, teatro,
crítica política e literária, além de mais de uma centena de romances e novelas, o autor
dedicou 45 dos seus 65 anos à escrita.
Como bem pode ser observado, Camilo fez parte da literatura portuguesa do séc.
XIX, época marcada pela vitória da burguesia e, consequentemente, pelo lucro, pela
hipocrisia e pelo culto à aparência. Nesse contexto, muitos escritores de então
utilizavam-se dos mesmos artifícios de representação social e fingimento, como maneira
de criticar e denunciar realidades incômodas. Algumas das possibilidades de crítica e
denúncia surgiam pelo sarcasmo, pela sátira e pela ironia, características bem
conhecidas na obra camiliana. A produção que interessa, neste momento, é uma novela
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satírica, Coração, Cabeça e Estômago, na qual Camilo utiliza como recurso a figura de
um narratário como intermédio das suas censuras.
1 O CONCEITO DE IRONIA
Antes de adentrar na discussão da inserção e do papel da ironia romântica na
novela satírica camiliana, é relevante esclarecer a respeito do conceito de ironia. A
ironia é comumente compreendida como a figura de retórica em que se diz o contrário
do que era pretendido, levando-se em consideração que o receptor da mensagem
entenderá a mentira implícita no discurso (DUARTE, 2006, p. 18). Resumida e
claramente, Massaud Moisés definiu em seu Dicionário de termos literários que “a
ironia consiste em dizer o contrário do que se pensa, mas dando-o a entender” (1992, p.
295). Entre os estudiosos da linguagem irônica, no entanto, é repetitiva a afirmação de
que a ironia apresenta uma série de dificuldades em sua conceituação. Na visão de
Muecke (1978, p.8-12, apud DUARTE, 2006, p. 18), “os pontos de contato existentes
entre suas várias formas tornam possível defini-la de muitos diferentes ângulos.”. Além
disso, e ainda segundo este autor, conceituá-la é tão difícil quanto definir arte ou poesia.
Opta-se aqui, então, por apontar a ironia, em linhas gerais, como uma maneira de
argumentação sagaz e intelectual, que se alicerça na intenção e consciência do ironista e
na pretensão que este possui de fazer o seu receptor refletir sobre a mensagem que lhe é
transmitida, de sentido dual: o que é enviado e o que é pretendido.
A esta definição generalista, acrescenta-se alguns pressupostos para que
aconteça a presença da ironia no discurso. Segundo Maria de Lourdes A. Ferraz, em sua
obra A ironia romântica: a) ironia pressupõe um ato de comunicação que envolva um
emissor, uma mensagem e um receptor; b) a ironia revela uma visão particular do
mundo, a do emissor, e daí o seu caráter preferencialmente crítico; c) por pressupor um
ato comunicativo e por seu caráter crítico, a ironia se relaciona com a linguagem de uma
forma muito particular, pois exigirá do emissor irônico uma plena consciência dos
recursos da linguagem que utiliza, isto é, uma consciência linguística crítica. Do
receptor será exigida a mesma consciência, assim como um conhecimento amplo dos
recursos linguísticos de que se utiliza o emissor para a construção da ironia; d) da
questão anterior, decorre que haverá a necessidade, no discurso irônico, de que emissor
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e receptor dominem a convenção da formulação irônica. Atente-se para o fato de que o
receptor poderá ou não ser o objeto da ironia. Independente disso, para o discurso
irônico acontecer e ser reconhecido como tal é necessário que haja um receptor que o
compreenda. Mesmo que o receptor seja o próprio emissor (FERRAZ, 1987, p. 20, apud
MUNIZ, 1999, p. 136).
2 A IRONIA NO CONTEXTO HISTÓRICO CAMILIANO
Para se fazer uma breve análise do momento histórico em que a ironia se inseriu
na literatura portuguesa, é preciso inquirir sobre o final do século XVIII, bem como o
século XIX, em Portugal, quando se deu a Revolução Industrial e o desenvolvimento e
instauração do sistema capitalista na Europa. A resposta disso é uma sociedade que
apresenta como fortes características a valorização do capital, a mecanização do
cotidiano, a objetividade e o pragmatismo das relações. Concomitante a essas
mudanças, quando se identificava a vitória da burguesia, nota-se, na civilização
ocidental, uma acentuação do homem enquanto indivíduo, enquanto ser uno e a
necessidade do homem-artista em incorporar essas modificações no campo das artes.
Quanto a isso, Lélia Parreira Duarte apresenta as duas vertentes do conflito do artista de
então: aceitar essa incorporação e contribuir para a legitimação das mudanças ou
resistir, criticando-a, o que significaria um suicídio do seu reconhecimento estético?
(2006, p. 141). Camilo Castelo Branco, por ter vivido no séc. XIX, vivenciou o
momento de transição estética, da romântica para a realista, tempo de efervescência
literária em Portugal. E isso marcou algumas de suas obras, como a que agora se
apresenta.
Se a literatura clássica pautava-se na representação do real, na mimesis, a nova
arte prezava a denúncia da artificialidade. Como bem afirma Duarte, “Se a nova
sociedade era dominada pela hipocrisia, pela representação, o novo artista,
irreverentemente, passa a denunciar esse culto da aparência.” (2006, p. 141). É
comprovado que a ironia enquanto recurso linguístico é utilizada desde os gregos. Mas
a ironia enquanto status literário nasce nessa ambiência do fim do séc. XVIII, enquanto
forma de criticar, indiretamente, a realidade circundante, através do fingimento, da
máscara, da necessidade de distanciar as vozes intra e extradiegéticas. Pode-se, ainda,
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lembrar do primeiro teórico da ironia romântica, Friedrich Schlegel, o qual afirmava que
o autor precisa se destruir e se autocriar. Dessa forma, ele – o autor - atinge novas
perspectivas, alcançando a liberdade, que tem a ironia como signo, o qual possibilita ao
autor uma autoconsciência, podendo rir de si e, assim, ser levado a sério (SCHLEGEL,
apud DUARTE, 2006, p. 142).
A autoconsciência defendida por Schlegel é, pois, o questionamento que o
autor faz do seu papel social e do
próprio
fazer literário, valendo-se,
metalinguisticamente, da própria obra para expressar as suas reflexões. “Este
comportamento crítico provocará uma reavaliação, inclusive, de seus ideais, de suas
visões de mundo e de seus gostos estéticos. O recorrer à ironia tornar-se-á bastante
comum.” (MUNIZ, 1999, p. 137).
No intuito de credibilizar as suas obras e embutir-lhes veracidade, muitos
escritores do século XIX, particularmente na literatura romântica, buscavam maneiras
diversas de contar as suas histórias. Recorrer a escritos que lhes foram entregues ou a
documentos que foram descobertos, ou mesmo a uma história que ouviram contar eram
artifícios para tornar verossímeis as suas narrativas.
Não diferente, Camilo utilizou-se desse recurso. Na narrativa que ora
protagoniza esse artigo, tem-se a história de Silvestre da Silva, um autor-defunto, que,
antes de morrer, deixa os seus escritos com um amigo para que este os publique, a fim
de pagar as dívidas que contraiu em vida. Este amigo, que não apresenta nome, torna-se
herdeiro e editor dos escritos de Silvestre da Silva. Vê-se no direito de editar aqueles
três capítulos que tem em mãos – Coração, Cabeça e Estômago -, tornando-se, assim, o
segundo narrador daquela história: o narratário. E na posição de editor desses papéis,
revisita-os e modifica-os, imprimindo em sua justificativa o seu tom crítico-irônico. E o
fará em todo o romance, por meio de notas.
Eu fui o herdeiro dos seus ‘papéis’. Alguns credores quiseram
disputar-mos, cuidando que eram papéis de crédito. Fiz-lhes entender
que eram pedaços num romance; e eles, renunciando à posse, disseram
que tais pataratices deviam chamar-se papelada, e não papéis. [...] Os
manuscritos de Silvestre careciam de ser adulterados para merecerem
a qualificação de romance. [...] No volume denominado Coração
encontro algumas poesias, que não traslado, por desmerecerem
publicidade, sobre serem imprestáveis ao contexto da obra.
(CASTELO BRANCO, 1988, p. 16-19)
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3 A DESCONSTRUÇÃO CAMILIANA PELO NARRATÁRIO E PELO PRÓPRIO
AUTOR
Jacinto do Prado Coelho nos informa que “a ironia camiliana pode ser avaliada
tanto ao nível das micro-estruturas (frase-sintagma) como nas macro-estruturas (novela
inteira)” (1983, p. 216). Grande parte dessa ironia está presente no discurso crítico do
narratário, uma vez que o faz em sua macroestrutura. O seu olhar se volta não somente
para trechos da narrativa de Silvestre da Silva (frases-sintagmas), mas, sobretudo, da
novela inteira. Critica a estética literária recentemente decaída, apresentando-a como
démodé, aponta uma sociedade injusta e interesseira e se aproveita, ainda, do autor já
morto para diminuir e fazer pouco do seu olhar demasiado romântico. Nesses trechos,
percebe-se que, já no Preâmbulo, Camilo, em utilização desse narratário, tece uma
explícita crítica à narrativa de Silvestre da Silva. Ao depreciá-lo, quem Camilo critica,
de fato? Vejamos. O ano de publicação de Coração, Cabeça e Estômago, uma de suas
maiores novelas satíricas, foi o mesmo ano de publicação de uma de suas mais lidas
novelas românticas, Amor de Perdição. A publicação desta foi anterior à daquela. O ano
era 1862. A época era a de transição literária. A estética realista, como já exposto,
ganhava força. A notável e mordaz ironia de Camilo, pois, deixa clara a desconstrução
do editor sobre o autor, como uma leitura da desconstrução do próprio Camilo realista
sobre o Camilo romântico. Tem-se, então, um embate discreto e sarcástico entre
narrador e narratário, que é, se bem observado, uma releitura da consciência crítica do
próprio Camilo Castelo Branco. O próprio romance propõe a primeira parte – Coração –
como a fase emocional do protagonista; a segunda – Cabeça – como a sua fase racional;
e a terceira – Estômago – a realista.
Maior parte da ironia trazida pelo editor norteia o leitor a encontrar a
desnecessidade do amor romântico, pondo-o como tolo: “O Coração reina desde 1844
até 1854. São aqueles dez anos em que nós vimos Silvestre fazer tolice brava.”
(CASTELO BRANCO, 1988, p. 17). Como revela no Preâmbulo, o editor, sentindo-se
no direito de adulterar os escritos de Silvestre da Silva, chega a acrescentar informações
através das notas. Já no início da primeira parte, quando o protagonista faz saber sobre o
primeiro amor que teve em Lisboa, o editor acrescenta fatos não narrados por Silvestre e
inicia dizendo “Eu sei mais alguma coisa, que merece crónica.” (CASTELO BRANCO,
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1988, p. 23). Nesta mesma nota, em crítica ao algibebe que se casou com o referido
primeiro amor de Silvestre, Leontina, conta que ele ganhou um prêmio na loteria e que,
por isso, mudou de cara e de maneiras, espezinhando em seguida que “O dinheiro faz
estas mudanças e outras mais espantosas ainda. [...] Estão gordos, ricos e muito
considerados na sua rua.” (CASTELO BRANCO, 1988, p. 24). Com este último trecho,
o narratário expõe a interesseira dialogia entre dinheiro e imagem, tudo isso que veste a
burguesia. Esta mesma observação é feita não só pelo narratário, como também pelo
narrador e pelo próprio Camilo, ao escolher como títulos de dois de seus capítulos “A
mulher que o mundo respeita”, para tratar de D. Paula, mulher vil, traiçoeira e vulgar,
porém rica, e “A mulher que o mundo despreza”, para apresentar Marcolina, mulher de
“virgindade moral”, cheia de valores, mas desprezada pela sociedade por ser pobre. Ao
revolver a biografia de Camilo, percebe-se que essa reversibilidade de méritos é muito
encontrada em seus escritos, sobretudo quando buscava explicação para a sua existência
e sofrimento, defendendo que para os bons há castigos, sendo reservados prêmios para
os maus.
Voltando à crítica do narratário sobre o autor, encontra-se espalhada pela obra
algumas alertas ao leitor, ou de que este se prepare para o que irá ler ou de que,
enquanto editor, ele retirou algumas partes do autor, por serem de demasiado mau
gosto: “Defendo a paciência do leitor dos duros golpes que lhe estão iminentes.”
(CASTELO BRANCO, 1988, p.44) ou “As seguintes coisas são menos inocentes [...]
Basta isso para terror das almas.” (CASTELO BRANCO, 1988, p. 45). Além da crítica
aos poemas e ao exagero sentimental de Silvestre da Silva, o editor espezinha ainda o
Silvestre jornalista, que se metia em tudo e era odiado por muitos.
Perdoe-me a memória de Silvestre. A calúnia, conquanto escrita em
palavras cultas e penteadas, é sempre calúnia. Elegâncias da
linguagem, por mais que valham na retórica, valem nada para o
desconceito de quem injustamente difamam. O jornalismo do Porto
teve e tem admiráveis e valentes mentenedores da honra contra classes
poderosas pela infâmia nobilitada. À conta de muitos poderia
escrever-se o que o finado Silvestre disse de um [...].” (p. 116).
E após transcrever as palavras de Silvestre, nas quais este reconhece o quão é
odiado pelos seus escritos jornalísticos e, aos poucos, perde seu lugar nos jornais locais,
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o editor arremata: “Fez bem! Partiu o braço querendo parar o movimento da roda.” (p.
116).
Ao perceber sua inaptidão para os assuntos do coração, Silvestre adentra a sua
fase racional. Decepcionado com esta, após muito infortunar seus inimigos e sentir-se
só e desprestigiado, o protagonista finda a sua vida intelectual e afirma que “Nem já
coração, nem cabeça. Principia agora o meu auspicioso reinado do estômago”
(CASTELO BRANCO, 1988, p. 131), o qual não lhe deixará preocupações intelectuais,
tampouco sentimentais. Reina o estômago e assim justifica:
Não cuidem, porém, que eu hei-de consumir o restante da minha
individualidade em comer. Há faculdades que não se obliteram
imolando-as a uma única manifestação da vida orgânica: o mais que
pode fazer o espírito é impulsioná-las, concentrá-las e convergi-las
todas para um ponto. (p. 140)
Observa-se que a desconstrução da qual tratamos anteriormente é também
identificada através das palavras do próprio protagonista, que, com o passar dos anos,
percebe a sua transformação; não a da sua consciência – o papel de consciente cabe ao
editor -, mas a da sua racionalidade, endurecendo o que antes era somente exagero
sentimental. Outro exemplo encontra-se ainda no início da segunda parte, quando
Silvestre da Silva retorna ao Porto e já não julga as mulheres encantadoras como as de
outrora. Neste momento, o leitor atento deve se perguntar se, de fato, o encanto dessas
mulheres não mais existe ou não há mais encanto no olhar de Silvestre, tomado agora
pela racionalidade.
Ó mulheres do Porto, ó virgens saudosas da minha mocidade, ó santas
da natureza como Deus as fizera, que é feito de vós, que fizeram de
vós os romances, e o vinagre, e a Lua, e o pó de telha, e as barbas do
colete, e os jejuns, e a ausência completa do boi cozido, que vossas
mães antepuseram às mais legítimas e respeitáveis inclinações do
coração?! [...] Estavam as minhas faculdades regidas pela cabeça.
(CASTELO BRANCO, 1988, p. 103-4)
O protagonista julga a publicação dos seus escritos como proveitosa para a
iniciação da mocidade da época, a fim de que esta não repetisse os erros que ele
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cometera, numa alusão ao reconhecimento de que é inválido ou desnecessário estar
afeito às agruras do coração, do romantismo.
Nesta carta prometia o meu amigo legar-me os seus papéis, com plena
autorização de divulgá-los, se eu visse que podiam ser de proveito
para a iniciação da mocidade. (CASTELO BRANCO, 1988, p. 177)
Finalmente, ainda resta tempo para apontar que o romance não está apenas
dividido em três partes. Há ainda dois acréscimos feitos pelo editor: um no início, o
Preâmbulo, e outro no fim, intitulado “O editor ao respeitável público”. Daquele já
foram feitas, anteriormente, as devidas demonstrações. Sobre este, no qual o editor se
despede, justifica as partes aproveitáveis do romance, que são as que mostram que “a
deusa da fortuna é a predilecta amiga dos que submetem a vida ao regime suave da
matéria”, imprimindo, assim, crítica e atualização daquele momento histórico e literário.
Em suas últimas palavras, o narratário espreme ainda a sua última gota de tinta na ferina
pena. Apresenta o último soneto de Silvestre. E destina-lhe merecimento. Grande
merecimento, aliás. Não por ser bom. Mas por ser o último.
RESUMO
Este artigo traz a análise da novela satírica Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo
Castelo Branco, na intenção de demarcar a maneira como o Camilo realista desconstruía
o Camilo romântico através de um discurso irônico, por intermédio de um narratário.
Para tanto, é necessário discutir, antes, o conceito de ironia, bem como apontar o
momento histórico português, nos idos do séc. XIX, justificando a relação entre a ironia
romântica e a inserção de um narratário como recurso literário da época.
PALAVRAS-CHAVE: Camilo Castelo Branco. Literatura portuguesa. Ironia.
Narratário.
ABSTRACT
This article contains the analysis of the satirical novel Heart, Head and Stomach, by
Camilo Castelo Branco, with the intention of shows the way realist Camilo
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deconstructed the romantic through an ironic speech, through narratário. Therefore, it
is necessary to discuss before, the concept of irony as well as pointing out the historical
Portuguese, back in the twenty first century, explaining the relationship between
romantic irony and the insertion of a narratário as a literary resorting of the time.
KEYWORDS: Camilo Castelo Branco. Portuguese literature. Irony. Narratário.
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