Filosofia
da
Comunicação
(Comunicosofia)
GUSTAVO DE CASTRO
CASA DAS MUSAS
pilotis
abertura
a casa de Hermes, p.
introdução
frasementos poéticos, p.
parte I – água
os fragmentos da água, p.
parte II – fogo
o guardador de chamas, p.
parte III – ar
o colecionador de ventos, p.
parte IV – terra
o leitor de polens, p.
sobre o autor, p.
Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as
coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência.
Fernando Pessoa
Só existe ciência daquilo que é oculto.
Gaston Bachelard
A Luiz Martins
Copyright 2005 by Gustavo de Castro e Silva
Ilustração da capa: Hermes
Diagramação: Fernando Brasil
Revisão: F.D & G.C. S.
Coordenação editorial: Luiz Martins da Silva
Printed in Brasil
Impresso no Brasil
2005
Direitos para esta edição
Ed. Casa das Musas
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Castro e Silva, Gustavo de.
Filosofia da Comunicação - Comunicosofia / Gustavo de
Castro e Silva; - Brasília: Ed. Casa das Musas, 2005. Col. Textos
em Comunicação.
75p., 21cm.
ISBN
1.Filosofia. 2. Comunicação. 3. Teoria
CDU 301.153.2
CDD 301.16
abertura
a casa de hermes por Florence Dravet
O
s deuses não precisam trancar suas casas antes de sair. Até
porque, eles nunca saem totalmente. O que acontece é que a
vastidão de suas moradas os faz ao mesmo tempo presentes e
ausentes em cada recanto. Suponhamos, então, que Hermes nunca
saia de casa, mas também não esteja verdadeiramente presente em
nenhum de seus cômodos. Suponhamos que ele deixe sempre
algumas portas abertas para que caminhantes, curiosos e estudiosos
possam entrar e passear em sua vasta morada. A dificuldade é que o
percurso nunca acaba porque a casa de um deus sempre apresenta
algo de labiríntico, de misterioso, de surpreendente.
Os cômodos, por exemplo, nunca possuem uma só porta;
existem várias possibilidades de entrar e sair, de passar de um lugar
da casa para outro. Às vezes uma porta escancarada esconde outra,
ainda fechada, como um acesso a ser descoberto que pode conduzir
a um lugar pouco freqüentado ou totalmente ignorado. Não se sabe
exatamente quais os limites da casa de Hermes, nem a quantidade
de cômodos. O que se sabe — e é o que este livro explora — é que
existe sempre uma outra possibilidade, uma nova porta de entrada,
uma outra passagem para se conhecer a morada do deus
mensageiro.
Abordar a comunicação seguindo os caminhos da natureza
através dos quatro elementos é o método adotado aqui, que permite
dar conta da dimensão ilimitada e prolífera da sua observação. Pois
ela é pensada sucessivamente como água, fogo, ar e terra, sendo
primeiro algo que flui, para depois arder, evaporar-se e derramar-se
em pólens sobre a terra, fertilizando-a. Há pouca preocupação aqui
em analisar suas concreções ou manifestações em nosso mundo,
interessando mais idealizá-la no sentido de concebê-la através de
prismas abstratos, onde caibam tanto as realizações comunicativas
— as diversas linguagens, os seus meios e fins — como as suas
formas imaginais e criadoras e, ainda, suas formas livres e
desconhecidas. Os quatro elementos representam, simultaneamente,
a totalidade porque são ligados entre si, e a parte ínfima porque são
fragmentos de algo maior que aparecem acrescidos pela lupa do
olhar investigador daquele que quer saber, conhecer, compreender.
Para enfrentar as dificuldades labirínticas da casa de Hermes, é
preciso desfazer-se dos antolhos do medo e dos reducionismos que
mantêm as portas fechadas, compartimentando os espaços. É
necessário deixar fluir córregos d‘água, saber aquecer-se às chamas
da criação, voar ao grado dos ventos anunciadores e reverter-se
depois, transformando e polinizando o mundo. Porque a vasta casa
da linguagem precisa ser melhor ocupada pelo homem,
Comunicosofia é um convite a conhecer a comunicação,
questionando, sonhando, criando, imaginando, amando.
Introdução
frasementos poéticos
1. Assim como não consigo me reconhecer sem a dimensão
espiritual, não consigo me reconhecer sem a dimensão
comunicativa. O elo comunicação e espiritualidade sempre me
significou – no fundo – um tipo de busca. Em ciências sociais,
chamo de Comunicação Vertical ou Comunicosofia. A busca pelo
alto sempre me pareceu também o mesmo que uma busca pelo
autos = si mesmo, si próprio, eu mesmo. Todas as vezes que
pensava na possibilidade de uma unidade do conhecimento, não sei
porque, olhava o céu. Achava que ele conseguiria representar a
totalidade do dizível e do indizível. Depois, como se fosse um
complemento disso, olhava para dentro de mim, para o céu interior,
e dizia uma frase, sempre a mesma: ―para o alto (autos) é que se
anda‖.
2. O vertical me atingiu em cheio com a espiritualidade e com a
poesia. Fiz da comunicação o médium para chegar a ambas.
Atingiu-me com a poesia ao encontrar, em Montevidéu, Roberto
Juarroz e a sua Poesia Vertical, livro que me inspira ainda hoje.
Com a espiritualidade, ao encontrar, em Roma, o místico e filósofo
Marcelo Costa Nunes e sua Parosofia. Dois signos da verticalidade,
dois modos de ser-no-mundo, ambos convergentes, sensíveis e
promotores de sensibilidade e conhecimento. Com eles aprendi que
a força dos relâmpagos do alto (autos) ilumina a educação na noite
do homem. As profundezas de nossa alma talvez comuniquem mais
que as mídias de massa.
3. Um estudo sobre a comunicação – pelo menos no meu caso – não
pode deixar de ser um estudo sobre a poesia e a espiritualidade. Não
pode deixar de discorrer necessariamente sobre a verticalidade da
palavra e do espírito. A verticalidade é por si só ascendente e
descendente: alavanca a mente e a alma aos estados de elevação e
evolução e aos de queda e declínio. Para acessar os limites deste
estudo, recorrerei à multiplicidade dos estados d‘alma: leituras,
experiências, memórias, subjetividades... será um mergulho nas
estruturas psico-socio-espirituais desse não-sei-quê essencial que é
a comunicação.
4. Estendo as mãos à palavra, companheira inseparável nesta
jornada. Talvez ela me ajude a contar o que o silêncio me contou.
Estendo as mãos também à você, caro leitor, mirante desta jornada.
É interessante cruzar seu caminho assim com palavras e silêncios.
Você acha que isso foi uma coincidência? Acho que não. E não
acho pelo simples fato de que coincidências não existem. O que
existe são concomitâncias!
5. Os silêncios sensíveis da comunicação advém de todas as partes
do interior da gente. Parecem estruturas e impressões mitigadas na
concomitância dos momentos tatuados no mármore do corpo.
Acatará a comunicação as leis da natureza ou as leis dessas
concomitâncias? Talvez ambas. Na sua fruição incerta, ela molda
variados vasos. E, como diz Drummond, ―os cacos de vida colados
formam uma estranha xícara‖. A comunicação vai aos poucos
ornando cada um de nós a depender do oleiro, do barro, do tempo,
do cozimento, para em seguida, dentro do vaso já pronto, dispor de
águas e flores e liquens. Ou não dispor de nada. A comunicação
zanguezagueia conosco no arrabalde dos jogos sensíveis e brutais
que marcam a nossa pele. Nela, somos pedaços de gente colados,
somos esquecimento e desterro, reconhecimento e espelho, falas
depositadas dentro de um pote que ninguém sabe ao certo definir o
que contém.
6. A comunicação bem que poderia se parecer à relação que há na
sensibilidade da pétala ao cair e roçar o pensamento de quem a
pensa. A pétala voa direto ao chão com a leveza aérea dos seres
alados. Nenhuma palavra pode detê-la, nenhum suspiro suspendê-la.
Sem embargo, pétala e pensamento deveriam abrir juntos como se
fizessem parte da mesma flor. Perfumar o pensamento, adornar a
razão, eis uma fusão sensível necessária à comunicação. Para que o
pensamento esteja perfumado e a pétala possa ser pensada é
necessário que pétala e pensamento possam ser recolhidos juntos.
7. Algum poeta disse certa vez: ―Não sei colher só sei semear‖.
Semear flores e pensamentos, histórias e memórias, prosas e poesias
para que o leitor colha a si mesmo no seu jardim interior. Pretensões
de quem ama os caminhos para dentro. Tomei certa vez o caminho
que subia a montanha da alma. Segui sozinho, acompanhado apenas
de um caderno. Tomei a estrada a norte e iniciei a jornada. Este
livro é a história desta busca, destas anotações, das paradas, leituras,
meditações e perdas. É também a história de uma angústia, o roteiro
de uma dor e de um despedaçamento. Ao decidir trilhar a estrada da
poesia e da espiritualidade pelo caminho da linguagem não tive
como me esquivar do touro branco selvagem que me atacou pelo
caminho.
8. Proponho a todos, principalmente a você, uma anamnese da
palavra ―comunicação‖. Quando foi que você ouviu falar pela
primeira vez dela? É difícil lembrar, mas procure voltar no tempo.
Praticamos comunicação antes mesmo de pensarmos nela. Se é que
um dia nela pensamos. Nascemos e vemos nossos pais ouvindo
música, rádio, lendo jornais, vendo tv, falando uns com os outros.
Antes disso, um processo mais profundo de comunicação se
estabelece: somos beijados, acariciados, tocados, amados.
Paralelamente, outro processo também desencadeia: sonhamos,
ouvimos e inventamos histórias, estamos enquanto crianças no
limiar entre o sonho e a realidade. É por isso que acho que a
comunicação nasce de três processos distintos: do silêncio, do amor
e da imaginação. Depois disso, agregam-se outros processos e mais
outros e tudo complexifica. É por isso que fiz esta proposta: quais
as suas mais remotas relações com a comunicação? Quando criança
eu gostava de imitar os locutores de rádio. Tomava uma escova de
cabelo na mão e ficava inventando histórias. Depois, aos doze anos
mais ou menos, no dia da morte de John Lennon, minha mãe
chegou em casa com uma máquina de escrever Olivetti. Meus olhos
se acenderam: passei a escrever histórias sem parar, deste então.
Quis ser escritor, poeta, coisas assim. Mas e você, como encontrou
esta dama, a comunicação? O que você quis e o quer com ela?
9. Será que a comunicação realmente existe, ou estamos falando
mesmo é de outra coisa? Quando falamos de comunicação não
estamos falando de um ideal desejável, inspirador, um modelo a ser
perseguido? Será que não falamos de fato de trocas de informações
subjetivas, relações indiretas, transversais, multidirecionais? A
comunicação lembra um plasma. Varia na forma e no conteúdo a
cada instante. Diferente de outros materiais que variam na forma
mas mantêm o volume, o plasma varia sempre. Acho que a
comunicação possui as quatro características da matéria: sólido,
líquido, gasoso e plasmático. Possui os quatro sabores: doce,
amargo, azedo e salgado. Possui as quatro virtudes cardeais:
sabedoria, fortaleza, prudência e temperança. Possui também,
obviamente, os sete pecados capitais. Além destas, outras são as
naturezas da comunicação.
10. Andei por isso mesmo buscando essa natureza em regiões que,
pelos menos alguns comunicadores, esqueceram: na poesia e na
espiritualidade. Isso porque acho que a comunicação precisa
reencontrar a alegria, deixar de lado a sisudez dos produtos, das
programações, das teorias, da academia, do mercado e entrar na
vida do homem como uma filosofia de vida. A comunicação como
belas artes!!! Essa visão vê a comunicação com o que lhe é mais
próprio: o conceito aberto, conceptor, concepção pronta a entenderse com outra. Trata-se de uma complexidade sutil, ligações e
religações plasmáticas. Mas aprende também as lições dos outros
elementos.
11. Vejo a espiritualidade como uma física da natureza e das
energias, e a poesia como filosofia espiritual. O além exige sempre
mediação (e meditação) de algo e de alguém. Aqui, neste ensaio, a
mediação da espiritualidade não aparecerá explicitamente, apenas
implicitamente, mas a poesia, não. Essa gritará o tempo todo os seus
desassossegos de silêncio. Comecei a escrever estas notas como
anotações de aula, o que chamo de inscriações, porque me inscrevo
nelas ao mesmo tempo que me recrio também. Todos dizem que
não tenho um pingo de juízo por querer estudar a comunicação a
partir das matrizes da poesia e da espiritualidade. Dou certa razão
aos que dizem isto. Mas não me importo muito. Tratar com o
incerto, sempre foi uma forma de avançar nos limites do insólito e
da compreensão.
12. Para quem nasce num país como o Brasil, não é muito difícil
relacionar incerteza e compreensão. Antônio Alçada Batista conta
que em meados da década de cinqüenta do século vinte, o Brasil era
o único país da América Latina em que as touradas não haviam
dado certo. Um empresário chegou a erguer uma arena, importar
bois e toureiros da Espanha e do México e divulgar a novidade por
toda a cidade do Rio de Janeiro, onde foi montado, próximo ao
Maracanã, o cenário daquela primeira tentativa. O público
compareceu em massa, mas após o evento os organizadores
decidiram nunca mais realizar uma tourada por estas paragens. É
que o Brasil, diferentemente dos outros países, foi o único lugar
onde o público vibrava e torcia para o touro, desejando que esse
estraçalhasse o toureiro.
13. Compreender os limites da comunicação exige uma certa dose
de abertura às possibilidades. Dizem que quando um físico amigo
de Niels Bohr, prêmio Nobel de física de 1913, foi até sua casa de
campo e viu, dependurada na porta, uma ferradura, disse ao
dinamarquês: ―Você, Niels, crendo em superstições?‖. Bohr
respondeu que havia ganho a ferradura de presente de um camponês
e quando argumentou que não acreditava naquilo, o homem
respondeu: ―Não importa, funciona independente da sua crença!‖.
14. Para compreender a comunicação devemos estar abertos
também ao encontro, ao amor e à paixão, coisa que muito
pesquisador em comunicação não gosta de falar. Dizem que no dia
do funeral de são Francisco de Assis o cortejo seguido pelos frades
passou defronte o convento onde morava santa Clara. O cortejo
parou por um momento ali em frente, e Clara, que já esperava do
lado de fora o corpo junto às irmãs, aproximou-se do santo, moveu
os lábios até o braço de Francisco e o beijou. De repente, como se
fosse beijá-lo de novo, mordeu a pele do braço do poverello,
arrancando-lhe um pedaço de carne. Diante de todos, mastigou e
engoliu. Depois disso, nada disse e nada mais precisou dizer. Da
fúria carnal e espiritual do amor, sabemos todos.
15. Mas a comunicação é também simulacro, reflexo, jogo de cena.
E por falar em jogo de cena, uma imagem para pensar a
comunicação:
No ônibus não havia ninguém de pé. Todos estavam sentados,
voltando para casa depois de um dia de trabalho. O final de tarde
não anunciava nada além da noite triste. E o ônibus seguia o seu
caminho sem novidade. Foi quando num ponto qualquer subiu um
vendedor de espelhos, carregando um volume deles amarrados.
Como não havia lugar, o homem ficou de pé, segurando os espelhos
voltados para nós, os passageiros. E eis que de repente todos
começamos a olhar, a nos ver ali refletidos, oscilantes, tumultuados,
virando curvas, saindo e entrando em cena, aparecendo e sumindo
ali sentados à espera de nos ver aparecer e sumir em imagens
acidentadas de nós mesmos. O vendedor de espelhos nos despertou
uma imagem em conformidade com o que somos de fato: seres
sendo levados de um ponto a outro do itinerário, cuja imagem
patética e passiva não faz mais do que oscilar, enquanto espera ela
desaparecer de vez, na invisibilidade final.
16. A comunicação é panapaná. De acordo com Câmara Cascudo
panapaná é uma migração de borboletas alaranjadas com laivos de
açafrão nas asas impacientes, advindas em miraculoso caudal pelo
vento nordeste. Panapaná é a forma de quem sabe tocar flores,
ondular dunas, caminhar ventos...
17. Tudo isso e um pouco mais. A comunicação não tem fronteira, é
ciência aberta, por mais que não queiram, por mais que a queiram
mídia impressa, eletrônica, radiofônica, etc, etc, etc. a comunicação
em si é o espaço de contato fluído e dinâmico de tudo para com
tudo. Este ensaio, não fala diretamente a língua do jornalismo, nem
da publicidade, nem das relações públicas, nem de nenhuma
habilitação. Fala apenas a língua da linguagem.
18. Se tem uma mídia que me interessa aqui é essa: a língua da
linguagem. E o meio que decidi explorar foi o dos elementos: água,
ar, terra, fogo. Estes são os médiuns que me interessa aqui explorar.
Então vamos a eles.
parte I – água
os fragmentos da água
1. Nesta Comunicosofia estarei inspirado no próprio Hermes: terei
asas nos pés e na cabeça, por isso tentarei pensar e sonhar
livremente; serei, como ele, ladrão de palavras, imagens, saberes,
utilizarei citações, frases e poemas dos outros para levar até você.
Neste Diário Sentimental dos Elementos pensarei a comunicação
como uma meditação que busca a sua própria natureza, seja ela
natural ou transcendental. Uma introdução à comunicação não
descura os elementos que compõem os seus diversos saberes. Busco
por isso aqui uma Comunicosofia: a sabedoria do ser-com...
2. Os saberes da comunicação: fragmentos de uma unidade perdida.
Para conhecer a comunicação, primeiro ser um Relieur (religador),
um Complexeur (tecedor) e cultivar o espírito dos fios e dos nós. E
em seu tecer-saber, calar-se. Ruminar atento a polifonia do mundo,
sentir o Aberto. Porque é isso o que é a comunicação: fragmento à
procura de encaixe, logos da unidade múltipla1
3. Comunicação. Palavra-risco porque palavra-palavras. Também,
palavra-guarda-chuva. Além de abrigar seres-conceitos, abriga uma
sinfonia de formas e variações. Por isso posso te explicar te
decompondo: ação comum; dinâmica de tornar o mesmo, igual,
variação comunnis: Comum-idade; Comum-ação... Mas és muito
mais, minha senhora, do que isto. És a companheira da unidade:
Com-Um, unidade que se faz acompanhar da diversidade. Com-Um
recupera o sentido do grego ksyn-on: ksyn [syn] (com) e on
(particípio presente do verbo eimi = ser). Com-Um = ser
conjuntamente um.2
4. Pelo fato de seres unitas multiplex, me desobrigo a te entender
totalmente. Meu acesso a ti é pelas vias complexas. Sempre quando
te busco, encontro outra coisa, mais e mais, por isso aprendi que és
como um rio que nunca pára de correr. Não tenho dúvida:
Comunicação és água!
5. És igual à água, minha senhora. Alimentas o homem, as terras, o
gado. És todas as formas em teu estar. Sedenta, estás em tudo,
porque tudo fala. Só não podes estar parada, porque quando és água
empoçada, apodreces e matas quem de ti se alimenta. Palavra-rio,
palavra-curso, palavra-discurso. Comunicação é discurso, estrutura,
reunião (dioikounti) das casas que habitamos. Rio que corre
penetrando em filetes de água, os canais de todas as casas.
6. Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água quebra-se em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
O discurso de um rio, seu discurso-rio.
Chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frase curtas, então frase a frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a sede ele combate.
(João Cabral de Melo Neto)3
7. Teus significados? Correr, fluir, vagar, trazer, levar, nutrir... Não
suportas água parada, atacas as paralisias e se te aprisionam,
morres. Teu saber resulta dos que andam, dos que estão atentos ao
teu apelo. Mas quem não sabe te beber, nem te sabe nadar, esses
padecem por te acharem passageira, fugaz, efêmera, mortal. Não
conhecem teu substantivo curso. Nem contigo se fazem com. Com
curso.4
8. Minha senhora, te partiram em tantas. Desviaram várias vezes o
curso do teu rio, te represando ora aqui, ora ali. Ao te deterem,
queriam te conhecer, investigar tuas fontes, avaliar a tua
propriedade, teu sabor e pureza. E viram que não és tão pura assim,
pois arrastas contigo os compostos químicos das terras por onde
passas, os lixos, os restos, os dejetos, tudo levas nos caminhos do
teu fluir rumo ao mar.5
9. Minha senhora, conheço quase todos os teus nomes. Só não
entendo por que tens tantos? Por que és assim? Ou porque sabes
muito bem quem és e não temes as máscaras que te colocam, ou
porque nunca te encontrastes em um nome, em uma identidade, um
modo, um jeito, uma forma. Dize-me, és múltipla ou és uma? Acho
que és semelhante a uma alcachofra ou a um imenso cebolão:
universos dentro de universos, palavras dentro de palavras, histórias
dentro de histórias.
10. Quantas gotas precisamos para explicar a água?
Quanta água é imprescindível para encher um copo?
Quantos copos são necessários para matar a sede?
Cada gota-palavra ajuda a explicar,
cada copo-discurso, a compreender,
cada sede-ruído, a buscar.
A comunicação é uma casa que nunca fica pronta.
11. Para conhecer a comunicação, evitar a água parada. A palavra
dicionária que não leva a nenhum discurso. Há um rio que sempre
corre em direção a tudo o que comunica. Por isso, para conhecer a
comunicação, começar pelo silêncio. Ele é o que tudo pontua no
discurso-rio. Mas o silêncio, na verdade, não existe, porque tudo é
som, música, melodia. O tempo todo, a todo instante, canta-se um
canto quieto. Por isso nós não ouvimos. Mas ao nascer, o sol emite
um som; a flor, ao abrir-se, canta a aurora; a cadeira, inerte na sala
vazia, dedilha a música da ruína; a caixa oca, sona uma ária
desconhecida aos nossos ouvidos. Toda a natureza canta: o
desprender-se de uma folha ou um fio de cabelo, o passar de uma
nuvem, o pousar de uma pena sobre o chão. A aparente ausência de
som é só aparente. Por isso a comunicação é melodia secreta. Um
canto e um baile de sentidos, dança e movimento, festa com muitos
con-vivas.6
12. O silêncio contém em si burrice e sabedoria. Um ditado árabe
diz: ―Todos querem falar, poucos querem pensar e ninguém quer
ouvir‖.
13. A fala que mais se aproxima do silêncio é a poesia e a oração. O
recolhimento sem palavras para dentro de nós mesmos, deixando
que falem ‗outras‘ vozes. Uma inscrição num monastério dizia
exatamente isto: ―Só fale se for melhorar o silêncio‖. De que forma
então a fala pode melhorar o silêncio?7
14. Inscrição num templo em Brasília: ―Se você tem dificuldades
em compreender o que é o silêncio, fique calado, que é o mesmo‖.
Fechar a boca faz falar o coração, a mente, a alma. Mas na era da
polifonia geral, ninguém quer ficar calado; o silêncio incomoda,
agonia, perturba, por isso deveríamos aprender na escola também
não só a alfabetização por palavras, mas também por silêncios. De
que consiste esta alfabetização? Consiste em aprender a sentir o
pensamento, ruminar a arte, perceber a si e as pessoas, e o ambiente
a nossa volta.
15. O silêncio que fica entre duas palavras não é o mesmo silêncio
que envolve uma cabeça quando cai, nem tampouco o que anuncia a
presença da árvore quando se apaga o incêndio vespertino do vento.
Assim como cada voz tem um timbre e uma altura, cada silêncio
tem um registro e uma profundidade.O silêncio de um homem é
distinto do silêncio de outro e não é o mesmo calar um nome que
calar outro nome.8
Existe um alfabeto do silêncio,
mas não nos ensinaram a soletrá-lo.
Freqüentemente, a leitura do silêncio
é a única durável,
talvez mais que o leitor.
(Roberto Juarroz)
16. Mas o que é o silêncio? Existe Tacere = silêncio verbal,
diferente de Silere = tranqüilidade, ausência de movimento e de
ruído. ―Silere remete a uma espécie de virgindade intemporal das
coisas, antes de nascerem ou depois de desaparecerem‖. Silentes
são os mortos. O silêncio é a forma mais acabada de se aproximar
de Deus e de sua criação. O silêncio coincide com a aparição do
verbo: começa a linguagem, o ato da fala (Locutio).9
17. Na visão mística de Jacob Boehme (1575-1624), Deus ―em si‖ é
pureza, claridade, bondade e silêncio. Seu silêncio o torna
incognoscível, estado sem paradigma, sem sinal. Para manifestar-se,
Deus cria um contrarium de si mesmo, representado na Cabala –
sistema filosófico oculto hebraico – pelos 7 Sephiroth. Deus começa
a falar através de Sophia.10
18. O tema do silêncio está sempre ligado ao da palavra. Todos têm
direito ao silêncio, mas nem todos à palavra. Entre os gregos havia
uma palavra para indicar esse direito: Isegoria (outro nome para
democracia): direito para todos de falar na assembléia. Problema
sempre atual, o direito à palavra relaciona-se diretamente ao direito
à expressão. E o direito ao silêncio, quem reclama?
19. Silenciar é também uma tática de vida. Para Bacon é uma arte
de velar-se ou ocultar-se. São três os graus: 1. homem reservado,
discreto e calado, que não se expõe; 2. dissimulação ―negativa‖,
parecer diferente do que é realmente e 3. dissimulação ―positiva‖,
fingimento, dizer-se diferente do que realmente se é, fingir para
passar melhor.11
20. ―Pessoas silenciosas são perigosas‖, diz o ditado. O silêncio é
uma arma. Uma forma de ação contra a opressão. Por isso, a
Inquisição via no silêncio também uma forma implícita de protesto
contra a fé católica. Torquemada (1420-1498) chama de ―heresia
implícita‖ a uma linguagem que não se declara a favor da Igreja. O
crime era: ―Preso por motivo de implícito‖ ou ―Condenado por
motivo de silêncio‖. Santo Agostinho estabelece a obrigação de
dizer ―tudo autenticamente‖, seja lá quais forem as conseqüências. 12
21. A franqueza em excesso denota um certo tipo de burrice.
22. Para Tímon, o cético, o silêncio (aphasía: ciência do tacere), é
uma atitude psicológica, que diz respeito à alma; uma atitude lógica,
que diz respeito à postura diante das ―verdades‖; e uma postura
ética, que visa a obter repouso, ataraxia. Recusa-se à fala
sistemática e dogmática, mas nem por isso é um silêncio só da boca,
mas do pensamento e da razão.
23. Ataraxia: impertubabilidade da alma. O silêncio adquire aqui
uma forma mais ou menos estóica, sábia. Bacon conta uma história:
―Conta-se que, reunindo-se um multidão de filósofos em grande
pompa na presença do enviado de um rei estrangeiro, cada um se
empenhava em ostentar sua sabedoria, a fim de que o enviado,
formando a respeito deles a mais elevada idéia, pudesse fazer um
belo relatório sobre a maravilhosa sabedoria grega. Contudo, um
(Zenão) deles não dizia uma palavra e não apresentava sua parte; o
enviado voltou-se para ele perguntou: ‗E o senhor, nada tem a me
dizer que sirva para o meu relatório?‘ – Diga a seu rei – respondeulhe o filósofo – que o senhor encontrou entre os gregos um homem
que sabia calar‖. 13
24. Maurice Blanchot descreve uma questão formulada por Kafka:
―Kafka desejava saber em que momento e quantas vezes, estando
oito pessoas a conversar, convém tomar a palavra para não passar
por calado‖. ―Angustia conhecida‖, diz Barthes, ―creio, pela maioria
de nós: preciso dizer alguma coisa, qualquer coisa, etc, senão vão
pensar que estou entediado (o que, no entanto, é verdade)‖.
25. Não é possível amizade quando dois silêncios não se combinam.
(Mário Quintana).14
26. Na mística do oriente, no Zen sobretudo, há uma desconfiança
em relação à palavra. Entre os 500 discípulos que entendiam bem o
budismo e que deveriam ser escolhidos para suceder o quinto
patriarca, foi escolhido um que não entendia nada de budismo, que
só conhecia o caminho e nada mais. No Tao, Lao Tse diz: ―Quem
conhece o Tao não fala dele; quem fala dele não o conhece‖. A
iniciação começa por ―não julgar nem falar mais‖. Silêncio total,
radical: interior e exterior = silere = silêncio de toda a natureza. O
homem seria um ruído na natureza.
27. O Deus do silêncio entre os africanos é Obaluaiê (senhor da
terra e da morte, coberto por um filá de palha = mistério, apresenta
pelo silêncio o que realmente importa: a vida). O deus do silêncio
entre os gregos é Harpócrates, cuja simbologia é uma criança com
um dedo na boca. Silêncio, diz Sartre, não é mutismo, mas outro
falar. Fala, trampolim para o silêncio; silêncio, trampolim para a
sabedoria. Na música tacet ―calar-se‖, em latim, corresponde ao
silêncio de um instrumento ou de uma voz como parte de um trecho
musical. Taceo = Tacere = tácito (ser implícito, prudente, calado).
28. Samuel Beckett diz que ―somos uma ilha de carne cercada de
silêncios por todos os lados‖. Em nosso corpo, habitam muitas
vozes, ecoam sons vindos de todas as partes do interior da gente. Só
através do silêncio poderemos ouvir todas elas. O ruído e os
rumores não facilitam em nada o curso do rio. São pedras que
impedem a passagem, mas que nos servem para meditar sobre a
força e o fluxo das passagens.
29. Para penetrar nos mistérios da comunicação, silenciar. Sentir o
expressar de cada fagulha desse som erudito. A mesma regra vale
para aprender sobre os silêncios do corpo e suas falas. Do corpo,
primeiro entender nossa identidade Frankenstein. Pois somos
realizações de um cientista em seu laboratório. Deve ser por isso
que toda comunidade é um laboratório e viver é um experimentarse. Somos misturas de eus = autos, colagens de experiências,
imprintings racionais, tatuagens de sentimentos; peles sobre peles,
homem-máquina com um coração de carne.15
30. O silêncio do corpo fala por expressões e gestos. Braços
cruzados, tez franzida, baton na boca, movimento das mãos, postura
ereta... Cada expressão pode indicar uma fala; cada gesto um
pedido, uma recusa, uma aceitação; um olhar geralmente diz tudo;
uma doença ou uma dor num ponto do corpo é um sinal com muitos
discursos. Um silêncio contém mais palavras do que muitas
imagens.16
31. O corpo é a primeira comunicação. Tudo se estende a partir dele
e a tudo ele acolhe. Para entendê-lo, ouvi-lo. Do pé à cabeça, sinais
e códigos ele emite o tempo todo para que ouçamos os seus
sussurros. Devíamos conversar o tempo todo com ele, percebendo
nele os fios que nos unem a nós mesmos, ao outro, às comunidades
e ao invisível.
32. ―A pele é a ponte do sensível no contato com o mundo e pode
ser também um abismo. É o nosso órgão mais extenso, é o nosso
código mais intenso, um lar de profundas memórias. O corpo sente,
toca, fala, comunga. Vida incorporada, corpo da Vida‖. Roberto
Crema. 17
33. Pensar o mundo que se sente; fazer raciocinar o coração.
Estruturar uma cardiótica:
A santidade é uma genialidade do coração. Do coração nasce um
mundo novo; o entusiasmo demiurgo do coração superpõe os
mundos. A inspiração criadora do coração é a chave para a
compreensão dos santos. O capítulo principal de uma cardiótica,
que se ocuparia do sentido e da lógica do coração, teria que tratar
dos santos e do infinito de seu coração.18
(Emil Cioran)
34. A comunicação mediada pelos sentimentos estabelece vínculos
diferentes que a mediada pela palavra. A diferença está no espaço e
no tempo. Os vínculos são duradores, as distâncias não impedem a
manutenção dos fios. A duração (tempo) e a geografia (espaço) da
comunicação determinam a força e a elasticidade dos vínculos, mas
são determinados pelas sensibilidades de nossos contatos. Com
tatos corporais: a forma de ligar os homens pelos fios do amor.
35. No fundo, as sensibilidades é o que dá suporte às relações. Mas
será que existe relação que não abrigue em si, conjuntamente, uma
finalidade instrumental e outra comunicativa? Será que as relações
devem ser sempre uma coisa ou outra? Através das várias formas de
contato amoroso, aprendemos que as relações abrigam em si a
diversidade dos fins e dos meios: nem sempre o ar é transparente,
nem sempre nevoado. Em todos os casos, estamos sempre a
desembaçar vidros e espelhos. Buscamos transparências e uma
visão melhor da realidade. Mesmo sabendo que todas as formas
estão borradas.
36. Na comunicação, uma parte é forma, a outra conteúdo; uma
parte é aparência, a outra essência; uma parte é céu, a outra inferno;
uma parte história que dura, a outra história que passa; uma parte é
amor, a outra ódio; uma parte simples, a outra complexa; uma parte
problema, a outra solução; uma parte encontro, a outra separação;
uma parte é análise, a outra é síntese, uma parte prosa, a outra
poesia; uma parte mente, a outra coração... Religuemos pois todas
as partes e teremos uma filosofia do abraço numa simbiosofia da
comunicação.19
37. Toque com suas mãos o seu corpo e o alheio. Haverá aí nova
interação. Com a boca, mastigue palavras imaginadas: força, bem,
vontade, saúde, paz... E as engula! Com os olhos, aprenda a
contemplar o mínimo; com o coração a sentir o máximo. Com os
ouvidos, escute os silêncios da tua respiração. Ensine o seu corpo a
sair da teoria da comunicação para entrar na empíria das conexões. 20
38. Não existe senão um só templo no universo,
e é o Corpo do Homem. Curvar-se
diante do homem é um ato de reverência
diante desta Revelação de Carne.
Tocamos o céu quando colocamos
nossas mãos num corpo humano.
(Novalis)
39. O corpo do homem, diz Leloup, é o seu próprio livro de estudo.
Basta ir virando as páginas, através de uma anamnese física e
psicológica para ir encontrando os códigos que o explica.
40. Resumo explicativo do homem, assim o corpo fala: a cabeça é a
nossa síntese; os ombros falam de nossa autonomia; o coração da
nossa sociabilidade; o ventre é nossa consciência familiar; os
genitais revelam nosso inconsciente; os joelhos nosso acolhimento;
os pés, a relação com nossa mãe. O corpo é uma caixa de
ressonância: a sincronicidade entre nossas memórias e o nosso
estado físico.
41. O mais profundo é a pele.
(Paul Valéry)
42. Comunicação, és diafragma! Diafragma (phren) que fez nascer
o conhecimento que se adquire através dos sentidos, o saber prático,
a prudência (phronesis) pois és guerra e paz; sístole e diástole;
metáfora e metonímia; abertura e fechamento. Quando és assim, te
entendo. Mas não entendo os que te nomeiam apenas como isto ou
aquilo, porque em teu discurso-rio, passas por todas as terras. És
isto e aquilo: esclarecimento e alienação, ideologia e apatia; massa e
individuação; corpo e alma; mente e coração...
43. Delicadeza e sensibilidade: valores esquecidos pelo
comunicador. O cinema e a literatura – ou a arte em geral – quando
esquecem desses valores, padecem de um mal conhecido: a soberba.
Talvez pelo fato de delicado vir de Delicatus = efeminado ele seja
deslembrado. Quando o viril cede lugar a um valor feminino, faz
com que algumas pessoas não percebam o requinte de qualidade ali
presente. Há quem condene a delicadeza, diz Paul Valéry, por achar
que ela debilita os ânimos, por achar que o extremo do gosto, do
polimento e do refinamento não combina com a força da energia. 21
44. A gentileza faz parte da magnanimidade de quem tem a mente
aberta.
(Nietszche)22
45. Quando se busca o saber prático da comunicação, a desproteção
é quase que absoluta. Vai-se à comunicação com o que se tem. Se
se está aberto, ela flui; se fechado, ela empoça. O comunicador é o
guardião da interdisciplinaridade. Devia ser também oficiador de
uma reflexividade permanente que prolonga e aprofunda os sentidos
e os desentidos do mundo.
46. O comunicador é um nexologista. Os medievais diziam que
inteligência é a capacidade de pôr em relação. Legein para os
gregos, significa prender, tomar. Como metáfora alude a uma
conexão entre o que parece heterogêneo. Com prendere = formar
nós e laços entre os diversos fios, tecendo uma colcha colorida.
47. Comunicação entendida como a arte de prender e remeter,
estabelecer vizinhanças e tecer vetores de sentido, consiste em
diminuir o espaço entre nós, a reflexividade e a coisa.
48. Comunicação é heteromobilidade: move algo mais do que
atores, situações, mensagens e códigos. Move o próprio espírito do
cosmos. Talvez por isso ela abrigue em si uma ecologia da
linguagem.
49. Comunicadores são profissionais da arte de estar sempre na
realidade. Por isso é bom a advertência: realidade demais mata!
Comunicador, não guarda os teus sonhos. Vive-os. A realidade não
os tem tão belos quanto a arte!23
50. O fato é um aspecto secundário da realidade.
(Mário Quintana)
51. O comunicador é um cooperador. Não faz sozinho, mas junto.
Em con junto.
52. Conjunções: pleno e não plenos, convergente-divergente,
consoante-dissonante, e de todos, um; e de um, todos.
(Heráclito de Éfeso)24
53. Para ser comunicador, tradutor. Toda a comunicação é uma
forma de tradução. Deve ser por isto que comunicadores e
tradutores são traidores da realidade objetiva: tradutore = traditore.
Traduzir é trair? Mas há outro modo de acessar o saber que não se
sabe? O original não é, já de alguma forma, tradução? Fale da coisa
que está diante dos seus olhos: você está sendo fiel ao original ou
fazendo uma leitura sua da coisa?
54. Este é o Discurso, a convergência de muitos cursos, a
sobreposição de correntes. Os cursos, ao discorrerem, enredam-se
e desenredam-se, convergem e divergem no fluir que se refaz.
Traduzir é manter viva a tradição, é impedir que o rio se corte em
poços, que estanque, que morra (...). O discurso em curso requer a
tradução.25
(Donaldo Schuler)
55. A tradução – dizem-no com desprezo – não é a mesma coisa
que o original.
Talvez porque tradutor e autor não sejam a mesma pessoa.
Se fossem, teriam a mesma língua, o mesmo nome, a mesma
mulher, o mesmo cachorro.
O que, convenhamos, havia de ser supinamente monótono.
Para evitar tal monotonia, o bom Deus dispôs, já no dia
da criação, que tradução e original
nunca fossem exatamente a mesma coisa.
Glória, pois, a Deus nas alturas, e paz, sob a terra, aos
leitores de má vontade.
(José Paulo Paes)26
56. O tradutor deve escolher bem os caminhos da palavra. A palavra que acesse
e participe o real. Do contrário, não conseguirá fazer chegar ao outro (receptor)
nem uma fagulha desse real. Os caminhos que conduzem ao nome não seguem
sozinhos. Necessitam dos homens para percorrê-los. É Quintana quem diz: ―O
triste dos caminhos é que eles jamais podem ir aonde querem‖.
57. O comunicador é o homo legens. Homem-leitura: que lê e é lido, que
escreve e descreve, que traduz, recria e comunica a criação, sua ou de outrem. O
comunicador deveria ser um criador: fartar-se do inesgotável.27
58. Embora toda tradução seja uma espécie de recriação = imitação =
mimetismo = mimesis = comunicação, o comunicador está sempre a criar: a si
mesmo, o ambiente, a mensagem, o outro, as trocas e os vínculos. Sua
comunicação deve ser um conjunto de movimentos coordenados com vistas à
beleza e ao entendimento. Deve dar expressões de dança a todos os
pensamentos e relações. E fazer dos atos de linguagem um encontro ajustado.
Ou em busca de ajuste. Semelhante a um casal que baila o difícil tango.
59. O baile da comunicação: contatos, experimentos, festa. Não há comunicação
que não seja uma troca experimental. Avançar um passo e criar um movimento
coordenado. Amar o que vai além do que se é. Comunicação: mostra-me o
caminho para mim mesmo: abre uma fenda em minha espessura. Faz-me ir
além do meu próprio limite. 28
60. Cada um de nós tem sua maneira de amar e de odiar, e esse amor, esse ódio
refletem toda a nossa personalidade. Porém, a linguagem designa esses estados
pelas mesmas palavras em todos os homens; por isso, só pôde fixar o aspecto
objetivo e impessoal do amor, do ódio e de todos os sentimentos que agitam a
alma. (...) Mas, assim como poderemos intercalar indefinidamente pontos entre
dois espaços de um móbile sem jamais preencher o espaço percorrido, assim,
pelo simples fato de que falamos, pelo simples fato de que associamos idéias
umas às outras e que essas idéias se justapõem em vez de se interpenetrarem,
falimos na tarefa de traduzir inteiramente em palavras aquilo que a nossa alma
sente: o pensamento permanece incomensurável com a linguagem.
(Henri Bergson)29
61. No Gênesis, a criação vem após o caos pelo instrumento do
verbo. Ela é uma forma de pôr em ordem a desordem pelo ofício
mágico da linguagem. A linguagem é por isso uma forma de
capturar e arrumar o mundo da desarrumação geral. Às vezes, ela
mesma esfrangalha a tudo. A criação é como a fotografia: ―seus
olhos emboscam o tempo no degrau de cada minuto‖, (Mia
Couto).30
62. A criação é como a fotografia: requer filosofia própria. Quase
uma regra de vida. Porque toda arte é um olhar indireto sobre a
realidade. Um olhar demiurgo. Para criar, captar o daimon da
natureza.31
63. Sugestões ao criador: Separar-se do mundo com elegância; dar
perfil e graça à tristeza; ter um estilo só teu; marchar ao compasso
das recordações; ir passo a passo para o impalpável; respirar nos
limites vacilantes das coisas; renascer o passado em uma
inundação de aromas; o odor, mediante o que vencemos ao tempo;
o contorno das coisas invisíveis; as forças do imaterial; fundir-se
no intangível; apalpar o mundo que flutua no perfume; diálogo
aéreo e dissolução em vôo; banhar-se em teu próprio reflexo...
(Emil Cioran)
64. Ao simbolizar o fim do caos pela constituição de uma forma, a
criação assemelha-se à invenção. A invenção é a percepção de uma
ordem nova. A criação, a instalação dessa ordem por uma energia
que organiza os dados informes. A criação é o efeito/resultado dessa
energia. É a relação invenção-criação que faz surgir um novo
tempo.
65. A comunicação criativa é vista na mitologia egípcia por quatro
desenhos geométricos: a espiral redonda que indica a energia
cósmica insuflada pelo espírito criador; a espiral quadrada que
significa a energia em ação no seio do universo; uma nuvem
informe, imagem do caos primitivo e o quadrado, que representa a
terra e o mundo organizado.32
66. A comunicação criativa nunca cessa. Depois do ato criador a
matéria criada apresenta duas formas: a imanente e a transcendente.
A imanente é a própria matéria participando da energia criadora e
tendendo sempre para formas diferenciadas. A transcendente, a
energia criadora continua a sua obra e a mantém na existência,
sendo a matéria concebida como uma criação contínua.
67. O simbolismo da criação une-se ao da água e ao da planície. A
comunicação criativa participa do espírito do vale. O espírito que
recebe todas as águas para formar um único curso-discurso. Nesse
sentido, a comunicação acolhe todos os rios. Como a água, pode ser
fonte, meio e logos. Fonte por onde jorram as relações, meio de
expressão das linguagens e dos sentidos, logos que regenera e
vivifica.33
68. Como a água, a comunicação é uma massa indiferenciada,
representa a infinidade dos possíveis. Contém o virtual, o informal e
as promessas de desenvolvimento. Como a água, a comunicação
busca a coesão na adaptabilidade. É símbolo do que se reintegra e
do que se inicia. Batiza-se o homem pela água. Não é também
através do batismo que o homem recebe um nome?34
69. A água insere o homem na comunidade. A criatividade retira o
homem do caos. ―A criatividade de cada um depende da
comunidade na qual se insere‖, diz Maffesoli. Já o poeta, Quintana,
falando sobre a criatividade aconselha o seguinte: Desconfiar da
observação direta. Um romancista de lápis em punho no meio da
vida – esse atento senhor acaba fazendo apenas reportagens. É
melhor esperar que a poeira baixe, que as águas ressenerem:
deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe,
recria. Quanto ao poeta que nunca se lembra, inventa. E fica mais
perto da verdadeira realidade.35
70. Memória e comunicação: um casamento que redunda às vezes
em arte. Olhar para o futuro com o objetivo de criar memória. Olhar
para a memória com o objetivo de ver o futuro.
71. A memória e o batismo nos legam um nome. Cai sobre nós uma
classificação indelével, definitiva. Agora já não somos nós mesmos,
em si, mas uma marca querendo ter identidade. E sobre esta marcanome, colocamos outras marcas: tatuagens, grifes, etiquetas... E se
tirarmos tudo de sobre, nome, marca, tatoo, grifes, etiquetas, o que
fica?
72. Eu, Etiqueta
Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório,36
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso meu aquilo,
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidêndia,
Costume, hábito, premência,
Indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.37
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos de mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso dos outros, tão mim-mesmo,
Ser pensante, sentinte e solidário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
Ora vulgar ora bizarro,
Em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer principalmente).38
E nisto me comprazo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou – vê lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco de roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrina me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo de outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.39
Meu nome novo é coisa.
Eu sou coisa, coisamente.
(Carlos Drummond de Andrade).
73. Minha senhora, quando os poetas te cantam, calo-me. Mesmo
que cantem tua face sombria. Remexo minha memória em busca
das marcas que me anunciam. Antes, eu era tão mim-mesmo, ser
pensante, sentinte, agora, demito-me de ser. Meu novo nome é
coisa. Foste tu, minha senhora, que me fizestes assim?
74. O que tem coisificado = reificado o homem? A comunicação em
sua forma instrumental ou o uso do jornalismo, da publicidade, do
marketing, das relações públicas em sua expressão tecnicizante?
Talvez isso seja só mera desculpa. No final das contas talvez o
homem é que esteja coisificando o próprio homem. E nada mais.
75. Era uma vez um homem que vivia montado nas costas de outro
homem. Andava assim todo o dia, de um lado para o outro. O que
ia montado, vivia dizendo para todos: “Oh...Deus, como queria
aliviar o peso deste pobre homem!...”, e completava, “menos
saindo de cima dele”. Às vezes acho, minha senhora, que os
homens são assim, mas que, como não querem admitir que são,
usam o teu nome, Mídia, para aumentar ainda mais o peso de nossas
mazelas.
76. Que dizer da comunicação que não tem sabedoria o suficiente
para superar as suas mazelas?
77. Toda técnica, em sua forma mais elevada, redunda em arte.
Toda arte exige uma técnica e não existe elevada arte que não
possua em si apurada técnica. Arte vem do grego Techné =
conhecer-se no próprio ato de produzir = Poiesis.
78. Assim é a comunicação em sua forma mais elevada: arte. O
mesmo que filosofia espiritual. Enquanto filosofia espiritual, o
fundamento da comunicação e das relações sociais é o amor. E o
amor faz nascer e manter os vínculos elementares e supra-sensíveis.
O conceito de amor de Humberto Maturana vale como um conceito
possível para a comunicação. ―Encaixe dinâmico recíproco
espontâneo que acontece ou não acontece e só acontece quando
acontece‖. Em Maturana, o amor é ―congruência estrutural‖,
coordenação de coordenação de linguagem. Nasce com ele uma
Teoria da Comunicação.40
79. Queria pensar uma Teoria da Comunicação extraída dos
elementos da natureza. João José Curvello, quando as águas de
março deixavam o verão, falou de uma escola de pensamento assim,
chamou ―Escola de Águas Claras‖, em referência a um locus,
obviamente, mas também em relação à necessidade dela apreender
algo sobre a fluidez de seu conceito, diria até, necessidade
existencial e técnica, por um lado e inacessibilidade determinada de
forma, porque múltipla e variada, por outro. Um conceito assim nos
ensina muito. Turva, fluída e móvel, a comunicação só funciona se
se emenda aos fluxos, sejam eles sociais ou não. ―Águas
emendadas‖, a comunicação corre em direção ao mar. Qual o seu
mar? A totalidade.
80. Símbolo da eficácia no oriente, a água é o que está por toda a
parte, no vento, na terra, nas nuvens e no corpo do homem. A água
é como a comunicação: uma encruzilhada onde as linhas
geográficas e geocognitivas se encontram. A comunicação é um
espaço-escola aberto que abraça direções e jornadas diversas e
adversas. Penso agora porque as escolas de pensamento ganham
nomes de lugares: escola de Frankfurt, de Chicago, de Viena, de
Palo Alto, de Birmighan, de Perdizes, de Águas Claras... Deve ser,
como diz Heidegger, pelo fato de que o lugar determina a colocação. A fala cantada a partir de Águas Claras então, canta o
mergulho nos elementos primeiros da comunicação: a filosofia, a
arte, o encontro: uma volta filosófica e poética a uma comunicação
como conjunto dos saberes inter-relacionais, mas também o
despertar para as essências veladas dos níveis de contato humano e
supra-humano. Esse inter da comunicação é o contato entre
intimidades, sejam elas racionais e/ou sensíveis.
81. Chico Lucas nunca saiu de sua aldeia. Nunca leu Benjamim
nem Adorno e muito menos ouviu falar em Bourdieu. Mas sabe
teoria da comunicação como ninguém. Aprendeu a ler o tempo, o
espaço, o coração dos homens. Aprendeu a ler os olhos do povo,
como diz. Durante a seara e o plantio, nos campos tristes e secos do
Rio Grande do Norte, ele conta histórias para os camponeses
enquanto eles colhem ou semeiam. Uma dessas histórias ficou na
minha memória. ―Caminhava no mato quando, dizia ele, vi duas
cobras brigando. Era algo assustador. Uma cena Terrível. De
repente, uma mordeu o rabo da outra e ambas começaram a se
comer. Vagarosamente, foram se comendo. Até que, quando uma
chegou bem perto da cabeça da outra, aprontaram o bote final.
Abriram bem a boca e, num lance, se engoliram de uma só vez.
Nesse momento, desapareceram no ar...‖. Alguém que estava
ouvindo perguntou: ―Mas Chico, como isso pôde acontecer?‖E ele:
―Não sei, só sei que foi assim‖. 41
82. Às vezes acho que a comunicação é pura continuidade: cobra
que engole o próprio rabo. Fim e recomeço em si mesmo. Às vezes
acho que a comunicação é como uma contenda de significados, dois
entendimentos ‗brigando‘ entre si, um alimentando-se do outro,
incessantemente.
83. Um alimenta o outro. Mas não é isso o que é o amor? O amor é
como a comunicação, tem muitos nomes. Há o amor que suga
(Pornéia); o amor que é harmonia (Storgué) o que nos dá asas e
estimula nosso libido (Eros); o que é dom, devotamento (Ennóia), o
que é gratidão (Kharis), o que é amor que partilha do alimento vital
(Ágape); o amor que é amigo da sabedoria (Philia). ―Amar a partir
da nossa plenitude e não da nossa carência‖, diz Leloup. Se
comunicar também.
84. Amizade
Quando o silêncio a dois não se torna incômodo.
Amor
Quando o silêncio a dois se torna cômodo.
(Mário Quintana)
85. Conheço uma mulher que todas as vezes que viaja para o litoral
traz água do mar para o seu amor. É que o seu amor é filho de
Iemanjá e edificou para a deusa um pequeno altar onde oferta
conchas marinhas e água salgada. Portadora de águas oceânicas, ela
sabe que esta pequena oferenda alimenta mesmo um ‗mar adentro‘.
86. A verdadeira comunicação se faz com sutilezas. Pena que
tenham esquecido a poesia e o amor nas teorias da comunicação.
Nessas teorias, há muita ‗massa‘ e pouco homem. Há muita palavra
e pouco silêncio. Há muitas certezas e poucas dúvidas. Para lidar
com o conhecimento e a comunicação e, principalmente, para fazer
pesquisa científica, partir da dúvida.
87. É preciso que eu, incessantemente, mergulhe na água da
dúvida.
(Wittgenstein)
88. A água me ensina sobre a dúvida da linguagem e do viver. Uma
vez, aos dezoito anos, considerei-me morto, afogado sob o mar.
Havia tomado umas cervejas a mais e entrei na praia. Nadei até o
fundo, aventurosamente. Depois parei, boiei, curti o céu... Quando
tentei voltar descobri que havia uma correnteza contrária, a maré
estava secando. Quanto mais eu nadava menos saía do lugar. Logo
fiquei cansado. Não tinha mais forças, havia engolido água salgada,
o que torna nosso corpo pesado. Parei e senti que meu corpo
começava a afundar. Distante da praia, vi minhas esperanças irem
embora. Afundei. E, quando cheguei ao fundo, tomei pé e subi,
alavancando-me. Ao chegar na superfície, punha a cabeça para fora
d‘água e respirava um pouco, e logo afundava novamente... Fiquei
nesse lento iô-iô, subindo e descendo por muito tempo. Foi quando
senti que ia morrer. Por longos minutos, considerei-me partindo...
Lembro-me dos meus pensamentos ali: ―estou morrendo!...mas eu
não queria...tenho tanto ainda por fazer...‖, pensei. Toda a minha
curta vida passou como um relâmpago, um filme diante de mim. Foi
quando, ao subir, talvez uma última vez, uma mão agarrou-me, era
um surfista. Ele disse: ―ei, cara, você está morrendo‖. Eu não
conseguia mais falar, nem os olhos abriam direito. Ele tomou meu
corpo, me fez abraçar a prancha e me empurrou na onda que se
seguiu. De onda em onda, cheguei na praia. Lembro-me de ter
beijado a areia. Lembro-me do vulto do surfista se aproximando
para pegar a prancha. Lembro-me tentando – mas sem forças –
agradecer a ele. Lembro-me que a água me fez pensar muito sobre o
que é não ter certezas sobre o destino. É por isso que até hoje
acalento em mim mortes ao meu fluído e incerto viver...
89. Tão frenético anda o mar
que não se ouviria o morto
bater a porta e chamar...
(Cecília Meireles)42
90. No pensamento e na ciência, às vezes até na vida, é melhor ter
dúvidas. Gustave Flaubert, diz Juremir Machado, é o modelo de
intelectual que privilegia a dúvida à certeza. ―Sabe que em cada
verdade habita a possibilidade do não. A certeza gera um sistema
autocomplacente que parte da suposta compreensão superior da
existência e termina na mediocrização da vida‖.43
91. Também traímos a água
A chuva não se reparte para isso,
o rio não corre para isso,
o charco não se detém para isso,
o mar não é presença para isso.
Outra vezes perdemos a mensagem,
as vocais abertas
da linguagem da água,
sua inaudita transparência palpável.
Nem sequer sabemos
beber a transparência.
beber algo é aprendê-lo.
E aprender a transparência é o começo
de aprender o invisível.
(Roberto Juarroz)44
92. Passa-se com a alma algo semelhante ao que acontece à água:
flui. Hoje está um rio. Amanhã estará mar. A água toma a forma do
recipiente. Dentro de uma garrafa parece uma garrafa. Porém, não
é uma garrafa. Eulálio será sempre Eulálio, que encarne (em
carne), quer em peixe. Vem-me à memória a imagem a preto e
branco de Martin Luther King discussando à multidão: “eu tive um
sonho”. Ele deveria ter dito antes: “eu fiz um sonhos”. Há alguma
diferença, pensando bem, entre ter um sonho e fazer um sonho.
Eu fiz um sonho. (José Eduardo Agualusa)45
parte II – fogo
o guardador de chamas
1. Da água dos pensamentos ao fogo do coração. Na comunicação,
deixamos de lado a comunicação com o lado de lá. Apesar da
palavra mídia = médium, separamos as coisas. E as coisas não se
separam. Todos somos mediadores entre algo e algo. Quiçá
fôssemos entre o Algo e outro alguém. 46
2. Todas as vezes que acendo uma vela sou levado a querer proteger
a chama contra o vento. Ponho as mãos ao redor para que ela não se
apague. Para que a fragilidade não se perca. Às vezes, tenho
vontade de fazer o mesmo com a comunicação, que a qualquer
sopro, se perde. Torna-se imposição, coerção, informação
autoritária, arrogância.
3. O espírito sempre foi associado à chama. A sarça ardente, em
Moisés, as carruagens de fogo, de Elias, as labaredas do Espírito
Santo, no Ato dos Apóstolos. O espírito é a linguagem da luz. A
comunicação é a resposta do mundo.
4. Ouço a expressão popular: ―Você se queima pela língua‖. E
penso nas línguas de fogo do Pentecostes. Penso também nos
dragões. Cada ser à sua maneira, o homem, o espírito e os dragões,
possuem brasas na boca. Agora entendo porque as palavras
aquecem, destroem, infundem vida. Será por isso que a palavra
‗chama‘ é tão próxima da palavra ‗chamar‘?
5. Temos uma chama acesa dentro da boca: a língua. Na cor e na
forma, a imagem de uma chama.
6. As línguas são o melhor espelho do espírito humano.47
(Leibniz)
7. Língua, nome, palavra... o homem tem encontrado muitas formas
de encaixotar o sentido do mundo dentro de compartimentos e
classificações. Por que será que os nomes não são todos os mesmos
em todas as línguas? Na verdade, não conseguimos nos livrar do
mito de Babel. Instituída a polifonia, agora a palavra tem de alçar –
e se contentar – com torres humanas.
8. O nome: esses olhos e ouvidos de todas as coisas. O nome tem
também boca, tato, paladar. Tatua uma inscrição ora tribal ora
moderna na língua de todos nós. Torna-se um corpo a parte, uma
pele a parte, sobre nossa epiderme. Roberto Juarroz, num verso sem
título, canta o seguinte:
Palavra: esse corpo para tudo.
Palavra: esses olhos abertos. 48
9. SÓCRATES: Não estás contente com o fato de que o nome seja
definido como uma representação do objeto?
CRÁTILO: Estou.49
SÓCRATES: E o fato de dizermos que, entre os nomes, uns foram
compostos com o auxílio de nomes mais antigos, e outros são
primitivos, não te parece certo?
CRÁTILO: Parece.
SÓCRATES: Mas, se os nomes primitivos devem ser
representações, tens uma melhor forma de torná-los representações
do que torná-los tão similares quanto possível aos objetos que
devem representar? Ou ficas mais satisfeito com a explicação, dada
por Hermógenes e muitos outros, de que os nomes são convenções e
que representam os objetos para aqueles que disso convieram e que
conheciam os objetos antes? Admites que a correção de um nome
consiste nessa convenção, e que essa convenção pode de forma
indiferente ser estabelecida como a vemos estabelecida, ou, ao
contrário, que é indiferente chamar de grande o que chamamos de
pequeno e de pequeno o que chamamos de grande? Qual desses
dois modos preferes?50
CRÁTILO: Em todo caso, Sócrates, uma imitação similar é
preferível do que qualquer outro meio para representar aquilo que
se representa.
SÓCRATES: Tens razão. Portanto, para que o nome seja similar ao
objeto, os elementos de que se constituirá o nome primitivo devem,
por necessidade, ser naturalmente similares aos objetos? (...) Ora
esses elementos são as letras?
CRÁTILO: Sim.
SÓCRATES: Pensas que temos razão em dizer que o “r” tem
semelhança com o alento, o movimento e a dureza?
CRÁTILO: Penso que sim.
SÓCRATES: E o “l” com o liso, o doce e as outras propriedades de
que falávamos ainda agora?
CRÁTILO: Sim, na minha opinião.
SÓCRATES: Ora sabes que para a mesma noção nós dizemos
sklêrotês (dureza), e as pessoas de Eretria sklêrotêr?
CRÁTILO: Perfeitamente.
SÓCRATES: O “r” e o “s” se parecem então tanto, um com o
outro? A mesma noção é representada por nós com o “s” final e
por eles com o “r”, ou não o é em um dos casos?
CRÁTILO: É sim, em ambos os casos.
SÓCRATES: Enquanto o “r” e o “s” são similares ou enquanto
não o são?
CRÁTILO: Enquanto são similares.
SÓCRATES: São similares em todo lugar?
CRÁTILO: São, ao menos, talvez, para a representação da
mobilidade.
SÓCRATES: E é também assim com o “l” colocado no nome? Ele
não expressa, ao contrário, a dureza?
CRÁTILO: Talvez ele não esteja no lugar certo, Sócrates. Como no
caso que citavas ainda agora para Hermógenes, retirando e
inserindo as letras em seus lugares – e justamente, a meu ver – aqui
também deve-se substituir o “r”pelo “l”.
SÓCRATES: Tens razão, Mas como! Com a pronúncia atual não
nos compreendemos um e outro quando dizemos sklêros (duro), e tu
mesmo não sabes neste exato momento de que estou falando?
CRÁTILO: Sei, pelo uso, meu caro amigo.
SÓCRATES: Mas ao falar em uso, pensas que estás falando outra
coisa senão na convenção? Por uso, não estás querendo dizer que
eu, ao articular essa palavra, tenho essa coisa em mente, e que tu
reconheces que é essa coisa que tenho em mente? Não é esse teu
pensamento?
CRÁTILO: É
SÓCRATES: Conseqüentemente, se a reconheces quando a
articulo, obténs de mim uma representação?
CRÁTILO: É.
SÓCRATES: E com o auxílio de algo que não se parece com o que
tenho em mente quando a articulo, já que o “l” não é em nada
similar com a dureza (sklêrotês) de que falas. Mas, se assim for,
não é verdade que tu convéns contigo mesmo e que a correção da
palavra se tornará para ti uma convenção, já que as letras
similares e não similares são igualmente expressivas, uma vez
admitidas pelo uso e a convenção? Mesmo que o uso não tenha
absolutamente nada de convenção, não é mais a semelhança que
teremos razão de definir como meio de representação, mas o uso.
Pois este faz uso tanto do similar como do dissimilar para
representar. E, como estamos de acordo Crátilo – pois, tomarei teu
silêncio por um consentimento – a convenção, qualquer que seja, e
o uso devem necessariamente contribuir para a representação
daquilo que temos em mente ao falarmos. Tomemos, se quiseres,
Crátilo, o número como exemplo. Como pensas poder aplicar a
cada um dos números em particular nomes que se pareçam com
eles, se não atribuíres à tua concordância e convenção uma
autoridade decisiva no que diz respeito à correção dos nomes? Eu
também, gosto que os nomes sejam tão parecidos quanto possível
com os objetos: mas temo que, na realidade, seja aqui necessário,
para retomar a palavra de Hermógenes, atirar laboriosamente
sobre a semelhança, e que sejamos forçados a recorrer novamente,
para a correção dos nomes, a esse grosseiro expediente que é a
convenção. Ou seja, a mais bela maneira possível de falar
consistiria provavelmente em empregar nomes que fossem todos, ou
na maioria, semelhantes aos objetos, ou seja apropriados; e a mais
feia, no caso contrário.
10. Comparadas entre si, as diversas línguas mostram que não se
chega nunca à verdade pelas palavras, nem mesmo a uma
expressão adequada: do contrário, não haveria tantas línguas. A
“coisa em si” (seria justamente a pura verdade sem
conseqüências), até para aquele que fabrica as línguas, é
completamente inabarcável e não vale os esforços exigidos. Ele
somente designa as relações entre as coisas e os homens e recorre
para expressá-las ao auxílio das metáforas as mais ousadas.
Transpor primeiro uma excitação nervosa em imagem! Primeira
metáfora. A imagem novamente transformada em som articulado!
Segunda metáfora. E todas as vezes, pulo completo de uma esfera
para outra esfera, diferente e totalmente nova. Pode-se imaginar
um homem completamente surdo que nunca tenha tido nenhuma
sensação sonora nem musical: da mesma forma como se espanta
com as figuras acústicas de Chladni (1) na areia, encontra sua
causa no tremido das cordas e, em função disso, jura saber o que
os homens chamam de som, da mesma forma acontece conosco com
relação à linguagem. Acreditamos que sabemos algo sobre as
coisas em si quando falamos em árvores, cores, neve e flores e no
entanto não possuímos nada além de metáforas para as coisas, que
não correspondem em nada às entidades originais. Como o som
enquanto figura de areia, o X enigmático da coisa em si é tido
primeiro como excitação nervosa, depois como imagem, finalmente
como som articulado. Em todo caso, não é de forma lógica que
procede o nascimento da linguagem e, se todo o material dentro do
qual e a partir do qual o homem da verdade, o sábio, o filósofo,
trabalha e depois constrói, não provém de nenhum lugar, também
não provém de forma alguma da essência das coisas.
(Nietzsche)51
11. “É uma glória para ti!”
“Não estou entendendo o que queres dizer com glória”, respondeu
Alice. Humpty Dumpty sorriu com ar de desdém. “Naturalmente
que não sabes, enquanto eu não te disser. Eu quis dizer: é um
argumento decisivo para ti!”
“Mas „glória‟ não significa „argumento decisivo‟”, retrucou Alice.
“Quando utilizo uma palavra”, declarou Humpty Dumpty com
gravidade, “ela significaexatamente aquilo que decidi que ela
significaria – sem mais, nem menos”.
“Mas o problema”, disse Alice, “é saber se podes fazer com que as
palavras signifiquem coisas diferentes”.
“O problema”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem é que manda,
só isso!”.
(Lewis Caroll) 52
12. O nome parece sempre precisar de alguém para anunciá-lo. Ele
parece não saber pronunciar a si mesmo. Por isso é ao mesmo
tempo virtude e defeito proverbial. É extravagante, mas segue
regras. O extravagante por sua vez se torna habitual, mas não há
motivo para crer que se torne vulgar ou ordinário. Os nomes
fotografam figuras espaciais e imaginais. São objetivos e
necessários, parecem casuais e despersonalizados, mas possuem
algo de inconfundível, de raro, talvez até de magnífico. Os nomes
conseguem investigar e descobrir coisas. Aprisionam palavras, são
cômicos e possuem falas, crescem, possuem espelhos, são
numerosos, impossíveis de contar. São de espécies: os que nos
acompanham e os que encontramos ao passar pelos mais variados
espaços. O nome dá forma a tudo o que contém. Os nomes trazem
consigo fragmentos, figuras, mas também ocultam e obscurecem os
mesmos. Estão fechados em torno de si. Têm uma história
atribulada; decaem e reflorescem, repovoam-se, adequam-se às
exigências; são estranhos, incongruentes, usurpadores, velozes,
adaptam-se. Reconstroem coisas, mudam com o costume e as
populações, sofrem deteriorações, são compactos como um ser
vivo. Possuem respiração, odor. Perdeu-se a ordem de seu
seqüenciamento. Podem ter significado uma coisa antes e, hoje,
significar outra. Possuem história.
13. O nome gosta de andar encangado com outro. A regra é sempre
misturá-los e tentar recolocá-los num lugar. O nome também possui
música, explosão, incêndio, alarido. O nome magnetiza os olhares e
os pensamentos. Visto de dentro é uma cidade. Mas o nome muda à
medida que dele se aproxima. É distante, é variado e diz muitas
coisas, de maneiras diferentes.
14. Acredito que nós temos mais idéias do que palavras. Quantas
coisas sentidas que não são nomeadas! Tem um sem número dessas
coisas na moral, na poesia, nas belas-artes. Confesso que eu nunca
soube dizer o que senti na Andrienne de Térence, nem na Vênus de
Médicis. Talvez seja a razão pela qual essas obras sempre me são
novas. Não se retém quase nada sem o recurso das palavras e as
palavras quase nunca bastam para dizer com precisão aquilo que
sentimos.
(Denis Diderot) 53
15. A arte pode dizer talvez com precisão aquilo que sentimos. É
por isso que arte e gosto podem ser definidos pelo nome de
sensibilidade.
16. Quando, na alma, desperta-se verdadeiramente o sentimento de
que a língua não é um mero instrumento de comunicação visando à
compreensão recíproca, mas um verdadeiro mundo que o espírito,
pelo aprimoramento interior de sua própria força, deve
necessariamente colocar entre si e os objetos, então a alma está no
verdadeiro caminho de ter sempre algo mais a encontrar na língua
e de sempre colocar nela algo mais.
(Wilhelm von Humboldt)54
17. Seguirei eliminando as palavras más que pus em meu todo,
ainda que meu todo fique sem palavras.
(Antonio Porchia)
18. O papel do ferreiro junto ao fogo, forjando a liga de metal,
técnico de instrumentos para o homem, lembra algum tipo de
comunicador, certos técnicos dos ofício de forjar realidades, e fazer
a ligação entre o homem e o mundo. Meio Hefestos, ele guarda nas
profundezas os mistérios do que forja, a mística da transformação.
19. Há certamente algo inexpressível. Ele se mostra, é o elemento
místico. Aquilo que não se pode falar deve-se calar.
(L. Wittgenstein)55
20. Apagar uma chama me deslumbra mais que acendê-la.
(Roberto Juarroz)56
21. O homem, ponto luminoso de sua própria noite, quando quer apagá-la, se
extingue.
(Antonio Porchia)57
22. Atiço em mim uma chama... O meu coração é o lar onde mora a
comunicação. A boca fala o que o coração sente. Como o fogo, a
comunicação é o motor da regeneração periódica. Deve ser por isso
que a palavra ‗fogo‘ e a palavra ‗pureza‘ têm o mesmo nome em
sânscrito: porque as chamas têm a capacidade de levar todas as
coisas a seu estado sutil. 58
23. Fogo interior, conhecimento penetrante, iluminação. As chamas
buscam sempre o alto, enquanto busca. A comunicação por sua vez
busca todos os horizontes: o alto, o baixo, os lados, o dentro. A
comunicação é como o sol: atiça seu calor em todas as direções. A
comunicação: ou é penetração ou absorção ou destruição. São essas
três naturezas da comunicação a luz do fogo.
24. A comunicação pela poesia e pelo coração. Coração em chamas: calor
humano, simpatia, amor à natureza, alegria. Proponho uma nova e uma velha
teoria da comunicação: o mundo como poema. Em que o seu sistema é a
palavra poética tornada ação concreta na vida, com vistas à sabedoria ou a uma
ética espiritual. Proponho a comunicosofia: a prática de viver o mundo como
poema vertical.
25. Penetra surdamente no reino das palavras....
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
(Carlos Drummond de Andrade)
26. Onde nasce a comunicação? Primeiro, ou veio o caos, ou o silêncio, ou um
leve ruído musical, ou o vazio... A força da linguagem reside nos ‗ocos‘ da
linguagem. Primeiro, creio, veio o silêncio-poema, depois a prosa-palavra.
Reside aqui uma ontologia da comunicação. A palavra tem esse poder
misterioso de transformar o que não existe em realidade e de dar aparência de
irrealidade ao que realmente existe.
27. Como é possível que a linguagem tenha tamanho poder mistificador? E, ao
mesmo tempo, como é possível que, em todas as culturas, na relação entre os
homens e as divindades, entre o profano e o sagrado, o papel fundamental de
revelação da verdade seja sempre dado à linguagem, à palavra sagrada e
verdadeira que os deuses dizem aos homens? Como uma mesma coisa – a
palavra, o discurso – pode ser origem, ao mesmo tempo, da verdade e da
falsidade? Como a linguagem pode mostrar e esconder?
(Marilena Chauí) 59
28. O mundo é um poema que se declama sem cessar. Poema terrificante,
destruidor. Poema em forma de prosa; prosa vazia; vazio de pensamentos e
sensibilidades. O mundo é um poema escrito e guardado. Poema oculto, mágico,
encantador. Poema vertical que revela ao homem-mundo, ao mundo-homem, a
chama que ele é.
29. Heráclito comparava o mundo à chama de uma vela que queima sem cessar.
Transformando a cera em fogo, o fogo em fumaça, a fumaça em ar, o ar em
vida, a vida em morte, o mundo nunca pára de poemar. O dia se torna noite, o
verão vira primavera, o quente esfria, o úmido seca, tudo se transforma no seu
contrário, num fluxo perpétuo.
30. A palavra tem mil faces, disse Drummond, assim como a comunicação.
Pharmakon, em o Fedro de Platão, que significa farmácia, poção, diz que a
linguagem é remédio, veneno e cosmético. Remédio porque através do diálogo,
do conhecimento, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os
outros. É veneno quando, pela sedução das palavras, nos faz aceitar fascinados,
o que vimos ou lemos. É cosmético quando maquia – para o bem e para o mal –
a realidade.60
31. Dizem que a comunicação tem mil e uma utilidades. Se tem mesmo, não
usa nem dez por cento delas. Centrou seu universo na mídia de massa e
esqueceu do resto. A comunicação é uma porta aberta por onde o mundo passa.
Mas quase não passa ninguém. A maioria acaba vendo o mundo da janela-datelevisão. E o mundo não passa na televisão, no rádio, no jornal... O mundo não
passa. Nós é que passamos. Para que serve tanta mídia-de-massa, afinal? Estar
mais informado é o mesmo que ser compreensivo?61
32. Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias,
anúncios, fotografias, opiniões...?
Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:
e o sol empalidece suas letras infinitas.
Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.
Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
“os jornais servem para fazer embrulhos”.
E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.
(Cecília Meireles)62
33. Ao ver o mundo passar pela janela, o homem empobreceu a
experiência. Parece que viramos, com a tv, definitivamente,
sedentários. Deixamos de ir-e-vir. E o ir-e-vir é a própria
comunicação. Ir ao deserto ou à floresta ou a um museu não é o
mesmo que ver pela televisão. Vir conhecer gentes, contar e ouvir
histórias, vivenciar realidades, experimentar a vida deixou de ser
prazer, aventura. Perdemos com a experiência, nos tornamos mais
pobres.63
34. Releio o poema Jornal, Longe, de Cecília Meireles. Ela bem
que poderia ter dito: ―que faremos com a mídia‖, observaria ela lá
na terceira estrofe, ―longe do mundo e dos homens?‖. Este recado
de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
35. Para expressar-se, o poema do mundo exige uma linguagem. De
forma simples, podemos dizer que ―a linguagem é um sistema de
signos ou sinais usados para indicar coisas, para a comunicação
entre pessoas e para a expressão de idéias, valores e sentimentos‖.
Como capacidade de expressão dos seres humanos e dos animais,
ela é natural. Os homens nascem com uma capacidade
(aparelhagem) física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes
permite expressarem-se por palavras, mas as línguas são
convencionais. Surgem das condições históricas, geográficas,
econômicas e políticas. São fatos culturais. 64
36. Temos também as perturbações na linguagem: afasia, agrafia,
surdez verbal e cegueira verbal. A afasia é a incapacidade para usar
e compreender a palavra; a agrafia é a incapacidade para escrever
ou escrever determinadas palavras; a surdez verbal é ouvir palavras
sem conseguir compreender, e a cegueira verbal é ler sem conseguir
entender.
37. Pra que falar?
Mas, para que calar?
Não existe ouvido para nossa palavra.
Mas tampouco há ouvido para nosso silêncio.
Ambos se alimentam unicamente entre si.
E às vezes intercambiam suas zonas,
como se quisessem amparar-se mutuamente.
(Roberto Juarroz)
38. São quantas as faces da linguagem? Os gregos, para referir-se a
ela tinham duas palavras: mythos e logos. Mythos é a palavra
ficcional, mítica, mágica, religiosa, artística. Logos é a palavra
técnica, conceitual, causal, metódica, demonstrativa, científica.
Lemos em Chauí: ―Logos é uma palavra síntese de três idéias:
fala/palavra; pensamento/idéia e realidade/ser. Logos é a palavra
racional do conhecimento do real. É discurso (ou seja, argumento e
prova), pensamento (ou seja, raciocínio e demonstração) e realidade
(ou seja, nexos e ligações universais entre os seres). É a palavrapensamento compartilhada: diálogo; é a palavra-pensamento
verdadeira: lógica; é a palavra-conhecimento de alguma coisa: o
‗logia‘‖. O poder da palavra desenvolve o conhecimento racional e
forma os conceitos e idéias.
39. As palavras como os cristais têm faces e gêneros de rotações
com propriedades diversas, e as luzes se refrangem segundo os
cristais-palavras são orientados, segundo as lâminas e as
polaridades são talhadas e sobrepostas.
(Ítalo Calvino)
40. Vivemos num tempo em que as múltiplas faces da palavra são
cada vez mais exploradas, todas as nuances, os prismas, os pontos
de vistas. Fala-se na televisão, no celular, no rádio, nas ruas. Há um
excesso de falas e ainda assim nem todos têm direito à palavra. O
que está acontecendo? O que houve com a comunicação?
em que uma conversa é quase um delito,
porque estamos rodeados
de tantas coisas ditas?
(Francis Ponge)
42. A palavra, a falada, mas sobretudo a escrita, pode ser um perigo
para o homem e a memória. Essa era a advertência de Platão, em o
Fedro. Sócrates narra ao discípulo a visita de Thoth, o deus das
invenções a Thamus, rei do Egito, (Thoth é o mesmo Hermes para
os gregos). Dentre as suas invenções, expõe a escrita, apresentando
ao rei as suas vantagens. Thoth fala sobre a escrita como uma
receita segura para a memória e a sabedoria dos egípcios. O faraó
posiciona-se contrário à invenção, argumentando entre outras coisas
a diferença entre mnemose (memória) e anamnese (recordação). A
escrita, como toda tecnologia, tem suas vantagens e desvantagens.
atribui-lhe o oposto de sua verdadeira função. Aqueles que a
adquirem vão parar de exercitar a memória e se tornarão
esquecidos; confiarão na escrita para trazer coisas à sua
lembrança por sinais externos, em vez de fazê-lo por meio de seus
recursos internos. O que você descobriu é a receita para a
recordação, não para a memória ...
(Platão)
44. Mas nem só de deuses vive a comunicação. Devemos lembrar
também os demônios. O demônio da comunicação é Astharoth. A
ele foi dado pela Divindade a missão de ser o canal de comunicação
entre os homens e os demônios, por isso todos os tratados de
demonologia o descrevem como solícito, educado, gentil e sábio.
Tem como símbolo, uma espada voltada para baixo, como sinal de
justiça que se faz presente, enquanto seu irmão, Asmodeo, tem a
espada voltada para cima, como símbolo da justiça executora.
45. Astharoth é andrógino. Sua face feminina é Astarte, a masculina é Astharoth
esmo. É o único demônio que possuí o Asth em seu nome, prefixo de astral. Foi
conhecido na antiguidade como Dogon, cultuado na Síria Salomão ergueu um
templo em sua homenagem. Esse demônio participa com Hermes e Thot de
uma mesma identidade energético-comunicativa, só que do lado oposto. Ele é,
como dissemos, canal por excelência para os homens de todos os
conhecimentos, divinos e diabólicos, por isso mesmo é sedutor. Seu dia é 16 de
agosto.
46. Para compreender os efeitos maléficos da mídia de massa, deveríamos
entender melhor as ações dos demônios? Não se trata de diabolizar a mídia. Não
mesmo? Trata-se apenas de entender que a mídia tem muito a ensinar aos
demônios. Ou será o inverso?
47. A luz do écran, a voz do telefone, a notícia ―quente‖ do jornal, a última
campanha da Coca, etc, são fogos que aquecem a alma solitária do homem. São
mais do que isso, na verdade, são distrações, companhias, sortilégios. Não dá
mais para ficar sem. Não dá mesmo? Desde 1998 não vejo mais televisão
sistematicamente. O que aconteceu comigo? Não me senti desinformado em
nada, nem das novelas. Consegui dedicar muito mais tempo às minhas leituras,
ao cinema, ao teatro, a música e, principalmente, a mim mesmo. Para isso, me
liguei em todos os canais da existência, vi que cada coisa guarda uma
mensagem, um sussurro, uma notícia.
48. Cada coisa é uma mensagem,
um pulso que mostra,
uma escotilha vazia.
Mas entre as mensagens das coisas
vão-se desenhando outras mensagens,
ali no intervalo,
entre uma coisa e outra,
conformados por elas e sem elas,
como se o que está
decidisse sem querer o estar
daquilo que não está.
Buscar essas mensagens intermediárias,
a forma que se forma entre as formas,
é completar o código.
Ou talvez descobri-lo.
Buscar a rosa
que fica entre as rosas.
Ainda que não sejam rosas.
(R. Juarroz IX,11)
parte III – ar
o colecionador de ventos
1. De todas as forças, o ar talvez seja a que mais me inspira. É que
ouço o vento falando comigo desde criança e, ao longo dos anos,
travamos um diálogo sem fim... Ele me sugere temas, me conta
histórias, me aconselha, me ensina a voar... Uma vez, quando
criança, correndo na praia, uma lufada de vento me nocauteou. Caí
derrubado por ele. Levantei-me da areia pensativo. Desde então,
respeito a leveza, sou esbofeteado por vozes e vazios, abençôo-me
do invisível. 65
2. Sinto no ar, o sopro das narrações. Contar histórias é uma forma
de comunicar ao homem a vida humana. Ler e ouvir histórias é uma
singela forma de ser feliz; é isso que alguns chamam de felicidade
literária; aquilo que o mito faz brotar em nós quando é semeado nas
terras do ar: nos vales da imaginação.
3. Em diversas tradições e culturas, a comunicação humana tem
sido associada às divindades e sobretudo, às forças da natureza.
Mitos astecas, gregos, escandinavos, egípcios, latinos, orientais,
africanos, entre outros, dão conta da presença de figuras
responsáveis pelo fluxo de informações entre homens e deuses ou,
de modo mais complexo, entre natureza e cultura.
4. A presença de seres geradores de elos e contatos, promotores de
vínculos, responsáveis por caminhos, revela um papel crucial dessas
divindades no imaginário humano, tendo em conta que o papel
desempenhado por eles, hoje, no estudo das linguagens e da própria
cultura, não nos permite relegar a segundo plano a dimensão
antropocósmica.
5. Levar a comunicação é o mesmo que levar a luz? Prometeu,
espécie de repórter divino, portou e comunicou o fogo ao homem,
por conta disso morre e renasce todos os dias, tendo seu fígado
devorado pelos abutres.
6. Odin faz dos corvos os seus repórteres. Quando ele quer manterse informado, manda-os sobre a terra e eles trazem notícias do
tenebroso mundo humano. Repórteres-corvos. Alguém vê nisso
alguma semelhança?
7. A linguagem dos mitos: a velha e a nova gramática da
comunicação. Enquanto conhecimento e narração, os mitos são uma
nova forma de compreender a comunicação.
8. No mundo atual, não é comum aceitar o risco de pensar
conjuntamente antropologia, espiritualidade, ciência e filosofia,
tendo o mito como motor-metáfora do conhecimento. Tal risco é
mesmo um dos desafios postos ao pensamento para o século XXI. O
século XXI, para o prêmio Nobel, Ilya Prigogine, ―ou será espiritual
ou não será nada‖. O espiritual aqui deve ser entendido como
abertura (daisen) antropológica do homem a uma dimensão que,
historicamente, foi dogmatizada e mistificada. 66
9. O pensamento não pode mais estar preso a dogmas, sejam eles
acadêmicos, administrativo-empresariais, religiosos ou econômicos.
A ciência, arvorando-se como fiel depositária do pensamento
lógico-conceitual, encastelou-se em paradigmas mecanicistas e em
teorias incomunicáveis, malgrado todos os esforços cognitivos e
ideológicos empenhados na religação dos saberes. O continente das
ciências humanas ao ser desconectado das ciências da natureza
produziu, numa e noutra parte, uma fragmentação disciplinar de
proporções assustadoras. O desafio da religação de saberes consiste,
para o século, no próprio itinerário a que se destina nossa teoria do
conhecimento. O contrário desta hipótese, ou a contínua
parcelarização dessas áreas, só acentuaria o que hoje já é
perceptível, principalmente, nas instituições acadêmicas e culturais:
a fragmentação do conhecimento e sua hiper-especialização.
10. Criticar os efeitos perversos que a cisão entre as culturas
científica e humanista foi capaz de provocar na sociedade e na
cultura requer uma atitude também crítica, mas antes de autocrítica.
A aproximação entre ciência e espiritualidade corresponde, além de
uma busca poética, por facilitar o diálogo transdisciplinar entre
campos, a uma revisão mesmo da epistemologia contemporânea,
―uma reforma de pensamento‖, nos dizeres de Edgar Morin. Requer
uma re-leitura aberta e complexa do conhecimento produzido pelo
conjunto dos saberes planetários.67
11. Constata-se que os sistemas culturais, além de serem
constituídos por padrões, normas, mitos, valores, ordens e imagens,
exibem uma ampla zona obscura antropocósmica que vitaliza
subjetividades nômades, produzindo comunicações dos mais
variados matizes, que retroalimentam explosões imaginais. Tal
constatação nos faz perceber que a presença do mito na
contemporaneidade não é apenas mera figura alegórica. 68
12. Infelizmente, o mito deixou de ser visto, até certo ponto, como
fonte de compreensão do humano. Hoje, o mito nos coloca não
apenas o problema do conhecimento metafórico e narrativo – como
uma das vias de entrada ao pensamento científico –, mas o
problema da sabedoria e da abertura antropocósmica. George
Gusdorf já falava da necessidade de restituir através do mito a
―unidade perdida‖ do homem com a natureza. Os mitos, diz ele, são
registros da experiência unitária do homem em sua plenitude.
13. O mito é algo capaz de agir transformadoramente sobre a
realidade humana, impregnando as linguagens, o senso comum, a
sensibilidade, as narrativas, afirmando-se constantemente como
uma conduta de retorno à ordem, princípio equilibrador da psique,
espécie de formulário da reintegração. Alceu Amoroso Lima
adverte que se segue à criação de um mito o surgimento de uma
mística, isto é, o aparecimento de uma ordem implicada (David
Bohn) voltada para o diálogo numinoso e harmonioso com o
mundo, um mergulho radical e profundo nos sentidos e narrações
ocultas que a natureza constantemente nos oferece. Mística aqui
entendida também no sentido de um conjunto aurático de valores e
atitudes.69
14. Com o desenvolvimento da filosofia pós-socrática e, séculos
depois, com a separação do Estado da Igreja e a conseqüente
secularização do pensamento, a consciência reflexiva fez parecer
que havia eliminado de vez a consciência mítica. Edgar Morin irá
dizer que, tentando se livrar do mito, a ciência acabou mitificando a
si mesma. Parafraseando Leszek Kolakowski, a questão hoje é saber
se a sociedade e a cultura podem durar e sobreviver sem se enraizar
no caos organizador do mito. Regis de Moraes vai mais além e
entende que é justamente na consciência mítica que sobrevive, na
cultura e na subjetividade humana, a fonte do sagrado.
15. O sagrado busca devolver o universo cósmico, reunificado por
uma inteligibilidade não racionalista, mas fideísta. Uma nova
intuição mágica reinventa a realidade para grande quantidade de
seres humanos que, ao contrário de passarem a enxergar outro
mundo, enxergam o mesmo mundo de uma forma diferente – a
partir de um ângulo novo.
(Regis de Moraes)70
16. O sagrado só sobrevive entre os que lhe são sensíveis, e para
tanto, exige a reprodução contínua de mitos e ritos que lhe dão
forma no meio sociocultural. Reside no mito, a meu ver, uma
racionalidade ainda pouco explorada. Para além do uso ambíguo
que se faz da palavra, assinalando uma dupla valorização para ela,
ora negativa, ora positiva, ora engano e mistificação, ora
sublimidade e encanto, o mito propicia um deslocamento da razão
para os limites da sabedoria. Uma das maiores aquisições do
pensamento contemporâneo foi a consciência dos limites. Frente à
destruição acelerada dos recursos naturais do planeta, o homem
pouco a pouco vem tematizando sobre a importância da sabedoria. 71
17. A sabedoria, cujo coração é mais do que inquieto, foi e é
banalizada por todos os lados. Virou auto-ajuda aqui, holismo
destituído dos princípios de contradição ali, ganha-pão de editoras e
escritores acolá. Entre os gregos antigos, a sabedoria era um
conjunto de regras para uma vida que se poderia chamar sábia. Na
Idade Média, o termo foi vulgarizado pela Igreja Católica,
especialmente a partir do século XV, quando virou sinônimo de
prudência e moderação. Sabemos que, desde o início, a filosofia
grega está ligada à sabedoria, pois, na origem da palavra, aparece o
termo Sofia (sabedoria). Necessária e impossível, a sabedoria,
historicamente, nunca dispensou de sua racionalidade a lógica dos
mitos. Em nenhuma cultura as narrativas – fonte de todas as
sabedorias – foram deixadas de lado ou tidas como dimensão de
uma consciência não-reflexiva. Ao contrário, vista a partir da
cultura, a noção de sabedoria está arraigada nos saberes da tradição,
nos ditos populares, na oralidade, nos contos ancestrais, passados de
pai para filho. Quem arriscaria dizer que não existe sabedoria na
poesia e na filosofia? Deste ponto, o que são elas senão parte de
uma grande narrativa?
18. O filósofo-poeta Heráclito disse: ―Homens que amam a
sabedoria precisam ter muitos conhecimentos‖. E o conhecimento
aqui não é meramente formal, mas sobretudo imaginal. Interessante
notar que homens que amam a sabedoria denota claramente uma
referência aos filósofos. São eles que necessitam ter conhecimentos,
de modo que todo aquele que busca a sabedoria e, por conseguinte,
a ama, é um filósofo. O poeta-filósofo Rimbaud, por sua vez, disse:
―Concluo como sagrada a desordem de meu espírito‖. Ele
compreendeu que na desordem há algo que reorganiza a dimensão
sacra da vida, algo que tira a insipidez mecânica da existência e a
conduz para um patamar mais aventureiro. Espíritos de coração
inquieto como Nietzsche, Hölderlin e Van Gogh, todos eles
partícipes de uma consciência mítica, viveram os limites da própria
razão humana: entre a loucura e a sabedoria.
19. Um dos mitos que ‗governa‘ a noção de sabedoria é o mito de
Hermes (para os gregos) ou Thoth (para os egípcios), isso porque,
para alguns estudiosos, o deus egípcio Thoth possui os mesmos
atributos da figura do Hermes grego, sendo este apenas
representado de outra forma. No Egito, Thoth é representado ora
com as feições de um babuíno, ora com as feições de um íbis, cujo
bico encurvado lembra uma lua crescente. Por esse motivo, ele é, no
Egito, o Deus da Lua. Além disso, Thoth possui muitas outras
atribuições: é senhor da sabedoria porque é o medidor dos tempos,
tem a capacidade de medir os céus, compreendendo as distâncias, os
cursos, as constelações e a influência delas em nossa vida. Por isso,
através do curso das estrelas, ensinou ao homem a astronomia, o
cálculo de medidas e com isso, dizem, inventou a matemática e a
geometria.
20. Em Thoth já podemos ver a intrínseca relação do conhecimento
científico (através do ensinamento das leis que regem a natureza)
com os mitos e a sabedoria. Thoth dialoga com os humanos e lhes
ensina, além disso, como usar os medicamentos, a arte de trabalhar
os metais e sobretudo a arte da música (a ele é atribuída a invenção
da lira de três cordas). A relação desse mito com a racionalidade
humana não pára por aí. Entre os egípcios, existe a crença de que
Thoth compreende todos os mistérios da mente humana, porque foi
ele quem ensinou o homem a pensar; ele conhece todas as
articulações criativas da linguagem. Assim, ensinou os homens a
organizarem os seus pensamentos através da escrita, estruturando
tudo numa linguagem apropriada. A ele é atribuída a invenção de
todas as palavras que existem. A linguagem é um sistema
classificatório e, ao criar os hieróglifos, Thoth propiciou também a
invenção de sistemas de numeração. Como deus da escrita e da
ciência, ele tornou-se, na história egípcia, o senhor de todo o
conhecimento, sendo que, para aquela cultura, o conhecimento não
está dissociado da magia. Ali, todo e qualquer escriba, antes de
redigir qualquer texto, deveria endereçar uma oração ao deus: ―Oh,
Thoth, proteja-me das palavras vãs. Seja tarde minha manhã. Es
uma doce fonte para o viajante sedento no meio do deserto. Ela é
lacrada para o loquaz e aberta para o silencioso‖.
21. Em Roma, também na Antigüidade, as estâncias dedicadas à
contemplação, estudo e leitura nos palácios imperiais eram
denominadas de Hermeum, em homenagem ao deus grego Hermes.
Os velhos sábios descreviam Hermes como o ―coração da luz‖, a
―língua do criador‖, o escriba capaz de redigir as narrações dos
deuses. Na Grécia, ele era representado ora com asas nos pés, ora
com asas na cabeça, ágil e hábil negociador. Hermes sempre me
pareceu o deus das conexões, símbolo da inteligência criativa e
realizadora, capaz de esclarecer, mas também de perverter através
do exercício da mediação, dos vínculos, da comunicação e do
silêncio. Por ser ele o senhor das encruzilhadas, pode conduzir
viajantes e leitores tanto ao caminho da farsa e da ilusão quanto ao
do esclarecimento e da revelação.
22. Deus de olhar claro, observador crítico por excelência, Hermes
é, sabidamente, no panteão grego, o mensageiro dos deuses, o que
lhe valeu o patronato da eloqüência e da comunicação. Conhecido
pela discrição, consegue logo ao alvorecer penetrar os interstícios
da vida humana com sua natureza plástica, mutável, ambígua e leve,
conseguindo ser ao mesmo tempo atraente e complexo. Platão diz
no Crátilo que ele se relaciona ao discurso (logos), que possui
características de intérprete (hermeneus) e de hábil comerciante. Diz
também que ele utiliza as palavras com rara maestria, geralmente
para fazer ficção ou enganar os outros. É ainda um deus ladrão, que
rouba informações e saberes para pô-los em circulação, visto que
todas as suas habilidades relacionam-se, como vemos, ao poder do
discurso.
23. Por dominar a retórica e os diversos tipos de linguagem é que
Hermes valoriza sobretudo o silêncio. É desse modo que ele
desenvolve uma outra capacidade sua: a alquimia. O poder de
transformar por conta própria uma coisa em outra, de subverter a
ordem natural das coisas, para refazê-las artificialmente é um dom
concedido somente a quem possui a pedra filosofal ou, quem sabe,
um modus operandi comunicacional próprio. É no silêncio e na
meditação que ele encontra a justa medida para as suas ações, sejam
elas de encantamento, transmissão, falseamento ou mistificação.
24. A semelhança de Hermes com o universo da comunicação e da
literatura vai além. Ele exerce o papel de guia, que auxilia
navegantes e andarilhos na melhor rota a seguir, engendrando por
isso três funções básicas: narração, explicação e revelação. Tem a
missão de pôr a descoberto, da melhor forma possível, o comércio
de informações que circulam no mundo, nem que para isso tenha de
utilizar-se da astúcia e de subterfúgios.
25. Hermes é mestre em um certo tipo de saber, que podemos
chamar de transdisciplinar, por conseguir intermediar e dialogar
com todos os conhecimentos, sem privilegiar este ou aquele ou,
ainda, especializar-se num único. É ele também quem estabelece os
nós sígnicos com o mundo, quem institui – dirá Italo Calvino – as
relações entre as leis universais e os casos particulares, entre os
deuses e os homens, entre as formas da natureza e as formas da
cultura, entre os objetos do mundo e todos os seres pensantes.
26. Freud, Jung, Marx, Tales, Nietzsche, Spinoza, Vico, Montaigne,
Rousseau, Chardin, Einstein, Newton, Descartes, Bergson, Hegel,
Deleuze, Cioran... ao que parece, não houve pensador que não tenha
utilizado os mitos como fonte de apoio, afirmação, negação ou
crítica à formulação de seus pensamentos. Os mitos estão por todas
as partes, impregnando a racionalidade humana.
27. A busca pelo mito como suporte ou crítica tem razão de ser.
Como são lentes bifocais, os mitos podem ajudar o homem a ver
melhor a realidade que o cerca assim como podem torná-lo mais
míope. Contudo, a meu ver, os homens que buscaram o
conhecimento e a sabedoria não relegaram os mitos a um segundo
plano. A capacidade de interpretação e reinterpretação que um
único mito porta consigo leva por vezes o seu intérprete a
descobertas inesperadas. Os mitos nos ensinam que não existe um
programa de sabedoria, uma fórmula mágica a cumprir, e pronto:
eis o sábio! O que existe é uma busca, um esforço, indícios de que a
sabedoria pode estar nos caminhos da ética, de uma auto-ética ou de
um antropoética. A antropoética implica a aceitação da
sensibilidade, da leveza e da delicadeza como condições primeiras à
sua senda. Exige evitar a baixeza, pulsões vingativas e maldosas,
supõe autocrítica, auto-exame, mito-análise, aceitação da crítica do
outro, aceitação de si, exercício da compreensão. 72
28. Se existe um centro na sabedoria, deve orbitar em torno dele um
número exacerbado de virtudes e valores, dos mais variados tipos,
com os mais variados nomes, contando as mais variadas histórias.
Para uns é sábio nada ter, ser desapegado e despreocupado com os
bens materiais; para outros, sábio é moderar bens materiais e
espirituais; para uns, sábio é a capacidade de enfrentar as
dificuldades e superá-las, indo além do que se pensava poder ir,
para outros, é a escolha do difícil, do complexo, porque só por essa
via pode se alcançar a harmonia e a paz; para uns, sábio é a
capacidade de suportar em silêncio as adversidades da vida, para
outros, é a capacidade de ação e resolução dos problemas; para uns,
sábio é nada esperar, para outros sábio é ter esperança; para uns,
sábio é ser asceta, isolar-se do mundo, para outros, sábio é saber se
comunicar, interagir, dialogar, aprender com os outros; para uns,
sábio é reconhecer que nada se sabe, para outros é reconhecer que
nem isso se sabe ao certo; para uns, sábio é seguir o caminho do
meio, para outros, sábio é seguir todos os caminhos...
29. Diz uma antiga história, conhecida de todos, que um jovem
rapaz muito cedo decidiu procurar a sabedoria. Leu todos os livros
que pôde, viajou por todas as vilas que conseguiu, conversou com
todos os mestres do caminho, visitou todos os desertos isolados do
mundo, enfim, experimentou a vida sempre buscando por ela. Onde
chegava, perguntava o que era a sabedoria, onde ela estava, como e
quem a possuía...Passaram-se os anos e, já velho, não havia
encontrado resposta para a sua pergunta. Aquele pobre homem
nunca havia sossegado o seu coração, sempre inquieto, a despeito
de tudo o que havia visto, vivido, lido e ouvido. Um belo dia,
brincando com o seu neto, este lhe perguntou o que era o ―ar‖... O
velho deu uma explicação simples. Disse que o ar era para o homem
o que a água era para o peixe. Estava dentro e fora dele, por todos
lados, alimentando e nutrindo toda a vida, todos os seres, todas as
espécies, fauna e flora. Estava em todas as partes mas ninguém
podia vê-lo. O homem via a água, mas o peixe não. Assim, o
homem não via o ar, mas os deuses sim, podiam ver. Súbito, o
velho homem teve, sozinho, uma luz, e duvidou: talvez a sabedoria
seja assim...73
30. Nunca ouvi um professor meu de jornalismo falar da
necessidade do mito e da sabedoria na comunicação. Talvez porque
ela não seja mesmo necessária. Se for, quais os parâmetros para a
sua constituição? Como estudá-la, compreendê-la, investigá-la?
Para que haja uma comunicosofia primeiro é necessário uma
comunicologia. Para que haja uma comunicologia, primeiro é
necessário estudar o aberto.
31. Acolher o aberto: investigá-lo, abraçá-lo. Para começar,
observar o céu. Mas como é que se observa o céu? Espreitando
todos os ventos, todas as nuvens, todos os tempos? Acolhendo a
totalidade? Pesquisar é aceitar a abertura, a busca, a ignorância de
quem procura, no fundo, pelo que não sabe. E é desse não saber que
nasce o conhecimento.
32. Quem investiga não sabe, tateia, dá um jeito, hesita, mantém as
suas próprias escolhas abertas. Temos de ser como o passarinho que
investiga o céu em busca do azul perfeito. Quem pesquisa, deve ter
uma inquietude de passarinho. Pesquisar é uma forma de construir
mergulhos e sobrevôos.
33. Na Babilônia, por volta de 1800 a C. havia os daglil-issure ou
os ―observadores de pássaros‖. Eram especialistas na arte de
predizer o futuro a partir do comportamento das aves. No Nordeste
do Brasil tem o vem-vem, pássaro que anuncia pelo canto, chegadas
e partidas. É assim que é a investigação, um pássaro: sobrevôos e
mergulhos profundos nas camadas do objeto e da existência.
34. Para construir a famosa biblioteca de Alexandria, Ptolomeu
espalhou pesquisadores por todo o mundo conhecido. Pediu que
esses pesquisadores trouxessem das terras distantes, cópias e livros
das principais obras conhecidas da humanidade. Conseguiu assim,
com esse esforço, construir um dos maiores templos do saber da
Antigüidade. Propiciar o saber e a arte é uma forma de facilitar a
concórdia, mas sobretudo, a elevação espiritual do homem.
35. Para construir um saber, partimos de um não saber. Dúvidas,
incertezas, inquietações, curiosidades promovem a busca e a
construção.
36. ...sem dúvida, jamais saberemos
donde nos vem o Saber,
por muitos que sejam as fontes possíveis:
ver, ouvir ou observar;
falar, sustentar, contradizer;
contrafazer, imitar, desejar, odiar, amar;
ter medo e defender-se,
aventurar-se, arriscar, apostar,
viver e trabalhar juntos ou separados,
querer dominar por posse ou predomínio,
aliviar a dor, tratar as doenças
ou matar por assassínio ou guerra;
ficar espantado perante a morte,
orar até ao êxtase;
fabricar com as próprias mãos,
cuidar da terra ou destruir...
37. O conhecimento difere da informação; a informação difere do
saber; o saber difere da sabedoria e a sabedoria do conhecimento.
38. O conhecimento é um fenômeno multidimensional que
comporta competência, aptidão para produzir conhecimento,
atividade cognitiva e um saber resultante dessa atividade. É
simultaneamente físico, biológico, cerebral, mental, cultural,
psicológico, social. 74
39. Informação é uma unidade de conhecimento que explica uma
unidade de conhecimento que explica uma unidade de
conhecimento...75
40. Sabedoria é auto-conhecimento. (―Sê o escultor e o mestre de ti
mesmo‖ – Nietzsche).
41. Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento; onde
está o conhecimento perdido na informação.
(T. S. Eliot)
42. Pode-se também começar a busca do conhecimento
comunicacional – aquele que une informação, saberes, imagens,
diálogos, mitos, experiências, savoir faire – observando uma onda
na praia. A observação exige um temperamento, um estado de
ânimo e um concurso de circunstância conforme.
43. O senhor Palomar vê uma onda apontar na distância, crescer,
aproximar-se, mudar de forma de cor, revolver-se sobre si mesma,
quebrar-se, desfazer... É muito difícil isolar uma onda da que lhe
segue de imediato... Não se pode observar uma onda sem levar em
conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e
aqueles também complexos a que essa dá ensejo. Tais aspectos
variam continuamente, decorrendo daí que cada onda é diferente
da outra onda; mas da mesma maneira é verdade que cada onda é
igual a outra onda, mesmo quando não imediatamente contígua ou
sucessiva; enfim, são formas e seqüências que se repetem, ainda
que distribuídas de modo irregular no espaço e no tempo.
(Italo Calvino) 76
44. Para conhecer algo é necessário um método = caminho. Até
mesmo para conhecer uma onda, o rumor do vento, a vida das
formigas ou dos homens, uma moda, um estado, qualquer coisa,
preciso de um método. Preciso de um caminho para chegar até essa
coisa. É preciso, neste método, ir da análise à síntese e da sistêmica
à analítica, indo e vindo. É preciso tentar acusar o contraste entre
uma sintaxe aparentemente linear, clássica, e uma realidade
aparentemente complexa, não linear. Pesquisar é administrar ordem
e desordem.
45. Os gregos tinham uma palavra, Themata, para definir nossas
buscas obsessivas. Nós estamos sempre ligados a certos temas, nós
os perseguimos, ou será que são eles que nos perseguem? Em cada
pesquisa temos também que nos auto-investigar. É necessário que o
pesquisador esteja na pesquisa porque, ao final, o resultado da sua
pesquisa, acho até que o resultado de qualquer pesquisa, será
sempre uma objetividade subjetivada.
46. Necessitamos não só de uma epistemologia dos sistemas
observados, mas também de uma epistemologia dos sistemas
observadores.
(H. von Foerster)77
47. O primeiro critério de um pesquisador é ter olhos e coração. Ter
olhos espalhados por toda a pele e um coração pulsando na cabeça.
Sem sensibilidade não se faz nada. Sem atenção, acuidade, cuidado,
método só se chega a resultados parciais. Embora toda pesquisa
seja, ao final, um resultado parcial, sempre é bom acreditar que se
sabe alguma coisa. Ao final da pesquisa, o pesquisador deve olhar
para si mesmo e perguntar: que sei eu?
48. Que sei eu?
(Montaigne)
49. Perguntemos a nós mesmos: que sabemos? E mais: que sabemos
sobre a comunicação? Será que temos realmente produzido
conhecimento ou reproduzido objetos? Será que temos estudado
somente mídia ou a comunicação em sua multiplicidade e
totalidade? Será possível estudar a comunicação em sua totalidade?
Metrodoro de Chio disse: ―Não sabemos se sabemos. Não sabemos
nem mesmo o que é saber‖. O mesmo vale para a comunicação.
Não sabemos o que é comunicação. Não sabemos nem mesmo o
que é o saber comunicacional.
50. Para ser um bom pesquisador, ser um bom costureiro. Um
complexeur. Só conseguindo manter a comunicação entre todos os
aspectos observados, colhidos, costurando-os conjuntamente, podese começar a segunda fase da operação: estender este conhecimento
para os seus próprios limites.
51. Tem gente que pesquisa melhor com os pés no chão, tem gente
que pesquisa melhor com a cabeça nas nuvens; tem gente que gosta
do caos, outros da ordem, uns preferem ‗uma coisa de cada vez‘,
outros, ‗tudo ao mesmo tempo agora‘; uns não sabem por onde
começar, outros, começam pelos livros, outros nunca começam,
outros nunca terminam. Todos os caminhos da pesquisa conduzem
ao pesquisador. Olhar para o alto, olhar para baixo... não são duas
maneiras de olhar para si mesmo?
52. Um homem apaixonado pelo céu andava o tempo todo de rosto
para
cima, a contemplar as mutáveis configurações das nuvens e o
brilho distante das estrelas.
Nesse embevecimento, não viu uma trave contra a qual topou
violentamente com a testa. Um amigo zombou da sua distração,
dizendo que quem só quer ver estrelas acaba vendo as estrelas
que não quer.
Espírito previdente, esse amigo vivia de olhos postos no chão,
atento a cada acidente do caminho. Por isso não pôde ter sequer
um vislumbre da maravilhosa fulguração do meteoro que um dia
lhe
esmagou a cabeça.
(José Paulo Paes)78
53. Como e o que pesquisar? Comece perguntando ao seu coração:
o que eu gosto realmente? Depois pergunte: o que me interessa
pensar? Que idéias me atraem? O que me inquieta, o que, no
conhecimento, me dá prazer? Depois de responder estas questões,
comece a brincar de fazersaberes. Não é uma brincadeira perigosa, não muito, só um pouco.
Você já brincou de colar? Primeiro recorte, depois cole. Mas não
cole dos outros. Isso é feio. Só vai mostrar que você não sabe
brincar, que não é criativo. Se não souber responder, faça uma lista,
por escrito, converse com outros que brincam há mais tempo do que
você. Eles podem te ajudar. Mas cuidado. Tem muita gente que
pensa que sabe brincar. Mas são tristes, feios por dentro. Eles
podem querer que você seja igual a eles. Procure os que são felizes
por dentro. Esses nunca vão o desestimular. Então comece a brincar
assim, perguntando: o que eu acho que devo conhecer?
54. Que belo tema de disputa sofística tu nos trazes, Menon; é a
teoria segundo a qual não se pode procurar nem o que se conhece,
nem o que não se conhece. O que se conhece porque, conhecendoo, não se tem necessidade de procurá-lo; o que não se conhece
porque não se sabe o que se deve procurar.
(Platão)
55. Para brincar de pesquisa é preciso saber recortar bem. Você já
brincou de recortar? Nesta brincadeira, é preciso saber recortar bem
direitinho. Quanto melhor o corte, melhor o encaixe, a colagem, o
quadro geral. Seja um bricoleur aplicado, atento, cuidadoso. Você
não pode dar conta de colar todas as imagens, todas idéias e todos
os objetos. Não tem problema. Você não tem que dar conta de tudo
isso. Por isso é que o recorte tem que ser bem feito, para que o
resultado seja todo seu. É preciso que você encontre as imagens
certas para as idéias certas. É preciso que o objeto esteja bem
colado às imagens e idéias e que haja a liga perfeita para que ele
não fique sem aderência e destaque. Cole o objeto no lugar certo.
Depois mostre aos outros o seu trabalho; seja crítico e auto-crítico.
Esse tipo de brincadeira deve servir para deixar a gente mais feliz e
não mais triste.
56. A pesquisa é a procura da verdade. Assim ela vale porque é uma
procura, justamente. Como procura, podemos seguir vários
caminhos = métodos. A arte de procurar os caminhos certos =
verdadeiros é a arte da pesquisa. Qual o caminho mais verdadeiro?
Aquele que casa o conhecimento produzido pelo homem ao longo
dos anos, aquele que você mesmo acredita com aquele que pretende
contribuir para o desenvolvimento do homem. Pesquisar é uma
forma nova de construir velhos mitos.
57. Quanto mais a pesquisa for extensa, menos possibilidade de
profundidade. Quanto mais curta, maior possibilidade de
superficialidade.
58. Não é fácil brincar de fazer-saberes. Corremos alguns perigos.
Mas, como diz Holderlin, ―onde está o perigo, cresce também o que
salva‖.
59. A ciência é o reflexo do homem no espelho da natureza
(Pauli)
60. Para ser cientista, ser artista. Para ser artista, aninhar-se de
abismos.79
61. Não se faz pesquisa sem um problema. Resolver este problema
é o objetivo do cientista. Mas o objetivo do artista muitas vezes não
coincide com o do cientista. O artista muitas vezes quer multiplicar
os problemas. Daí que vem o cientista para tentar resolvê-los.
Enquanto o artista trabalha com a metáfora, o cientista lida com a
metonímia. Artista e cientista partilham porém um caminho
comum: preferem andar na margem, onde a razão gosta de estar em
perigo. Ambos gostam dos limites: dos limites do possível e do
impossível.
62. Mesmo sendo totalmente dependente das interações entre os
espíritos humanos, o conhecimento escapa-lhes e constitui uma
potência que se torna estranha e ameaçadora. Hoje, o edifício do
saber contemporâneo ergue-se como uma Torre de Babel que nos
domina mais do que a dominamos.
(Edgar Morin)
63. O conhecimento é mesmo uma Torre de Babel. Há uma crise
nos seus fundamentos, nas suas relações. O conhecimento é sempre
múltiplo. É um ―fundamento sem fundo‖, disse Heidegger. Saber
que o conhecimento não possui um fundamento é adquirir um saber
fundamental. Seu fundamento é móvel, aéreo, flutuante, profundo.
Como diz Fernando Pessoa: ―Somos dois abismos: um poço
olhando um céu‖. Ou como diz Roberto Juarroz: ―Entre altas torres
vou cavando fundos poços‖.80
64.Precisamos trocar a metáfora arquitetônica de ―fundamento‖,
uma metáfora musical de ―construção em movimento‖.81
65. Eu creio que toda forma de conhecimento pode ser procurada
no receptáculo da multiplicidade potencial. O espírito do poeta,
como o espírito do sábio, funciona por associações de imagens (e
saberes) seguindo um processo que constitui um processo mais
rápido de associação e de escolha entre as formas infinitas do
possível e do impossível.
(Italo Calvino)
66. Conhecimento do conhecimento: outro nome para
epistemologia. Palavra pesada. É difícil para ela voar. Quem a
incitou a ficar mais leve foi Gaston, o velho Bachelard.
67. No conhecimento da comunicação, remeto desde já a Demócrito
de Abdera, que via uma diferença entre a comunicação mediata e a
imediata. A mediata é sempre mediada por mecanismo que exigem
um canal, um fluxo entre emissor e receptor, já a imediata não, não
exige nada. Ocorre nos átomos, no interior do homem. De dentro do
homem para dentro do homem. Não exige meio.
68. No conhecimento do conhecimento comunicacional deveríamos
nos preocupar mais com o que Niels Bohr chamou de ―Unidade do
Conhecimento‖, aquela dimensão do saber que une filosofia,
ciência, técnica, magia, religião, arte numa só unitas multiplex. A
comunicação é a liga natural que faz a ponte entre os
conhecimentos. Pena ela ter se transformado (ou desejado) isolar-se,
encastelando-se ora num campo ora numa técnica ou num mercado
que não a torne verdadeiramente episteme filo-pluri-conceitual.
69. ―Eu tenho um sonho!‖, disse um pensador da paz. Era também
um poeta da vida. O sonho motiva o homem e a ciência. Para se
tornar um cientista, todo homem precisa ser poeta e ter um sonho.
Todo cientista precisa de um sonho capaz de fazê-lo voar e motivar
seu desejo de paz e de conhecimento. Por isso, na era da
comunicação social tecnicista e do fechamento do homem ao
diálogo, ousamos dizer: é preciso recriar a idéia de Comunicação!
Urge, como diz Edgar Morin, reformar o pensamento e a ciência.
Nessa perspectiva, necessário também se faz reformar o conceito de
comunicação, devolvendo-lhe o que a disciplinaridade e a hiperespecialização lhe roubaram: a sua capacidade de ser, por
excelência, a ciência da religação dos saberes e, mais do que isso, a
ciência do diálogo.82
70. Existe a sensação global, diz David Bohm, de que a
comunicação está progressivamente se deteriorando. Para ele, é
preciso recriar a comunicação porque nossa forma de pensá-la e de
falar sobre ela constitui um dos fatores que nos impedem de tomar
consciência da sua real importância em nosso sistema de
conhecimento. Muito cedo, a Comunicação tornou-se ―social‖,
aportou no cais desencantado do jornalismo; navegou os mares de
plástico da publicidade; vendeu pela mão do marketing produtos
que apitam e acendem, e causam sensações de bem-estar; facilitou o
acesso às bibliotecas tornando a técnica da catalogação algo
louvável; fez e desfez da informação como bem quis, prostituindo-a
ao máximo, entregando-a sem meditação a todos. Todos então se
sentiram mais informados e, ao se sentirem mais informados, se
acharam mais sábios, alguns até, gênios individuais. De maneira
nenhuma, ninguém se achou idiota coletivo, muito pelo contrário. 83
71. A comunicação ―social‖ pretendeu ser analítica e seguiu o
caminho natural por onde trafegou o conhecimento humano com o
advento do cartesianismo. Mas os seus servos esqueceram que ela
era Comunicação, não somente ―social‖, mas também ―humana‖,
―ecológica‖, ―psíquica‖, ―mitológica‖ e principalmente ―filosófica‖.
Quiseram que ela não fosse mais Comunicação, mas jornalismo,
publicidade, marketing, biblioteconomia, gestão de informação e
uma infinidade de outras disciplinas. Foi quando a Comunicação
tornou-se uma entidade fantasmática. Um campo sem campo, um
mero guarda-chuva para outras áreas. Isso provocou ao longo do
tempo um efeito drástico: ela deixou de ser estudada como tal e
passou a ser tautologia, signo-sinônimo de ideologia, dominação,
negação, alienação, técnica. Por mais que esses componentes
estejam presentes, diga-se, na dimensão social (mas não só) da
comunicação, perguntamo-nos por que foram eles os fatores
privilegiados. Isso é fácil de responder: foram privilegiados porque
os estudos avançaram em direção à compreensão da técnica como
meio e suporte máximo a ser racionalizado. E talvez porque, além
da tecnicização da sociedade, a informação é o escudo que os
homens usam para se proteger e justificar a ausência do verdadeiro
diálogo.
72. Quem já conseguiu dar uma definição satisfatória do que seja a
comunicação? E a cultura, que teoria é capaz de abarcá-la? As
tentativas de definir essas duas noções foram inúmeras. Não foram
vãs porque contribuíram para a apreensão que hoje podemos ter das
relações humanas e sociais. Porém, nunca foram satisfatórias.
Talvez, ao invés de conceituá-las, melhor seria aceitar nossa
incapacidade de dar conta da totalidade dos conceitos que as
envolvem. Aceitando as implicações da lógica de Tarski e do
teorema de Kurt Gödel, segundo os quais um sistema semântico não
pode ser explicado a partir de si mesmo nem pode encontrar em si
mesmo a prova de sua validade, a cultura e a comunicação como
sistemas dinâmicos não podem validar-se nem se fazer conhecer
completamente simplesmente a partir de seus próprios instrumentos
de conhecimentos. São noções indomáveis que por isso necessitam
do diálogo, entendido como meio de enriquecer-se com o diverso e
o desconhecido, conhecendo-o, compreendendo-o, aceitando-o.
Hoje, temos informações demais e compreensão de menos.
73. Isso significa dizer que a primeira condição para a elaboração de
uma Teoria da Comunicação que se pretenda autoconsciente é
renunciar à completude e ao exaustivo processo de fechamento do
objeto em torno dos elementos que o compõem. Mas não devemos
para tanto abandonar ou minimizar os elementos que o
circunscrevem. A postura antes requer um misto de ousadia, rigor e
humildade. Nossa incapacidade de definir o sistema comunicaçãocultura, revelada pela vastidão de conceitos apresentados ao longo
dos anos, constitui uma prova da dimensão enigmática desse
campo. O século XX foi especialmente pródigo em formular
conceitos para essas áreas. Sabemos que mais de cem definições
foram enunciadas (Kluckhohn, 1945) para a cultura e que, para a
comunicação, são pelo menos quinze escolas clássicas e inúmeras
noções como: interação, informação, linguagem, diálogo, vínculo,
processo de significação, partilha, educação, relação, negociação,
manipulação, influência, persuasão, narração, retórica, comunidade,
atividade sensorial e nervosa, elemento desencadeador e
delimitador, instrumento formador, processo moderador,
compreensão, entendimento, interpretação, processo histórico,
troca, cooperação, coexistência, mensagem, meio, interlocução,
tautologia, expressão, socialização e ecologia.
74. Para questionar a razão de uma ciência da comunicação distinta
da ciência da cultura, perguntamo-nos: em quais dessas noções
comunicação e cultura não são o mesmo? A essência da
comunicação reside nos processos relacionais e interacionais tanto
quanto a cultura, e todo comportamento humano possui um valor
tanto cultural como comunicativo. Isso a Escola de Palo Alto nos
ensinou com maestria. Então, por que a ciência da cultura, a
Antropologia, não se valeria da noção de diálogo numa era em que,
como veremos, as civilizações produtoras e veiculadoras de cultura
são incapazes de compartilhar o espaço global, num espírito de
compreensão e aceitação mútua? Por que não pensar uma ciência
capaz de aproximar os seres humanos e seus saberes num espírito
de diálogo?
75. Assim, reformulamos o nosso próprio conhecimento dos
conhecimentos de modo que, para investigar os limites, os conceitos
e a fortuna crítica da cultura e da comunicação, devemos levar em
conta a possibilidade de uma culturanálise (Morin, 1999) que
queremos comandada pelo espírito do diálogo e por isso chamamos
de Comunicologia. O homo comunis ainda está por nascer. E ele
será engendrado a partir do paradigma da intercompreensão
(Habermas, 2003) e no universo da partilha, da capacidade de tornar
comuns saberes e condições materiais e espirituais da vida. Em
ambos os casos, devemos admitir pressupostos e aberturas
sistêmicas, incompletude teórica, decifração de seus caracteres e
contínua religação de suas partes.
76. Apesar da totalidade da natureza na qual o homem está inserido
ser algo inatingível, existe uma porta aberta para um universo realimaginário indomável do qual o homem tem por desafio se
aproximar, começando por aceitar a infinitude e a necessária
articulação dos saberes. Essa porta é a da lógica do sensível.
77. Uma das formas perenes e primeiras de produzir, perpetuar e
regenerar o diálogo intercultural é o mito. Por si só, ele estabelece a
relação entre o universal e a diversidade, sendo o mediador da
passagem da natureza à cultura. Permite construir modelos
explicativos estabelecidos de acordo com o imaginário e as relações
sociais (Lévi-Strauss, 1970). E mais, o mito consegue realizar a
tarefa de respeitar a relação harmoniosa entre o natural e o cultural,
o material e o espiritual, o físico e o imaginário, o visível e o
invisível. Algo que pode nutrir e complementar o espírito científico.
78. Como o mito, a arte e a religião são mediadores ideais entre as
dimensões do visível e do invisível, entre as ordens natural e
artificial. Olhar a vida como uma obra de arte, levando em conta as
duas dimensões e as duas ordens, é uma premissa inclusive para a
ciência. Tais manifestações do imaginário sempre foram necessários
supridores da relação do material com o espiritual, do visível com o
invisível e do empírico com o intangível. Os objetos sagrados, entre
os quais se deve incluir os mitos, as artes, as ciências e as
espiritualidades, enquanto patrimônios da humanidade, podem
cumprir funções de solidariedade e de resistência aos sistemas
desiguais e unidimensionais das trocas, conduzindo a uma
humanidade mais aberta, uma ecologia das culturas, promotora de
paz.
79. A lógica da igualdade também constitui uma porta para o
necessário diálogo intercultural planetário tanto quanto para o
diálogo da dimensão racional humana com as da sensibilidade e do
imaginário. Assim como as relações interculturais não podem ser
pautadas pelo poder e a dominação, as relações interdisciplinares e
os vários domínios do conhecimento não podem continuar
alimentando relações de exclusividade. É necessário instituir entre
os domínios fragmentados novos caminhos de volta para a união,
reunir o que foi desunido pela necessidade de classificar, separar e
ordenar para melhor apreender, distinguir e conhecer. Vaidades,
ânsias de poder e individualismos foram capazes de corromper os
idealismos e sonhos de certos homens e transformá-los em déspotas
da categorização, da hierarquização e da exclusão, fazendo-os
esquecer que havia um caminho de volta a percorrer. Hoje, a lógica
da concorrência, profundamente ancorada em todos os domínios da
vida, serve de justificativa para corridas desenfreadas entre espíritos
científicos desprovidos de premissas humanitárias universais.
80. Assim, uma ciência do diálogo só é possível se formos capazes
de instaurar um espírito de igualdade tanto no âmbito das relações
sociais e interculturais, como no âmbito das relações entre os
diversos domínios do conhecimento e da apreensão do real: um
espírito científico que inclua o pensamento racional e técnico, o
pensamento poético e o pensamento mítico-religioso. Enriquecer-se
com o diverso e aceitar o desconhecido é uma necessidade cuja
ambição reside na humildade requerida, porém raramente
encontrada, no meio científico.
81. O diálogo implica um fluxo em sentido duplo e simultâneo
possibilitando que uns cedam espaço aos outros, que todos,
qualquer que seja a diversidade de seus pontos de vista, possam ir e
vir nos caminhos das inter-relações e possam assim interagir melhor
através de uma rede de modos de compreensão da realidade com
vistas à completude da apreensão do mundo. A imagem da rede de
interações remete à idéia de interdependências e interresponsabilidade presente na noção de ecologia do espírito. Se as
ciências físicas e biológicas não desdenharem a importância das
ciências humanas e sociais e essas, por sua vez, não menosprezarem
os domínios da criação artística, estaremos mais próximos da idéia
de Comunicologia. A linguagem transdisciplinar da arte e da poesia
auxilia a compreensão do homem enquanto ser que se constrói a
partir da necessidade de compartilhamento e comunhão para
enfrentar o meio natural no qual se insere.
82. Há ainda que se falar na importância dos saberes das dimensões
verticais, presentes na arte, na poesia e na espiritualidade Ao
estender os limites da linguagem, o artista e o poeta alargam os
horizontes do real e tornam o homem mais sábio, mais satisfeito,
mais próximo da completude almejada. Essa busca de
conhecimento de si para melhor situar-se no mundo, para melhor
relacionar-se com ele, permite aceder a mistérios inerentes a todos
os seres e que, se não forem rechaçados ou abafados pela
racionalidade científica, podem ser pressentidos num estado latente
ou manifestos e até exaltados. Entramos no domínio sagrado das
religiões que a ciência tanto teme abordar. No entanto, são muitos
conflitos, paixões e desafios para o homem se conhecer e se situar
no cosmo que uma ciência do diálogo não pode desconhecer.
83. Perguntamo-nos qual é a verdade científica que, assim como as
religiões, não se baseia em crenças, premissas, postulados ou
enunciados tomados como princípios e elaborados sobre bases
emocionais, ao ponto de serem capazes de se sobrepor ao
conhecimento proporcionado pela espiritualidade, suprimindo-o do
domínio da ciência. Propor para a ciência os caminhos do diálogo,
portanto, implica também em religar o conhecimento científico com
o conhecimento dos mistérios da natureza, o sobrenatural. Vítima
do preconceito gerado pela soberania da racionalidade científica,
esse conhecimento foi relegado a zonas obscuras da vida social,
porém nunca deixou de ser amplamente desenvolvido em todas as
culturas porque o homem não vive sem uma forma de apreensão
dos mistérios, de qualquer ordem que seja. Ignorá-lo é um
procedimento que carece de rigor para a ciência da comunicação.
84. Agora respondamos às inquietações daqueles que se perguntam
que lugar a Comunicologia reserva à comunicação social que até
hoje domina as reflexões no espaço comumente atribuído à ciência
da comunicação. O mesmo espaço que ela sempre ocupou, só que
com uma diferença fundamental: com a Comunicologia, a
comunicação social ganha uma força a mais. Jornalistas,
publicitários, assessores de imprensa, relações públicas e todo o
contingente de formadores de opinião produzido pela sociedade da
informação e da comunicação de massa, imbuídos da sua própria
capacidade de sonhar, imaginar, aprofundar-se, e conhecer o
mundo, dotados do fabuloso aparato técnico dos meios de
comunicação de massa, podem se tornar os principais mensageiros
de uma ciência do diálogo proporcionada por um espírito de
igualdade e um sonho para a humanidade. Concretamente, nenhum
indivíduo pode dar conta da idéia de Totalidade compreendida na
perspectiva da Comunicologia, porém, todo indivíduo pode
encontrar na comunicação um caminho para o diálogo
transdisciplinar com as outras formas de conhecimento que a vida,
inevitavelmente, se encarrega de lhe oferecer. De fato, como pode,
quem nunca sonhou em voar, querer se abrigar sob os auspícios de
um deus que tem asas nos pés e na cabeça?
85. Voar sem sair do real. Alimentar a imaginação no dia-a-dia.
Quando se olha para o cotidiano se olha para as partes e para o todo
ao mesmo tempo. O que fomos no passado, ainda somos um pouco
no presente. Somos o conjunto dos restos que fomos. Restos e
restos de cotidianos vindos no conjunto dialetizado que somos. A
vida cotidiana exige sempre uma anamnese; quase uma súmula de
cada jogo vivido. Os cotidianos passados nos ensinam tanto quanto
queiramos aprender com eles. A exigência da anamnese é também
uma exigência pedagógica, formadora do corpo físico histórico,
corpo espiritual, intelectual e material. O efêmero conquistado é
logo perdido, vivido, torna-se passado aprendido no presente.
Agatha Cristie estava correta ao assinalar que a invenção, a criação,
deriva de um certo ócio, acrescido a uma certa preguiça. É um
movimento aparentemente de contradição mas que tem sentido. O
importante é observar que não deriva apenas daí; mas também do
trabalho. Como eram os filósofos? Que criaram? Que pesquisaram?
A ―invenção do cotidiano‖ é a criação perene e constante da vida
cotidiana. 84
86. O homem é uma metáfora de si mesmo.
(Octavio Paz)
87. O novo paradigma tem como referência ―o homo creans‖ e não
apenas o homo faber. Trata-se de reconhecer – implicitamente – que
a atividade de fabricar é apenas utilitária, extensor, mercantilista;
mas define-se por um ―dentro‖ autônomo, de uma inventividade
imanente.
88. Entender o novo paradigma que tenta se estabelecer dentro da
comunicação é entendê-la como rede comunicacional, como um
todo. Essa nova concepção permite tratar as redes como várias
circulações sem começo e nem fim, na medida em que suas junções
são múltiplas e seus cursos complexos. Há nesta concepção uma
visão circularista. A comunicação é um corpo cujas ramificações
estão em todas as direções e sob todas as manifestações no campo
da sociedade. A rede é a nova ―tecnologia do espírito‖.
89. Que um sistema possa ser visto nos termos da rede, isto é, sem
começo nem fim fixado e sem linhas que podem se acavalar
circularmente, tornando toda circulação possível da mesma
maneira, e estamos não somente num sistema aberto, como também
num sistema que se define pelo tempo passado para percorrê-lo em
todos os sentidos como o sistema geral de todos os sistemas
possíveis.
90. O que Morin chamou de dupla consciência, a saber: ― a ilusão
da realidade é inseparável da consciência de que ela é realmente
uma ilusão, sem que essa consciência destrua o sentimento da
realidade‖. Uma em associação com outra ou somente
manifestações diferentes de uma concretude cotidiana. A vida
cotidiana é a ―vida vivida no presente e da qual não conseguimos
esgotar as riquezas‖ por que as ―riquezas‖ estão sempre a se repor, a
se recompor na ―louca‖ intensidade da vida diária.
91. A realidade da vida cotidiana está organizada em torno do
―aqui‖ do meu corpo e do ―agora‖ do meu presente. Este ―aqui‖ e
―agora‖ é o foco da minha atenção à realidade da vida cotidiana.
Aquilo que é ―aqui e agora‖ apresentado na vida cotidiana é o
realissimum de minha consciencia. A realidade da vida diária,
porém, não se esgota nessas presenças imediatas, mas abraça
fenômenos que não estão presentes no ―aqui e agora‖. Isto quer
dizer que experimento a vida cotidiana em diferentes graus de
aproximação e distância, espacial e temporalmente. O conceito
contemporâneo de comunicação se caracteriza pela dualidade:
sentido e movimento.
93. O cotidiano é assim: na hora do almoço a gente almoça, na hora
de dormir, dorme. E vive o dia, todo dia. Ele ao mesmo tempo é
porto e morte. Emergência, convergência e mediação. Mas o
cotidiano é um concreto perpassado de sonhos, pedras de espuma. O
cotidiano é sempre mediador. É a situação concreta que relaciona
todas as partes. Afinal de contas o que vivemos? Como vivemos?
Vivemos sempre o instante, interligados em redes, em redes que se
interligam constantemente, ampliam-se, complexificam. Tudo se
liga a tudo. O melhor dos cotidianos é aquele no qual a gente não
vive. 85
parte IV – terra
o leitor de polens
1. Leio no ar o cântico da terra. Polens ventos flores pingos caem
por cá. Chão de nossas convivências, a terra ensina à comunicação
a ser o chão de nossas relações.
2. Gostaria de ter sempre um livro ante os olhos. Fosse o livro do
mundo, não-escrito, fosse um livro de papel, mundo escrito. Mas
não, o que tenho é quase sempre uma página em branco, a espera de
uma palavra-ação que venha confortar o meu silêncio de papel.
Gostaria de entender que energia é essa que nos prende ao livro.
Que objeto é esse que faz com que os homens sejam homens
melhores?
3. O mitólogo Joseph Campbell dizia que uma das suas formas de
prazer preferida era sublinhar frases nos livros que lia. Alguns não
sabem ler sem algo por perto com que possam riscar, intervir,
escrever à margem, apontar, fazer referência adicional, criticar...
Para outros, como Jorge Luis Borges, a melhor companhia para o
livro não é nem o café nem o lápis, mas o próprio leitor. Borges diz
que o maior de todos os momentos é quando o leitor encontra o seu
livro.86
4. Conheci em São Paulo, nos arredores da PUC, um jovem
alagoano que por muito tempo viveu no lixo, literalmente pelas
ruas, sobrevivendo a catar restos, numa condição degradante: era
migrante, mendigo e marginal, mas não analfabeto. Seu nome era
Chaparral, pelo menos era assim que ele se apresentava a todos.
Certo dia, procurando no lixo restos de comida, Chaparral
encontrou um livro todo despedaçado. Leu alguns trechos e logo se
interessou pelos assuntos ali tratados. Ficou fascinado, como disse,
enfeitiçado por aquelas palavras, por aquela energia gráfica, aquilo,
dizia dele, era ele, aquele autor desconhecido empregava a força
que ele esperava encontrar nas palavras. Mesmo sem ter lido
linearmente o livro, ele fora atingido pelos fragmentos, seus
estômago doía, sua cabeça fervilhava, quis saber quem era aquele
autor e que livro era aquele. No dia seguinte descobriu. O autor era
Nietzsche e o livro, Assim Falou Zaratustra.
5. Livros mudam o homem. Um exemplo foi Chaparral que largou a
mendicância, se casou, constituiu família, teve uma filha, e passou a
escrever livros só por ter encontrado o ‗seu‘ livro. Hoje vive da
venda de porta em porta de seus próprio volumes, que lhe permite a
educação de sua filha e o alimento à sua mesa. Longe do mercado e
das grandes editoras, o livro foi o objeto que revolucionou a sua
história. O livro foi o sentido existencial que lhe propiciou alcançar
a dignidade, um trabalho, mesmo que autônomo, e o amor à
palavra.
6. As razões do fascínio do livro e dos seus poderes de sedução são
feitas de vários elementos, alguns deles imponderáveis. Não
erramos em dizer que boa parte da cultura contemporânea estruturase em torno do livro. Por isso mesmo talvez caiba aqui, neste
momento, uma pergunta um tanto óbvia: o que é o livro? Que tipo
de comunicação ele é?
7. Às vezes, o livro é definido como uma porção de cadernos
manuscritos ou impressos cosidos ordenadamente. Do mesmo
modo, poderíamos dizer também que o livro é um suporte que
permite a difusão do conhecimento em seus vários matizes. É tão
múltiplo quanto a vida. Pode ser brochado, encadernado, de bolso,
ilustrado, raro, usado, infantil, científico, literário, didático, antigo,
novo, desaparecido, no prelo, estar na alma ou na lembrança...
8. O ano do nascimento do livro é incerto. De sua vida pouco se
sabe pois são raros os registros que contam sua história, apesar de
uma literatura específica começar a ser produzida neste sentido.
Conta-se que o Livro de Bambu que originou o I Ching foi o
primeiro livro da história e que ele já conta com quase cinco mil
anos de história. Um extenso registro escrito sobre os livros da
idade média, por exemplo, não são fáceis de encontrar, visto que ler
e escrever naquela época era privilégio de poucos. Ainda que o livro
tenha sido desde cedo o responsável pela divulgação da palavra
escrita, e por torná-la acessível a todos, sua principal contribuição
talvez seja a de ditar os caminhos por onde passa a cultura humana.
9. Depois que Johannes Gutenberg inventou a prensa tipográfica,
em 1408, as informações e o conhecimento começaram a ser
divulgados de forma sistemática. Seu invento permaneceu o mesmo
praticamente por quatrocentos anos. Hoje, ainda que ultrapassado
tecnologicamente, sobrevive enquanto idéia, onde houver palavras
impressas sobre o papel. A história da impressão sobre o papel
começara na China no final do século II da era cristã. Os chineses
sabiam fabricar papel, tinta e usar placas de mármore com o texto
entalhado como matriz. Quatro séculos depois, o mármore foi
trocado por um material mais fácil de ser trabalhado, o bloco de
madeira. Os mais antigos textos impressos que se conhecem são
orações budistas. Foram feitos no Japão entre 764 e 770 a C. O
primeiro livro propriamente dito que se tem notícia apareceu na
China em 868 a C. O desenvolvimento da escrita deu um novo salto
no século XI graças a um alquimista chinês, Pi Cheng, que inventou
algo parecido com tipos móveis, letras reutilizáveis, agrupadas para
formar textos. No final do século XV, a China produzia mais livros
que o resto do mundo.
10. No início do século XXI, a cultura contemporânea produz mais
livros do que o homem tem condições de ler. Há livros para todos
os gostos e, nesse caso, a quantidade nem sempre indica qualidade.
No entanto, ler é sempre fundamental. Cada livro escrito é um
microcosmos que se adensa no índex sócio-histórico do
conhecimento, é um fragmento que se insere no catálogo da
biblioteca do espírito humano. Cada livro que lemos se insere no
livro complexo, unitário, que forma o livro geral que é a soma de
nossa leituras, de modo que para compor esse livro pessoal
devemos nos transportar, entrar em contato com os livros lidos
anteriormente,
deixá-los
tornarem-se
o
corolário,
o
desenvolvimento, a refutação, a glosa ou o texto de referência. Na
atualidade, esse livro geral, unitário, tem amplas oportunidades de
se complexificar. No Brasil, nunca se editou tanto. Textos antigos,
medievais, modernos, futuristas, em todos os gêneros... Lemos
autores de países distantes e dos rincões mais isolados do interior do
país. Livros são feitos em casa, são produzidos sob encomendas,
são objetos de veneração de algumas confrarias, disponibilizados na
internet, xerocados continuamente, procurados como tesouros,
motivo de leilões. Se o Paraíso for mesmo semelhante a uma
biblioteca, como disse Borges, cada livro será então um canto órfico
pronto a servir à celestial razão.
11. Borges diz que as bibliotecas são ―templos‖, mas outros as
vêem como locais ultrapassados, empoeirados, devido ao imenso
índice oferecido hoje pelos aparatos multimidiáticos das redes
telemáticas. Não devemos de forma alguma descartar tais suportes,
mas basta que a natureza oscile um pouco para que tanto
conhecimento corra o risco de ficar às escuras. Talvez um dia o
homem necessite de uma fogueira para contemplar uma lâmpada
elétrica. Mas para ele bastará sempre a luz do sol para que o
conhecimento presente num livro salte aos olhos, iluminando a
razão. É difícil ser vela num mundo eletrificado. E é isso o que o
livro é: uma chama lançada sobre a ignorância humana.
12. Signo da ciência e da sabedoria, o livro é sobretudo o símbolo
da totalidade do universo. No Apocalipse, o apóstolo João diz que
no centro do Paraíso existe o Livro da Vida de onde nasce uma
árvore: a Árvore da Vida. As folhas dessa árvore, como os
caracteres de um livro, representam a totalidade dos seres, toda a
humanidade, todas os vegetais, minerais, animais, o cosmo inteiro
em sua abrangência máxima. A idéia de fazer do livro o receptáculo
de todo o universo esteve sempre presente no espírito humano.
13. Galileu Galilei foi um dos que pensou poder concentrar a
totalidade do mundo num livro. Só não sabia como fazê-lo. Pensava
que o livro total poderia ser escrito em linguagem matemática,
geométrica, na língua da racionalidade e da exatidão. O infindável
dificilmente pode ser retido num livro, e é por isso que o ato de ler e
escrever não tem fim. Um livro jamais termina de dizer o que tem
para dizer. Galileu certamente sabia disso. Por isso quis encontrar
uma fórmula matemática que exprimisse a totalidade do cosmo. Ele
sabia que a natureza é como um livro, uma narrativa que não se
esgota em sim mesmo.
14. Quem acreditou poder registrar a totalidade das histórias num
livro foi Italo Calvino. Calvino, inspirado em Galileu, apresentou
um seminário em 1980, na Sorbonne, no curso de Algirdas Julien
Greimas, em que mostrava que o livro é um tipo particular de
comunicação e a leitura um modo singular de realizar-se como ser
humano. O livro propiciou ao homem um senso de integração com
o mundo, conquistado a partir da leitura. A partir do seu
aparecimento, o livro levou o homem à prática de um exercício
ótico que envolvia a mente e os olhos, um processo de abstração
que resultava na extração dos caracteres a partir de operações
abstratas, no reconhecimento de marcas distintas, decompondo o
que ele via em elementos mínimos, reunindo-os em segmentos
significativos, para descobrir em volta da leitura regularidades,
diferenças, repetições, exceções, substitutições, redundâncias...
Calvino foi a simbiose humano-vegetal. Trata-se aqui de um modo
único de perceber a civilização e a cultura: o homem está também
unido ao vegetal através do livro. Dito de outro modo, o homem
comunica-se à natureza através da cultura. E mesmo quando o
homem lê e investiga cognitivamente o universo ainda assim a
natureza não se desconecta dele.
16. Talvez a universalidade humana já esteja presente em livros
escritos pelos nossos mestres literários. Penso que foi isso que o
humanista italiano Aldus Manutius pensou quando, em 1494,
empreendeu um ambiocioso programa de publicações que
produziria alguns dos volumes mais belos da história da imprensa.
Pela primeira vez, antes em grego e depois em latim, foram
impressos Sófocles, Aristóteles, Platão, Tucídides, Virgílio,
Horácio, Ovídio e os seus quase contemporâneos Dante e Petrarca.
Gosto de pensar naqueles vendedores ambulantes de livretos que
percorriam a Europa medieval ou nos trovadores nordestinos que,
de cidade em cidade, vendiam seus cordéis, liam em praça pública e
declamavam seus versos ao sabor do vento.
17. O livro alivia a existência. Facilita o viver. Nos leva a mundos
maravilhosos, reais, cruéis, fascinantes; nos ensina a compreender
as possibilidades e as impossibilidades da vida, nos alfabetiza e até
nos ensina a morrer. Enquanto nos ensina sobre a palavra, o livro
nos ensina também sobre o silêncio. O advento da leitura silenciosa
vem, segundo Alberto Manguel, após a popularização dos volumes,
mas desde a sua gênese, voz e letras andam uníssonas sendo
proclamadas em alto e bom som. Já haviam registros de leitura
silenciosa no século V a C. Em Hipólito, de Eurípedes e em Os
Cavaleiros, de Aristófanes, aparecem referências a uma leitura
silenciosa. Nos mosteiros, ela foi incentivada em diversas ocasiões,
mas também o seu contrário permanece até hoje. É comum vermos
nos mosteiros beneditinos e cistercienses, durante as refeições, um
monge lendo em voz alta enquanto os demais ceiam.
18. Alberto Manguel, que escreveu o imperdível Uma história da
leitura, em 1996, foi leitor durante anos de Jorge Luis Borges que,
cego, adorava ouvir as diversas narrativas. Manguel leu de tudo
para o velho Borges, dos clássicos aos modernos, de poetas a
romancistas, dos argentinos aos universais. Ao completar cinqüenta
anos, Borges foi nomeado diretor geral da Biblioteca Nacional de
Buenos Aires, que contava com mais de oitenta mil volumes. Neste
mesmo ano, ele ficou cego. Conta-se que o velho argentino
costumava passear sozinho pelo prédio, entre as prateleiras,
deixando-se perder nos labirintos de papel do seu Paraíso terrestre.
19. Que tipo de comunicação é o livro? Que realidade é a palavra?
No Eclesiastes diz: ―Toda palavra é enfadonha, e ninguém é capaz
de explicá-la‖. Será que a comunicação não passa de balbuceios,
pedaços de diálogos em busca de encaixe? Visto assim, será
possível mesmo a comunicação? A comunicação não será apenas
fragmentos de linguagem soltos no ar, como polens de flor?... 87
20. Falar então com fragmentos,
falar com pedaços de palavras,
já que pouco ou nada serviu
falar com palavras inteiras.
(Roberto Juarroz)88
21. Como é possível comunicar-se? Como se pode ser escutado?
Quando saio do inferno para o espaço aberto? Sou o mais
escondido dos escondidos.
(Nietzsche)89
22. Saber ler o livro do mundo é uma arte tão difícil quanto saber o
livro das letras. Alguns não sabem ler a própria vida, mas sabem
reconhecer os caminhos como nenhum outro. Mas como é possível
saber reconhecer caminhos e não ir pela estrada certa?
23. Um mestre barqueiro vivia bêbado. Mas ninguém na velha
aldeia sabia melhor do que ele a arte da navegação. Como vivia
bêbado, ele não saía de terra. Estava sempre nos botecos, enchendo
a cara. No entanto, só ele na aldeia era quem sabia fazer
determinada travessia mar afora, de dia ou de noite, sem se perder.
A travessia era perigosa, muitas embarcações já haviam afundado,
muitos marinheiros deixados filhos órfãos, várias naus perdido o
rumo da costa. O mestre barqueiro era por isso um homem
necessário. Quem necessitava fazer a travessia tinha de pagar a ele
antecipado, colocá-lo no barco, bem sentado – porque ele não
aceitava manipular o leme – com algumas garrafas de cana do lado.
E ele entornava todas. Para reconhecer onde estava, os outros
marinheiros apanhavam no oceano uma bacia d‘água, recolhiam
um pouco dela, e mostravam para o mestre barqueiro. Olhando a
água posta na bacia ele era capaz de dizer a direção, o tempo de
chegada e de partida, a distância e as condições de navegação.
Ninguém nunca entendeu que técnica aquele velho homem utilizava
para fazer a perigosa travessia. Homem do mar, ele parecia jamais
perder o fio que o ligava à terra. Ao chegar em terra, feliz, parava
no primeiro bar do cais e contava história de marinheiro.
24. Que fazer para decifrar caminhos? Quais os códigos, as formas
corretas de leitura, os modos adequados de interpretação? A ciência
é a linguagem da interpretação da natureza mas, e a ciência da alma
de cada um de nós, quem poderá decifrar?
25. Um signo somos, indecifrado,
Sem dor somos, e em terra estranha
Quase perdemos a fala.
(Holderlin)
26. Como fazer para decifrar uma flor? Na linguagem das coisas
sublimes, existe uma mensagem posta ―no ar‖. Em cada pólen solto
ao vento há uma carta, escrita em papel-pétala, mas que (quase)
ninguém sabe interpretar. Quantas são as pétalas de uma flor? Acho
que uma flor é como um livro. Tem mais pétalas do que leitores.
Nunca pára de dizer o que tem para dizer. Quem escreveu a pétala?
Um copista perfumado.
27. Diálogo na Montanha
Perguntais por que moro na verde montanha.
Intimamente sorrio, mas não posso responder.
As flores do pessegueiro são levadas pela
água do rio...
Há outro céu e outra terra, para além
do mundo dos homens.
(Li Po)
28. Não é fácil ler a flor, a montanha, os diálogos. Não é fácil
entender a vida, a morte, a terra, a água, o céu e o que está para
além do mundo dos homens. Quem quer entender a comunicação
deve primeiro aprender a ler, e ler muito... Talvez necessite depois
aprender a escrever; a escrever na alma com as tintas da experiência
e a pena do coração.
29. Quem pensa o mais fundo, ama o mais vivo.
(Sócrates)
30. Para as almas, a morte é tornar-se água, para a água a morte é
tornar-se terra; todavia, da terra provém a água e da água, a alma.
(Heráclito)
31. Ler espaços interiores.
Há quem saiba ler íntimos
como quem olha uma página de jornal.
Outros, como se lê uma folha em branco,
alguns, mesmo analfabetos, sabem mais,
decifram os códigos da intimidade
como quem soletra a voz do nada.
Assim,
acompanham-se de nuvens sem chuva.
emprenham-se de vazios aureolados.
32. O pior de todos os cegos é o que não quer se iluminar.
33. Há alguns anos, pergunto a todos os jornalistas e publicitários
que conheço: ―em que a comunicação tornou você mais sábio?‖
Quando posso, peço a resposta por escrito. E assim venho ao longo
do tempo juntando comigo um conjunto de respostas que apontam
senão para uma sabedoria da comunicação, para alguns saberes que
parecem às vezes nada ter com o jornalismo ou a publicidade. É
inegável a importância dos saberes técnicos nesse meio, mas, no
momento, não é esse o foco a me interessar aqui. Este texto não se
dirige, portanto, àqueles profissionais do mercado nem aos da
academia, mas a todos os que escolheram a comunicação (seja ela
em que nível for) como meditação em suas vidas. 90
34. O primeiro desafio a que me colocava era responder a pergunta:
o que é se tornar mais sábio? Escolhia para os que me indagavam
um caminho poético, proposto por Roberto Juarroz e Ítalo Calvino
em suas obras, dizia simplesmente: ―o desafio do autoconhecimento‖. E aí completava: ―em que o jornalismo, a
publicidade, o marketing, as relações públicas tornou você mais
sábio, fez com que despertasse em você a necessidade da busca
pelo auto-conhecimento, já que me parece que essa busca é própria
do humano?‖ A grande maioria a quem perguntava não sabia
responder ou não havia se colocado tal questão ou não se
interessava pelo assunto. Isso me levou a pensar que o autoconhecimento e a sabedoria não tinham mais o mesmo status de
outrora quando, para os antigos, era a única busca e o único desafio
para o qual importava viver. Não posso desconsiderar tais questões
simplesmente porque muitos por elas não se interessavam. A meu
ver, o auto-conhecimento é um valor fundamental seja em que
época for.
35. A minha pergunta inicial, acho, não se restringe à comunicação
e vale para todos os campos do saber: letras, contabilidade, direito,
administração, medicina, farmácia, engenharia, veterinária, turismo,
ciências sociais, etc. Até parece – ironia das ironias – que o
conhecimento nos afastou do conhecimento de nós mesmos.
Tornamo-nos objetivos e utilitaristas demais: mercado, mercado,
mercado... Esquecemos, no universo do conhecimento e da
informação, da dimensão do auto-conhecimento. Ironia das ironias!
36. Para os que encontravam na comunicação dimensões de
sabedoria, as respostas à minha questão apontavam invariavelmente
para longe do conhecimento técnico, caindo ou resvalando nos
saberes primeiros que fundamentam o campo. A partir dessas
respostas, fui alinhavando as minhas conclusões que ora apresento
aqui sob a noção de uma Comunicosofia. Como essa pesquisa não
foi quantitativa, não esperem definição de público, nem estatísticas
ou coisa que o valha. Sou daqueles que acreditam que dados – mais
do que diagnosticar parcialmente – servem para pensar globalmente
outras questões além daquelas apontadas na pesquisa. Por isso,
pergunte você mesmo a quem você conhece em que o jornalismo ou
a publicidade o tornou mais sábio. Talvez você encontre uma ou
outra idéia aqui explorada. As questões a seguir, não representam
nenhuma novidade revolucionária, querem apenas meditar um
pouco sobre a real importância do conhecimento comunicacional
em nossas vidas.
37. Gostaria primeiro de rejuntar cacos de cultura e de história para
montar aqui uma arqueologia da partilha como estrutura dialógica
fundamental da humanidade. Mas isso é tarefa para uma vida
inteira. Talvez possa dispor de uma vida inteira para a tarefa de
rejuntar cacos, tendo a comunicação como cola, grude, amálgama a
fundir e ajustar as partes desconexas do mundo e do homem. A
capacidade de partilha da comunicação foi o primeiro dos saberes
elencados a partir da pergunta inicial. E, ao pensar mais
detidamente neste aspecto, entendo que o homem não pode ser
mesmo definido sem esta dimensão básica que é a partilha ou, mais
precisamente, o com-partilhamento. Um dos fundamentos ecoexistenciais da comunicação está no duplo caminho: aceitar a
partilha ou recusar a partilha. Talvez pudéssemos até contar a
história humana a partir desses caminhos e associar à ausência de
partilhas, guerras, fomes, pestes, toda a sorte de egoísmos,
totalitarismos, corrupções, crashs financeiros, etc, e, por outro lado,
solidariedades, comunicações libertadoras, manifestações artísticas,
etc, como entrega, aceitação e promoção de uma boa vontade
convivial. É possível uma convivência ou um diálogo sem partilha?
O diálogo é um dos fundamentos da cultura e torna-se alicerce de
tudo isso por ser, por excelência, a práxis constituidora de vínculos
os mais diversos: intelectuais, morais, sígnicos, espirituais... É por
ver o homem impossibilitado de dissociar-se da dimensão do
compartilhamento que entendo que a antropologia deveria ir além
da idéia de um homo symbolicus, reconfigurando a identidade
humana a partir de um homo comunis.
38. O homo comunis é um ajuntador de cacos. Sincrético por
natureza, faz do diálogo o meio para tudo interligar, tecendo
objetos, assumindo os vínculos e os nós eco-existenciais. É um
complexeur, isto é, um tecelão, um costureiro, um cozinheiro. Um
bricoleur, nos dizeres levistrausianos. O homo comunis desenha-se,
como dissemos, a partir da prática do que lhe foi sempre inerente: a
aceitação da partilha ou a recusa dela. Grande costureiro de
sentidos, o homem borda continuamente palavras dentro de si,
caseia imagens, descostura e recostura realidades. Mas, às vezes, o
que costura de manhã, descostura à noite, como Penélope.
39. Por todos os lados, ouvi que a comunicação é uma
epistemologia da abertura sistemática. Como metodologia, acabei
entendendo-a – depois de muito meditar – como uma atitude de
religação sistemática. Posso dizer isso costurando alguns fios das
histórias que li e ouvi que apontavam nessa direção. O homem é
uma reunião de mundos, diz Boris Cyrulnik, pois reúne em si os
genes da mãe e do pai, partilha, depois, por nove meses, do
alimento ingerido pela mãe, está unido a ela de tal modo que um e
outro estabelecem uma comunicação amorosa essencial ao
desenvolvimento de ambos, para, em seguida, ao nascer, ter início
uma outra história de partilha. Agora se dá a partilha do pão na
mesa, do leite, da educação, dos saberes ancestrais. Com o tempo, o
homem descobre a duras penas que é um ser só no mundo, mas
também aprende que não está só. Aprende a dividir espaços, a
trocar palavras, a negociar companhias, a permutar idéias, a
estender o seu afeto a outros, a acolher o coração alheio, a abraçar o
tempo que, mais cedo ou mais tarde, o destruirá. Mas o homem não
partilha a vida e a morte apenas com outros seres humanos, há
também o si-mesmo a quem ele deve acompanhar
irremediavelmente por toda a vida (e talvez na morte também) de
modo que existe a possibilidade de nunca se livrar dele mesmo, o
que é ao mesmo tempo trágico, cômico e reconfortante. Mas a
partilha não termina aí. Ele comunga também com a pedra, o
plástico, o figo, o papel, o moinho, o sapato, a traça, a lamparina, o
vidro, divide o espaço do mundo, o seu calor e atenção, com todos
os objetos e seres que o envolve, porque o mundo é uma grande e
louca feira. O homem partilha assim simbioticamente com todas as
dimensões da vida, mas não costuma se ver como um ser de
partilha, mas como um ser de posses, de poder, arraigado em si
mesmo, egoísta e mesquinho. Esse é o outro lado do homo comunis;
o lado que não põe em comum.
40. Ainda na mesma costura, medito o significado do fato de que,
em certas tribos indígenas, as crianças mastigam o alimento para os
velhos que não possuem dentes na boca. Além da generosidade em
sorver o alimento para que o outro permaneça nutrido, aqui há uma
oferta ainda mais humana: a saliva. A troca de salivas, mas também
de cheiros, sussurros e secreções, dentre outras viscosidades
afetivas, fazem parte da partilha do amor sexual. O amor aqui é a
dimensão primeira e essencial para isso que poderíamos chamar de
uma epistemologia do compartilhamento e da abertura. Ninguém
ama se não se abrir. Em outras tribos, todos os parentes tocam as
crianças até uma certa idade, como forma de lhes ofertar um pouco
de pele, assim, o toque constitui-se num alimento essencial ao
desenvolvimento afetivo e psicológico delas. Ainda hoje, no oriente
e na África, é comum que, nas refeições, os alimentos sejam
servidos em um prato comum, assim como se praticava no medievo
europeu. Nesse caso, havia na Europa certas regras básicas como a
obrigação de servir-se do primeiro pedaço que encontrasse, de não
ficar escolhendo partes, a necessidade de limpar a colher antes de
passar ao outro – isso quando os alimentos não eram comidos com
as próprias mãos. Partilhar um prato comum é mais do que partilhar
o alimento comum, é estar frente a frente com aqueles que
convivemos, assim, a abertura ao diálogo ganha novamente a cena.
Após a ceia ou durante ela, partilhavam-se vidas e histórias. A arte
de contar histórias após ou durante o jantar é tão antiga quanto o
próprio homem. Remonta aos primórdios quando o meio-homemmeio-simiano reunia-se em volta do fogo, vislumbrando ali diante
dele a caça, mas também as estrelas e os raios do céu. Neste
cenário, nasceram as primeiras narrativas. Na África, ainda hoje, é
comum observar nas vilas velhos e jovens reunirem-se após o jantar
para contar histórias. Lá, existem os contadores oficiais de histórias,
geralmente anciões ou iniciados. Contudo, nada impede que alguém
possa pedir licença e contar a sua própria história. A história como
partilha e a narração ou contação como testemunho da saga humana
sobre a terra foi um dos elementos mais tocados nas entrevistas que
realizei. Boa parte dos entrevistados apontavam ―a narração‖ como
um elemento da sabedoria da comunicação. De fato, a comunicação
humana, em seus vários matizes, técnicos ou não, desenvolveu
sobremaneira a capacidade de contar histórias: novelas, filmes,
peças publicitárias, peças teatrais, livros, sites, diários virtuais,
programas de rádios, músicas, tudo parece nos contar, por todos os
lados, histórias. Contudo, esse aumento da capacidade de contar
histórias não quer dizer que tenha fomentado o auto-conhecimento.
Afinal, como bem disse Walter Benjamin nos ensaios Experiência e
Pobreza e O Narrador, a cultura de massa parece ter diminuído
nossa capacidade de imaginar e viver experiências fundamentais, já
que temos tudo pronto e enlatado.
41. Não é segredo para ninguém que a palavra comunicação deriva
da palavra comunis que, acrescida do sufixo ie, fazer, tornar, dá-lhe
o sentido de um ―fazer comum‖. Também não é segredo para
ninguém que comunidade e comunicação têm o mesmo radical. O
que não parece claro, no entanto, é que tenhamos explorado
suficientemente, seja na cosmontologia, seja na antropologia, a
possibilidade do homo comunis, aquele gênero engendrado em
torno da convivialidade das trocas e compartilhamentos, e que
podemos definir também como um sujeito-aberto-propenso-àpartilha. Mas, como sabemos, a história do homem como sujeito
voltado para o diálogo não é nova nem recente. Martin Buber, Paulo
Freire, Jurgen Habermas, David Bohn e Edgar Morin, entre outros,
já insistiram nisso. Sobre o problema da participação, da igualdade,
das trocas lingüísticas, do poder, etc, já sabemos de suas derivas e
necessidades. Talvez o que precisamos ter em mente agora é a
necessidade de uma volta à sabedoria dentro das sete dimensões
básicas do indivíduo: intelectual, emocional, espiritual, físico,
social, comunicacional e criativo. Tanto o diálogo como a ausência
dele foram apontados também como relevantes no desafio da
comunicação que busca a sabedoria. Muitos comentavam: ―A
comunicação tem de voltar a investir no diálogo‖. Novamente, que
ironia, pensava, como pode haver comunicação sem diálogo?
42. Dia = através de, dois, e logos = palavra, conhecimento, é a raiz
etimológica que principia a busca da sabedoria através dos saberes
da comunicação. Mas que saberes, além da prática do diálogo
podemos aqui vislumbrar? São muitas as formas de diálogo:
consigo, com o outro, com as materialidades (os objetos presentes
na natureza) e com as imaterialidades (seres, entidades, forças
invisíveis e divindades). Em algumas dessas dimensões, o homem
apenas engatinha no seu conhecimento. É certo que já sabemos
muito de nós mesmos, das sociedades, da cultura, do nosso
organismo físico.... Mas muito ainda temos a aprender. Para não nos
estendermos em todos esses campos, gostaria de citar aqui apenas
uma única dimensão esquecida pela formalidade acadêmicocientífica da comunicação: trata-se da transcomunicação.
Considero que o acesso direto ao outro pela palavra falada faz com
que o diálogo frente a frente com um Guia espiritual, por exemplo,
numa seção de Umbanda seja uma das maiores revoluções
comunicacionais do século XXI. O homem e os espíritos dialogam
não mais em sentido figurado, mas agora em sentido físico. Assim,
o homem tem acesso a si mesmo através de um Guia espiritual e,
com ele, pode chorar, rir, conversar, pedir auxílio, ouvir. A
conversação aqui diversifica-se porque o homem lida com o
universo ordinário do cotidiano e com o cosmo extraordinário dos
deuses, presentes em Terra através de seus representantes. Em todas
as escolas psicológicas sabemos da importância da palavra e do
diálogo no tratamento de qualquer sintoma. A própria medicina já
aponta como solução de muitos males orgânicos, a atenção, o
carinho, o toque e a capacidade de ceder a palavra ao outro. Essa
forma de gerenciar artisticamente a vida (que a biologia moderna
chama de Bionomia) utilizada pela Umbanda, faz com que o outro
se sinta sujeito de sua própria história. Tudo isso sem contar outros
níveis artísticos como a contemplação da natureza, base mesmo do
próprio princípio Theos, de abstração, elevação e ideação presentes
nos conceitos de teoria, teologia, teosofia, teogonia, etc. Em todos
esses níveis, a sensibilidade para a absorção, aprendizado e troca
com o outro figura como manifestações de fundo.
43. Se por um lado a comunicação facilita o entendimento e a
compreensão, por outro provoca ruídos e ignorâncias de toda
ordem. O número de informações disponíveis em nossa sociedade
não ampliou o entendimento mútuo. Elevou-se o número de
informações, mas o mesmo não ocorreu com a compreensão. O
problema da comunicação não é só a mensagem, a emissão ou a
recepção, mas o entendimento. Por isso, em certo sentido, a
comunicação deve valorizar a tradução como parte facilitadora ao
entendimento. Ela pode ser uma via magnífica de acesso a si mesmo
e ao mundo. Costumo dizer, para descontentamento de muitos, que
o jornalismo e a publicidade poderiam ser estudados dentro dos
cursos de Letras, num departamento de Tradução. Pois a
comunicação exige sempre tradução. Em todas as suas vertentes, ela
é social e humana, além do que, como a tradução, trai o sentido
sempre, aproxima, diz quase a mesma coisa, como observou
Umberto Eco recentemente.
Os tradutores são agentes da
compreensão, pontes e canais de acesso ao sentido e à mensagem,
devem, por um lado, obediência (ob audiare, saber ouvir) ao
conteúdo, por outro, vivem o ‗inferno das formas‘ possíveis do
dizer e do expressar. Assim como o jornalismo e a publicidade, a
tradução necessita de técnica, de dom e de criatividade. Hugo
Zemelman ao escrever Los horizontes de la razón, insinuou que
toda comunicação é tradução por exigir sempre decodificação, em
todos os níveis. Para ele, são quatro as racionalidades humanas: o
pensamento em si, a oralidade, a escritura e a imagem. Do pensar
para o falar ou para o escrever exige-se um processo de tradução,
ordem e compreensão; da imagem para a fala, a escrita ou o
pensamento, o mesmo; da fala à escrita e ao pensamento, a mesma
coisa e assim por diante. De um pólo a outro, vivemos traduzindo.
Poderia acrescentar aqui uma outra racionalidade um tanto
esquecida pelo filósofo mexicano, e que exige, da mesma forma,
tradução: a sensibilidade. Inclua-se aí o nível da experiência. Talvez
nada seja mais difícil do que traduzir sensibilidades. Se isso já é
complexo do ponto de vista subjetivo, que dizer da vida social?
Assim como a leitura de um texto, do mundo e de si, a fala, a
imagem, o pensamento, a experiência e a sensibilidade exigem um
processo contínuo, ordenativo e sistemático de agrupar níveis de
compreensão dentro de níveis de compreensão. Talvez seja por isso
que é tão difícil ao homem o entendimento. É certo que a técnica da
tradução é um dos saberes necessários ao entendimento humano,
um saber de fundo, que subsidia outros saberes, o problema é que
torná-la o centro das atenções (e dos projetos pedagógicos) é um
equívoco. Até mesmo a técnica necessita ser compreendida, resituada, precisamos por isso compreender o papel da técnica e não
sermos dominados por ela. Compreender ao outro, ao mundo e a si
mesmo exige portanto esse saber ouvir os reclames da palavra e do
silêncio, sem medo de enfrentá-los.91
44. Devemos ter esperança no homem? Os horrores que ele provoca
parecem não ter fim nunca. Esse estado de coisas nos deixa um
tanto perplexos e divididos. A dimensão política é uma arte de
difícil acesso e prática, mas inevitável. Definitivamente, acho que
viver em comunidade/sociedade é um saber que não aprendemos
ainda. Joel de Rosnay, no ensaio O homem: gênio individual, idiota
coletivo salienta que os insetos sociais (formigas, cupins, abelhas e
outros) sabem viver socialmente porque renunciam à sua
individualidade, enquanto nós, por não renunciarmos a ela, não
sabemos viver assim. Mas temos mesmo de renunciar para aprender
a viver em comunidade? A poesia e o imaginário parecem ter
perdido total espaço na política, que se tornou sinônimo de
negociação (quisera fosse uma negociação a la Habermas) e de
poder (como definiu Foucault e Bourdieu, entre outros). Talvez, se
Platão pudesse reformular a sua República, expulsasse desta vez os
políticos profissionais e não os artistas. Talvez até sugerisse os
poetas no poder. Talvez seja isso, a política se tornou sinônimo de
poder e não de relação em prol da convivialidade, da integração e
das necessidades humanas. A política de comunicação virou estudo
de leis e normas legais, nem sequer se lida mais com a dimensão
primeira, a dos relacionamentos, nem com a dimensão comunitária,
a sua teleologia.92
45. Em que pese o fato de comunicação e comunidade terem o
mesmo radical, o comunis, e visarem o mesmo homo, ambas
parecem não mais dialogar. Até parece que a noção de relações
sociais, tão cara a todas as ciências sociais, se perdeu no seio do
pensamento comunicacional, relega-se ela à sociologia e depois não
se fala mais nisso. Talvez por não saber onde ela está ou por não
saber o que significa isso. Não, a comunicação sabe bem o que
significa e lida com isso restringindo-a a grife ―mídia‖ eletrônica,
impressa, digital, etc, apresentando-se, por sua vez, como uma
especialidade, o ramo de compreensão midio-tecnológico às
ciências sociais. O problema é que a questão comunitária ultrapassa
essa redução que o pensamento comunicacional lhe agrega. Se a
comunidade apareceu nas respostas das minhas entrevistas como
um valor e um saber a ser destacado, é porque a comunicação não
perdeu de todo o seu sentido político-relacional. Não é só lazer,
informação, coesão social, democratização de temas, crítica, o que
ela deve nos oferecer através da mídia, mas formas de partilha
radical para o desenvolvimento comunitário. Mas essas formas de
partilha buscamos não é de hoje e não é de hoje que nos
atrapalhamos todos em interesses, necessidades e contradições tão
presentes e inerentes a qualquer processo político-comunicativo.
46. Vivemos na sociedade da palavra vulgarizada. Nem nos damos
conta mais do valor e do cultivo do silêncio. O silêncio envolve a
palavra e a palavra, uma única que seja, diz o poeta Roberto
Juarroz, é uma ―casa de espelhos‖, um mistério com muitas faces e
perspectivas. Talvez o essencial de toda a palavra e de toda relação
seja o seu silêncio, já que é bem possível que uma palavra nada
explique.Silêncio e palavra: muitas vozes no corpo do texto da vida,
dois fios distintos cosendo a mesma tessitura: a da vida e suas
relações. Muitos diálogos são um itinerário rumo ao silêncio que,
por sua vez, não é só um passivo inexpugnável, encena um valor
precioso, absoluto, já que no fundo de toda dificuldade de
comunicação habita uma zona de silêncio. Quem, no diálogo, não
está preocupado em fazer afirmações, mas em colocar demandas,
perguntas e possibilidades, ganha em abertura. O problema é que
nesse caminho reflexivo a ruminação nos leva a um território
desconhecido, distante dos percursos seguros.93
47. A arte de calar, certamente, é mais difícil do que a arte de falar,
mas a dificuldade de falar amplia-se para quem, no diálogo,
impossibilita a diversificação dos pontos em comum, base para o
entendimento. O ponto em comum reside no fato de que a
continuidade entre uma conversação e outra (ou entre um silêncio e
outro) depende da possibilidade ou impossibilidade de comunicar
algo a alguém, assim como depende da distância dos elementos
comuns, como a herança biológica, dos elementos cíclicos, dos
elementos irreversíveis e dos elementos de diversidade, que cada
época traz consigo, a depender da herança histórica. A continuidade
acontece sempre de um modo ou de outro (seja por mímese ou por
rupturas), mas a distância (entre as gerações, por exemplo,
permanece). Mesmo assim, a comunicação possibilita sempre
pontos em comum, identificados tanto na herança biológica quanto
na herança histórica, tanto nos elementos cíclicos quanto nos de
diversidade. Assim, meio discurso e meio silêncio complementamse como formas de garantir o fluxo e a coerência dos sentidos e são,
ambos, necessários para a emergência da comunicação.
48. O silêncio não aparece apenas como fonte de onde brota a
linguagem, mas como algo que pode expressar para além da
linguagem, apresenta-se como o pano de fundo de toda a
comunicação humana, como uma arte difícil de exercitar, porque
urge perscrutar nela os reclamos da própria linguagem. Com a
palavra, podemos influir positivamente nos acontecimentos, mas
também aumentar o trânsito, o ruído e a confusão. Com o silêncio,
podemos pecar também pelo excesso (o excesso de reserva) de tal
modo que meio a meio, silêncio e discurso parecem desemparelhar
e reaparelhar o sentido da comunicação. É ao silêncio ou à palavra
que tende toda a linguagem? ―É o silêncio a pontuação da voz ou a
voz a pontuação do silêncio?‖, diz Juarroz. Se todas as relações
tendem a se desemparelhar e reaparelhar no silêncio e nas palavras,
uma pontuando a outra, ambas responsáveis pela manutenção do
fluxo comunicativo, deveríamos dar mais atenção aos ensinamentos
advindos dessa relação: contemplação, auto-reflexão, meditação,
desejo de invisibilidade, conhecimento e auto-conhecimento.94
49. A dimensão holística e espiritual apareceu de forma
surpreendente em várias das respostas dadas. Uma delas dizia: ―Há
uma dimensão/saber pouco ou nada explorada, é a dimensão
espiritual, a dimensão dos mediadores ou médiuns como dizem.
Não serão eles também formas de mídias?‖, dizia uma resposta que
recebi por escrito. Outras se manifestaram na mesma direção,
destacando que cabe à comunicação investir na heterodoxia.
50. A espiritualidade é um processo de vitalização, internalização e
externalização de forças e energias no seio da humanidade; é um iralém-comunicativo que é meramente terreno e que em si seria
destinado à caducidade. A concepção moderna de mundo, elaborada
a partir da física quântica de Niels Bohr e da teoria da relatividade
de Albert Einstein em combinação com o princípio da
indeterminação de Werner Heisenberg, sugere representar o mundo
como uma complexa combinação de energias. Tudo, no fundo, é
energia, dizem essas concepções. A própria matéria é um momento
da energia que se cristaliza e o universo das energias é constituído
por um tecido de relações. Emerge assim uma espiritualidade
segundo a qual o que é humano só pode ser definido a partir de uma
integração do homem com as plantas, as águas, o ar, os animais, os
outros homens e as condições saudáveis de vida material. Tudo
interage,
e se tudo interage, tudo possui um vínculo de
comunicação. Até as pedras possuem sua lógica de interação. Elas
são mais do que simples composição físico-química, estão em
contato com a atmosfera e influenciam a hidrosfera, interagem com
o clima e se relacionam com a biosfera. Sem contar que as pedras
podem falar ao imaginário do poeta e ao coração do místico, podem
passar mensagens de fortaleza, força, majestade, grandeza,
solenidade e paciência. Por volta dos anos 30 do século XX,
Theilhard de Chardin havia intuído que, quanto mais avança o
processo evolucionário, mais ele se complexifica, mais se
interioriza; quanto mais se interioriza, mais consciência possui e
quanto mais consciência possui mais se torna autoconsciente. Por
isso a espiritualidade tem também como característica a autopoiesis.
A capacidade e a força da auto-organização. A autopoiesis é
fundamental para entender a comunicação pois há uma sinfonia
secreta acontecendo a todo momento em todos os corpos com vistas
ao equilíbrio, como se o universo inteiro fosse regente de uma
melodia de encontro que o une o ínfimo com o máximo, o dentro
com o fora, o visível com o invisível.
51. Como tudo evolui, a comunicação também evolui. Pode ser que
parte da sua evolução no século XXI aponte a dimensão espiritual.
Nesse sentido, os médiuns ou mediadores são um vasto campo de
estudo porque são senão mais sensíveis, mais abertos a esses
contatos. Têm a capacidade de pôr em relação o mundo visível com
o invisível. Esses mediadores são canais pelos quais passam os
fluídos energéticos, eles podem, por conseguinte, sofrer com o
ruído, falhas, confusões e estão sujeitos à segunda lei da
Termodinâmica: a entropia. A entropia é o grau de desagregação de
um sistema, enquanto que, na primeira lei da termodinâmica, todo
sistema tende ao equilíbrio, na segunda, ele tende sempre a se
desestabilizar. Os mediadores são canais que podem estar sujeitos
também à redundância. A redundância é o grau de recorrência de
uma mesma informação sobre o sistema, assim, quanto mais
retroação da informação (energia) sobre o canal (mediador), tanto
mais inteligibilidade. Caso haja ruído, esse entendimento é
prejudicado. As formas de ruído são as mais diversas e podem
ocorrer sob diversas circunstâncias, desde a interferência do canal
até a ininteligibilidade da informação.
52. O amor talvez seja a forma mais elevada de comunicação, por
não prescindir da experiência sensível. É um mover-se rumo a si
mesmo e ao outro; construção de vínculos e ligações valiosas que
infundem na vida o desejo de mais vida. Amamos de muitas formas
diferentes e, mesmo aquelas mais complexas, implicam um certo
grau de interação-integração. Integração consigo e com o outro é
algo que exige tempo e paciência, dois valores que parecem ter se
perdido no turbilhão da sensibilidade humana. O encontro amoroso
não é apenas um mero encontro, mas uma trama secreta do destino,
do tempo e do próprio coração. Quando duas pessoas começam a se
aproximar movidas por um magnetismo qualquer, que nome, rótulo
ou classificação poderíamos dar ao que move esse encontro, senão
comunicação? Talvez, no amor, devamos deixar um espaço
reservado para o que excede os limites da lógica. E a comunicação
quer ser lógica demais, quando nem sempre tem condições de sê-lo!
Talvez o amor devesse ser explicado a partir dos limites da
comunicação de corpos, sensibilidades, racionalidades, e do que
excede esses limites. Assim, deixaríamos um espaço para um saber
menos pretensioso e arrogante. A verdadeira comunicação amorosa
é sempre partilha. Inerente ao homo comunis, implica na aceitação
do outro sem exigências pois é inimigo da tirania e do abuso, abre
um espaço para a cooperação e não à apropriação. Sem o amor não
somos seres sociais, diz Humberto Maturana. Como fundamento do
tecido social, trata-se de um domínio qualquer nas interações que o
faz durar somente enquanto persistir, encerrando em si o que ele
tem de mais pontual a ensinar à comunicação: as virtudes da
cooperação.
53. Todos esses tópicos suscitados aqui apontam para velhas - mas
sempre atuais - questões da comunicação: partilha, abertura,
diálogo, compreensão, comunidade, silêncio, espiritualidade, amor
são temas recorrentes, uns mais outros menos, que, por vezes,
vemos serem abordados e novamente tematizados. Outra não foi a
intenção desta meditação reflexiva. Se penso uma contribuição
conceitual e existencial da comunicação em nossos dias, ela parte
de uma retificação de caminhos. Uma epistemologia fundamental
requer que se reconheçam as bases onde se assentam os
conhecimentos comunicacionais. É certo por isso que poderíamos
ter ampliado o leque de temas a partir das respostas dadas: as
questões da técnica, do uso da palavra, da contação de histórias
(minimamente abordada aqui), das organizações, da informação
propriamente dita, etc. Sem dúvida, poderíamos destacar aqui
muitas outras formas de busca da sabedoria através dos elementos
presentes na comunicação, mas preferimos destacar apenas esses
oito como pontos de partida para novas explorações. É certo que os
campos profissionais não estão hoje associados ao desenvolvimento
da sabedoria humana, muito embora não exista conhecimento que
não possa ser trabalhado em seus conteúdos eco-existenciais. O que
chamamos de comunicosofia portanto não é nada mais do que uma
busca, um desafio e uma tentativa de reformar o pensamento
comunicacional, repensando-o noutro patamar, menos técnico, mais
humano e relacional, mais aberto, integrador das diversas faces da
nossa existência comunis.
54. Talvez por termos uma existência comum é que a política seja
algo tão importante em nossas vidas. Cegas para a poesia e a arte
tem sido, sem dúvida, a política. Há quem diga, como Juarroz, que
política e poesia não se misturam. Mas eu quero duvidar. Há quem
aposte numa Poe-política, uma dimensão artística da vida prosaica
ou uma dimensão lúdico-artística da vida social. Quem viu uma
dimensão peculiar à política foi Huizinga ao resgatar um sentido
medieval, perdido (e talvez até falso) do termo. Ele via em poli a
tradução para multiplicidade e em icos a idéia de guardião. Nesse
sentido, político seria o guardião da multiplicidade entre os homens,
o protetor da diversidade.
55. polis = cidade; icos = guardião também explica o termo.
Invertendo Platão, poderíamos dizer que os políticos é que deveriam
ser expulsos da polis pois corrompem a alma da cidade.
56. O homem inventou mil formas de governança. Conselho de
sábios, anciãos, tiranias, autocracias, aristocracias, cosmocracia,
teocracia, democracia. Mas nem sempre essas formas relacionaramse com a sabedoria. Poder e política quase sempre confundem os
homens e quase nunca se dissociam. Poder, política e sabedoria,
contudo, quase nunca, infelizmente, se relacionam. Os antigos
egípcios tinham, em matéria de política, uma máxima: ―tudo pelo
povo, nada com o povo‖.
57. Dois vocábulos gregos são empregados para compor as palavras
de que designam os regimes políticos: arché: o que está a frente, o
que tem comando; e kratos (cracia). Assim, podemos desenhar:
monarquia: governo de um só; oligarquia: governo de alguns;
poliarquia: governo de muitos; anarquia: governo de ninguém;
autocracia: poder de uma pessoa reconhecida como rei; aristocracia:
poder dos melhores; democracia: poder do povo.
58. É político o regime no qual os governantes estão submetidos às
leis. Quando a lei não coincide com a vontade pessoal e arbitrária
do governante, não há política, mas despotismo e tirania. Quando
não há lei de espécie alguma, não há política, mas anarquia. Um
regime é legítimo quando, além de legal, é justo (as leis são feitas
segundo a justiça). Os regimes se transformam de acordo com as
mudanças econômicas e as guerras: aumento do número de ricos ou
de pobres, conquista de territórios, etc.
59. A política é também gestão de informações, ações e homens.
Arte dos riscos, para muitos a política não passa de administração
pública. Administração é ação coordenada, por vezes técnica,
enquanto a política é coordenação da coordenação, simultaneamente
arte e técnica, administração e para-administração, gestão de ordem
e caos, relação e negociação, sonho e ação, ética e estética.
60. Política e circo sempre se relacionam. Do ―pão e circo‖ dos
gregos até o circo da mídia das campanhas eleitorais, até a intenção,
velada ou não, de fazer do povo palhaço, passando pelo jogo de
cena, ilusionismo, adestramento de mentes, etc. Política não é circo,
mas exercício ético, exercício de táticas e estratégias, meios e fins.
Deve ser por isso que alguém uma vez perguntou ao professor:
―Mestre, se teocracia é o governo de deus, democracia é o governo
do demônio?‖
61. Quem dera os políticos soubessem ler os polens. Perceberiam as
sutilezas que existem nas coisas antigas. Isto porque os polens têm a
idade da terra, registram os lugares, depositam-se sobre o mundo
para nunca mais sair. Quem dera o mundo fosse governado por
artistas e médicos de alma. Filósofos espirituais são os poetas.
Embaixadores doutras dimensões.
Sobre o autor:
Gustavo de Castro e Silva nasceu em Natal, Rio Grande do Norte,
em 1968. Formou-se em Jornalismo pela UFRN e, após concluir a
graduação, virou monge franciscano. No seminário, estudou
filosofia, teologia e mística espiritual. Após alguns anos, deixou o
mosteiro e dedicou-se à vida acadêmica. Fez mestrado em Educação
e Comunicação, também pela UFRN, e doutorado em Antropologia
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com uma tese
sobre o escritor Italo Calvino. Vive atualmente em Brasília, onde
leciona na Univerisdade Católica de Brasília (UCB) e na
Universidade de Brasília (UnB). É coordenador de pesquisa do
Instituto Hermeum de Ciências Filosóficas e Antropológicas onde
desenvolve uma pesquisa sobre Poesia e Pensamento. Organizou,
em parceria com Maria da Conceição de Almeida e Edgard de Assis
Carvalho, Ensaios de Complexidade (Sulina, 1997); em parceria
com Alex Galeno, organizou Jornalismo e Literatura - A Sedução
da Palavra (Escrituras, 2002) e Complexidade àFlor da Pele
(Cortez, 2003), este, com a contribuição de Josimey Costa. Publicou
com Florence Dravet os livros Sob o Céu da Cultura (2004) e
Arvorescendo - Livro para Espíritos Sensíveis (2005), ambos pela
editora Casa das Musas.
NOTAS
1
Cf. Edgar Morin / Heterologia, segundo Michel Maffesoli, ou
o saber do múltiplo.
2
Cf. Donaldo Schuler.
3
“Rio sem discurso”, de João Cabral de Melo Neto.
4
“Perdemos a noção com-um quando permitimos que o saber se
parta em poços”, Donaldo Schuler.
5
Interação,
informação,
diálogo,
vínculo,
linguagem,
processo, partilha, comunidade, discurso, educação, relação,
manipulação, influência, persuasão, narração, retórica,
farmácia,
atividade
sensorial
e
nervosa,
lementos
desencadeador e delimitador, modelo, formação, compreensão,
entendimento, interpretação, história, mito, cooperação.,
socialização, expressão, tautologia, ecologia, política,
jornalismo, cinema, publicidade, marketing, RP, literatura,
artes...
6
Silêncio
7
“Para lavar velhas mágoas, é preciso beber mil frascos”. Li Po.
8
“O silêncio foi a primeira coisa que existiu...” Arnaldo
Antunes.
9
Roland Barthes, “O Neutro”.
10
Sephirot: substantivo plural, termo da Cabala. Nome dado
às dez perfeições da divindidade, cujo conhecimento é o mais
alto grau
da vida contemplativa. Elas eram: coroa.
Sabedoria, inteligência, força, misericórdia,
beleza,
vitória, glória, fundamento e realeza.
11
Francis Bacon, “Ensaios morais”
12
Para os Donatistas, cristãos cismáticos do Norte da
África, no séc. IV d. C., Agostinho é o modelo de
intolerância.
13
Bacon, “Dignité des sciences”.
14
“Os Silêncios” In: Porta Giratória [livro de Mário
Quintana).
15
Corpo
16
“O corpo e seus símbolos”, de Jean Yves Leloup. “O Corpo
Fala”, de Pierre Weil.
17
In: O corpo e seus símbolos. Prefácio.
18
Emil Cioran, “Livro de las Quimeras”.
19
Filosofia e estética do abraço, de Maria da Conceição de
Almeida. Comunicação como abraço. Complexere (latim) = tecer
/ Complexus (grego) = abraçar.
20
Será isto auto-ajuda? A comunicação serve para auxiliar o
eu e a sociedade a encontrar a paz?
21
O comunicador
22
Fragmentos do Espólio, Brasília: UnB, 2004.
23
Goethe
24
“Synapsis
(conjunção),
significa
contato
físico,
organização de idéias, elaboração de planos, conversa,
entendimento amoroso e, em sentido hostil, colisão de
exércitos”. Donaldo Schuler.
25
Comunicador e tradutor.
26
Do evangelho de São Jerônimo. In: Socráticas.
27
Comunicador-tradutor-criador.
28
Comunicação: a brecha.
29
Henri Bergson, 1888. Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência, PUF, 1946. pp. 123-124.
30
“Considero como sagrada a desordem de meu espírito”.
A
Rimbaud / “Desarmonia sinfônica das almas” Carlos de Sousa.
/ Mia Couto, “Cronicando”, Lisboa: Ed. Teorema.
31
Daimon, palavra grega que significa gênio criador,
instigador. O pensamento católico a traduziu como demônio.
32
Jean Chevalier e Alain Ghreebrant
33
“Quando Deus entendeu a si mesLmo, ele gerou a si mesmo e
à sua antítese”. Nietzsche.
34
“Os nomes não designam as coisas: as envolvem, as
sufocam”. Roberto Juarroz.
35
Michel Maffesoli, Comunidade Localizada, In: Sob o Céu da
Cultura.
36
O nome
37
Homem-anúncio
38
Marca
39
Coisa
40
In: Ontologia da Realidade.
41
Walter Benjamim valoriza a figura do narrador, num texto
homônimo. / Theodor Adorno / Pierre Bourdieu.
42
Retrato Natural/ Mar abosluto. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993.
43
Juremir Machado da Silva, A Miséria do Jornalismo
Brasileiro. Petrópolis, Vozes, 2000.
44
Poesia Vertical, Buenos Aires, Emecé, 1997.
45
O Vendedor de Passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004.
46
“O ser humano deve ser o meio entre a planta e o
fantasma”. F. Nietzsche.
47
Nouveaux essais sur l’entendement humain
48
Roberto Juarroz Poesia e ealidade.
49
Platão, por volta de 386 a.C.
50
Crátilo. 433d. a 435c. Les Belles Lettres, 1969.
51
Friedrich
NIETZSCHE, 1873.
O livro do filósofo, III,
Flammarion, 1969, p. 179. / (1) Chladni (Ernst Florens
Friedrich),
1756-1824.
Físico
alemão
que
estudou
as
vibrações acústicas por meio de figuras de areia.
52
Lewis Caroll, 1871. Do outro lado do espelho, Aubier,
1976.
53
Denis Diderot, por volta de 1765. Pensamentos soltos sobre
a pintura. Garnier Frères, 1877, XII, p. 77.
54
Wilhelm von Humboldt, 1829. Da diversidade das estruturas
da palavra humana e sua influência no desenvolvimento
espiritual da espécie humana, §20.
55
Tractatus Lógico-Philosoficus
56
Decimocuarta Poesia Vertical
57
Ver A Chama de uma Vela, de Gaston Bachelard.
58
Nos vedas, Agni (em sânscrito) é o deus do fogo. o mais
antigo e venerado dos deuses da India. Agni, Voyu e Surya
eram a trindade do fogo. Agni é o fogo na na terra, Voyu é
o fogo na atmosfera como o raio, e Surya é o fogo no céu.
como o sol.
59
Convite à Filosofia. SP: Ática, 1996.
60
Remédio = a palavra cura. Veneno = a palavra mata.
Cosmético = a palavra embeleza e mascara.
61
“A televisão é um chiclete para os olhos”. Frank Lloyd
Wright, arquiteto americano (1867-1959).
62
Poema “Jornal, Longe”. In: Mar Absoluto/Retrato Natural.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
63
Ver sobre isso o texto “Pobreze e experiência”, de Walter
Benjamin.
64
Conferir Marilena Chauí, Convite à filosofia. Para ela, as
hipóteses para a origem da linguagem são quatro: 1. a
linguagem nasce por imitação. Os humanos imitam pela voz os
sons da natureza e, dessas onomatopéias ou imitações, nasce
a linguagem.
2. a linguagem nasce da imitação dos gestos,
pela pantomima ou encenação na qual cada gesto indica um
sentido. Pouco a pouco, cada gesto passa a ser acompanhado
de um som e estes se tornaram gradualmente palavras. 3. a
linguagem nasce da necessidade, a fome, a sede, o abrigo,
necessidade de reunir-se em grupo, formar comunidades. A
necessidade
fez
nascer
palavras
que
exprimiam
essas
necessidades.
Formaram,
a
princípio,
um
vocabulário
elementar,
rudimentar,
gradativamente,
tornou-se
mais
complexo e transformou-se numa língua. 4. a linguagem nasce
das emoções, particularmente do grito, do medo, surpresa e
alegria. Nasce das paixões e, nascendo assim, é primeiro
linguagem figurada e por isso, surgiu como poesia e canto,
tornando-se prosa depois. As vogais nasceram antes das
consoantes, como a imagem nasceu antes da escrita. Primeiro
os homens cantaram seus sentimentos, depois exprimiram seus
pensamentos. Marilena Chauí, op cit, p. 140.
65
“A maior dor do vento é não ser colorido”. Mário Quintana.
66
Prigogine, Ilya. Ciência, razão e paixão. Belém: EdUFPA,
2001.
67
Morin, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1998.
68
Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1996.
69
Gusdorf, Georges. Mito e metafísica. São Paulo: Convívio,
1980.
70
Kolakowski, Leszek. A revanche do sagrado na cultura
profana. In: Rev. Religião e Sociedade. Maio/1977, N. 1.
71
Moraes, Regis de. As razões do mito. Campinas: Papirus,
1988.
72
Seis propostas para o próximo milênio. SP: Cia das Letras,
1990.
73
“A única pessoa que gostaria de conhecer profundamente sou
eu mesmo”. Oscar Wilde.
74
Edgar Morin, O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre:
Sulina, 2004.
75
Dístico do livro História das Ciências, Michel Serres
(Org.). Lisboa: Teorema, 1994.
76
Livro de Ítalo Calvino, Palomar (1996)
77
H. von Foerster, Epistemology of communication, IN:
Woordward, K. (org.) The Myths of information, Londres,
Routledge and Kegan Paul, 1980.
78
Altos e baixos, poesia de José Paulo Paes In: Socráticas.
SP: Cia das Letras, 2001.
79
“Onde os cientistas chegaram os artistas já tinham
chegado”. S. Freud.
80
Crise = krisis = acrisolar. krino (grego) = crítico =
critério
81
Idéia de Edgar Morin
82
Do fragmento 69 até o 85 foi publicado originalmente como
prefácio do livro Sob o céu da cultura, Ed. Casa das Musas –
Ed. Thesaurus, 2004.
83
Bohm, David. Sobre el diálogo. Barcelona: Kairos, 1997. /
Rosnay, Joel. O homem: gênio individual, idiota coletivo.
In: Castro, Gustavo de. et alli. Ensaios de Complexidade.
Porto Alegre: Sulina, 1997.
84
O alienado é uma espécie que silencia diante do mundo. As
emergências ao humano são tratadas como contigências. /
Segundo Lins a Silva “as fontes interpessoais e as
instituições
mais
próximas
dos
indivíduos
são
mais
influentes”
85
Certau diz: “ o cotidiano se inventa com mil maneiras de
caçar não autorizada”. / Os homens se odeiam uns aos outros.
(Freud)
86
“A vida não é fácil: é a arte do encontro, apesar de ser
feita de desencontros”. Vinícius de Morais.
87
Eclesiastes 1,8. O que seriam das religiões fundadas sobre
textos, ditos sagrados, se não fosse a palavra escrita? (Ex:
Bíblia, Alcorão, Livro dos Espíritos...)
88
Poesia Vertical, XI,4.
89
Fragmentos do Espólio. Brasília: UnB, 2004.
90
Do fragmento 33 ao
55
foi originalmente publicado In:
Dravet, Florence; Castro, Gustavo de. Sob o céu da cultura,
Brasília, Ed. Casa das Musas – Ed. Thesaurus, 2004.
91
Zemelman, Hugo. Los horizontes de la razón: uso crítico de
la teoria. Vol. I e II. Barcelona: Anthropos; México: El
Colégio de México, 1992.
92
Castro, Gustavo de. et alli. Ensaios de complexidade.
Porto Alegre: Sulina, 1997.
93
Juarroz, Roberto. Decimocuarta poesia vertical/Fragmentos
Verticales. Buenos Aires: Emecé, 1997,p.128. / Macherey, P.
In: Pimenta, Alberto. O silêncio dos poetas. Lisboa: A regra
do jogo, 1978, p. 98 / Nietzsche, F. Vontade de potência.
Trad. Mário F. Santos. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 288
94
Calvino, I. O contraste entre o mundo e a palavra. In: O
Estado de S. Paulo, 18/3/84. P.2 e 3. Originalmente uma
conferência preparada para o “James Lecture” (1983) no New
York Institute for the Humanities.
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Filosofia da Comunicação (Comunicosofia) GUSTAVO DE CASTRO