RELIGIÃO E REGIMES POLÍTICOS
NOTAS PARA UMA CONFERÊNCIA
Não sei se o pós-modernismo ambiental ainda nos deixa manter a tese de Huntigton:
“… as ideologias, que tipificaram o período final da civilização ocidental, declinam e o
seu lugar é tomado por religiões e outras formas de identidade e de empenhamento de
base cultural”i. Não sei, porque a religiosidade europeia não tem de modo algum a
rigidez e a fixação próprias das ideologias. E porque o Islão só aparentemente é
monolítico nas práticas que inspira, tendo manifestado quase sempre uma tensão forte
ou latente entre fundamentalistas e moderados.
Mais fácil de aceitar - e até verificável! - é o que o mesmo autor diz, concluindo o seu
estudo: “Os futuros da paz e da civilização dependem da compreensão e da cooperação
entre os dirigentes políticos, espirituais e intelectuais das maiores civilizações do
mundo”ii.
Jean-Paul Willaime, sociólogo da École Pratique des Hautes Études, descortinou três
momentos nas análises sociológicas do devir do Cristianismo. Um primeiro, que,
considerando a secularização, concluía que, quanto mais modernidade, tanto menos
religião. Um segundo, que, com Max Weber e Ernst Troelstch, prestava mais atenção à
génese religiosa da modernidade ocidental. Um terceiro que em que o Cristianismo
poderá ser “a religião do futuro da religião […] por integrar, na sua própria
autocompreensão, não só o carácter laico e pluralista da sociedade, mas também o
princípio fundamental da liberdade do indivíduo e da sua autonomia”iii.
Especialmente se se entender que pluralismo religioso não significa equivalência de
todas as crenças no que respeita à sociedade moderna e democrática. É ainda Willaime
a escrever: “Contrariamente a uma atitude que consistisse em justapor simplesmente
as diversas religiões em nome duma neutralidade indiferente aos conteúdos, os
diálogos inter-religiosos, do ponto de vista cristão, não podem substimar as diferenças
que existem entre as expressões religiosas. Muito especialmente, no que concerne ao
respeito pela laicidade e os direitos individuais. É no horizonte de valores dos direitos
do homem e do cidadão, tais como são concebidos nas sociedades democráticas, que se
desenvolvem e devem desenvolver estes diálogos inter-religiosos”iv.
Cabe aqui ilustrar o progresso da doutrina católica quanto a este ponto, a partir de três
referências significativas. Basicamente, deslocou-se o fulcro da questão, da verdade
essencial para a respectiva assunção pessoal, referindo a esta os direitos. É um
indicador positivo de mútua potenciação entre religião e regimes políticos:
1) 1791, afirmação da verdade essencial e objectiva, ou do direito prévio do Criador:
"Que há de mais contrário aos direitos de Deus criador, que limitou a liberdade do
homem pela proibição do mal, que esta liberdade de pensamento e de acção que a
Assembleia Nacional [francesa] concede ao homem social como direito imprescritível
da natureza? " (PIO VI, Breve Quod aliquantum, 10.III.1791).
2) 1863, reconhecimento dos benefícios práticos da liberdade religiosa, mesmo para a
Igreja: "A liberdade é para a Igreja o primeiro dos bens, a primeira das necessidades.
Mas a Igreja já não pode ser livre senão no seio da liberdade geral [...] Ela [a Igreja]
encontrará nas ideias e nas instituições da própria democracia as armas e os recursos
necessários para combater vitoriosamente os perigos e deficiências que a democracia
originou [...]. Quanto mais se é democrata, tanto mais se deveria ser cristão; porque o
culto fervoroso e prático do Deus feito homem é o contrapeso indispensável dessa
tendência perpétua da democracia para constituir o culto do homem que se crê Deus
[...]. A Itália, a Espanha e Portugal aí estão para nos provar a impotência radical do
sistema compressivo, da antiga aliança do altar e do trono, para a defesa do catolicismo
[...] Que resultou daí nesses reinos? […] Tinha-se constrangido e sufocado o espírito
público, que não se levantou senão para se entregar ao inimigo. A tempestade apenas
lá encontrou corações atrofiados pela supressão da vida política e incapazes de
satisfazer a circunstâncias novas [...] Os triunfos da religião, nos países onde tudo é
permitido contra ela, como na França, na Bélgica, na Inglaterra, na América, parecemme cem vezes mais brilhantes e consoladores do que o império efémero e equívoco que
ela ficou a dever em Espanha e noutros lados ao emprego da força [...] O direito
comum é hoje o único asilo da liberdade religiosa, da liberdade da Igreja como de todas
as outras liberdades. Direitos e não privilégios, direitos que permitem dispensar o
exercício ou a protecção do poder, eis o que temos de reclamar [...] A Igreja livre no
Estado livre não significa de modo nenhum a Igreja em guerra com o Estado, a Igreja
hostil ou estranha ao Estado. A Igreja e o Estado podem e devem mesmo entender-se
para conciliar os seus interesses respectivos, para dar à sociedade como ao indivíduo as
vantagens e os direitos que só este entendimento pode garantir" (Ch. DE
MONTALEMBERT, A Igreja livre no Estado livre. Paris: 1863. Discurso no Congresso
católico de Malines).
3) 1965, afirmação da liberdade religiosa em função da dignidade humana, na
descoberta e assunção pessoal da verdade: "De harmonia com a própria dignidade,
todos os homens, que são pessoas dotadas de razão e de vontade livre e por isso mesmo
com responsabilidade pessoal, são levados pela própria natureza e também
moralmente a procurar a verdade, antes de mais a que diz respeito à religião. Têm
também a obrigação de aderir à verdade conhecida e de ordenar toda a sua vida
segundo as suas exigências. Ora, os homens não podem satisfazer a esta obrigação de
modo conforme com a própria natureza, a não ser que gozem ao mesmo tempo de
liberdade psicológica e imunidade de coacção externa. O direito à liberdade religiosa
não se funda, pois, na disposição subjectiva da pessoa, mas na sua própria natureza.
Por esta razão, o direito a esta imunidade permanece ainda naqueles que não
satisfazem à obrigação de buscar e aderir à verdade; e, desde que se guarde a justa
ordem pública, o seu exercício não pode ser impedido" (CONCÍLIO VATICANO II,
Declaração Dignitatis Humanae, 2).
Manuel Clemente
Óbidos, 10 de Julho de 2007
Cf. Samuel P. Huntigton – O choque de civilizações e a mudança na ordem mundial [1996].
Lisboa: Gradiva, 1999, p. 60.
i
Cf. ibidem, p. 380.
Cf. Jean-Paul Willaime – Le christianisme: una religion de l’avenir de la religion?. In Les
grandes inventions du Christianisme. Dir. René Rémond. Paris: Bayard, 1999, p. 229-230. E
adianta: “Com o famoso ‘Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’ (Mt 22, 21) e
com a declaração de Jesus, diante de Pilatos, de que o seu ‘Reino não é deste mundo’ (Jo 18, 36),
encontra-se efectivamente estabelecido, nas próprias origens do cristianismo, o princípio da
separação entre o político e o religioso. Este princípio […] introduziu logo uma tensão que
acabou por dar à luz o Estado moderno emancipado de qualquer tutela religiosa” (cf. ibidem, p.
232).
iv Ibidem, p. 235.
ii
iii
Download

D. Manuel Clemente