FAHRENHEIT 451: PAPEL E PELÍCULA
Sílvio José Stessuk
Letras Vernáculas e Clássicas (UEL)
RESUMO
Publicado em 1953, o romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, foi adaptado para o cinema
em 1966, por François Truffaut. Ao lado das Crônicas marcianas (1950), o referido romance
é reputado como a obra-prima de Bradbury – tanto que o epitáfio por ele escolhido para ser
gravado em seu túmulo foi “Authorof Fahrenheit 451”. Em contraponto, a maior parte da
crítica especializada tem considerado a realização cinematográfica frágil e bastante inferior ao
original literário, constituindo-se mesmo, segundo alguns, no maior (e talvez único) percalço
da carreira de Truffaut – o que teria sido motivado, dentre outros fatores, pelo sacrifício ou
modificação de personagens, pelas alterações no enredo e pela suavização de conflitos
decidida pelo cineasta. Entretanto, também têm sido anotados alguns ganhos que certos
recursos cinematográficos teriam granjeado, como, por exemplo, a utilização da mesma atriz
– Julie Christie – para representar duas personagens: a esposa do protagonista Montag
(Mildred, no romance; Linda, na fita) e a jovem que o auxilia a se libertar de uma mundivisão
fechada (Clarisse, no texto literário como no cinematográfico). Neste trabalho, sem interesse
em sacramentar qualquer julgamento negativo ou positivo, procura-se discutir prós e contras
de algumas das opções efetuadas por Truffaut.
Palavras-chave: Fahrenheit 451; Ray Bradbury; François Truffaut.
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INTRODUÇÃO
Em 1953, o escritor estadunidense Ray Bradbury (1920-2012) publicou,
pela editora Ballantine Books, o célebre romance Fahrenheit 451. Trata-se, como é sabido, de
uma visão distópica sobre o futuro da sociedade estadunidense (representando a sociedade
humana em geral), quando o potencial de manipulação de massas desempenhado pelos mais
adiantados meios de comunicação (com destaque para as emissões televisivas), em conjunto
com a proibição da prática da leitura de livros e do curso do livre pensamento, promoveriam a
alienação difusa, a proliferação de personalidades pasteurizadas e, enfim, uma severa cultura
de violência intensamente marcada pela banalização do mal. Guy Montag, o protagonista, é
um bombeiro – no entanto, em sua diegese os bombeiros não têm mais a tarefa de combater
incêndios, e sim de provocá-los, procurando e queimando os livros que algumas pessoas ainda
insistem em esconder (o título do romance alude à temperatura na qual o papel entra em
combustão), bem como as casas que abrigam os livros e, se necessário, chegando ao ponto de
imolar até mesmo o infrator que os possui. O enredo se desdobra sobre a estrutura do
Bildungsroman, focalizando o processo de transformação de Montag que, de fantoche
manipulável (como quase todos os outros cidadãos), aos poucos passará a desenvolver uma
atitude crítica e consciente a respeito de sua própria vida e de sua sociedade. E as personagens
Clarisse McClellan, Faber e Granger, cada qual a seu tempo, auxiliam-no nesse
desenvolvimento, como guias ou preceptores.
À época de sua publicação – no contexto da Guerra Fria, do McCarthyism e
da Lista Negra de Hollywood –, o livro causou certa polêmica, por alguns sendo acusado de
representar uma diatribe contra a política e a cultura contemporânea dos Estados Unidos, bem
como contra o progresso da ciência, em especial aquela mais voltada ao setor das
comunicações. Contudo, o tom majoritário da recepção sempre foi, na verdade, balizado pelo
aplauso, tendo sido destacada, dentre outros fatores, exatamente a amplitude da denúncia
cultural e política que o enredo enseja, tocando em questões fundamentais para o futuro da
sociedade humana, como: a censura de idéias levada a efeito pelo Estado e pela coletividade;
os riscos da alienação provocada pelas superficialidades de conteúdo e de forma exploradas
pelas mídias de comunicação de massa; o fetichismo da mercadoria; a ameaça de um
holocausto nuclear; a solidão e a impotência do indivíduo num mundo dominado pela
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tecnologia da despersonalização e da dessentimentalização; e, sobretudo, a importância da
literatura como ferramenta hábil para a reflexão sobre o ser e sobre o mundo.
Surpreendentemente – ou talvez nem tanto –, desde a publicação o próprio
romance Fahrenheit 451 foi vítima de diversos episódios de censura, em geral relacionada à
sua leitura nas escolas estadunidenses. Bradbury fala acerca de um dos mais inesperados
desses episódios, que ocorreu entre os anos de 1967 e 1979 e foi patrocinado pela editora de
origem do livro:
“Feche a porta e eles passarão pela janela, feche a janela e eles passarão pela
porta” são palavras de uma antiga canção. Elas harmonizam bem meu estilo de
vida com os carrascos e censores estreantes a cada mês. Apenas seis semanas atrás,
descobri que, ao longo dos anos, alguns editores bitolados da Ballantine Books,
receosos de contaminar os jovens, haviam pouco a pouco censurado cerca de
setenta e cinco trechos do romance. Estudantes, ao lerem este romance que, em
última análise, trata da censura e da queima de livros no futuro, escreveram-me
para contar sobre essa primorosa ironia. Judy-Lynn Del Rey, uma das novas
editoras da Ballantine, está refazendo o livro inteiro, que será republicado neste
verão com todas as “drogas” e todos os “diabos” de volta. (BRADBURY, 2007, p.
207, “Coda”)
Porém, nenhuma censura pôde impedir o crescimento do prestígio do
romance, várias vezes premiado e reeditado e hoje reconhecido pelo público e pela crítica
como a obra-prima do escritor, ao lado das Crônicas marcianas (1950) – tanto é, que o
epitáfio escolhido por Bradbury para ser gravado em sua lápide tumular foi: “Authorof
Fahrenheit 451”. Ainda, o texto é reputado como uma das mais relevantes distopias da
literatura do séc. XX, ao lado dos ingleses Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932),
1984 (1948), de George Orwell, e Laranja mecânica (1962), de Anthony Burgess.
Dentre outras adaptações para novos formatos, Fahrenheit 451 foi levado ao
teatro em 1979, pelo próprio Bradbury, e ao cinema em 1966, pelo diretor francês François
Truffaut (1932-1984), que foi também co-autor do roteiro, juntamente com Jean-Louis
Richard, David Rudkin e Helen Scott; coube ao ator Oskar Werner o papel de Montag. Foi o
primeiro filme de Truffaut em cores e o único cujosdiálogos não foram feitos em francês, mas
sim em inglês (apesar de o francês ter sido empregado em todo o resto da produção) – causa
de arrependimento para o cineasta, queao fim conjeturou que os diálogos no idioma original
(que ele não dominava) soaram frios, mesmo artificiais, preferindo então a versão dublada ou
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pelo menos legendada em francês. Ainda num veículo midiático – o cinema – que, para
alguns, mesmo substituiria a literatura, a importância da palavra...
Por enquanto, trata-se da única conversão do romance para o cinema,
embora desde 1994 esteja se cogitando uma refilmagem161.
Em contraponto à boa recepção do romance, a maior parte da crítica
especializada parece ter considerado a realização cinematográfica frágil e bastante inferior ao
original literário. Para alguns, a película constituiria realmente o maior percalço da carreira de
Truffaut como cineasta e roteirista, talvez ao lado de O quarto verde (1978) – muito longe,
portanto, da ótima acolhida dos seus melhores momentos, a exemplo de Os incompreendidos
(1959) e A noite americana (1973).162
De se dizer ainda que, embora Bradbury tenha declarado em mais de uma
oportunidade que o filme lhe agradava (opondo, entretanto, algumas poucas ressalvas),
Truffaut sempre confessou ter se sentido muito decepcionado com os resultados,
considerando Fahrenheit 451 o trabalho mais difícil que já tinha feito. A celeuma prosseguiu
em anos mais recentes: o diretor Martin Scorsese, por exemplo, avalia que o filme em questão
tem seu valor subestimado e exerceu grande influência sobre a sua própria obra
cinematográfica. Seja como for, opiniões como a do cineasta estadunidense dificilmente
encontram guarida.
O que teria motivado, conforme comumente se aponta, o insucesso da
transposição de Fahrenheit 451 do papel à película foram a singeleza dos efeitos especiais
(num filme que aborda uma sociedade do futuro com grande apelo tecnológico) e, mais ainda,
certas decisões de Truffault, referentes ao sacrifício ou modificação substancial de algumas
personagens e às simplificações no enredo, em especial aquelas tendentes a suavizar conflitos
161
Nesse novo projeto, a princípio, a roteirização foi confiada a Ray Bradbury, Tony Puryear e Terry Hayes,
trazendo como diretor e ator principal Mel Gibson, que comprou os direitos cinematográficos de Bradbury; ao
longo dos anos, Brad Pitt, Tom Cruise e Tom Hanks foram sucessivamente indicados como possíveis
protagonistas e, por um motivo ou outro, descartados; atualmente, Gibson pretende atuar apenas como
produtor, legando a direção a Frank Darabont, que reescreveu o roteiro no qual Bradbury havia trabalhado e
ainda procura quem interprete a parte de Montag.
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Pertinente assinalar que Fahrenheit 451 não foi a primeira nem a última das adaptações de livros levadas a
efeito por Truffaut, algumas das quais tendo obtido excelente repercussão, caso de O garoto selvagem (1970),
baseado em escritos de Jean Itard (Mémoire et Rapportsur Victor de l’Aveyron, 1801-1806).
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– em síntese, os principais argumentos que quase sempre são levantados contra as versões da
literatura ao cinema.
Contudo, também são anotados (embora nunca sem controvérsia) eventuais
ganhos que certos recursos cinematográficos teriam granjeado em relação à página escrita,
como a utilização da mesma atriz – Julie Christie – para representar duas personagens: a
esposa do bombeiro Montag (Mildred, no romance; Linda, na fita) e a jovem que o ajudou a
se libertar de uma visão fechada de mundo(Clarisse, no texto literário como no
cinematográfico). E com freqüência se menciona o acerto e a inovação da apresentação dos
créditos no início do filme, não escritos, como é de costume, porém falados enquanto se
sobrepõem cenas de diversos telhados com antenas de televisão, o que certamente entra em
consonância com a idéia original de Bradbury, sobre uma civilização na qual a leitura é
proibida e a programação televisiva domina de modo ostensivo a vida e a mentalidadedos
cidadãos.
Neste trabalho, sem interesse em sacramentar qualquer julgamento negativo
ou positivo, procura-se apenas traçar breves apontamentos acerca de prós e contras de
algumas das opções efetuadas por Truffaut. Com tal intento, a análise comparativa entre o
texto literário e o cinematográfico será dividida em dois tópicos, supra aventados: a) as
personagens; e b) o enredo.
a) AS PERSONAGENS
No que diz respeito às personagens de Fahrenheit 451, pelo menos quatro
foram as alterações mais notáveis que Truffaut operou em relação ao romance.
Em primeiro lugar, a personagem Faber foi descartada do filme. No livro,
Faber tem uma participação importante, já que atua como o segundo preceptor de Guy
Montag rumo à desalienação (a primeira preceptora foi Clarisse). Bradbury chegou mesmo a
traçar, mediante um jogo com os nomes das personagens, um liame de complementaridade
entre Montag e Faber:
Uma última descoberta. Escrevo todos os meus romances e contos, como
vocês já viram, num grande acesso de paixão poderosa. Só recentemente, revendo o
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romance, percebi que Montag foi batizado com o nome de uma fábrica de papel. E
Faber, naturalmente, é um fabricante de lápis [Faber-Castell]! Como meu
inconsciente foi astuto ao dar esses nomes a eles.
E em não contar isso a mim! (BRADBURY, 2007, p. 203, “Posfácio”; grifo
do autor)
A sugestão suscitada é a de que Faber, um ex-professor de Inglês com
conhecimentos literários sólidos e um ancião que ainda se recordava de uma época quando os
livros não eram proibidos, estivesse escrevendo, fosse um lápis, sobre suas experiências no
papel quase em branco que ainda era a mente do inexperiente Montag, o qual antes tinha
como profissão (seguindo passos do pai e do avô) incinerar as páginas dos livros. Claro que o
próprio Bradbury, como demonstrou, apenas anos após o lançamento do filme se apercebeu
dessa complementaridade, pelo que não se pode censurar Truffaut em demasia. Muito mais
importante, contudo, é que a ausência das diversas conversas entre Montag e Faber faz com
que o processo de aprendizagem e de transformação do protagonista pareça, na tela,
excessivamente rápido e, por conseguinte, inconvincente. Faber completa, no romance, o
trabalho iniciado por Clarisse, de modo que o Montagliterário recebe muito mais tempo para
pensar sobre as inquietações que ambos lhe despertam, para reelaborá-las e aplicá-las à sua
vida.
O Sabujo Mecânico é outra personagem de interesse no romance que foi
eliminada do filme. Trata-se de uma temível máquina de caça de oito patas, programada
paralocalizar e matar pessoas que sejam, por algum motivo, indesejadas pela sociedade.
Alguns detalhes do seu método persecutório:
Seus processadores podem ser ajustados para qualquer combinação, um
tanto de aminoácidos, um tanto de enxofre, outro tanto de gordura e alcalinidade.
(BRADBURY, 2007, p. 41)
“... o Sabujo Mecânico nunca falha. Desde a primeira vez que foi utilizado
em rastreamento, essa incrível invenção jamais cometeu erros.” (id., op. cit., p. 161;
grifo do autor)
“... o nariz do Sabujo Mecânico é tão sensível que é capaz de rememorar e
identificar dez mil ingredientes olfativos de dez mil indivíduos diferentes sem
necessidade de ajuste!” (id., ibid.; grifo do autor)
Para realizar sua missão letal, “uma agulha de aço de dez centímetros se
projetava da probóscide do Sabujo para injetar doses enormes de morfina ou procaína.”
(id.,op.cit., p. 39) Bradbury se refere ao monstro mecânico como “meu robô clone do grande
cão dos Baskerville de Conan Doyle.” (id., op. cit., p. 202, “Posfácio”).
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No livro, Montag sempre se sentiu ameaçado pelo Sabujo – a certa altura,
enquanto ainda estava no começo de suas perturbações, ele imagina mesmo que algum de
seus colegas pudesse ter programado o robô pertencente ao Ponto de Bombeiros para
persegui-lo ou, pelo menos, assustá-lo. E no clímax do romance, Montag, de fato, tem que
enfrentar duramente o Sabujo Mecânico:
O cão deu um único e último salto no ar na direção de Montag, cerca de um metro
acima de sua cabeça, as pernas de aranha esticadas, a agulha de procaína
seprojetando furiosamente de seu único dente raivoso. Montag o acertou com uma
corola de fogo, uma única flor maravilhosa que se enrolou em pétalas amarelas,
azuis e laranja, no cão de metal, envolvendo-o numa nova carapaça enquanto ele
caía sobre Montag e o atirava junto com a arma de fogo uns três metros para trás
contra o tronco de uma árvore.Montag sentiu o cão se debater e agarrar sua perna,
cravando a agulha por um momento antes que o fogo atingisse o Sabujo no ar,
rompesse as juntas de seus ossos metálicos e detonasse seu interior num único jorro
de cor vermelha como um rojão amarrado ao nível da rua. Montag ficou deitado
olhando a coisa morta-viva se debater e morrer. Ainda assim a fera parecia querer
voltar a ele e terminar de aplicar a injeção que começava a fazer efeito na carne de
sua perna. Montag sentiu um misto de alívio e horror, como se tivesse recuado no
momento exato para que seu joelho não fosse esmagado pelo pára-lama de um
carro a cento e cinqüenta por hora. Teve medo de se levantar, receoso de não
conseguir nem se manter em pé, com uma perna anestesiada. Um torpor num torpor
que se abria para um torpor... (BRADBURY, 2007, p. 147)
A perna ferida de Montag aumenta a dramaticidade de sua fuga, porque
depois de ter sido derrubado um Sabujo Mecânico, outro é chamado para conduzir a frenética
perseguição que se inicia e, televisionada, é acompanhada “por dez, vinte ou trinta milhões de
pessoas” (id., op. cit., p. 163).
Neste caso, a retirada do Sabujo Mecânico por Truffaut é compreensível:
explicam-na tanto o orçamento limitado quanto o nível restrito da tecnologia dos efeitos
especiais disponível à época. Mesmo assim, a ausência da máquina infelizmente retira ao
filme mais de um episódio de médio ou grande transe.
Por outro lado, Truffaut introduz no filme uma personagem que não
figurava no romance: o bombeiro Fabian, colega de Montag – no livro aparecem outros
bombeiros, mas nenhum deles com esse nome – seria, porventura, alguma tentativa de se
evocar o nome de Faber? Parece pouco provável, pois na fita pode-se entrever que Fabian e
Montag nutrem entre si certa inimizade e rivalidade. De qualquer maneira, a tensão entre
Montag e Fabian resulta expletiva e dispensável, já que a tensão havida, no papel como na
película, entre Montage seu superior, o reacionário, porém erudito Capitão Beatty, mostra-se
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muito mais carregada e instigante, muito mais completa e complexa, de sorte que a presença
de Fabian, sem contribuir para essa linha de tensão maior, de certo modo tende mesmo a
diluí-la um pouco, por tomar tempo aos embates entre Montag e Beatty.
Vale a pena mencionar, ainda que en passant, a alteração do prenome da
esposa de Montag: no romance, Mildred, e na tela, Linda. Uma possível razão seria a
circunstância de que o segundo prenome é muito mais comum em língua inglesa e mesmo em
francesa, o que, eventualmente, reforçaria a perfeita integração da mulher ao status quo.
Entretanto, cuida-se de uma modificação eventualmente pouco significativa.
As principais mudanças entre papel e película se referem mesmo à
personalidade da personagem Clarisse McClellan. Bradbury a apresenta como uma jovem em
vias de completar “dezessete anos”(2007, pp. 19 e 37) e bastante diferente de outras pessoas
de sua idade, na diegese: vívida, irrequieta, questionadora, atenta a si mesma e ao mundo que
a cerca, não tem amigos por ter “medo” das outras “crianças” que se matam umas às outras
(id.,op., cit., p. 45) e prefere encontrar suas próprias respostas do que recebê-las prontas na
escola, a qual, aliás, pouco freqüenta, por discordar dos métodos educacionais que
desincentivam a troca de idéias. Essas qualidades de Clarisse tornam-na apta a auxiliar
Montag no processo de aprendizagem e transformação – é ela quem primeiro desperta o
bombeiro para a compreensão pessoal da realidade.
Já a Clarisse de Truffaut, conquanto permaneça contestadora e ávida por
abarcar com os próprios olhos o mundo real, bem como a transmitir esse ensinamento a
Montag, apresenta-se um pouco mais velha, com idade suficiente para ser professora do
ensino fundamental (ou similar), cargo do qual, entretanto, acabará sendo demitida,por ousar
propor aos alunos estratégias educacionais focadas no debate e no desenvolvimento do
pensamento individual, atitude que vai de encontro aos postulados do sistema. E é essa pouca
idade a mais o que, porventura, parece retirar à Clarisse do filme um pouco da vivacidade
adolescente da Clarisse do livro.
Conforme já foi dito, na fita a anticonformista Clarisse e Linda, a
conformada e alienada esposa de Montag, são interpretadas por uma só atriz, Julie Christie.A
idéia de aproveitar para Clarisse quem já estava integrada ao elenco no papel de Linda,
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segundo consta, teria sido do produtor LewisM. Allen e aceita, após certa hesitação, por
Truffaut, que considerou melhor que as personagens não ocupassem posições tão claramente
diametrais, como heroína e vilã, e sim fossem um pouco mais parecidas, como os lados da
mesma moeda. A princípio, a ambigüidade instaurada tem certo charme, e é relevante a
sensação de que, para qualquer indivíduo, a diferença entre a alienação e a consciência crítica
assenta em linhas e escolhas muito tênues. Sem embargo, tal opção foi duramente criticada,
recaindo inclusive sobre a atuação da atriz – houve quem de fato tivesse julgado que Linda e
Clarisse, tão distintas no romance, no filme tenham se diferenciado “apenas em seus
penteados”. Tampouco Bradbury aprovou a medida, considerando esse o único grande erro da
adaptação cinematográfica.
b) O ENREDO
Várias das modificações no enredo do romance para a sua transposição à
tela são fruto das modificações operadas em relação às personagens. Assim, conforme foi
visto, a ausência de Faber logicamente elimina os vários diálogos havidos com Montag, o que
leva a uma indesejável aceleração do processo de tomada de consciência desenvolvido pelo
protagonista. Também a ausência do Sabujo Mecânico implica na retirada de cenas de embate
deste com Montag, o que reduz bastante o impacto da ação no cinema – realmente, a fita, em
comparação com o livro, tem uma movimentação consideravelmente mais lenta e planificada.
Sob outra perspectiva, muitos índices do desenvolvimento tecnológico da
sociedade descrita no livro não foram contemplados pelo filme: a “cápsula verde”, espécie de
intercomunicador portátil inventada por Faber; a “radioconcha”, a qual congrega os atuais
fones de ouvidos e dispositivos reprodutores de música num só aparelho portátil; um tipo de
televisor de tela larga, que pode ser combinado em conjuntos de três ou quatro, algo parecido,
porém mais avançado, do que as televisões de tela plana e os hometheatersatuais; o próprio
Sabujo Mecânicoetc... De vez em quando, é, com efeito, necessário certo esforço para se
recordar que se assiste a um filme de ficção científica – as razões para isso, conforme já se
teve oportunidade de prevenir, foram não mais do que as limitações de recursos financeiros e
técnicos.
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Mais um detalhe: ao término do romance, Montag acaba se tornando responsável pela
memorização do Eclesiastes, circunstância que dá margem a diversas divagações sobre
trechos desse livro bíblico. Já no cinema, o protagonista se encarrega de Tales
ofthegrotesqueand arabesque, de Edgar Allan Poe, e os comentários sobre essa obra são bem
escassos.
Enfim, dentre várias outras pequenas mudanças no enredo, duas adquirem
vulto: o destino de Clarisse e, a ser discutida no tópico conclusivo deste trabalho, a questão da
hecatombe atômica.
Nas páginas do livro, Clarisse McClellandesaparece ainda bem antes que o
enredo chegue à sua metade: embora pairem certas dúvidas, ela é tida como morta,
“Atropelada por um carro.” (BRADBURY, 2007, p. 64) Bradbury comenta o que acontece no
filme e como isso repercute mais tarde na adaptação teatral feita pelo romancista:
Finalmente, muitos leitores me escreveram protestando pelo desaparecimento de
Clarisse, querendo saber o que aconteceu com ela. François Truffaut sentiu a
mesma curiosidade e, em sua versão de meu romance para o cinema, resgatou
Clarisse do esquecimento e a colocou entre os Homens-Livro que vagavam pela
floresta, recitando repetidamente trechos de seus livros para si mesmos. Senti a
mesma necessidade de salvá-la pois, afinal de contas, em muitos sentidos, foi ela,
beirando a conversa boba de tietagem, a responsável por Montag começar a se
perguntar sobre os livros e o que havia neles. Na minha peça, portanto, Clarisse
surge para saudar Montag e dar um final um pouco mais feliz ao quem era,
basicamente, um material bem sinistro. (id.,op. cit., p. 202-203, “Posfácio”)
É possível considerar, portanto, que o “resgate” de Clarisse, personagem de fato
carismática, e o aumento de sua importância no enredo foram os pontos mais positivos da
adaptação cinematográfica de Truffaut.
CONCLUSÃO
Sem embargo,a principal alteração operada pelo cineasta francês diz
respeito a mais um descarte que, podendo ser justificado ainda pelos limites dos recursos de
produção, certamente empobreceu de forma drástica o enredo na sua realização fílmica. O
acontecimento eliminado por Truffaut é assim narrado por Ray Bradbury:
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– Olhe! – exclamou Montag.
E a guerra começou e terminou naquele instante.
Mais tarde, os homens em torno de Montag não sabiam dizer se tinham realmente
visto alguma coisa. Talvez um ínfimo floreio deluz e movimento no céu. Talvez as
bombas estivessem lá, e os jatos, a dezesseis mil metros, nove mil metros, dois mil
metros acima, pelo mais breve instante, como grãos atirados aos céus por uma
enorme mão semeadora, e as bombas caindo a esmo na manhã, com rapidez
assustadora e, ao mesmo tempo, com súbita lentidão, sobre a cidade que haviam
deixado para trás. O bombardeio, para todos os efeitos, havia terminado quando os
jatos haviam localizado seu alvo, alertado seu bombardeiro a oito mil quilômetros
por hora; tão rápida quanto o sussurro de uma foice, a guerra havia terminado.
Uma vez lançada a bomba, tudo estava terminado. Agora, passados três segundos,
todo o tempo na história, antes do impacto das bombas, as próprias naves inimigas
já haviam dado meia-volta em torno do mundo visível, como projéteis em que um
selvagem ilhéu talvez não acreditasse porque eram invisíveis. No entanto, o coração
é subitamente despedaçado, o corpo cai em movimentos distintos e o sangue se
espanta ao ver-se libertado no ar; o cérebro dissipa suas poucas e preciosas
memórias e, atônito, morre. (BRADBURY, 2007, pp. 188-189)
Em silêncio, Granger levantou-se, esfregou os braços e as pernas, praguejando,
praguejando sem parar ao respirar, as lágrimas pingando de seu rosto. Cambaleou
rio acima para espiar seu curso.
– Está arrasada – disse ele, um longo momento depois. – A cidade parece um monte
de farinha. Foi-se. – E muito depois disso: – Eu me pergunto quantos sabiam que
aconteceria? Gostaria de saber quantos se surpreenderam?
E no resto do mundo, pensou Montag, quantas outras cidades mortas?
E aqui em nosso país, quantas? Cem? Mil? (id.,op. cit., pp.193-184)
A ameaça de uma guerra é apresentada por Bradbury desde as primeiras
páginas do romance. De quando em quando, o leitor se vê confrontado com a terrível
passagem de jatos bombardeiros por sobre a cidade que as personagens habitam, e aos poucos
a ameaça de um conflito de largas proporções se insinua. Entretanto, distraída que é pela
programação televisiva – os relacionamentos inócuos com uma “família” digital, as
brincadeiras de um “Palhaço Branco” ou a perseguição estatal a um único transgressor (no
caso, Montag) –, a esmagadora maioria dos telespectadores não presta atenção aos assuntos de
natureza realmente global. O preço para esse desinteresse é a destruição. Bradbury, com
certeza, não se atéma discutir as nuances secundárias: quem iniciou a guerra, qual a
motivação ideológica ou política, que país é mais tragicamente atingido? Perguntas tais como
essas importam muito pouco, diante do perigo de uma aniquilação da humanidade em imensas
proporções.
O final do filme de François Truffaut – que Bradbury nunca negou apreciar,
citando-o como um dos “ten top endingsofanyfilmsofall time” (JACOBS et al., 1976-2012) –
ocorre com uma cena algo idílica e de cunho bastante esperançoso: as personagens (Montag,
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Clarisse, Granger e outros...), andando por sobre um campo forrado de neve, recitam trechos
de prosa e de poesia.
O final do romance de Ray Bradbury também é esperançoso, com o
protagonista, junto com seus novos companheiros, caminhando rumo à cidade e pensando em
que poderia contribuir para a reconstrução do mundo destruído pela ignorância e pela
violência, tendo como novos guias as palavras do Eclesiastes:
Montag sentiu o lento jorro das palavras, sua lenta vibração. E quando chegasse
sua vez, o que ele diria, o que ele poderia oferecer num dia como este, para tornar a
viagem um pouco mais fácil? Para tudo há uma estação. Sim. Um tempo para calar
e um tempo para falar. Sim, tudo isso. Mas, o que mais? O que mais? Uma coisa,
uma coisa...
E do outro lado do rio, está a árvore da vida que produz doze frutos, dando o
seu fruto de mês em mês; e suas folhas servem para curar as nações.
Sim, pensou Montag, será o que guardarei para o meio-dia. Para o meio-dia...
Para quando chegarmos à cidade. (BRADBURY, 2007, p. 196; grifo do autor)
A última diferença – e, com certeza, a única que realmente importa – entre
papel e película, tratando-se de Fahrenheit 451, é esta: precisará ou não o ser humano sentir o
risco de sua própria extinção física por meio da tecnologia de sua própria invenção, antes de
procurar por um novo começo?
Já bem entrado o século XXI, eis ainda a indagação de real interesse.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Trad. Cid Knipel. São Paulo, Globo, 2007.
JACOBS, Robert; TRUESDALE, Dave; e WAYNE, Bob.An interview with Ray
Bradbury.InTangent # 5, Madison, 1976-2012.Disponível (primeira vez online) em:
file:///F:/FAHRENHEIT%20451/Classic%20Ray%20Bradbury%20Interview.htm. Acesso em
22.05.2014, às 23h45.
TRUFFAUT, François (dir.). Fahrenheit 451. Prod. Lewis M. Allen. [DVD].Londres, Anglo
Enterprises/Vineyard Film Ltd.,1966. 112 min.
621
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609 FAHRENHEIT 451: PAPEL E PELÍCULA Sílvio José