MOACIR FRANCISCO DE SANT´ANA BARROS
ENTRE VÍDEOS E CERÂMICAS:
OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO
Universidade Federal de Mato Grosso
Instituto de Linguagens
Cuiabá – MT
2006
2
MOACIR FRANCISCO DE SANT´ANA BARROS
ENTRE VÍDEOS E CERÂMICAS:
OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado em Estudos de Linguagem para
obtenção do título de Mestre em Estudos de
Linguagem pela Universidade Federal de Mato
Grosso, Instituto de Linguagens.
Área de concentração: Cultura, Mídia e Política:
teorias e práticas.
Orientadora: Prof.ª Dra. Lucia Helena
Vendrúsculo Possari
Universidade Federal de Mato Grosso
Instituto de Linguagens
Cuiabá – MT
2006
3
B2776e
Barros, Moacir Francisco de Sant’ana.
Entre vídeos e cerâmicas: olhares sobre o ribeirinho. / Moacir
Francisco de Sant’ana Barros. – Cuiabá: o autor, 2006.
135 fl.
Orientadora: ProfªDrª Lúcia Helena Vendrúsculo Possari.
Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso.
Instituto de Linguagens. Campus de Cuiabá.
1. Sociologia. 2. Cultura popular. 3. Identidade. 4. Imagens.
5. Ribeirinhos. 6. Cuiabá. 7. São Gonçalo Beira Rio. I. Título.
CDU 316.7(817.2)
4
DEDICATÓRIA
A minha mãe Joanita de Sant`Ana Barros por sua
dedicação aos seus oito filhos, lutando sempre para que
todos estudassem, sem esquecer nunca da dose de carinho
distribuída igualmente entre todos.
Ao meu pai Luiz de França Barros (em memória).
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço a cooperação enriquecedora da minha
orientadora, Lucia Helena, pela paciência e dedicação a este
trabalho;
Ao professor Dr. Mário César Silva Leite e as
professoras, Dra. Denize Dall`Bello e Dra. Martha Johanna
Haug pelas observações pertinentes que fizeram à pesquisa;
Aos meus colegas de mestrado pelas discussões
estimulantes;
Ao Sr. Dalmi de Almeida e toda a gente do São Gonçalo
pela colaboração a mim dispensada.
A Isa por me aturar e `as crias, Pedro, Gabriel e Maria
Luísa por serem a razão disso tudo.
Aos colaboradores: Prof.Dr. Yuji Gushiken, Joubert
Evangelista, Mateus Copriva, Carlos Ferreira, Márcia
Aparecida.
6
RESUMO
BARROS, Moacir F.S. Entre vídeos e cerâmicas: olhares sobre o ribeirinho.
Este trabalho apresenta uma reflexão sobre os aspectos de identidade e cultura
popular, através de textos videográficos, pela abordagem dos Estudos Culturais,
no bairro São Gonçalo Beira Rio. Analisa-se o conteúdo de vídeos feitos sobre os
ribeirinhos e imagens produzidas pelos próprios moradores, observando a
produção de sentidos por eles mesmos. Por um lado, mostra-se a preocupação
dos videomakers em falar de uma “tradição” cultural a ser preservada. Por outro, a
preocupação dos moradores em registrar imagens de um bairro que está
mudando em decorrência do processo de urbanização da cidade.
Palavras-Chave: Cultura Popular – Identidade – Vídeo .
7
ABSTRACT
BARROS, Moacir F.S. Between Videos and Ceramics: looks on the riverain.
This work presents thoughts about the aspects of identity and popular culture,
through videografics texts, for Cultural Studies teory from São Gonçalo Beira Rio
neighbourhood , Cuiabá, Mato Grosso. The results of these videos made about the
riverain and the images produced for the living own are analyzed observing the
sense by they themselves. For one hand, the observations of videomakers in
speaking of one reveals the preoccupation of cultural tradition preservation and, by
other hand, the concernments of the inhabitants in registering images from a
neighbourhood that is in transformation due the urbanization process of the city .
word-Key: Culture - Identity - Video
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................10
CAPÍTULO I – APORTE TEÓRICO METODOLÓGICO.........................................16
1.1 Sobre o Conceito de Cultura ...............................................................17
1.1.1 Cultura Popular e Folclore.............................................................27
1.1.2 Cultura Popular e Comunicação de Massa....................................28
1.1.3 Cultura Brasileira............................................................................29
1.2 Os Estudos sobre Identidade..............................................................32
1.2.1 Identidade e Diferença...................................................................39
1.2.2 Entre o Local e o Global................................................................43
1.3 Os Caminhos da Recepção................................................................47
1.3.1 Recepção e Estudos Culturais.......................................................47
1.3.2 Trama Conceitual.......................................................................... 54
CAPÍTULO II – INVENTÁRIO SOBRE O BAIRRO SÃO GONÇALO ....................57
2.1 Espaços Urbanos X Comunidade........................................................58
2.2 Inventário sobre o São Gonçalo...........................................................62
2.2.1 Detalhamento do Inventário...........................................................70
CAPÍTULO III – VÍDEO E CULTURA.....................................................................85
3.1. O Vídeo como expressão cultural ......................................................86
3.1.1 O Início...........................................................................................89
3.1.2 Vídeo-Arte......................................................................................91
3.1.3 Vídeo Independente.......................................................................92
3.1.4 Vídeo Educação.............................................................................92
3.1.5 Olhar das Minorias.........................................................................94
CAPÍTULO IV – OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO: ANÁLISE DOS VÍDEOS....96
4.1. Caminhos Metodológicos...................................................................97
4.2. Dois Vídeos sobre o São Gonçalo.....................................................98
4.3. O Olhar Ribeirinho...........................................................................114
9
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS.....................................................................133
OBRAS CONSULTADAS.....................................................................................138
ANEXOS...............................................................................................................140
10
INTRODUÇÃO
Neste início de século XXI estamos diante de uma complexidade de
comportamentos marcados pela problematização do global e do local. As
questões que envolvem processos de produção de sentidos, - neste caso uma
análise de vídeos - identidade e cultura popular passam por essa discussão.
Há um pensamento dominante sobre a expansão do capitalismo pós-queda
do muro de Berlim que teria transformado o processo de globalização numa ação
irreversível. Numa primeira perspectiva, o “mundo sem fronteiras” atuaria como
fator de homogeneização de comportamentos, com reflexos nas percepções
populares. Num segundo ponto de vista, o processo de globalização é visto como
operações complexas que destacam a diversidade cultural, as segmentações
sociais e criam novas diferenças.
A crise na contemporaneidade das instituições tradicionais como Estado,
Família, Escola e Igreja, dentro da sociedade globalizada, permitiu a expansão
dos meios de comunicação que, assim, ditam os comportamentos afunilando a
interpretação do mundo em que vivemos. Nossas percepções são sempre o
resultado de informações filtradas, que no dizer da pesquisadora Maria Aparecida
Baccega (2002) constitui um “mundo editado”, isto é, a realidade que nos
apresenta é sempre o resultado dessa edição que chega até nós.
Nesse contexto, a expansão dos meios de comunicação mina a resistência
de espaços tradicionalistas como resultado do processo de urbanização. Há uma
visível transformação nos comportamentos e no modo de vida dessas localidades.
O consumo urbano de peças artesanais, por exemplo, pode indicar uma alteração
no significado da produção material e simbólica das culturas tradicionais.
11
Esses espaços urbanos também são alvo de investigadores científicos.
Exploradas muitas vezes de forma predatória por intelectuais, que devassam a
intimidade dos moradores, sugam o conhecimento popular e nada retornam
àqueles que serviram de objeto científico.Tornam-se nada mais do que isso:
objetos. A concepção de que podem ser sujeitos de seus destinos e das políticas
culturais fica apenas no discurso acadêmico.
O interesse da presente pesquisa é pela discussão sobre o papel das
identidades e da cultura popular no universo do bairro São Gonçalo Beira Rio,
através da abordagem dos Estudos Culturais. Desse ponto de vista, proponho
reflexões acerca dos textos em vídeo produzidos sobre o espaço São Gonçalo
pelo viés cultural de cada produção; também analiso registros audiovisuais
produzidos pelos próprios moradores, buscando ver a produção dos sentidos por
eles mesmos.
Durante a pesquisa houve um deslocamento dos objetivos propostos, uma
vez que, ao inserir-me no campo, deparei-me com os registros audiovisuais dos
próprios moradores feitos sem a interferência de produtores culturais. Após
negociar com o presidente do bairro, Dalmi Lucio de Almeida, o uso dessas fitas
nesta pesquisa, me propus a analisá-las, pois os sentidos com a câmera já
estariam ali presentes.
Na análise me interessa observar como os ritos são mostrados nos vídeos.
Como os videomakers abordam a questão cultural, o que interessa para eles, o
que interessa para os moradores? Pensar sobre as transformações sócio-culturais
naquele grupo a partir das imagens.
O bairro São Gonçalo Beira Rio foi escolhido por representar as origens da
capital mato-grossense. Sua história está documentada em autores como Lenine
Póvoas (1977 e 1987), Virgílio Correa Filho (1994), Joseph Barboza de Sá (1975),
Rubens de Mendonça (1982) para citar somente os mais antigos.
12
Localizado na margem esquerda do rio Cuiabá, na região sul da capital
mato-grossense, o São Gonçalo Beira Rio pertence ao distrito do Coxipó da
Ponte. Segundo dados do IPDU – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento
Urbano -
o bairro tem seus limites com outras áreas urbanas do município
cuiabano que inclui o Parque Geórgia, Vista Alegre, Coxipó, Coophema, Parque
Atalaia e também o rio Coxipó (anexo).
Um levantamento feito pela Regional Sul da cidade, em 2004, apontou 290
moradores em São Gonçalo.
Mas, segundo o presidente da associação de
moradores, Dalmi de Almeida, aproximadamente 350 pessoas distribuídas em 75
famílias vivem no bairro, em 2006. A predominância de pessoas idosas é
observável entre os ribeirinhos. Os relatos dos moradores indicam uma tendência
de os mais novos deixarem o lugar para viver em outras áreas de Cuiabá, em
busca de melhores condições de vida. Eles costumam visitar os pais e avós nos
finais de semana.
O processo de urbanização da cidade tem constantemente alterado
aspectos sócio-economicos e de infra-estrutura do lugar. A rua principal possui
asfalto, desde 2003. O bairro está sendo atingido pela pressão imobiliária que
busca novas áreas. Observa-se o aparecimento de peixarias no local, como já
acontece na margem direita do rio Cuiabá, no município de Várzea Grande1.
Até meados do século passado, o São Gonçalo ficava fora do perímetro
urbano de Cuiabá. Seus moradores tinham costumes típicos dos ribeirinhos que
viviam da pesca e da agricultura de subsistência. Outra atividade desenvolvida por
seus habitantes era a produção de cerâmica utilitária, como panelas, potes e
moringas. A região foi rica em argila, que era tirada até dos quintais dos
moradores. Hoje, a retirada é feita cada vez mais longe do bairro, rio abaixo. Os
1
As localidades de Praia Grande, Passagem da Conceição e Bonsucesso são conhecidas pela
abundância de peixarias que atraem turistas em busca de saborear a comida local.
13
ceramistas enfrentam a concorrência das empresas cerâmicas que também
utilizam a matéria-prima para fabricar tijolos e telhas.
Devotos de São Gonçalo, os antigos moradores eram católicos fervorosos –
herança dos desbravadores bandeirantes que por lá passaram. Esses moradores
ensinaram `as futuras gerações a tradição da dança do siriri e do cururu, durante
as festas do Santo.
Com o processo de urbanização de Cuiabá, intensificado nas décadas de
70 e 80 do século XX, houve mudanças no modo de vida desses moradores. É´ o
que revelam algumas dessas pesquisas feitas em São Gonçalo2. A chegada dos
turistas, por exemplo, levou os ceramistas a mudarem o tipo de produção
artesanal baseada em utensílios domésticos para objetos de decoração,
mostrando, assim, a influência das relações sócio-econômicas e sua ingerência no
cotidiano daquele espaço.
O local é muito freqüentado por cientistas que já escreveram muita coisa
sobre a variedade cultural presente entre seus moradores. A principal delas é o
artesanato de cerâmica, atividade descrita em monografias, dissertações, teses,
livros, vídeos, peças de teatro e reportagens. Mas há também trabalhos
acadêmicos sobre a pesca, plantas medicinais, danças folclóricas, narrações
míticas e sobrenaturais do imaginário dos moradores até assuntos relativos à
educação ambiental, saneamento, etnobotânica e questões indígenas.
Como caminho a seguir, para a construção do conhecimento, a partir do
objeto desta investigação, esta pesquisa apresenta-se como um estudo de
tipologia híbrida de tendência qualitativa. O ângulo da abordagem é cultural. Para
Santaella (2001) a área da Comunicação Social costuma apresentar investigações
de tipologia híbrida, uma vez que o tipo de pesquisa desenvolvida nutre-se de
abordagens mistas, isto é, empírica, trabalho de campo, laboratório etc.
2
Apresento inventário sobre pesquisas já realizadas em SG no capítulo 2.
14
Neste caso, a pesquisa documental (vídeo, monografias, dissertações,
livros etc) vai hibridar com
a etnografia, com a observação participante, com
entrevistas, para que se possa desvendar o espaço São Gonçalo. Interessa,
sobretudo, explicitar aspectos culturais - interno ao espaço da pesquisa e os
externos sobre o São Gonçalo. Portanto, o foco da investigação apresenta duas
grandes questões: que olhares são esses sobre o bairro São Gonçalo ? Como os
moradores se olham, através da câmera?
O primeiro capítulo do trabalho aborda as teorias que dão sustentação a
esta discussão sob a ótica cultural. Apresento as idéias de autores que dissertam
sobre a complexidade do tema cultura, como Laraia, Williams e Geertz, passando,
também, pela discussão sobre cultura popular com Gramsci, Bosi, Arantes, entre
outros, e a importância desse conceito para os Estudos Culturais.
Também abordo as teorias de recepção na ótica dos latino-americanos,
como Martin-Barbero e os processos de hibridação cultural na concepção de
Garcia Canclini. A relação entre o global e o local aparece no questionamento
sobre as identidades culturais na contemporaneidade. O assunto é tratado através
das discussões propostas por Stuart Hall sobre o “descentramento” do sujeito e
sua inserção no mundo contemporâneo. O tema também aparece em Escosteguy,
Woodward, Silva e nos latino-americanos citados acima.
No segundo capítulo apresento um inventário sobre pesquisas já realizadas
no universo do São Gonçalo Beira Rio. É um levantamento bibliográfico acerca
dos mais variados assuntos já abordados por pesquisadores que ali estiveram. O
material levantado serviu para um prévio conhecimento panorâmico das riquezas
naturais e culturais do meu objeto de pesquisa. Nesse sentido, fiz alguns
apontamentos sobre as identidades atribuídas ao São Gonçalo por esses
pesquisadores. Aproveito também para uma breve discussão sobre o conceito de
comunidade e o meu posicionamento a respeito. Procuro tratar o São Gonçalo
15
como um espaço urbano, dentro da visão moderna de cidade e urbanismo
apresentado por Lima e Maleque (2004).
Além do material pesquisado em bibliotecas procurei também, junto às
secretarias de cultura municipal e estadual, realizadores de audiovisual e
produtoras de vídeo, registros em imagens sobre o São Gonçalo. Por falta de
conservação, muitos desses registros não são mais possíveis de ser investigados.
Detive-me nos vídeos encontrados a partir do ano 2000 para frente.
No capítulo três, proponho uma discussão sobre o Vídeo como expressão
cultural. Com base em autores que investigam o tema e da minha própria
experiência como profissional de Comunicação Social, disserto sobre os caminhos
que a tecnologia videográfica vem tomando neste princípio do século XXI. Assim,
falo sobre a sua evolução histórica até o formato digital que vem oportunizando a
produção de imagens não só por profissionais inseridos no mercado da indústria
cultural, mas também por grupos sociais subalternos. Moradores de favelas, de
aldeias indígenas, grupos de cultura afro estão se expressando através de
imagens mostrando a sua visão sobre a realidade que vivem.
No quarto capítulo, apresento a análise dos vídeos sobre o bairro São
Gonçalo, tanto os que foram produzidos por videomakers, como os registros
audiovisuais dos próprios moradores, relacionando-os com as teorias dos Estudos
Culturais. Todo o detalhamento do processo de produção audiovisual está
relatado, mostrando como se deu o trabalho. Inicialmente foram recolhidas quinze
fitas gravadas pelos moradores com assuntos sobre festas, mutirões e lazer.
Desse material foram escolhidos dois assuntos para análise: meio ambiente e os
festejos de São Gonçalo.
Por fim, faço as considerações sobre as leituras dos textos em vídeo,
discutindo aspectos da cultura popular e identidade.
16
1 - APORTE TEÓRICO METODOLÓGICO
A narração nunca é um dado aparente das imagens, ou
o efeito de uma estrutura que as sustenta; é conseqüência
das próprias imagens aparentes, das imagens sensíveis
enquanto tais, como primeiro se definem por si mesmas.
Gilles Deleuze
17
1.1 Sobre o Conceito de Cultura
A idéia de cultura, na contemporaneidade, e particularmente, dentro de uma
pesquisa em Estudos Culturais, leva-nos a um emaranhado de sentidos e
significados oriundos dos estudos antropológicos e sociológicos. A evolução dos
meios de comunicação e a penetração destes nos costumes das sociedades
atuais têm proporcionado mais polêmica ao assunto.
Laraia (2004) investiga o conceito, reconstruindo a idéia de cultura, desde o
iluminismo, afastando-a do determinismo biológico e geográfico. O autor mostra
que na Alemanha do século XVIII a palavra Kultur era usada no sentido de
simbolizar aspectos espirituais, enquanto na França, a palavra civilization
siginificava as realizações materiais de um povo. Em sua leitura de Edward Tylor
(1871) destaca o termo Culture como:
[...] tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui
conhecimentos, crenças, arte, moral, leis costumes ou qualquer outra capacidade ou
hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.(LARAIA, 2004, p.25)
Na busca de um crescente afastamento entre o domínio cultural e o natural,
o autor mostra que Tylor foi seguido por Alfred Kroeber (1947) em seus estudos,
onde afirma que o homem diferencia-se dos outros animais pela “possibilidade de
comunicação oral e a capacidade de fabricação de instrumentos capazes de
tornar mais eficiente o seu aparato biológico” (Laraia, 2004, p.28). Para Kroeber,
essas duas propriedades permitem afirmar que o homem é o único ser possuidor
de cultura. Ele pensava o ser humano como “eminentemente cultural”,
independente de carga genética, mas que passa por um processo de
aprendizagem. O conhecimento e a experiência são frutos de um processo
acumulativo das gerações passadas. As invenções e inovações são resultados da
18
manipulação adequada desse patrimônio cultural por toda uma comunidade e não
a ação isolada de um gênio.
Laraia mostra ainda que Tylor tinha uma visão evolucionista da cultura.
Baseado no pensamento de Charles Darwin, ele acreditava que esta desenvolvia–
se de maneira uniforme, de modo que cada sociedade percorreria as etapas
dessa evolução até chegar as sociedades mais avançadas.
A visão evolucionista, segundo Gonçalves (1996) explica cultura como uma
noção extensiva a toda humanidade, mas diferenciada por hierarquia, havendo
sociedades mais evoluídas culturalmente do que outras. As sociedades européias
do século XIX estariam no ápice dessa escala evolutiva. As outras sociedades
estariam mais ou menos evoluídas de acordo com esse padrão de referência. Os
critérios para essa evolução seriam a presença do Estado, propriedade privada,
família monogâmica, desenvolvimento tecnológico etc. Para os evolucionistas a
noção de cultura estava ligada a noção de evolução biológica uma vez que os
chamados povos primitivos eram considerados assim também no plano biológico.
Os evolucionistas consideravam a cultura uma palavra singular. Não admitiam
“culturas”.
Raymond Williams é um dos teóricos tido como referência para os Estudos
Culturais. Ele se debruçou sobre a dificuldade em se definir o termo cultura. Das
acepções mais antigas, a palavra pode designar o cultivo da terra e da criação de
animais. Também diz respeito ao ativo da mente humana que, na Inglaterra e na
Alemanha, configurou-se como “do espírito” que revela “o modo de vida global” de
determinado povo. Williams (1992) estudou o pensamento de Herder (1784-91),
que foi o primeiro a empregar o termo no plural, “culturas”, com a intenção de não
confundir o termo com “civilização”.
19
Para Gonçalves (1996), a noção pluralista de cultura é obra do discurso
moderno antropológico, do século XX, presente em autores como Boas,
Malinowski, Durkheim e Mauss. Eles elaboraram um vocabulário alternativo
falando em uma noção etnográfica de cultura que inclui noções como “trabalho de
campo”, “observação participante” “etnografia” (Gonçalves, 1996, p. 160)
Nas teorias modernas, o pensamento de Clifford Geertz é considerado de
suma importância para a evolução do conceito de cultura. Em A Interpretação das
Culturas, o autor afirma, logo no início do livro, que está `a procura de um conceito
“justo” para a palavra cultura de modo que esta tenha sua importância continuada.
O pesquisador norte-americano considera o homem dividido em três níveis:
biológico, psicológico e cultural. Ele entende que a cultura deve ser vista como um
complexo de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, programas para
governar o comportamento. Para Geertz a criança nasce apta a ser socializada
em qualquer cultura existente. Mas essas possibilidades são reduzidas ao
contexto real e específico onde de fato ela crescer.
O autor passa a discorrer sobre os vários significados dados a palavra cultura por
Clyde Kluckhohn, no livro Mirror for Man , onde o termo é definido como:
1 – o modo de vida global de um povo; 2 – o legado social que o
individuo adquire do seu grupo; 3 – uma forma de pensar, sentir e
acreditar; 4 – uma abstração do comportamento; 5 – uma teoria,
elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de
pessoas se comporta realmente; 6 – um celeiro de aprendizagem
em comum 7 – um conjunto de orientações padronizadas para os
problemas recorrentes 8 – comportamento aprendido; 9 – um
mecanismo para a regulamentação normativa do comportamento;
10 – um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente
externo como em relação aos outros homens 11- um precipitado
da historia. (KLUCKHOHN apud GEERTZ, 1973, p.14):
Para Geertz, os símbolos e significados são partilhados pelos atores - os
membros do sistema cultural - entre eles, mas não dentro deles. Assim,
ele
20
associa o estudo da cultura ao estudo de um código de símbolos compartilhados
pelos membros dessa cultura.
O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os
ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico.
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal
amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a
cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não
como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma
ciência interpretativa, `a procura do significado. É justamente uma
explicação que eu procuro ao construir expressões sociais
enigmáticas na sua superfície. Todavia, essa afirmativa, uma
doutrina numa cláusula, requer por si mesma uma
explicação.(GEERTZ, 1973, p.15)
A antropologia de Geertz vai defender a idéia de entender os primitivos a
partir de sua própria perspectiva. Para isso era preciso o estudo da língua falada
nessas sociedades para o entendimento de seus costumes. O uso da palavra
cultura no plural está associado à concepção de linguagem ou linguagens,
enquanto sistemas de signos como empregou Ferdinand de Sausssure. As
experiências humanas vão ser pensadas a partir da metáfora da linguagem. Essa
concepção, conhecida como “relativismo cultural” pressupõe o ser humano
constituído por sistemas de signos diferenciados que permitem o pensamento e a
articulação das experiências com a sociedade e a natureza.
O ponto de vista de Geertz tem sido referência para autores brasileiros
também. Arantes (1990) afirma que a cultura constitui-se por signos e símbolos
que são convencionais e arbitrários. O significado cultural é resultado de uma
articulação, em contextos específicos, e da ação social. Como conseqüência, os
eventos culturais devem ser considerados na sua totalidade, tendo como limites
critérios internos às situações observadas.
Williams (1992) observa que as discussões sobre o conceito de cultura
fazem parte dos estudos da sociologia da cultura. Segundo o autor, este é um
21
ramo da sociologia vista com certa desconfiança pelos mais antigos que a
considera ambígua.
Assim, ela não só parece ser, como é de fato
subdesenvolvida. Não há escassez real de estudos específicos,
embora em relação a este, como a outros tópicos, haja muito mais
a ser feito. Enquanto não é reconhecida como convergência, e
como um problema de convergência, a reação habitual diante dela,
mesmo quando compreensiva (e isso, numa geração mais antiga e
tradicional é relativamente raro), é encará-la com pouco mais do
que um agrupamento indefinido de estudos de especialistas, quer
em comunicações, em sua forma especializada modernas de
‘meios de comunicação de massa’, quer no campo bem
diversamente especializado das ‘artes’. (WILLIAMS, 1992, p.9)
Para Williams, a sociologia da cultura investiga aspectos
possíveis e
demonstráveis oriundos dos processos de comunicação, arte e novas linguagens
observáveis na sociedade contemporânea, procurando uma re-elaboração das
idéias mais tradicionais e gerais dos estudos sociológicos, como também
propondo novos questionamentos e evidências para o trabalho das ciências
sociais.
Williams nos fala sobre os significados tanto dentro da antropologia quanto
fora desta, mas que produzem significados convincentes: “a ênfase no espírito
formador – ideal, religioso ou nacional” (Williams, 1992, p.11) – até o emprego
como “cultura vivida” que envolve processos sociais atrelados a questões de
ordem econômica
ou política. O autor afirma que cultura ora refere-se
significativamente a questões globais, ora traz referências parciais.
De modo geral, o sentido de cultura está ligado ao cultivo ativo da mente.
Ele mostra que é possível empregar o termo com vários significados. O primeiro
ligado ao “estado mental desenvolvido” – “pessoa de cultura”, “pessoa culta”. Num
segundo momento designa “os processos desse desenvolvimento” – como em
“interesses culturais”, “atividades culturais”. Outro emprego recai sobre “os meios
22
desses processos” – cultura como “arte” e o “trabalho intelectual do homem”. Este
último emprego, referente `a arte e ao trabalho intelectual do homem, é o mais
comum de cultura. Mesmo sendo usual nas outras formas, convivendo muitas
vezes de forma desconfortável com o uso antropológico e sociológico “para indicar
‘modo de vida global’ de determinado povo ou grupo social” (Williams, 1992,p.11).
Diante da dificuldade em fixar um sentido a palavra cultura, Williams propõe
que se encare a discussão de forma mais proveitosa como resultado de uma
convergência de interesses. Do sentido idealista – ênfase no “espírito formador”
que pressupõe um modo de vida global com interesse específico nas atividades
culturais “uma certa linguagem, estilos de arte, tipos de trabalho intelectual”
(Williams, 1992, p.11) – ao sentido materialista – ênfase numa ordem social global
cujas manifestações culturais específicas, estilo de arte e trabalho intelectual é
visto como produto de outras atividades sociais.
O pensamento de Geertz destaca o impacto da noção de cultura sobre o
conceito de homem. O que no pensamento iluminista era visto como imutável,
idêntico, que partilha uma mesma razão em qualquer lugar e sociedade, passa a
ser pensado como um homem descentrado e fragmentado. A concepção
relativista de cultura vai manter uma tensão com a noção universalista. Para esta
última, as chamadas “culturas” são “disfarces”, “máscaras”, “roupas” que
escondem as profundas identidades dos homens. Já na visão relativista as
diferenças culturais revelam pensamentos, emoções e práticas diferenciadas dos
seres humanos, ou seja, culturas e linguagens são parte dos seres humanos.
Segundo Williams, ainda que nas obras contemporâneas mantenha-se e
pratique-se as duas posições, observa-se, a partir da segunda metade do século
XX, o delineamento de uma nova forma de convergência. Cultura passa a ser
encarada como um sistema de significações.
Assim, há certa convergência prática entre os sentidos
antropológicos e sociológicos de cultura como ‘modo de vida
23
global’ distinto, dentro do qual percebe-se, hoje, um ‘sistema de
significações’ bem definido não só como essencial, mas como
essencialmente envolvido em todas as formas de atividade social,
e o sentido mais especializado, ainda que também mais comum,
de cultura como ‘atividades artísticas e intelectuais’, embora estas
, devido à ênfase em um sistema de significações geral, sejam
agora definidas de maneira muito mais ampla, de modo a incluir
não apenas as artes e as formas de produção intelectual
tradicionais, mas também todas as ‘práticas significativas’ – desde
a linguagem, passando pelas artes e filosofia, até o jornalismo,
moda e publicidade – que agora constituem esse campo complexo
e necessariamente extenso. (WILLIAMS,1992, p.13)
Há, portanto, no entender do autor, um entrelaçamento e uma ampliação
dos sentidos da palavra cultura, cuja investigação dá-se hoje através dos
chamados Estudos Culturais, ramo da sociologia geral sem um caráter reservado
ou especializado, diz Williams, mas que dá ênfase aos sistemas de significações,
`as práticas e produção culturais manifestas.
Martin-Barbero (2003) nos fala de um “descentramento” do conceito de
cultura no seu eixo semântico e pragmático com uma investigação voltada agora
para o popular e das relações deste com a história, os meios de comunicação e a
política. Há, segundo o autor, uma re-elaboração geral das relações cultura/povo e
povo/classes sociais que recupera o pensamento de Gramsci e a idéia de
hegemonia. O lugar do popular é “re-situado” e investigado como “parte da
memória constituinte do processo histórico”(Martin-Barbero, 2003, p.102).
Na obra Literatura e Vida Nacional, Gramsci (1968) analisa a cultura
italiana, investigando as aproximações e afastamentos entre as concepções de
vida culta e popular. Assim, há uma cultura erudita transmitida pela escola e
oficializada pelas instituições. De outro lado, há uma cultura vinda do povo, cujos
costumes não se enquadram nos esquemas oficiais. Do lado erudito há ainda uma
24
relação de oposição entre a visão conservadora e aqueles que defendem as
inovações, ou seja, uma vanguarda que se contrapõe ao pré-estabelecido.
Bosi (1985), em “A cultura do Povo”, afirma que enquanto a cultura popular
não está articulada com a cultura de elite ela é vista como “a outra”, como folclore,
fonte da diferença. Defrontam-se, assim, dois grupos: o primeiro tem suas
realizações culturais significadas socialmente; na outra, as realizações só
assumem significado quando postas em oposição `a cultura dominante.
Fleuri (1998), no estudo sobre Intercultura e Movimentos Sociais, aponta o
monoculturalismo como a perspectiva ligada `a classe dominante, com uma visão
igualitária, singular e universal. Já o multiculturalismo enfatiza a história, leva em
consideração a construção das identidades culturais, das diferenças que devem
ser respeitadas. Ele lembra que os estudos antropológicos mostraram que as
sociedades e classes subalternas também são depositárias de cultura, superando
a idéia de que esta seria um privilégio da classe dominante.
A tolerância `a diferença e a solidariedade aparecem como o
cimento que une os movimentos sociais em uma rede planetária
que promova a igualdade com respeito `as diferenças culturais,
assim como a luta contra os processo crescentes de exclusão
social inerentes `a globalização.
(FLEURI, 1998, p.11)
Em Literatura e Vida Nacional, Gramsci conta uma passagem de De Sancti
que trabalhou para a unificação da “classe culta” de Nápolis, mas percebia
também a necessidade de uma nova atitude diante das classes populares. Era
preciso um novo conceito de nacional, mais amplo e menos exclusivista. Gramsci
interpreta a frase de De Sanctis que diz: “Falta a fibra porque falta a fé. E falta a fé
porque falta a cultura”. O autor afirma que o enunciado significa uma concepção
da vida e do homem que é coerente, unitária e nacionalmente difundida. “Uma
‘religião laica’, uma filosofia que tenha se transformado precisamente em ‘cultura’,
isto é, que tenha gerado uma ética, um modo de viver, uma conduta civil e
individual” (Gramsci,1968, p.04).
25
Gramsci fala da necessidade de uma “cultura laica” que nunca houve na
Itália. Segundo o autor, o resultado disso foi a preferência dos italianos pelos
folhetins franceses aos romances nacionais. A literatura francesa representava,
assim, “um humanismo moderno, este laicismo em sua forma moderna” (Gramsci,
1968, p.108)
Nesse estudo do intelectual italiano fica clara a sua defesa por um
reencontro da cultura com os problemas concretos da vida social e nacional em
detrimento (ou afastamento) da cultura cosmopolita “sem raízes”, advinda pela
tradição católica na Itália.
Essa mudança na perspectiva histórica sobre o popular implicava, segundo
Martin-Barbero (2003), numa releitura sobre o popular na cultura da Idade Média.
Apoiando-se em Le Goff, o autor nos fala da Idade Média que deixa de ser o
tempo da lenda negra e da áurea para o tempo “que criou a cidade, a Nação, o
Estado, a Universidade, o moinho, a máquina, o relógio, a hora, o livro...e,
finalmente, a Revolução” (Martin-Barbero, 2003,p.103).
Na investigação dessa outra história, continua o autor, Le Goff pesquisou a
oposição entre cultura erudita e cultura popular. Uma história feita de conflitos e
diálogos. Muitas vezes em nome de uma cultura oficial foram destruídos objetos,
representações de deuses, abolidas práticas e rituais que, de outra forma, foram
recuperadas pela Igreja. Esse embate acabou criando um “diálogo ‘feito de
pressões e repressões, empréstimos e resistências’ entre Cristo e Merlin, santos e
dragões, Joana D´Arc e Melusiana” (Martin-Barbero, 2003, p.105)
A implicação do popular na análise de Martin-Barbero, está na mudança
metodológica, “a partir da qual se deve reler a história não enquanto história da
cultura, mas enquanto história cultural” (Martin-Barbero, 2003, p.104).
26
Gramsci (1999) recupera a questão nos anos 1960, a partir do conceito de
hegemonia, discutindo a dinâmica de dominação como um processo que envolve
a representação de interesses de uma classe, mas que também são reconhecidos
como seus pela classe subalterna. Assim, a hegemonia é um jogo que faz e se
desfaz, permanentemente; que envolve força, apropriação de sentido pelo poder,
mas também sedução e cumplicidade. Em outras palavras, a cultura popular
possui uma representatividade no espaço social que expressa o modo de viver e
pensar das classes subalternas. Mas também a sua sobrevivência e as formas
como absorvem o discurso hegemônico ao mesmo tempo em que fundem e
integram com a sua própria memória histórica.
Nessa trama entre o discurso hegemônico e o discurso popular, Garcia
Canclini (1982) chama a atenção para o fato de que nem todo discurso
hegemônico é assimilado pela classe subalterna, e nem toda recusa significa uma
resistência àquele discurso. Mas existem outras lógicas presentes nessa relação,
além da dominação.
Fleuri (1998) nos lembra que, por outro lado, a vida globalizada tende a
anular as diferenças e atenuar as desigualdades em nome do mercado, do
consumo e das comunicações globais. Assim, uma cultura (singular) poria fim as
especificidades, nivelando o cotidiano das pessoas em nome de uma vida melhor.
Mas nas fissuras da economia de mercado surgem novos comportamentos
marginais e localizados que evidenciam a complexidade das culturas (plural), não
só de classes sociais ou grupos territoriais, como também de faixas etárias,
experiências, instituições, organizações produtivas etc.
Bosi (1996) observa que a cultura popular está em constante re-elaboração.
Nem tudo é herdado, mas os temas se refazem com o passar das gerações.
Existe uma motivação espontânea dos membros de uma comunidade que os
empurra a reviver a dimensão folclórica, atualizando-a.
27
Segundo Laraia (2004) existem dois tipos de mudança cultural: a primeira é
interna - resultante da dinâmica do próprio sistema cultural . A segunda é
resultado do contato de um sistema cultural com outro. Nesse sentido, Laraia
afirma que cada sistema cultural está sempre em mudança. A compreensão dessa
dinâmica é importante para diminuir o choque entre gerações e evitar atitudes
preconceituosas.
Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a
compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é
necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do
mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o
homem para enfrentar seriamente este constante e admirável
mundo novo do por vir. (LARAIA, 2004, p.101)
1.1.1 - Cultura Popular e Folclore
Ortiz (2003) situa a questão a partir da assimilação da noção de folclore
como cultura popular. Para o autor nessa dimensão recupera-se a idéia de
tradição, tanto como “forma de tradição-sobrevivência”, como na “perspectiva de
memória coletiva que age dinamicamente no mundo da práxis” (Ortiz, 2003, p.70).
Observa, assim, uma ênfase no caráter conservador desse posicionamento. Ele
afirma, ainda, que no Brasil o folclore está ligado `a vida rural, das camadas
tradicionais agrárias, e menos `a burguesia urbana, como acontece na Europa.
O autor ressalta que a cultura popular como folclore valoriza a tradição
como a presença do passado. Nessa perspectiva, o progresso é visto como forma
de “de-sacralizar” o conhecimento popular. “Concebe-se, assim, uma pretensa
autenticidade das manifestações populares que irá radicalmente se opor a
qualquer movimento de transformação da realidade social” (Ortiz, 2003, p.71)
Observa, ainda, que a atuação dos Centros Populares de Cultura no Brasil,
nos anos 1960, foi fundamental para romper com essa concepção que unia o
28
conceito de cultura popular ao de folclore. Assim, o folclore passou a ser visto
como a representação das manifestações populares conservadoras, enquanto a
cultura popular exprimiria a idéia de transformação, ligada `a tomada de
consciência política, como o momento histórico apregoava na época da ditadura
militar.
Essa visão é criticada hoje, uma vez que pressupunha que os intelectuais
de esquerda deveriam ensinar o povo a ser povo. Ela encerra em seu interior o
entendimento de que o povo era alienado e precisaria de uma elite que lhe abrisse
os olhos para a transformação social do país que só poderia vir através da política.
Assim, o pensamento do CPC traz um paradoxo pois, nega o conhecimento
popular ao mesmo tempo em que se apóia nele para buscar a transformação
social.
Nesse sentido, Arantes (1990) propõe que o debate considere as culturas
efetivamente no que são, nos processos que as constituem e no que expressam,
em detrimento do que foram, seriam ou deverão ser.
1.1. 2 - Cultura Popular e Comunicação de Massa
Ecléa Bosi (1996) apresenta um outro elemento importante para a
compreensão da dimensão cultural na Contemporaneidade. O contexto da
comunicação de massa, no século XX, que expandiu o acesso da informação a
todas as classes sociais. A autora discute a questão dos Meios de Comunicação
de Massa (MCM) servirem, satisfatoriamente, `a cultura popular, uma vez que
possuem como pressuposto o alcance do maior número de pessoas possíveis.
Ecléa Bosi analisa as várias teorias criadas para explicar os MCM: a teoria
funcionalista, o interesse pelos efeitos dos meios sobre o homem; a visão de
Marshal Macluhan, dos meios como extensão do homem; a teoria crítica na visão
dos frankfurtianos. Quando investiga a cultura de massa com a cultura popular, a
29
autora afirma que os teóricos não conseguiram “aclarar” a distinção entre “uma
realidade cultural imposta de ‘cima para baixo’ (dos produtores para os
consumidores) e uma realidade cultural estruturada a partir de relações internas
no coração da sociedade” (Bosi, 1996, p.63).
Diante da indagação sobre uma possível absorção da cultura de massa
pela popular ela argumenta que do ponto de vista histórico e funcional “a cultura
popular pode atravessar a cultura de massa tomando seus elementos e
transfigurando esse cotidiano em arte... pode assimilar novos significados em um
fluxo contínuo e dialético” (Bosi, 1996, p.65).
1.1.3 - Cultura brasileira
Ao refletir sobre a cultura brasileira, Alfredo Bosi (2004) afirma que a cultura
popular se encontra em certas ocasiões com a cultura de massa, esta com a
cultura erudita e vice-versa. Há ainda as imbricações entre as velhas culturas
ibéricas, indígenas e africanas. Cada uma destas também polimorfas pelas fusões
dos contatos interétnicos. E existem ainda as miscigenações mais recentes,
resultantes do contato entre as culturas migrantes (japonesa, italiana, alemã, síria
etc) com as regionais (nordestina, gaúcha, paulista etc).
Alfredo Bosi diz ainda que já houve quem pensasse a cultura brasileira
como unitária e outros que extraíram dessa pretensa unidade uma idéia de
identidade nacional. Ele afirma que não existe uma cultura brasileira homogênea,
geradora dos nossos comportamentos e dos nossos discursos. Ao contrário, é
fundamental admitir o seu caráter plural para a compreensão dos efeitos de
sentido, resultantes de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo
e no espaço.
Segundo o autor, essa multiplicidade causa uma aparência de caos. Daí o
uso corrente de expressões jocosas criadas para definir a mente brasileira como
30
“geléia geral” ou “samba do crioulo doido”. Mas, ao deslocarmos o olhar de
consumidor para o de analista da cultura, é possível definir linhas de força que
remetem a estruturas sociais diferenciadas. A idéia de caos e nonsense fica como
fruto da “civilização de massa”, mas o plural cultural se impõe e é preciso olhar
esse plural detalhadamente.
Alfredo Bosi afirma que um dos princípios diferenciadores para nortear a
análise seja o sentido de tempo. “Os ritmos das culturas no Brasil são diversos”
(Bosi, 2004, p.08). Existe um tempo cultural acelerado, diz o autor, que é o da
cultura de massa. Da mídia que produz cultura para consumo 24h por dia. TV,
rádio, sessão corrida no cinema, internet, publicação de revistas mensais,
semanais, jornais diários e até a pesquisa universitária precisa ser publicada se
não torna-se perene. Tudo ligado ao consumo: tiragem, prazo, lucro. Bens
simbólicos em ritmo industrial.
Essa cultura, segundo o autor, é alimentada pela idéia de novidade. É
imperiosa a substituição de signos de tempos em tempos para redefinir padrões,
modas, comportamentos. Para ele essa cultura industrial ocupa o tempo de relógio
e o interior do cidadão. Em decorrência há uma generalizada perda de memória
social. Para que o cidadão faça uma seleção e adquira um ponto crítico sobre a
sua representação de mundo é preciso que ele conheça ritmos diversos ao da
indústria de signos. Segundo o autor, é isso que tira o cidadão do risco da
massificação.
Alfredo Bosi leva-nos a indagar sobre qual seria essa outra cultura capaz de
resistir `a indústria cultural e enriquecer o cidadão no seu campo de significações.
Para ele a resposta se bifurca: ou é a cultura popular, das classes pobres e
iletradas, ou a cultura erudita conquistada com a escolaridade. Apesar de
cercadas pelos meios de comunicação, as duas alternativas guardam um centro
de resistência intencional ou não. “Resistência pressupõe, aqui, diferença: historia
interna especifica; ritmo próprio; modo peculiar de existir no tempo histórico e no
31
tempo subjetivo” (Bosi, 2004, p.10). Nem a cultura popular nem a erudita
constroem-se sob o regime da produção em série das linhas de montagens ou da
imposição dos horários mecânicos, afirma o autor.
O tempo da cultura popular pressupõe ciclos. Tempo sazonal, lunar, das
marés, do plantio e da colheita, da menstruação, do cio etc. O seu fundamento
está no retorno a situações e atos reforçados pela memória coletiva do grupo,
atribuindo-lhes valor. A inovação penetra a cultura popular traduzida e transposta
em velhos padrões de percepção e sentimentos já interiorizados. “De resto, a
condição material de sobrevivência das práticas populares é o seu enraizamento”
(Bosi, 2004, p11).
Ao nutrir-se da aparência do novo, os meios de comunicação afastam-se do
ciclo, do sazonal, do enraizamento. Caso o público um dia se visse saciado das
excitações televisivas, o sistema entraria em colapso, afirma Bosi. Já nas
manifestações populares o ato de participar cria uma identificação entre todos.
Mas a partir do momento que os meios de comunicação apoderam-se dessas
práticas cria-se um distanciamento e o que é popular torna-se espetáculo,
ocultando o caráter original de enraizamento.
Assim, o autor sustenta que no Brasil os estudos de cultura precisam se
relativizar, pois geralmente nossas fontes de informação têm como origem a
cultura erudita estabelecida na Europa e nos Estados Unidos. Por isso, a tarefa
das ciências humanas no país é aprofundar os estudos históricos-comparativos
sobre a formação social brasileira. Quanto a nossa cultura, Alfredo Bosi observa
que ela é plural, mas não caótica, transpassada pela divisão social.
Fazer o seu levantamento e divisar no claro-escuro do cotidiano as
relações entre vida simbólica, economia e política é recusar-se a
cair na tentação do absurdo que nos ronda mal deitamos os olhos
nas manchetes dos jornais. (BOSI, 2004, p.15)
32
1.2 - Os estudos sobre Identidade
A questão das identidades culturais está entre as principais discussões que
envolvem as teorias sociais hoje. O tema relaciona-se com o sujeito e sua
inserção no mundo, a partir da modernidade, quando o indivíduo centrado e
unificado da era iluminista passa por questionamentos no pensamento ocidental.
Este sujeito é definido historicamente e não mais biologicamente. A análise passa
a
ser
vinculada
`as
representações
culturais
que
se
multiplicam
na
contemporaneidade, o que leva a uma multiplicidade de identidades. A questão
tem uma de suas marcas no questionamento sobre as diferenças.
Para Hall (2004) as identidades modernas estão sendo "descentradas", isto
é, deslocadas ou fragmentadas. Um tipo diferente de mudança estrutural está
transformando as sociedades modernas desde o final do século XX. Isso está
fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade. Noções que no passado eram consideradas sólidas para o
indivíduo na sociedade. Essas transformações estão abalando as identidades
pessoais, interrogando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos
integrados. Essa perda de sentido de si é chamada de deslocamento ou
descentramento do sujeito. Aí está posta a crise de identidade para o indivíduo.
Woodward (2000) afirma que as identidades adquirem sentido, através da
linguagem e dos sistemas simbólicos que as constituem. A autora apresenta a
questão sob duas perspectivas: a essencialista e a não-essencialista. A primeira
trata a identidade como algo que não se altera com o tempo. Ela é vista como
autêntica, cristalina. A visão essencialista fundamenta-se na história e na biologia.
A autora exemplifica com a maternidade, que seria uma identidade baseada na
biologia do corpo feminino. Por outro lado, os movimentos étnicos e religiosos
reivindicam uma cultura ou história comum para a fundamentação de sua
identidade.
33
Uma visão não-essencialista, segundo Woodward, foca-se nas diferenças,
assim como em características comuns ou partilhadas entre grupos. Mas também
observa as mudanças que tais características adquirem através dos séculos.
Portanto, é atribuída a identidade um caráter de construção social. Nas relações
interpessoais e em grupo existem entrelaçamentos da vida cotidiana com
aspectos econômicos, políticos e culturais ligados `a subordinação e dominação.
Segundo a autora, todas as práticas de significação simbólica incluem relação de
poder, constituindo-se em critérios de inclusão e exclusão social.
Escosteguy (2001) aponta equívocos nas duas correntes. A essencialista
não considera as diferenças do “outro", que é sempre visto de uma perspectiva
universalista. A segunda posição, por ser um produto social que destaca as
diferenças e descontinuidades históricas, olha o 'outro' pela perspectiva da
especificidade cultural única, sem entender a base comum da humanidade entre
as culturas, diz a autora.
Para a autora as duas posições correm o risco de se tornarem
preconceituosas. A universalista descuida da especificidade do "outro" em nome
de uma verdade absoluta e histórica. Assim, tende a julgar outras culturas com
base na sua própria. Por outro lado, a visão historicista ao destacar as diferenças
pode julgar o "outro" como inferior. Para a autora, é diante desse quadro que se
evidencia a problematização das identidades culturais.
Examinando autores como Stuart Hall, Jesús Martin-Barbero e Néstor
Garcia Canclini, que dão sustentação ao texto de Escosteguy, assim como o de
Woodward, observa-se que a discussão sobre identidade e diferença faz-se no
cenário da globalização e da pós-modernidade.
Segundo Hall (2004), globalização refere-se a processos em escala global
que ultrapassam fronteiras nacionais, “integrando e conectando comunidades e
organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo em
34
realidade e experiência mais interconectado” (Hall, 2004, p.67).
Essa nova
percepção de tempo e espaço, resultante da compressão de distâncias e escalas
temporais presentes no fenômeno da globalização, reflete sobre as identidades
culturais.
O autor vê como conseqüência do processo de globalização três aspectos
sobre a identidade cultural: 1 - a desintegração das antigas identidades como
resultado da homogeneização cultural e do pós-moderno global; 2 - as identidades
nacionais e outras locais estão se reforçando pela resistência a globalização; 3 as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades, híbridas,
estão surgindo.
Hall examina três concepções de identidade. A primeira delas é o sujeito
iluminista que traz uma concepção da pessoa humana como indivíduo centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. A
identidade nasce com o sujeito e se desenvolve com ele.
Grande parte da história da filosofia ocidental consiste de reflexões ou
refinamentos da concepção do sujeito, seus poderes e suas capacidades. Muitos
movimentos na cultura ocidental também o foram. A fé guiou os destinos do
homem durante séculos, tendo Deus como o centro do universo. O renascimento,
o iluminismo, confere ao Homem a capacidade para questionar, investigar e
conhecer os mistérios da natureza. O Homem racional, centrado, científico foi
libertado do dogma e da intolerância.
Portanto, o sujeito moderno nasceu do descentramento de Deus do
universo. Para Descartes, a concepção do homem como sendo o centro - "penso,
logo existo" - traz a concepção do sujeito racional, pensante e consciente, situado
no centro do conhecimento, o "sujeito Cartesiano". Para John Locke a identidade
da pessoa alcança a exata extensão em que sua consciência pode ir. Traz a
35
noção de "indivíduo soberano" - um sujeito da razão e das conseqüências das
suas práticas.
A segunda concepção é o sujeito sociológico, cuja noção reflete a crescente
complexidade do mundo moderno e a consciência de que o núcleo interior do
sujeito não é autônomo e auto-suficiente. Na medida em que as sociedades
modernas se tornavam mais complexas, a vida se tornou mais coletiva e social. As
teorias clássicas baseadas nos direitos individuais foram obrigadas a dar conta
das estruturas do estado-nação e das grandes massas que fazem uma
democracia moderna. Emergiu, então, uma concepção mais social do sujeito. O
indivíduo passou a ser visto como parte das estruturas da sociedade moderna, a
partir do século XVIII.
A sociologia forneceu críticas ao "individualismo racional" do sujeito
cartesiano. Localizou o indivíduo em processos de grupo e normas coletivas. Em
conseqüência desenvolveu uma explicação do modo como os indivíduos são
formados subjetivamente, através da participação nas relações sociais mais
amplas. Há uma internalização do mundo exterior no sujeito que depois volta a
exteriorizá-la. A exteriorização do interior. Esse modelo sociológico interativo com
sua reciprocidade estável entre o "interior" e "exterior" é em grande parte um
produto da primeira metade do século XX, quando as ciências sociais assumem
sua forma disciplinar atual.
O sujeito sociológico é formado nas relações com outras pessoas
importantes para o sujeito. Essas pessoas mediam para ele os valores, sentidos,
símbolos - a cultura, do mundo que habitam. O sujeito ainda tem um núcleo
interior, mas este é formado e modificado num diálogo constante com o mundo
exterior, as identidades que o mundo lhe oferecem. Ele abrange o espaço interior
e exterior, o mundo pessoal e o público. Internalizamos valores que passam a
fazer parte de nós, alinhando os sentimentos subjetivos com os lugares objetivos
36
do mundo social e cultural. A identidade, então, costura, “sutura” o sujeito `a
estrutura. Sujeito e mundo cultural são unificados e estáveis.
A terceira concepção é o sujeito pós-moderno cuja identidade previamente
estabelecida como unificada e estável está se tornando fragmentada. Composto
não de uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não
resolvidas.
Mudanças
estruturais
e
institucionais
estão
na
raiz
dessa
transformação. Há um colapso das paisagens sociais que asseguravam a
conformidade da vida subjetiva com as necessidades do mundo objetivo. Esse
processo produz o sujeito pós-moderno, que não tem uma identidade fixa,
essencial, permanente.
A identidade torna-se uma "celebração móvel", formada e transformada de
acordo com as representações e interpelações dos sistemas culturais vigentes. Na
medida em que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, confrontamos uma multiplicidade de identidades possíveis com as
quais podemos nos identificar, ao menos provisoriamente.
Segundo
Hall,
a
sustentação
do
pensamento
pós-moderno
da
fragmentação das identidades passa também por deslocamentos. Primeiro,
através da releitura do pensamento de Marx, nos 1960, sob a luz da afirmação
que "homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhe são dadas"
(Hall, 2004, p.34), quer dizer, os agentes da história só podem agir com base nas
condições históricas criadas pelos seus antecessores, utilizando os recursos
materiais e de cultura que lhes foram fornecidos por gerações anteriores.
O segundo descentramento no pensamento ocidental do século XX vem
dos estudos freudianos sobre o inconsciente. A teoria de que nossas identidades,
nossa sexualidade, e a estrutura dos nossos desejos são formadas por processos
psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona por uma lógica diferente
daquela da razão. O pensamento de Freud nega o conceito de sujeito cartesiano.
37
Para Freud, a subjetividade é o produto de processos psíquicos inconscientes.
Jaques Lacan, interpretando Freud, diz que a imagem do eu como inteiro e
unificado é algo que a criança aprende gradualmente e com dificuldade. A
formação do eu dá-se na relação com os outros. Na relação com os pais, a
chamada "fase do espelho". A formação do eu no "olhar" do outro, de acordo com
Lacan (1999), inicia a relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela
mesma e assim se dá a entrada dela nos sistemas de significação, incluindo
língua, cultura, diferença sexual. Os sentimentos contraditórios e não resolvidos
que acompanham a criança são aspectos chave da formação inconsciente do
sujeito. (amor e ódio do pai, o conflito do desejo de agradar e o impulso para
rejeitar, a divisão entre as partes boa e má, a negação da parte masculina ou
feminina).
Tudo o que deixa o sujeito dividido permanece com a pessoa por toda a
vida. Entretanto, embora o sujeito esteja sempre partido, dividido, ele vivencia sua
própria identidade como se ela estivesse resolvida e definida, unificada. Algo que
ele formou na fase do espelho. Essa, de acordo com esse raciocínio psicanalítico
é a origem contraditória da identidade. A identidade, portanto, forma-se ao longo
do tempo, por processos inconscientes. Está sempre em processo, sempre sendo
transformada.
O terceiro descentramento está associado à lingüística estrutural de
Ferdinand de Saussure (1995) para quem a língua é um sistema social e não
individual. Falar uma língua é antes de expressar nossos pensamentos, ativar a
imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em
nossos sistemas culturais. O significado surge nas relações de similaridade e
diferença que as palavras têm com outras palavras no interior do código da língua.
Por exemplo, a noção do que é "noite" porque sabemos que é diferente de "dia".
O quarto descentramento vem do trabalho do filósofo e historiador Michel
Foucault (2000). Ele destaca um novo tipo de poder que ele chama de poder
38
disciplinar que se desdobra ao longo do século XIX. O poder disciplinar está
preocupado, com a regulação, a vigilância é o governo da espécie humana, de
populações, do indivíduo e do corpo. Seus locais são as novas instituições que
policiam e disciplinam as populações modernas - oficinas, quartéis, escolas,
prisões, hospitais, clínicas. O poder disciplinar é fruto das novas instituições
coletivas. Suas técnicas envolvem uma aplicação do poder e do saber que
individualiza ainda mais o sujeito e envolve mais intensamente seu corpo.
O quinto descentramento é o feminismo, tanto como uma crítica teórica
quanto como movimento social. Faz parte dos novos movimentos sociais que
surgiram nos 1960 - marco da modernidade tardia. O feminismo apelava `as
mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, `as lutas raciais aos negros, o
movimento antibelicista aos pacifistas. Isso constitui o nascimento histórico do que
veio a ser conhecido como política de identidade.
A preocupação de Hall é com a identidade nacional. No mundo moderno, as
culturas nacionais constituem-se em uma das principais fontes de identidade
cultural. Elas são vistas como da natureza essencial
do Homem. Mas as
identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são
formadas no interior da representação. Sabemos o que é ser brasileiro pelo modo
como a brasilidade veio a ser representada. A nação não é uma entidade política,
mas algo que produz sentidos - um sistema de representação cultural. Uma nação
é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu poder para gerar um
sentimento de identidade e lealdade.
Hall apresenta aspectos sobre a narrativa da cultura nacional como fonte
de significados.
1 - Narrativa da Nação como é contada na história, na literatura, na mídia e
cultura popular. Dá importância e significado a nossa existência, conectando
nossas vidas cotidianas com o destino nacional que preexiste a nós e continua
existindo após nossa morte (idéia de continuidade).
39
2 - Estratégia da Tradição, mesmo que certas vezes essas práticas façam
parte de um passado recente e algumas vezes inventadas, busca inculcar valores
e normas de comportamento pela repetição, implicando a continuidade.
3 - O Mito Fundacional: uma estória que localiza a origem da nação, do
povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que se perdem nas
brumas do tempo, não o tempo real mas o tempo mítico.
4 - A identidade nacional é também baseada muitas vezes numa idéia de
povo puro, original (folk).
Assim, o discurso de cultura nacional constrói identidades que são
colocadas de forma ambígua, entre o passado e o futuro. Ortiz (2003) observa a
questão do ponto de vista da autenticidade. O fato da identidade ser uma
construção simbólica elimina as dúvidas sobre a falsidade ou veracidade do que é
produzido. O autor entende que não há uma identidade autêntica, “mas uma
pluralidade de identidades construídas por diferentes grupos sociais em diferentes
momentos históricos” (Ortiz, 2003, p.08).
1.2.1 - Identidade e Diferença
De acordo com Ortiz (2003) toda identidade se define por algo que lhe é
exterior, isto é, a diferença. Daí a preocupação em constituir a idéia de uma
cultura nacional. Por outro lado, o autor observa que a questão envolve também
uma dimensão interna. Não basta dizer que somos diferentes, mas mostrar com o
que identificamos.
Para Hall (2004) a idéia de cultura nacional constitui uma "comunidade
imaginada": as memórias do passado, o desejo por viver em conjunto, a
perpetuação da herança. Para os defensores desse posicionamento uma cultura
nacional busca unificar classe, gênero ou raça numa identidade cultural que
represente a grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma
40
identidade desse tipo unificadora que anula e subordina a diferença cultural?
Indaga-nos Hall.
Essa idéia gera dúvidas, segundo o autor, por várias razões: as nações são
constituídas de culturas separadas que foram unificadas após longo processo de
conquista violenta. Segundo, que as nações são constituídas de diferentes classes
sociais, etnias, gêneros. Terceiro, os países colonizadores exerceram influências
nas culturas colonizadas, exercendo uma hegemonia cultural.
Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, Hall observa que
deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo que representa a
diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas
diferenças internas, sendo unificadas através do exercício de diferentes formas de
poder cultural. Como no pensamento lacaniano do "eu inteiro" as identidades
nacionais continuam a ser representadas unificadas.
A etnia é o termo utilizado para nos referirmos `a língua, ` a religião, aos
costumes, `as tradições e aos sentimentos de lugar. Mas é um mito tentar usar a
etnia como algo fundacional no mundo atual. As nações modernas, no entender
de Hall, são todas “híbridos culturais”. Seria mais difícil unificar a identidade
utilizando-se da noção de raça. Esta não é uma característica biológica,
contrariamente a crença generalizada. Raça é uma categoria discursiva,
organizadora das formas de falar, sistemas de representação e práticas sociais
(discurso) que utilizam um sistema frouxo em termos de diferenças de
características físicas. As nações européias são geralmente de sangue misto:
França (célticos, ibéricos e germânicos), Alemanha (célticos, germânicos e
eslavos).
Portanto, a idéia de nação como identidade cultural unificada perde sentido
quando se constata que as identidades nacionais não subordinam todas as outras
formas de diferença e não estão livres do jogo do poder, de divisões e
41
contradições internas, de lealdades e diferenças sobrepostas. É importante ter em
mente a forma como as culturas nacionais costuram as diferenças numa única
identidade.
Para Hall (2004), sob a perspectiva desta fábula pode-se caracterizar
melhor o que entendemos por um sujeito múltiplo: ele se inscreve na ordem do
mestiço, do impuro, do entrecruzamento, do nem isso nem aquilo, da incerteza, da
instabilidade. Hall fala por experiência própria já que ele mesmo é fruto desse
hibridismo cultural por ser africano e viver na Inglaterra.
Martin-Barbero (1995) identifica, na América Latina, a presença de
movimentos diferenciados de negociação de sentidos que incorporam “imagens”
dessa “cultura de massa global”, mas com marcas de uma outra identidade
construída numa outra história. É a diferença que rege essas relações. Para o
autor, a América Latina é o resultado de várias temporalidades e de histórias
plurais que impedem uma visão unificada dos processos de desenvolvimento dos
países da região. Assim, sociedades mais avançadas convivem com outras menos
modernas e outras mais tradicionais. Por isso não se pode pensar a América
Latina por um esquema de oposição rural/urbano, universal/
local ou
erudito/popular.
A América Latina é entendida por Martin-Barbero como espaço de
mestiçagens, onde na construção do massivo, a identidade cultural na
modernidade tardia é resultado de cruzamentos, fusões e mesclas entre popular,
massivo e culto. Para ele o popular é o principal lugar das mestiçagens e das
apropriações de significados. Isso evidencia a contradição em que se vive no
continente, com sua heterogeneidade e descontinuidade de tempos, memórias e
imaginários.
Ao contrário da Europa que entrou na modernidade através dos livros, na
América Latina, Martin-Barbero (2003) identifica a modernidade como o resultado
42
de uma tradição oral que continuou evidenciada através do rádio e se mesclou
com a cultura visual do cinema e da televisão.
No mesmo caminho de Martin-Barbero encontra-se o pensamento do
argentino Néstor Garcia Canclini. Ao analisar a América Latina como uma
articulação entre tradição e modernidade, onde coexistem múltiplas formas de
desenvolvimento, o autor utiliza o termo “hibridismo cultural” para explicar a
identidade cultural latino-americana.
Garcia Canclini (1995), ao estudar a presença dos meios de comunicação
na formação das identidades latino-americanas, afirma que o rádio e o cinema
foram importantes para organizar os relatos da identidade e cidadania nacional, na
primeira metade do século XX. Eles agregaram, `as narrativas de heróis, o falar
popular e os hábitos comuns que diferenciavam os povos. Então, num primeiro
momento, programas de rádio, por exemplo, serviram para conectar os grupos
que viviam no mesmo país em zonas distantes.
Na década de 1960, os meios massivos renovaram sua função, quando
aliados à televisão ajudaram a organizar o imaginário desenvolvimentista dessas
sociedades. Criaram costumes cosmopolitas ao incentivar o uso de aparelhos
domésticos eletrônicos, unificando o consumo. A publicidade difundia, assim, os
produtos nacionais na tentativa de fortalecer a indústria nacional.
Na década de 1980, observa Garcia Canclini, a abertura das economias
nacionais para o mercado global e os processos de integração regional reduziram
o papel das culturas nacionais. Na perspectiva do mundo sem fronteiras a
comercialização de bens culturais interferiu na significação das identidades
tradicionais, criando novas formas de percepção do mundo.
Para Martin-Barbero (2003) a presença dos meios de comunicação de
massa no cotidiano latino-americano desvaloriza a visão sobre o nacional. Assim,
43
encarnam uma posição mediadora na construção de outras identidades: urbanas,
regionais e locais. O autor acredita num esfacelamento das identidades
tradicionais pelos meios massivos e redes eletrônicas uma vez que veiculam um
multiculturalismo.
Dessa forma, Martin-Barbero observa que os processos de comunicação
atuam na produção de identidades, na reconstituição de sujeitos e atores sociais.
O autor não vê os meios de comunicação como simples fenômeno comercial ou
de manipulação ideológica, mas um espaço onde as pessoas vivem a constituição
do sentido da vida.
Para Garcia Canclini (1997) o processo de hibridização é principalmente
urbano e definido pelos meios de comunicação. Há uma oferta simbólica
heterogênea que se renova na interação do local, com o regional e o global.
Assim, culturas híbridas envolvem toda a produção onde não é possível separar o
culto, o popular ou o massivo.
Sua análise observa também a importância do mercado e seu poder na
constituição de identidades, inferiorizando a influência do Estado nos processos
atuais de consumo. Garcia Canclini (1995) propõe em Consumidores e Cidadãos
que os problemas de consumo não se relacionam apenas com a eficácia
comercial ou a publicidade, mas é uma questão de gosto pessoal. Sua justificativa
passa por questões como a “oposição entre o próprio e o alheio; as intersecções
do global mediado pelo local; a necessidade de definição de políticas culturais em
tempos de integração cultural e globalização”.
1.2.2 - Entre o local e o global
A compressão de espaços e tempos no processo de globalização acentua
as tensões entre o local e o global. Para Hall (2004), ao invés de pensar o global
substituindo o local é mais certo pensar numa nova articulação entre os dois
pólos. Este local não deve ser confundido com velhas identidades tradicionais,
44
bem delimitadas. Há uma possibilidade de negociação das relações de origem, do
tradicional, com a modernidade sem a ilusão de um retorno ao passado. O local
atua na lógica do global.
Garcia Canclini (1995) observa que nas artes o fenômeno da globalização
não impediu que a indústria cultural mantivesse nichos mercadológicos para
produtos que valorizam as identidades locais ou nacionais. Ao mesmo tempo em
que há uma força em direção a uma “desterritorialização das artes” o autor indica
uma outra, de reação, a favor de uma “reterritorialização”. Esta é representada
“por movimentos sociais que afirmam o local e também por processos de
comunicação de massa” (Garcia Canclini, 1995, p.170)
Ortiz (2000) observa que uma cultura mundializada não significa o fim de
outras manifestações culturais. “Ela cohabita e se alimenta delas” (Ortiz, 2000, p.
27). A língua inglesa, por exemplo, está espalhada pelo planeta por causa do
colonialismo inglês, do poderio da indústria cultural norte-americana no séc. XX,
do avanço da informática. Mas não se pode pensar apenas como uma imposição
da língua, algo rígido. A língua inglesa se adapta aos territórios em que habita
criando espaços “transglóssicos” no qual outras expressões lingüísticas
se
manifestam. Há portanto, um enraizamento no cotidiano das práticas sociais.
Para Ortiz, não há uniformidade quando se discute as questões culturais.
Ao invés de pensarmos num mundo dividido entre homogeneidade e
heterogeneidade é melhor discutir como os diversos grupos que vivem no cenário
da globalização compartilham gostos, atitudes, estilos de vida. Então, o consumo
é estimulado dentro de uma lógica global, mas mantendo sua promoção entre
grupos específicos.
Garcia Canclini (1995) observa que nações e etnias continuam existindo,
mas com influência diferenciada sobre os grupos sociais, pois diversos sistemas
simbólicos se entrelaçam nesse cenário. Elas não serão exterminadas no
45
processo de globalização, mas é preciso analisar como as identidades étnicas,
nacionais e regionais se comportam nos processos de hibridização intercultural.
Para o autor a reflexão atual deve considerar a diversidade de
possibilidades artísticas e dos meios de comunicação que contribuem para a
reconstituição das identidades. No espaço da “cultura histórico-territorial”, ou seja,
dos saberes mais enraizados - como nas zonas rurais -, os efeitos da globalização
são menores pela limitação da abertura econômica.
Nos espaços dos meios de comunicação de massa, Garcia Canclini
observa que países como o Brasil e o México possuem uma tecnologia própria
que gera certa autonomia dos padrões impostos pela globalização. Mas a situação
de dependência se aprofunda na maioria dos países da região, em relação ao
padrão global, principalmente o imposto pela cultura norte-amercana.
Garcia Canclini analisa ainda que o enfraquecimento das identidades
nacionais é maior no terreno das tecnologias de informação, como satélites e
redes óticas. Nesse aspecto há uma remodelagem dos comportamentos em
empresas e no entretenimento baseada nos padrões globais.
Nesse cenário de trabalho e de consumo, o autor afirma que os conceitos
de hegemonia e resistência continuam úteis, pois os conflitos de identidade e
cidadania estão no centro dessa discussão. Mas sem perder o olhar para os
processos de negociação de sentidos, na medida em que as interações são
híbridas e multiculturais.
Para Hall (2004) a globalização também impulsionou o processo migratório,
principalmente, em direção aos países produtores de bens de consumo. Ondas de
migrantes que fogem das condições precárias de seus países de origem, tanto
econômica quanto socialmente. O resultado é a formação de enclaves étnicos
46
minoritários no interior dos estados-nação do ocidente que leva a uma pluralização
de culturas nacionais e de identidades nacionais, num mesmo território.
Assim, num mundo de fronteiras dissolvidas, as velhas certezas e
hierarquias da identidade são postas em cheque. O fortalecimento de identidades
locais pode ser visto como uma reação defensiva `a presença de outras culturas
em determinada região. Também há evidências do surgimento de novas
identidades advindas com a globalização como o sentido de black para o inglês asiáticos e afrocaribenhos são considerados de cultura black na Inglaterra,
segundo o autor.
Parece que a globalização tem sim o efeito de contestar e deslocar as
identidades centradas e fechadas de uma cultura nacional. Tem um efeito
pluralizante sobre as identidades, produzindo novas possibilidades, tornando as
identidades mais posicionais, políticas, mais plurais e diversas. Em toda parte
estão surgindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas,
em transição, entre diferentes posições.
Há ainda uma outra possibilidade: a da tradução. A formação de identidade
de pessoas que ultrapassam a fronteira natural, pessoas que foram dispersas para
sempre da sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares
de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Nas
novas culturas em que vivem são obrigadas a negociar. Elas são produtoras de
várias histórias e culturas interconectadas e pertencem a várias "casas" ao mesmo
tempo. È o que Hall (2004) chama de “hibridismo”. Pessoas traduzidas pelas
diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Pessoas que habitam em si duas
identidades, pertencem a duas culturas diferentes ao mesmo tempo e estão
constantemente traduzindo-se e em processo de negociação cultural.
Para Hall, o ressurgimento de movimentos puristas mostra uma virada
bastante inesperada dos acontecimentos na época da globalização e dessa busca
47
de homogenização global. Tanto o liberalismo como o marxismo, em suas
diferentes formas, davam a entender que o apego ao local e ao particular daria
lugar, gradativamente, para valores e identidades mais universais. Entretanto, a
globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do global nem a
persistência de versões nacionalistas do local. Os deslocamentos ou os desvios
da globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que
sugerem seus protagonistas e seus oponentes, afirma Hall.
1.3 - Os Caminhos da Recepção
Uma das questões atuais mais debatidas no meio acadêmico e até
mesmo pelos próprios mass media é a supremacia dos meios de comunicação na
sociedade contemporânea. O que muitos chamam de uma sociedade mediática3 é
a constatação da forte presença dos meios de comunicação no cotidiano das
pessoas, levando a indagações sobre o papel que desempenham na sociedade.
Muitas vezes, de forma equivocada, há uma supervalorização do poder de
atuação dos mass media4 sobre os consumidores/receptores, como se estes
fossem incapazes de possuir opinião própria. Dentro dos Estudos Culturais
entendo que a pesquisa de recepção ocupa um lugar de destaque nas análises
sobre os meios de comunicação, uma vez que mostra as formas socialmente
diferenciadas de apreensão de sentidos pelo leitor/espectador. Este passa a ser
entendido como sujeito ativo e crítico, passível de interpretações diferenciadas do
texto mediático ( verbal e não-verbal).
1.3.1 - Recepção e Estudos Culturais
Nos
Estudos
Culturais,
a
temática
que
envolve
a
relação
cultura/comunicação massiva, com foco nas estratégias de interpretação popular,
passou por transformações a partir dos anos 1960. Segundo Escosteguy (1999) ,
3
4
Mantenho a forma original da palavra que vem do latim media.
Meios de massa em inglês
48
num primeiro momento com a atenção voltada para a recepção e o consumo
mediático, principalmente a televisão. A autora observa que Stuart Hall – do
Centro de Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham - identificava três
posições hipotéticas de interpretação do conteúdo televisivo no seu estudo
“Enconding and decoding in television discourse”, publicado em 1973. A posição
“dominante”, quando a audiência decodifica a mensagem com referências em
quem construiu tal discurso; uma segunda posição “negociada”, onde o sentido da
mensagem está “em negociação” com as condições particulares do grupo
receptor; e ainda uma terceira via, de contraposição ao discurso dominante.
Nos anos de 1970, os Estudos Feministas na Inglaterra dão uma nova
dimensão à recepção ao introduzir questões de identidade pensadas através de
novos ângulos, onde a cultura de classe é colocada em segundo plano, passandose a observar fenômenos ligados a gênero, raça e etnia. Mattelart e Neveu (2004)
destacam a pesquisa de Laura Mulvey, em 1975, que, baseada na psicanálise,
analisou como filmes hollywoodianos identificavam o prazer com o “olhar
masculino”.
Nos anos de 1980 e 1990, tanto Escosteguy quanto Mattelart e Neveu
observam uma multiplicação das análises dos meios de comunicação que se
espalham por academias de todo o mundo, com destaque ao pensamento latino
americano. Também há um re-posicionamento quanto aos métodos investigativos,
com atenção maior ao trabalho etnográfico.
Mattelart e Neveu (2004) destacam o trabalho do britânico David Morley
que foi pioneiro no uso de grupos focais para observar a audiência de programas
de televisão. De certa forma ele recupera o modelo de codificação-decodificação
de Stuart Hall, mas exibe um posicionamento crítico a esse método.
49
[...] Centrado sobre a importância das posições de classe, ele não
permite perceber a importância do quadro doméstico de
percepção, das relações no seio da família e mais especialmente o
lugar das mulheres. O trabalho com os focus groups faz nascer
interrogações inovadoras sobre o papel da mídia na produção de
diversos registros identitários. O deslocamento das problemáticas
iniciado por Morley aqui se acentua, ruma `a dimensão do “gênero”
(gendered) nos processos de recepção e na relação com os
instrumentos técnicos de comunicação. (MATTELART E NEVEAU,
2004, p.98)
Em seu estudo intitulado América Latina e os Anos Recentes : o estudo da
Recepção em Comunicação Social, Martin-Barbero (1995) defende a idéia de que
a recepção não é apenas uma etapa do processo de comunicação, mas um lugar
novo, de onde deve-se repensar os estudos e a pesquisa de comunicação. O
autor sugere a explosão do modelo mecânico, isto é, emissor – mensagem –
recepção:
Entendo modelo mecânico como sendo aquele em que não há
nem verdadeiros atores nem verdadeiros intercâmbios. É o modelo
em que comunicar é fazer chegar uma informação, um significado
já pronto, já construído, de um pólo a outro. Nele, a recepção é um
ponto de chegada daquilo que já está concluído. Ele leva a uma
confusão epistemológica muito grave. Estaríamos confundindo,
permanentemente, a significação da mensagem com o sentido do
processo e o das práticas de comunicação, como também
reduzindo o sentido destas práticas na vida das pessoas ao
significado que veicula a mensagem. (MARTIN-BARBERO, 1995,
p.40)
O autor considera que esse modelo “condutista” concentra todo o
significado da mensagem do lado do emissor enquanto ao receptor caberia
apenas reagir aos estímulos enviados pelo emissor. Uma epistemologia que vê o
receptor sempre como o que recebe, lugar de chegada. Mas Barbero afirma que é
preciso ver a recepção também como um lugar de partida, de produção de
sentidos.
50
A concepção “condutista” aliou-se a epistemologia iluminista “segundo a
qual o processo de educação, desde o século XIX, era concebido como um
processo de transmissão do conhecimento para quem não conhece. O receptor
era “tábua rasa”, apenas um “recipiente vazio para depositar os conhecimentos
originados, ou produzidos, em outro lugar”. (Martin-Barbero,1995, p.41)
Segundo o autor as duas concepções, condutista e iluminista – aliam-se
ainda a idéia moralista de que o receptor é uma vítima, um ser manipulado,
condenado “ao que se quer fazer com ele”. Uma visão que coincidiu com o avanço
da crítica de esquerda na América Latina, uma visão crítica política e social.
Dos anos 60 para os anos 90 conviveram na América Latina essas duas
visões, segundo Martin-Barbero, da “politização absoluta das análises de
mensagem com a despolitização, a dessocialização do receptor pensado
individualmente, como um coitado, exposto `as manipulações dos meios”.(MartinBarbero,1995, p.42)
Martin-Barbero (2003) traz uma releitura do conceito de hegemonia de
Gramsci. Ele afirma que a dominação não se dá apenas pela imposição da força,
mas passa também pelo consentimento das classes subalternas.
Está em primeiro lugar o conceito de hegemonia elaborado
por Gramsci, possibilitando pensar o processo de dominação
social já não como imposição a partir de um exterior e sem
sujeitos, mas como um processo no qual uma classe hegemoniza,
na medida em que representa interesses que também reconhecem
de alguma maneira como seus as classes subalternas. E “na
medida” significa aqui que não há hegemonia, mas sim que ela se
faz e desfaz, se refaz permanentemente num processo vivido, feito
não só de força, mas também de sentido, de apropriação do
sentido pelo poder, de sedução e de cumplicidade. (MARTINBARBERO, 2003, p.116)
Para Martin-Barbero esses conflitos são articulados no espaço da cultura.
Daí a necessidade de, nas ciências sociais, observar também o conceito
51
gramsciano de folclore como cultura popular, no sentido de “concepção do mundo
e de vida” que está em contraposição ao modo de vida culta, `as concepções de
vida oficiais estabelecidas ao longo da história. Para Barbero, Gramsci liga cultura
popular a subalternidade, mas de um modo que identifica nessa cultura “uma
tenacidade, uma espontânea capacidade de aderir `as condições materiais de vida
e suas mudanças, tendo `as vezes um valor político progressista, de
transformação”.(Martin Barbero,2003, p.117)
Mas, observa que não se pode exagerar na interpretação e considerar toda
ação popular como extremamente positiva, de resistência ou revolucionária. Ele
cita Garcia Canclini que já havia notado tais excessos entre pensadores de
esquerda em concluir, apressadamente, que entre a cultura hegemônica e a
subalterna a tarefa da primeira é a dominação e da segunda é a resistência.
Em todo caso, ver o popular a partir da ótica gramsciana
redunda totalmente contrário ao facilismo maniqueísta que Garcia
Canclini critica. Se algo nos ensinou é a prestar atenção `a trama:
que nem toda assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo
de submissão, assim como a mera recusa não é de resistência, e
que nem tudo que vem “de cima” são valores da classe dominante,
pois há coisas que vindo de lá respondem a outras lógicas que não
são as da dominação. (MARTIN-BARBERO, 2003, p.119)
Pensando a recepção como lugar e não como etapa vislumbra-se,
inicialmente, as mediações. A primeira delas é a questão das anacronias e das
diferentes relações com o tempo, pois na reflexão sobre a pós-modernidade há
uma crítica radical a essa visão unidirecional da história, buscando um resgate da
“heterogeneidade de temporalidades”.
A concepção progressista da história de que ela vai apenas
para uma direção, impediu de ver a multiplicidade de
temporalidades, a multiplicidade de histórias, com seus próprios
ritmos e com suas próprias lógicas. Assim, a primeira questão que
se introduz na investigação da recepção é a de que não há mais
só uma história, nem sequer naquele sentido em que Marx
pensava, isto é, a burguesia como classe universal que unificava
52
os tempos.Parece-me importante na pós-modernidade essa nova
sensibilidade, envolvendo a multiplicidade, e a heterogeneidade de
temporalidades que combinem. (MARTIN-BARBERO, 1995, p.43)
Segundo o autor, a concepção de oposição entre modernidade e tradição
está mudando porque na sociedade atual há grupos moderníssimos e outros
menos modernos e tradicionais.”Não há mais passo da tradição à modernidade
como se não houvesse aspectos absolutamente contraditórios, mas sim formas de
articulação entre diversos processos de modernidade e tradição”.(MartinBarbero,1995, p.44)
Um segundo aspecto de mediação é sobre as novas fragmentações sociais
e culturais. Os meios de comunicação cada vez mais investem na programação
diferenciada buscando um público específico. Para Martin-Barbero essa
fragmentação não tem nada de novo uma vez que aprofunda as velhas divisões
de classe e que apenas inova na forma de produzir a fragmentação. Uma
fragmentação causada pela tecnologia que cria novas sensibilidades, novos
modos de relação de jovens com a tecnologia, diferentemente dos mais velhos,
para quem a tecnologia causa um certo medo.
As novas tecnologias reorganizam a experiência das pessoas, criam uma
nova sensibilidade. Então, as relações sociais hoje são fragmentadas por sexo,
idade, etnia etc. Há também uma nova organização entre o espaço público e o
privado. Não é somente a privatização da economia, mas também a
desprivatização da vida íntima, vide programas como Big Brother. Há também as
fragmentações dos públicos cada vez mais especializados, voltados para estratos
sociais como mulheres urbanas, mulheres rurais etc.
53
A segunda questão polêmica colocada pelo autor é sobre a reorganização
cultural na modernidade5. Martin-Barbero indaga-nos sobre como estamos
pensando essa nova estrutura quando ainda convivemos na sociedade com altos
índices de analfabetismo na América Latina. Ele observa que para os que não
lêem há uma passagem da cultura oral para modernidade por meio da gramática
do rádio, do cinema e da televisão. “Enquanto nós estamos pensando na
modernidade ligada `a ilustração, ao livro, como o grande meio ilustrado, nossas
maiorias
não
apenas
estão
sendo
incorporadas
à
modernidade,
estão
apropriando-se da modernidade”. (Martin-Barbero,1995, p.50) Essa apropriação
faz-se sem deixar a cultura oral, pois a maioria continua não lendo.
Cria-se então novas fragmentações e rearticulações das relações entre
culto e popular, massa e vanguarda. Para o autor não dá para pensar a cultura
Latino-Americana nos moldes dos europeus, pensando em pureza cultural, pois a
nossa história é a história das mestiçagens. Não existe mais a pureza cultural do
tempo das colônias dos séculos 18 e 19. Então, segundo o autor, não há como
culpar a Televisão se os jovens não lêem mais. Há uma nova sensibilidade aí que
os mais antigos não estavam captando e que agora é preciso rever.
Outro aspecto da recepção destacado por Barbero diz respeito à exclusão
cultural. Tudo o que é de gosto popular é desqualificado, deslegitimado,
considerado vulgar. “Não podemos estudar a recepção sem analisar essas
dimensões de exclusão que hoje continuam vivas em nossa sociedade, por mais
transformações que tenha havido”.(Martin-Barbero,1995, p.52)
Mas há também outra reflexão a ser feita. A recepção não pode tudo, não é
tudo. Não se pode confiar no slogan publicitário de que o consumidor tem a
palavra e ponto final. A reação do receptor depende do que é emitido, num
processo de mediação. Também não se pode desligar o estudo da recepção dos
5
Martin-Barbero considera que na América Latina vivemos a modernidade tardia e não a
contemporaneidade, termo que eu prefiro para definir as relações culturais na atualidade.
54
processos de produção. “Eu não poderia compreender o que faz o receptor, sem
levar em conta a economia de produção, a maneira como a produção se organiza
e se programa, como e por que pesquisar as expectativas do receptor.” (MartinBarbero,1995, p.55)
Portanto, o autor não abdica da ideologia na sua análise sobre a recepção,
mas muda o olhar em relação a ela. Ressalta que é preciso considerar na análise
a economia de produção, a maneira como a produção se organiza e se programa;
a concentração econômica e o poder político. Isto é, não se pode pensar que o
receptor é uma vítima manipulável como também desconsiderar os saberes cada
vez mais especializados dos produtores de mídia. São dois extremos perigosos.
Há, portanto, uma interação entre esses dois pólos da comunicação.
Finalmente, há que se considerar ainda os modos de interação com o
próprio meio, no uso desses aparatos socialmente reconhecidos e comercialmente
legitimados. Assim, é preciso observar a recepção como “espaço de interação”,
processo de negociação de sentido. Na interação há uma circulação de
significados, mas não podemos cair nos extremos: quem sabe sobre comunicação
é o emissor ou pensar o receptor como aquele que faz o que quer com a
mensagem. A proposta de Barbero é que se faça uma interação não só com a
mensagem, mas com a sociedade, com outros atores sociais, não só com os
aparatos.
1.3.2 - Trama conceitual
Para Martin_Barbero (2003) as investigações sobre a recepção possuem
quatro caminhos a ser seguidos: os estudos da vida cotidiana, os estudos sobre o
consumo, os estudos sobre estética e semiótica da leitura, e sobre a história social
e cultural dos gêneros. Sobre os estudos da vida cotidiana, destacam-se os
autores brasileiros. Essa pesquisa rompe com a visão puramente reprodutiva da
vida diária como espaço da reprodução da força do trabalho. Mas a vê como
espaço em que se produz. “A sociedade está sendo ativamente produzida, pela e
55
para a maioria das pessoas[...] A vida cotidiana é o lugar em que os atores sociais
se fazem visíveis do trabalho ao sonho, da ciência ao jogo” (Martin-Barbero,1995,
p.59).
É preciso resgatar o viver cotidiano como espaço de produção do
conhecimento e de troca de sensibilidades. Segundo o autor é interessante notar
que Habermas, um continuador do marxismo da Escola de Frankfurt, tenha
admitido que a categoria da comunicação é hoje mais importante nas relações
sociais que a categoria do trabalho. Então, em que medida a vida cotidiana é o
espaço de reconhecimentos socialmente importantes?
Outra categoria para análise é o consumo que pode ser observado como
ponto de organização da diferença, da distinção social, dos modos de consumir.
Barbero cita como exemplo o cartel de Cali, que ao invés de tentar tomar o poder
na Colômbia tomou a maneira de organizar as casas, os mobiliários e as
edificações,
impondo o seu gosto. Então o consumo além de ser prática de
apropriação dos produtos sociais é ainda lugar da diferenciação social. Também
pode ser analisado como modo de circulação e popularização de sentido, pois
para haver a diferenciação social os grupos precisam comunicar essa diferença.
Em quarto lugar, o consumo é cenário de objetivação de desejos, pois muitas
vezes consumimos sem levar em conta aspectos econômicos, mas pelo prazer de
consumir. Por último está a dimensão do ritual do consumo que fixa tempos,
modelos, pauta etc.
Por último é preciso falar do gênero como estratégia de comunicação
ligada aos diversos universos da cultura. A partir dos trabalhos de semiótica do
russo Yuri Lotman, o autor latino-americano verifica a existência de duas culturas
na sociedade: uma interessada em conhecer a gramática dos textos culturais e
outra em que o prazer está no próprio texto. Como exemplo, Martin-Barbero cita a
pessoa que vê um filme policial, se apaixona e passa a conhecer esse gênero pelo
fato de sempre assistir a filmes policiais. Ele acaba se especializando naquilo.
56
Como acontece com o brasileiro em relação `as novelas. Por entender assim o
gênero essas pessoas acabam sendo expressão dessa cultura.
Assim, é possível avançar as análises da relação dos meios com os
consumidores culturais. A questão não é mais reconhecer os meios, nem a
pluralidade cultural, nem afirmar a relação de dominação. O aparato ideológico
está presente, diariamente, em noticiários, novelas, filmes e programas de
variedades. Mas é possível acreditar que se os efeitos produzidos pelos meios
não são homogêneos nos receptores então é possível acreditar que na recepção
está o germe da mudança, afirma Martin-Barbero.
No processo de comunicação a recepção não pode mais ser entendida
como lugar de chegada. Esta deve ser vista sob uma nova dimensão como
apontam os estudos de Jesus Martin-Barbero. Um lugar de partida, de produção
de sentidos, mas que leve em consideração a economia de produção e o
conhecimento dos produtores culturais.
A afirmação de que “não é o meio que é ruim, mas o uso que o homem faz
dele”6 talvez nos revele uma saída sobre o domínio dos meios de comunicação na
sociedade atual.
Com o aporte teórico apresentado neste capítulo acredito ter pavimentado o
caminho que continuo a trilhar.
6
Ouvi o termo numa aula com o professor Mauro Wilton de Souza, durante um curso ministrado
aos professores de Comunicação Social da UFMT, num convênio com a ECA-USP, em 1997.
57
2 - INVENTÁRIO SOBRE O BAIRRO SÃO GONÇALO
Nenhum milagre é permitido agora...
E lá se iria o resto de prestígio
Que no meu bairro eu inda possa ter!...
Mário Quintana
58
2 .1 - Espaços urbanos x comunidade
Antes de mergulhar nas pesquisas sobre o São Gonçalo creio ser
importante posicionar-me diante de uma discussão já posta em outros trabalhos
que o situam como uma comunidade ribeirinha. Consultando vários desses
pesquisadores, percebi que a maioria utiliza-se do conceito de comunidade para
definir a convivência entre seus moradores. Outros simplesmente o apresentam
assim, sem um questionamento sobre o que é ser ou não comunidade.
Entre esses trabalhos me chamou a atenção a pesquisa de Torezan (2000)
que coloca em discussão o fato de o São Gonçalo ser tratado como comunidade,
tanto pelo senso comum como em pesquisas acadêmicas.
Januário (1997) é um dos pesquisadores que emprega o conceito de
comunidade para o São Gonçalo baseado no pensamento de Rocher Guy (1979)
para quem:
A comunidade é formada por pessoas unidas por laços
naturais ou espontâneos, assim como por objetivos comuns que
transcendem os interesses particulares de cada indivíduo. Um
sentimento de ‘pertença’ `a mesma coletividade domina o
pensamento e as ações das pessoas, assegurando a cooperação
de cada membro e a unidade ou união do grupo. A comunidade é,
pois, um todo orgânico no seio do qual a vida e os interesses dos
membros se identificam com a vida e o interesse do conjunto.
(GUY, 1979, pp.168-169)
Da mesma forma, a historiadora Neuza Kerche, baseada na
definição acima, afirma que o São Gonçalo é uma comunidade “pois entre seus
moradores existe, apesar do tempo e das mudanças, este sentimento de
pertencimento e união que é visível a qualquer pessoa que converse com os
mesmos” (Kerche, 2004, p.13).
59
Ao questionar tal definição, Torezan afirma que o conceito de comunidade
em Ciências Sociais recebeu muitas críticas pela sua insuficiência metodológica,
apesar de muito presente nos estudos das décadas de 1940 e 1950. Ao pretender
a compreensão da sociedade como um todo, através do estudo de um grupo
isoladamente, os estudos de comunidade utilizavam o método da descrição das
partes para se chegar ao todo. As relações de dependência externa eram
desconsideradas, importando os estudos das estruturas fechadas e autônomas.
Para Torezan, a falha conceitual está na abordagem do objeto que
desconsidera qualquer relação deste com a realidade externa. Para a autora, essa
interpretação resulta numa realidade social fragmentada por não dar conta de
todas as relações ali imbricadas.
Não podemos dizer que o São Gonçalo, em algum tempo, foi
uma comunidade – no sentido teórico do termo – por sabermos
que desde a sua ocupação as pessoas que ali moravam
mantinham relações de interdependência com outras localidades.
Hoje esta interpretação é mais pertinente do que nunca, pois o que
podemos constatar é que o grupo social em questão está
totalmente voltado para o mercado de trabalho urbano.
(TOREZAN, 2000, p.08)
Ela justifica seu posicionamento, mostrando que mesmo os
ceramistas e os pescadores precisam de um mercado consumidor externo ao
espaço do São Gonçalo. Além disso, a agricultura - que foi atividade importante
entre os ribeirinhos e abastecia o mercado urbano - é hoje quase inexistente entre
os moradores. As transformações sociais levaram aqueles ribeirinhos a procurar
emprego na cidade, principalmente na construção civil e serviços domésticos,
mesmo mantendo as atividades de pesca e artesanato. Segundo a autora, essa
constatação leva os moradores a um paradoxo entre a “estrutura microssocial” –
com sua cultura “tradicional” e a “macroestrutura” com as atividades dentro do
perímetro urbano e suas conexões com o mundo exterior.
60
Sua opção é por tratar a população do São Gonçalo como um “grupo social”
para que não haja equívocos na teoria adotada por ela. Para a autora o grupo
passou por mudanças profundas no modo de vida, desde a ocupação pelos
bandeirantes até o processo de urbanização de Cuiabá. Ela considera o São
Gonçalo uma “estrutura social que se mantém enquanto microestrutura na medida
em que reforça a sua cultura perante a estrutura macrossocial à qual está
inserida” (Torezan, 2000, p.29). Torezan observa ainda que entre os ribeirinhos
permanece uma tendência de considerar as atividades tradicionais como a
essência das relações sociais, ao mesmo tempo em que se percebe uma
dependência crescente das atividades externas ao São Gonçalo.
Ao constatar a presença cada vez maior da macro-estrutura social no bairro
São Gonçalo busquei referências em Sanchez (2004) para explicar a cultura e a
renovação urbana. A autora - baseada em autores que pensam os espaços
urbanos dentro da Contemporaneidade, como Debord (1995), Arantes (2000),
Bienenstein (2000) e Jameson (1995), entre outros - afirma que a reestruturação
urbana está ligada a dinâmica econômica do mundo capitalista. Assim, as cidades
seguem um receituário que inclui parcerias do setor público com o setor privado,
com realizações de projetos urbanísticos que inserem esses espaços no processo
de
mercantilização
das
cidades.
A
autora
questiona
tal
postura
dos
administradores urbanos pois, muitas vezes, a experiência beneficia apenas o
capital imobiliário sem mudanças significativas, por exemplo, na geração de
empregos para a população.
Sanchez discute também a relação do capitalismo com a cultura em sua
“versão urbana contemporânea”. A autora mostra como a cultura se insere no
mundo dos negócios. Investimentos em museus, centros culturais, contratação de
arquitetos internacionais, preservação de monumentos e outras estratégias de
negócios transformam os centros urbanos em cidades-espetáculos, lembrando
Debord (1995) para quem a Sociedade do Espetáculo teria a cultura como a
vedete do capitalismo.
61
Não se pode afirmar que Cuiabá se insere dentro dos padrões do que a
autora descreve como cidade-espetáculo, é verdade. Mas é possível observar que
há uma tendência, por parte da administração local, em criar projetos urbanísticos
para aumentar a mercantilização dos espaços urbanos. É o caso do estudo sobre
a implantação do plano conjunto de urbanização entre Cuiabá e Várzea Grande
(aglomerado urbano), das estratégias de revitalização da cidade com a
proliferação dos parques – Parque Mãe Bonifácia, Parque Massairo Okamura,
Parque da Cidade, Parque da Saúde no Coxipó, e mais recentemente o Parque
Nair Nigro e o Parque das Águas7. E ainda os espaços destinados a grandes
monumentos. Segundo o secretário de cultura da cidade, Mário Olimpio, a
prefeitura pretende construir dez monumentos até o final de 2007. Entre eles estão
o Monumento ao Boi, do artista plástico Umberto Espíndola - no mirante do Centro
de Eventos do Pantanal - e a Casa da Manga, de Gervane de Paula, no Museu do
Rio.8
Dentro dessa visão da cultura nos espaços urbanos contemporâneos é
interessante notar também a contratação da empresa do renomado arquiteto
Jaime Lerner para desenvolver projetos urbanísticos em Cuiabá. Entre eles estão
a revitalização do cais do Porto da cidade com cafés e teatros; a Barra do Pari, `as
margens do rio Cuiabá, ganhará uma praia de arame para preservar sua
vegetação, e o Farol do Minhocão, para relembrar seu mais famoso mito; e a
reurbanização do Beco do Candieiro, que receberá tons de ouro para lembrar sua
formação histórica da época da exploração aurífera da cidade no século XVIII. O
próprio São Gonçalo ganhará também espaços de visitação turística com a
construção de um planetário no local onde se encontram as águas do rio Coxipó
com as do rio Cuiabá.9
7
O Parque Nair Nigro e o Parque das Àguas são projetos previstos para inaugurar até dezembro
de 2007. Fonte: Prefeitura de Cuiabá.
8
Fonte: secretaria de Cultura de Cuiabá
9
Fonte: IPDU, prefeitura de Cuiabá.
62
Mas não é meu interesse discutir com profundidade tal assunto por não ser
esse o objetivo desta pesquisa. Toda esta retórica é para justificar a minha
posição em situar o São Gonçalo Beira Rio não como uma comunidade, mas
como um espaço urbano que está em interação com outros espaços da cidade e
totalmente inserido na vida urbana de Cuiabá.
Complementando, Maciel da Silva (2002) mostra no seu Estudo da
Percepção em Espaços Urbanos Preservados como a cidade se tornou um
espaço indispensável para a sociedade por estar inserida no processo de
produção capitalista:
No sistema capitalista a cidade se tornou um fenômeno que
aglutina em torno de 80% da população mundial e acabou se
tornando um espaço condicionante da sociedade, pois viabiliza a
continuidade da sua produção; é também, local de relacionamento
das classes sociais ou grupos e por isso tem uma dimensão
simbólica, uma vez que envolve o cotidiano; é cenário e objeto das
lutas sociais cujos grupos sociais visam os seus direitos. (MACIEL
DA SILVA, 2002, p.08)
2.2 - Inventário sobre o São Gonçalo
Para a melhor compreensão da relação do espaço São Gonçalo com
os pesquisadores, eu fiz um levantamento das investigações científicas realizadas
ali nos últimos anos, principalmente, da década de 1990 em diante. Após a
listagem inicial, dissertei sobre aqueles trabalhos que considerei mais importantes
do ponto de vista cultural e que, assim, trariam mais contribuição para esta
incursão no universo do São Gonçalo. Para situá-los, enquanto obras acadêmicas,
eu ordenei as pesquisas pela hierarquia de titulação a que seus autores aspiravam
na época. No resumo da obra a minha preocupação foi manter a idéia de seu
autor, principalmente, daqueles trabalhos que tratam de assuntos técnicos
distantes da
minha formação profissional. Por último listei os trabalhos
63
audiovisuais e cênicos encontrados sobre o São Gonçalo (SG). Num segundo
momento, detalhei os trabalhos acadêmicos com maior ênfase na discussão
cultural envolvida no universo do bairro, na perspectiva de entrelaçar as
considerações apresentadas por esses pesquisadores com a minha experiência
nesta incursão ao São Gonçalo.
TRABALHOS ACADÊMICOS
1 – KEUTZ, Irene. Cuidado Popular com Ferida: representações e
práticas na comunidade de São Gonçalo. São Paulo: USP, 1999. Tese de
Doutorado, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 1999.
Estudo etnográfico da comunidade de SG com o objetivo de compreender o
cuidado com feridas nesse contexto sócio-cultural. A pesquisa mostrou que os
moradores têm modos peculiares de explicar as feridas, revelando uma
concepção etiológica de multicausalidade, admitindo causas naturais, sociais e
sobrenaturais que orientam seus procedimentos terapêuticos. As representações
e conceitos diversos em oposição às práticas dos profissionais do sistema oficial
de saúde. Há então um hiato entre esses profissionais e a população. Barreiras
lingüísticas e culturais. Frente a estas constatações discute-se a importância e a
necessidade do estabelecimento de um diálogo intercultural ente os dois grupos, o
que poderá ser conseguido por meio de mudanças nos paradigmas que orientam
o ensino, a pesquisa e a prática dos enfermeiros e demais professores da área de
saúde.
Hemeroteca: TES/ 709
2 – ARRUDA, Maria Lúcia de Mello. Plantas Medicinais: conhecimento
popular x conhecimento científico. Cuiabá: UFMT, 1997. Dissertação de
Mestrado em Educação, Cultura e Sociedade, Instituto de Educação, Universidade
Federal de Mato Grosso, 1997.
64
O trabalho enfoca a relação paradigmática entre conhecimento científico e
conhecimento popular. Pretende aproximar a prática dos raizeiros do SG da
prática dos cientistas da UFMT.
Biblioteca setorial de Educação: 09/97 DIE
3 – JANUÁRIO, Elias Renato da Silva. As vidas do Ribeirinho: meio
ambiente, cotidiano e educação na comunidade ribeirinha do São Gonçalo.
Cuiabá: UFMT, 1997. Dissertação de Mestrado em Educação e Meio Ambiente,
Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, 1997.
O trabalho se propõe a conhecer o universo do ribeirinho do SG na
perspectiva etnográfica; coloca em evidência a dinâmica sócio-cultural do
ribeirinho, apontando para os elementos cotidianos que integram a relação
homem-natureza.
Biblioteca setorial de Educação: 20/97 DIE
4 – LOPEZ, Mariângela Solla. Com a Cara e a Coragem – para ouvir as
vozes da comunidade ribeirinha de São Gonçalo. Cuiabá:UFMT/USP, 2000.
Dissertação
de
Mestrado
interinstitucional
em
Comunicação),Escola
de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2000.
O trabalho articula dois eixos de ação: o rádio como objeto de estudo para
compreender a cultura de uma sociedade e os estudos de recepção, como
perspectiva de análise. A pesquisa aborda a lógica da produção de mensagens
radiofônicas e a lógica do consumo dos meios pela audiência para estudar o
processo de recepção do programa “Com a cara e a Coragem”, na comunidade
ribeirinha SG. Um estudo qualitativo de interpretação da audiência que parte da
recepção e toma como mediações a cultura e o território para entender como
65
aconteceu os processos de negociação de sentidos e de apropriação de
significados pelos ouvintes.
Hemeroteca: TMT 00865
5 – ANDRADE, Ivanilza Vanusa. Gosto de Tauá – a cerâmica de São
Gonçalo:
suas
mudanças
e
ressignificações.
Cuiabá:
UFMT,
2000.
Especialização em Antropologia: teoria e métodos, Centro de Ciências Sociais,
Universidade Federal de Mato Grosso, 2000.
O trabalho tenta compreender o motivo da permanência e aumento da
produção de objetos artesanais e indagar-se a respeito dos motivos que o
“sistema social” oferece para tanto. Analisar o agrupamento ribeirinho
de SG
enfocando sua interação com a produção artesanal de cerâmica tanto pelo
condicionamento econômico como pela representatividade sócio-cultural que esta
ocupação traz. Esclarecer como o consumo urbano altera o significado da
produção material e simbólico das culturas tradicionais.
Hemeroteca ESP/2259
6
–
BORGES,
Organizacional.
Luiz
Cuiabá:
Oliveira.
UFMT,1986.
O
Discurso
Especialização
e
a
Materialização
em
Administração,
Universidade Federal de Mato Grosso, 1986.
Na introdução do trabalho o autor versa sobre a produção das organizações
modernas tendo como objetivo verificar a organização da produção no hospital
Julio Muller. Sobre o significado das teorias no trabalho cita o exemplo da
comunidade SG falando sobre o modo de produção artesanal de cerâmica
Hemeroteca: ESP/302
7 – PALMA, Lucia C. Na Boca do Forno a Forma de um Povo.
Cuiabá:
UFMT,
1986.
Especialização
em
Educação
e
Cultura
-
Fundamentação didático-metodológica de Formação Docente em nível superior,
Faculdade de Direito, Universidade Federal de Mato Grosso, 1986.
66
O trabalho analisa o trabalho da mulher na produção da cerâmica. Aborda a
questão produção/circulação/consumo do artesanato de São Gonçalo. Tenta ainda
mostrar a importância de políticas culturais voltadas para as camadas populares.
Finaliza o trabalho mostrando o papel fundamental que o próprio produtor tem em
conduzir seu próprio destino; e que o futuro das culturas populares depende da
força conjunta de toda a sociedade.
Hemeroteca: ESP/ 286
8 – TOREZAN, Ariane Patrícia Domingos. São Gonçalo: uma análise das
transformações nas formas de obtenção da subsistência da população
ribeirinha. Cuiabá: UFMT, 2000. Especialização em Antropologia, Departamento
de Antropologia, Universidade Federal de Mato Grosso, 2000.
Propõe uma discussão sobre a situação paradoxal entre a estrutura
microssocial – cultura tradicional X macroestrutura que abrange o perímetro
urbano e toda a conexão que possa proporcionar com o mundo exterior. Esta
tensão entre o micro/local e o macro/global se traduz na maior preocupação da
Antropologia Contemporânea. Pretende fazer uma discussão a respeito das
formas de obtenção da subsistência e as transformações que esta tem sofrido
levando em conta os problemas que os ribeirinhos enfrentam, atualmente, para
conseguir sobreviver.
Hemeroteca: ESP / 2275
9 – SOUZA, Luzia Francisca de. Levantamento Etnobotânico na
Comunidade São Gonçalo. Cuiabá: pesquisa do programa inter-institucional
CNPq/UFMT/UNIR/UFAC,
1992.
Departamento
de
Botânica
e
Ecologia,
Universidade Federal de Mato Grosso, 1992.
Estudo realizado em 1991 para obtenção de dados etnobotânicos através
do contato com moradores e coleta de material botânico. Foram evidenciados 07
itens de utilização da flora do cerrado e da mata ciliar que delimitam a localidade
como: medicina caseira, frutos comestíveis, curandeirismo, trabalho ceramista,
artefatos de madeira e similares, plantas utilizadas na pesca.
67
Hemeroteca: MT/ 794 – MA
10 – ARRUDA, Maria Lucia de Mello. Cultura Popular: a arte cerâmica de
São Gonçalo. Revista Leopoldianum – revista de estudos e comunicações vol.
XVI. Cuiabá, 1989.
Pesquisa realizada em 1982, abordando o artesanato da cerâmica feito em
SG.
Através
de entrevistas
com moradores, a pesquisadora
revela
o
desenvolvimento do processo artesanal. A manifestação folclórica da cerâmica foi
registrada desde o seu início, que a busca da matéria prima, o barro, a
modelagem até a venda dos objetos artesanais. Estes permanecem na sociedade
como resquícios da uma cultura herdada que aos poucos vão se transformando
com o reflexo e como espelho do modo de vida urbano atual. Hemeroteca: MT /
1599
11– ARRUDA, Maria Lucia de Mello. Cultura Popular: a dança de São
Gonçalo. Coleção Pesquisa nº 1, Departamento de Artes, UFMT, Cuiabá, 1982.
Pesquisa sobre a dança de SG partindo do processo de urbanização no
BR, MT, até chegar a Cuiabá e as transformações do universo habitacional em
zona urbana nas décadas de 60, 70, com um modo de vida diverso do provinciano
o que determinou mudanças estruturais. Procurou-se mostrar o fenômeno que se
apresenta em Cuiabá como causador do enfraquecimento das manifestações
folclóricas e da substituição destas por outras manifestações que se caracterizam
como populares, nascidas em grupos pertencentes a uma nova realidade social,
englobando as características do desenvolvimento moderno e absorvendo suas
modificações, como é o caso das escolas de samba.
Hemeroteca: MT/ 906
12 – MONTEIRO, Nancy B. A. L. Avaliação de Ações Antrópicas e dos
Impactos Sedimentológicos na sub-bacia do Córrego São Gonçalo. Cuiabá:
68
UFMT, 1997. Monografia, Depto Eng.Sanitária, Universidade Federal de Mato
Grosso, 1997.
O trabalho de conclusão de curso propõe uma avaliação do mau uso e ocupação
do solo e o comprometimento dos impactos sedimentológicos na sub-bacia do
córrego SG, em função da forma desordenada do seu uso na área de estudo
envolvida e no seu entorno.
Hemeroteca: TCC/ 771
13 – ROSA, Ana Carla. Avaliação dos Impactos Antrópicos e
sedimentológicos na sub-bacia do córrego são Gonçalo - perímetro urbano.
Cuiabá: UFMT, 1996. Monografia,
Depto. Engenharia Sanitária, Universidade
Federal de Mato Grosso, 1996.
Trabalho de conclusão de curso cujo objetivo é avaliar o grau de impacto
hidrossedimentológico na sub-bacia do córrego SG, em função das ações
antrópicas antropogênicas e do mau uso e ocupação do solo na parte envoltória
do sistema conectado.
Hemeroteca: TCC/1201
LIVROS
1 - KERCHE, Neuza M. E. Comunidade São Gonçalo, História, Lendas e
Tradições. Cuiabá: ed. Centro América, 2004.
O livro é destinado, principalmente, para alunos de 1º e 2º graus. Os temas
são tratados de forma bastante superficial. A autora afirma que buscou
informações no trabalho de mestrado de Elias da Silva Januário. Utiliza dados
históricos para falar sobre a posição geográfica do bairro. Defende a idéia de que
o SG é uma comunidade. Conta histórias sobre a origem do povoado e do nome,
a procedência de seus moradores, as atividades desenvolvidas no local. Dá um
destaque maior ao artesanato da cerâmica. Nas transformações ocorridas no
bairro ressalta o papel da televisão como meio desagregador do local, de inserção
de novos costumes.
69
2 - SANTOS, Abel. Viola-de-cocho: novas perspectivas. Cuiabá: ed.
UFMT,1993.
O livro tem como objetivo despertar o interesse das pessoas pela viola-decocho. Segundo o autor, a pesquisa serve também para uma aproximação da
música com as escolas de 1º e 2º graus, com o propósito de reintegrar a música
ao currículo escolar. O livro conta histórias sobre a viola-de-cocho e descreve
aspectos técnicos dela, a fabricação, seus acordes, afinação e até um repertorio
musical regional. Como proposta para a introdução da música na grade curricular
das escolas, o autor defende que a viola-de-cocho é o instrumento adequado para
essa tarefa, pela importância que tem para a cultura mato-grossense e para a
sua reintrodução ao cotidiano das pessoas. O autor não cita o São Gonçalo como
local de sua pesquisa. Em alguns momentos, Abel Santos se refere a entrevistas
com violeiros ligados a Associação Folclórica de Mato Grosso.
VÍDEOS
1 - COMUNIDADE de São Gonçalo “Ora viva meu São Gonçalo, oi torna
reviva”. Produção Alailton Campos e Marcio Moreira. Direção Geral Kátia
Meirelles. Cuiabá: Imagem e Som, 2001. 1 fita de vídeo
(17 min. Aprox.), miniDV, son. Color.
O vídeo tem como tema a Festa de São Gonçalo realizada no início de
janeiro. Através dos preparativos para o festejo mostra o cotidiano dos moradores
e sua ligação com a pesca e o artesanato da cerâmica. Tenta passar a idéia da
necessidade da preservação das tradições locais.
2 - O BAIRRO perdido do São Gonçalo. Produção Marcelo Okamura.
Direção Marcelo Okamura. Cuiabá: MTO, abril 2001. 1 fita de vídeo (19 min),
Betacam, son. Color.
O vídeo mostra o SG numa perspectiva saudosista, do lugar das origens de
Cuiabá que está sendo esquecido pela população. Destaca a produção da
cerâmica, mas fala também sobre a pesca e a viola-de-cocho como riquezas do
70
lugar que estão passando por transformações com o progresso da cidade. É
enfático na idéia da necessidade de um certo “resgate” das tradições locais.
PEÇA DE TEATRO
1 - O HOMEM do barranco. Texto e Direção Carlos Ferreira, 1991.
Texto dramático baseado na Bíblia (Gêneses) e nas histórias contadas
pelas mulheres do SG. Uma narrativa feita através das personagens da lavadeira,
da ceramista, Mãe Oxum e do Homem do Barranco, todas interpretadas pelo
próprio Carlos Ferreira. Na peça estão presentes os principais elementos do
universo do ribeirinho, como a fé, as crendices, o sofrimento com as enchentes do
Rio Cuiabá, a natureza, a lida com o barro para a confecção de cerâmicas, as
danças e cantos típicos dos moradores do SG.
2.2.1 – Detalhamento do Inventário
Este inventário de pesquisas científicas constitui-se num olhar externo
sobre o São Gonçalo. A Ciência tem essa característica de olhar sobre um objeto
e extrair dele muito mais do que a simples aparência real nos revela. Nesse
contato com o Outro a revelação se faz pelo olhar. É preciso ver o invisível, como
observou Merleau-Ponty (1971). É isso que todos esses pesquisadores se propõe
a fazer quando analisam o modo de vida dos ribeirinhos, procurando sentidos que
nem sempre se revelam na superfície das relações sociais.
Abaixo, passo a descrever algumas das obras listadas acima, nas quais o
meu olhar de pesquisador observa elementos mais representativos para um breve
diálogo com este trabalho. Não que as outras pesquisas não os tenham, pois é
impossível a todas essas incursões ao São Gonçalo separar o aspecto cultural da
Medicina, da Educação, da Botânica ou da Biologia. Mas foi preciso delimitar as
observações, principalmente, às Ciências Sociais, para que a minha pesquisa
não desviasse do seu foco principal, que é a análise de imagens. Também levei
71
em consideração o fato de que determinados aspectos abordados por um autor
estão mais detalhados em outro, não sendo necessário, então, a repetição.
Assim, exponho a seguir cinco trabalhos, nos quais centrei-me na
observação de como esses cientistas estabelecem identidades para os ribeirinhos.
Minha intenção não é dissecá-los, com análises profundas sobre a obra, sua
abordagem metodológica, sobre a própria Ciência. Faço apenas apontamentos. É
importante destacar também que esses trabalhos apresentam aspectos de
interdisciplinaridade, quando falam de Educação, Antropologia, Comunicação,
Sociologia e Cultura. Interdisciplinaridade que está presente nos Estudos
Culturais.
Em Palma e Januário é possível observar outros trabalhos, mais antigos,
citados por esses autores, que foram feitos em São Gonçalo, desde meados do
século XX. Os vídeos serão analisados no capítulo quatro, pois constituem o foco
principal desta pesquisa. A intersecção destes trabalhos com o objeto estudado
aparecerá nas considerações finais.
AS VIDAS DO RIBEIRINHO
Elias Renato da Silva JANUÁRIO, 1987.
A pesquisa toma como objetivo compreender as transformações que vêm
ocorrendo na “comunidade” e suas implicações ambientais; identificar as
alterações no ambiente ribeirinho; verificar a forma de ocupação do espaço e uso
dos recursos naturais da região; observar o conhecimento dos ribeirinhos em
relação `a natureza e o papel da educação formal quanto aos princípios da
educação ambiental. O problema parte da relação homem-natureza.
O autor entende ribeirinho como pessoa que vive próxima a rios ou ribeiras
e que se relaciona com o ambiente local (perspectiva etnográfica). Ao descrever
trabalhos realizados em comunidades ribeirinhas, Januário afirma que na esteira
desta e outras pesquisas o universo das comunidades assentadas na depressão
72
cuiabana passou a ser estudado com um caráter mais profundo, com reflexões
sobre a relação homem-natureza-educação.
Na perspectiva etnográfica, o autor se propõe a observar o cotidiano dos
ribeirinhos, descrevendo o universo deste grupo e respeitando a sua diversidade
cultural. Januário compreende cultura como um texto que pode ser lido e
interpretado, sendo que estas interpretações aguardam novas indagações e
formulações sempre mais densas.
O autor diz que usou a história como instrumento de domínio científico. Na
busca de compreender os acontecimentos pelos caminhos da memória, procurou
“evidenciar
o
papel
relevante
das
lembranças
das
mulheres,
exímias
observadoras, não desconsiderando contudo, os depoimentos proporcionados
pelos senhores da comunidade” (Januário,1987, p.10). O autor diz que não
identificou as entrevistas para preservar os informantes e que encontrou
resistência nos moradores no início por causa de uma reportagem que saiu na
imprensa na época.
O trabalho está dividido como se segue: no capítulo I, Januário descreve a
localização, limites, geografia, flora, fauna, população e o rio Cuiabá. No capítulo II
fala sobre o uso dos recursos naturais na região de SG com depoimentos de
agricultores.; como é o cotidiano do agricultor; as práticas domésticas para
combater pragas na lavoura. O autor afirma que o agricultor de SG “vive uma
situação de desequilíbrio econômico, marcada pelas alterações de ordem
ambiental que se processaram na região como efeito do desenvolvimento urbano
de Cuiabá, desintegrando as relações comerciais com a cidade e transformando a
região em subúrbio da capital” (Januário, 1987, p.102). Enfoca também a redução
da produção agrícola nas décadas de 1960/70 com a urbanização. Fala sobre a
usina de SG; a criação de animais, a pesca, dos tipos de pescadores, situação
econômica, relação dos danos ecológicos com a pesca; aborda o artesanato:
73
sobre quem faz, onde vende, os 30 artesãos da comunidade, detecta problemas
no mercado consumidor. Por último fala das doceiras de SG.
Em seguida, passa a descrever a atividade ligada a cerâmica. Conta que o
trabalho era feito basicamente por mulheres. O assunto e´ abordado com mais
detalhes “não apenas pelo condicionante econômico, mas pela representatividade
sócio-cultural que esta ocupação traz imbuída, respondendo pela conservação de
várias tradições peculiares do povo ribeirinho mato-grossense” (Januário,1987,
p.119).
Januário conta sobre o processo de elaboração da cerâmica, da retirada do
barro, a secagem, a confecção de peças , o polimento, a queima. O autor diz que
pesquisou em cadernos cuiabanos da prefeitura de Cuiabá, 1978 . Januário se
mostrou detalhista, num trabalho criterioso de observação e estudo bibliográfico
sobre o tema. Descreve o forno, a extração da lenha, consumo de lenha por forno,
custos, fala sobre o impacto ambiental com a queima da madeira , fala sobre
loteamentos e propriedades em torno da comunidade. Os efeitos do progresso
sobre a cerâmica. Cita Garcia Canclini em “As culturas populares do capitalismo”.
Segundo o autor, a Casa do Artesão possibilitou a mudança das peças
produzidas como objetos utilitários (moringas, panelas, pratos) para peças
decorativas (vasos, pássaros, fruteiras etc). Depois discute o futuro de tal costume
com o declínio, a concorrência, o cotidiano do ceramista, os jovens que não
prosseguem a tradição.
O capítulo III aborda a organização social e as práticas culturais como
“imagens do cotidiano”. Januário faz uma narração sobre o que é observado no
local: o ambiente, as habitações. Como é a moradia, disposição de móveis,
divisão de quartos, objetos, higiene pessoal. Cita a infra-estrutura do lugar,
telefone, água encanada, segurança, energia elétrica.
74
O autor passa a discutir as transformações ocasionadas com a chegada da
TV e as mudanças de valores. O medo de sair `a noite, violência nas ruas do
bairro. Aborda aspectos como abuso sexual entre pai/filha/enteada; a entrada das
drogas a partir da década de 1970; estrutura social; família, a solidariedade
(prática do muxirum para assuntos de coletividade, mas não se ajuda mais uma
pessoa em particular); a divisão do trabalho e a educação em casa.
Januário aborda também sobre o conhecimento e o respeito à natureza,
prática transmitida “ao longo da formação dos filhos por meio da observação
participante” (Januário,1987, p.175). Afirma que comunidades como a de SG são
“conservadores da natureza” consciente ou não. Fala sobre casamento, filho, mãe
solteira, prostituição, homossexualismo; o cemitério, o sepultamento. Segundo o
autor “a morte para o ribeirinho está relacionada com os presságios, ou seja, as
pessoas mais próximas do morto pressentem, mesmo estando distante...”
(Januário,1987, p. 189).
A pesquisa revela ainda aspectos sobre alimentação, religião, as festas
religiosas. Discute as necessidades dos grupos folclóricos, passando por
dificuldades financeiras por causa do crescimento urbano. Analisa através de
causas sócios-economicas baseadas nos cadernos de folclore matogrossense,
n°3, prefeitura Cuiabá.
Januário entra também nas questões relacionadas a mitos e crenças
populares; benzição; narrativas míticas; assombração. O autor faz relação entre
imaginário ribeirinho e conservação do meio ambiente; cita os mitos sobre pedra
21, boi do rio, poço do pari etc
No capitulo IV a pesquisa de Januário discorre sobre o ensino formal em
SG como um parâmetro para estudo do meio ambiente. Fala da escola rural mista
de SG, sua criação em 1909; o ensino na zona rural; analisa o período estudado
82 a 92 – a experiência educacional no ensino rural na planície do médio rio
75
Cuiabá. Depois fala sobre a escola estadual Hermelinda de Figueiredo (HF); o
conhecimento das crianças sobre meio ambiente, através de questionário e
desenhos. A prática educacional sobre meio ambiente na escola HF. Por último,
descreve os trabalhos já feitos sobre comunidades ribeirinhas.
Nas considerações finais, o autor afirma que a pesquisa descreve com
detalhes o universo do ribeirinho, através da pesquisa etnográfica. Ele procurou
contribuir para o entendimento das transformações sócio-ambientais ocorridas. A
abordagem etnográfica foi fundamentada na teoria Interpretativa da cultura de
Clifford Geertz. A abordagem culturalista, a partir da observação direta dos
comportamentos dos indivíduos. Segundo o autor, o estudo evidencia um
saudosismo que enseja um desejo de conservação das coisas belas ocorridas
num passado imaginário. Pesquisa feita principalmente com idosos (olhar do
pesquisador). O autor diz que procurou fazer uma leitura dos diversos aspectos
culturais do grupo estudado. Ele discute algumas questões levantadas ao longo da
trajetória do estudo que permite discorrer sobre “a identidade do ribeirinho em
meio a tantas aspectos contraditórios criados pelo avanço do progresso”.
Ambiente físico: observa a diminuição da biodiversidade (fauna e flora);
afirma que a educação informal é importante para a conservação do meio
ambiente,que a ocupação sempre foi extrativista; que a urbanização favoreceu a
opressão ao meio ambiente e a descaracterização desse ambiente físico e das
relações sócio-econômicas do ribeirinho; desintegração da relação homemnatureza.
Oferece propostas adequadas para os problemas sócio ambientais; que as
ações do Estado estão afastadas da realidade educacional dos moradores; que a
escola urbana fequentada pelos moradores não leva em consideração os saberes
do ribeirinho, só o siriri e o cururu.; que o ensino é monoculturalista e reproduz a
ordem social do grupo hegemônico. Não leva em consideração a diversidade
cultural.
76
A pesquisa encontrou também a presença de elementos regionais típicos
dos grupos ribeirinhos, por exemplo, as danças e festas de santo, artesanato,
práticas de subsistência, medicina caseira, crença no sobrenatural. O autor
caracteriza o SG como área tradicional que está perdendo suas características por
causa do progresso (encontro do tradicional e do moderno).
Apontamentos sobre o trabalho
Como se percebe, a pesquisa de Januário é extremamente rica na
descrição dos aspectos culturais que envolvem a região do São Gonçalo Beira
Rio. Destaco a forma como o autor elabora a identidade do ribeirinho ligada a
natureza. Ele afirma que os moradores do São Gonçalo são “conservadores da
natureza”. Esta talvez seja a principal característica apontada por Januário, pois
estabelece uma relação das ações do cotidiano do ribeirinho com o meio
ambiente. Uma interação que está em transformação por causa do progresso da
cidade que penetra naquele espaço, modificando os costumes locais.
A identidade do ribeirinho como ceramista é outro aspecto apontado pelo
autor. Mas sem perder de vista a relação com a natureza, analisando o impacto
ambiental da queima da madeira, por exemplo, com a atividade. Januário analisa
também o consumo das peças artesanais e as transformações nos valores
projetados sobre as peças que deixaram de ser objetos utilitários para se tornar
peças decorativas. Assim, o que era de uso diário passa a ser de interesse
turístico.
O autor mostra também a relação do ribeirinho com o imaginário mitológico
e das crenças populares, mas sempre estabelecendo um contato entre mitos e
meio ambiente. Januário identifica ainda as relações do bairro com as festas e a fé
dos moradores.
77
É importante destacar ainda que Januário caracteriza o bairro São Gonçalo
como um local tradicional que vem sendo invadido pela urbanização,
principalmente, pelo que esta tem de ruim, como a violência, a poluição e,
principalmente, a descaracterização do modo de vida ribeirinho. Mas, mesmo
afirmando que a sua pesquisa evoca um saudosismo, as considerações finais do
autor não revelam uma ilusão de um retorno ao passado.
COM A CARA E A CORAGEM
Mariângela Solla Lopez, 2000.
A proposta da autora é discutir a recepção radiofônica e identificar como os
processos culturais determinam o modo de consumo, através de conteúdos
emitidos pelo rádio. O São Gonçalo é considerado por ela “uma comunidade
ribeirinha importante pela referencia histórica e social” para Cuiabá e que por isso
foi escolhido para a pesquisa, que analisa a recepção do programa popular “Com
a Cara e a Coragem”, da Rádio Cultura.
O trabalho foi dividido em dois capítulos. O primeiro fala sobre as teorias de
recepção, com destaque para os autores latino-americanos como Garcia Canclini
e Martin-Barbero. Mas também utiliza-se de conceitos encontrados em Michel
Maffesoli como a idéia de tribo. O segundo capitulo versa sobre o rádio no
contexto sócio-histórico de Cuiabá. A autora caracteriza o programa Com a Cara e
a Coragem e sua audiência. Parte, então, para a abordagem da recepção, através
das práticas culturais dos moradores de SG. Lopez trabalhou com grupos de
ouvintes que fizeram a audição de seis programas escolhidos por ela e depois
discutiram os temas apresentados no programa, material que foi utilizado para a
sua análise de recepção.
Nas considerações finais a autora volta a afirmar que a ‘comunidade’ SG,
pela
forma
“particular
de
viver,
permeada
por
construções
simbólicas
extremamente ricas, constitui-se em um espaço único” (Lopez, 2000, p.109). Ela
78
afirma ainda que as manifestações culturais do local estão em “constante
processo de hibridização” com a população cuiabana, hoje formada por migrantes
de várias regiões do país,”o que significa estar interagindo com uma oferta
simbólica heterogênea” (Lopez, 2000, p.109).
Sobre o programa analisado Lopez observa que o seu conteúdo atende,
além da lógica comercial, aspectos da “trama cultural e dos modos de ser da
comunidade” SG. Para ela, se isso não ocorresse seria difícil encontrar ouvintes
do programa entre os ribeirinhos.
A autora destaca também que o programa Com a Cara e a Coragem
funciona como elemento que reafirma a identidade dos ouvintes por abordar
temas ligados a realidade dos moradores de SG. Afirma ainda que os traços
culturais marcantes da “comunidade” foram influentes na audição do programa,
pois a apropriação de significados foi mediada pela cultura e pelo território.
Apontamentos sobre o trabalho
A pesquisa de Lopez torna-se interessante por abordar aspectos ligados a
Cultura de Massa. Sua análise de recepção de um programa radiofônico identifica
os ribeirinhos como pessoas de “hábitos originados de uma tradição” que se
constitui em “símbolos culturais da comunidade” (Lopez, 2000, p.111)
A autora destaca a mediação territorial que os ribeirinhos fazem das
mensagens radiofônicas, incorporando a elas os seus costumes. Mas não há uma
preocupação de detalhar esses costumes. O São Gonçalo é visto por Lopez como
um local que possui uma forma particular de viver, um espaço único – com o qual
os moradores se identificam, estabelecem um sentimento de pertencimento ao
lugar – e que é rico em construções simbólicas. Mas observa que as
manifestações culturais estão em constante processo de hibridização com as
79
outras regiões da cidade e do país. Percebe-se nessa consideração que a autora
identifica uma tensão entre o tradicional e o moderno.
NA BOCA DO FORNO A FORMA DE UM POVO
Lúcia Palma, 1986.
O trabalho tem como objetivos: analisar a participação da mulher na
produção da cerâmica; aborda a questão produção/ circulação/ consumo do
artesanato de SG; tenta mostrar a importância de políticas culturais voltadas para
as camadas populares. Finaliza o trabalho mostrando o papel fundamental do
próprio produtor em conduzir seu próprio destino e que o futuro da cultura popular
depende da força conjunta de toda a sociedade.
Na metodologia a autora destaca que em vários momentos coloca
observações pessoais porque “vivenciou os fatos”. Palma faz um trabalho que
aborda questões históricas, depois sobre a produção da cerâmica – técnica,
modelagem, divisão social do trabalho, participação da mulher na economia
domestica, a comunidade, festas – comercialização/consumo e a conclusão.
No corpo da pesquisa a autora começa por um breve histórico do
lugar. Aborda aspecto histórico da colonização do Brasil até
a fundação de
Cuiabá. Fala sobre as civilizações amazônicas, colonização e características
culturais que persistem. Uma entrevista com Hildes Dorileo narra a história das
comunidades do Coxipó e do São Gonçalo. A autora afirma que não tem
bibliografias sobre o SG, daí a entrevista com o senhor Hildes.
Em seguida, ela passa a abordar a produção e o consumo. Na
produção fala do processo, desde o apanhador do barro até a queima das peças.
Depois aborda a técnica utilizada para fazer as cerâmicas. Segundo a autora, o
objetivo “foi demonstrar o extenso trabalho das ceramistas como o valor social do
trabalho e a pouca valorização por parte do governo”.
80
Palma dá um enfoque cronológico da penetração urbana no lugar e também
do contato dos artistas locais com o bairro. A pesquisadora elenca projetos / ações
desenvolvidas em SG como se segue:
1968 – exposição cerâmica com a participação de artistas locais; foi
destruída pela PF. (Assunto está no dicionário de artes de Aline Figueiredo.);
1974 gravação de depoimentos de ceramistas – núcleo de documentação
histórica Terezinha Arruda;
1975 – filmagem do núcleo SG – depoimentos Cândido Alberto da Fonseca
(roteiro e execução);
1978 – documentação audiovisual – núcleo de documentação histórica
regional – Edir Pina de Barros.
A autora também observa o local, de onde pegam a lenha para a queima,
tipos de cerâmica produzida etc. Palma dividiu o processo do trato com barro em
etapas, descrevendo seus passos: da massa, da louça, o bojo, acabamento, lisa a
louça, a pintura, a queima;
Ao abordar aspectos do consumo do artesanato, Palma fala da questão
econômica que envolve a retirada do barro. Trabalha com depoimentos de
pessoas de meia idade para frente. Observa a vida das crianças, cita a relação
com a natureza e com a televisão. Afirma que o São Gonçalo é uma comunidade;
fala sobre transporte, ensino, luz elétrica, saúde. A pesquisadora toma partido dos
moradores no caso da disputa de terra no local onde ficava o cemitério da
localidade10.
Palma trabalha com conceitos de Garcia Canclini (1983) em “As culturas
populares no capitalismo”, quando aborda as questões que envolvem consumo de
peças artesanais. Apresenta lista anexa de perguntas feitas em cada etapa do
trabalho. A referência parece ter sido de Maria Arruda Mello em ”A dança de SG”.
10
Ver `a pagina 99 da citada pesquisa.
81
Tem ainda
um glossário de termos visto também em Januário “As vidas do
Ribeirinho”.
Na conclusão ela começa citando a falta de políticas culturais consistentes.
Palma fala sobre “a descontextualização e ressignificação que ocorre com o
artesanato, através de estratégias que a cultura hegemônica cumpre diante das
culturas subalternas, deslocando seus produtos do espaço nativo para outro: loja
urbana, museu, butique artesanal. Discute também a descaracterização das
danças siriri e cururu transformadas em “espetáculos” descontextualizados; Fala
sobre a influência dos meios de comunicação nos valores locais; aponta para a
questão da urbanização. Num outro momento afirma a autora que “o espírito
desconfiado para dar entrevistas parecem suspeitar que todos querem tirar
apenas proveitos da comunidade”. Isso, segundo Palma, afeta os pesquisadores
sérios.
A autora fala também sobre a ingerência de órgãos públicos no processo
produção/circulação/consumo. Aborda ainda a questão das cerâmicas que
estouram na queima, fazendo um alerta para pesquisadores da área química,
geológica, sanitarista etc que poderiam contribuir para diminuir o problema.
Palma aponta ainda a necessidade de lazer para os moradores - praça,
parque para crianças com escorregadores, campo de futebol - necessidade de
hortas; aparelho telefônico, veterinários, melhoria da escola, solução para
transporte coletivo, barco a motor para facilitar o transporte do barro. Calçamento
e asfalto como necessidade; arrumar ponte, iluminação pública; capacitação nas
áreas de saúde, educação, agricultura. Resolver o problema do cemitério X
loteamento;
A autora encerra citando Garcia Canclini sobre a importância do produtor
ser
protagonista
nas
políticas
culturais
democratização radical da sociedade civil.
como
conseqüência
de
uma
82
Apontamentos sobre o trabalho
Na Boca do Forno a Forma de um Povo aborda uma questão de gênero: a
participação da mulher nas atividades desse grupo social. Esse é o ponto principal
da pesquisa de Palma. O trabalho feminino orienta as discussões sobre a
produção cultural do São Gonçalo, reforçando a identidade local como núcleo
ceramista de Cuiabá.
Toda a discussão de Palma é em torno da atividade do artesanato, apesar
de não se deter só na descrição dessa atividade. Ela analisa as transformações na
relação produção/circulação/consumo de peças cerâmicas, assim como nas
mudanças da construção do valor simbólico das mesmas que deixaram de ser
utensílios domésticos para se tornar peças decorativas.
É importante destacar também como a autora toma posição em defesa dos
ribeirinhos, estabelecendo um sentimento de apreço e simpatia pelas questões
culturais do bairro. Assim como em Januário, Palma - como representante da
classe culta da cidade – reconhece o valor da cultura popular. Não há um
distanciamento entre o culto e o popular, mas uma aproximação, quando
reivindica melhorias para o bairro, critica o descaso do Estado e defende o direito
dos ribeirinhos de serem sujeitos das políticas culturais.
A DANÇA DE SÃO GONÇALO
Maria Lucia de Mello Arruda, 1982.
Este pequeno livro começa situando a cultura em pequenas comunidades
do Brasil.
Fala sobre o processo de urbanização na Humanidade até
Mato
Grosso e Cuiabá. Aborda também as escolas de samba como manifestação
popular advinda com o processo de modernização. Os dois aspectos manifestação popular e urbanização – são discutidos no mesmo capítulo. Depois
83
fala sobre a teoria do folclore. A dança no Brasil e um histórico da dança do SG.
Em seguida, descreve como se dá a dança de SG em Cuiabá.
Conclui falando que o fato da cidade ter se urbanizado enfraquece “a
manifestação folclórica de SG”. Indaga se esta vai sobreviver ou será substituída.
Diz que o folclore está perdendo espaço para as escolas de samba que é uma
manifestação popular advinda com a urbanização.
Apontamentos sobre o trabalho
Este trabalho mostra uma outra identidade relacionada com o bairro. A de
lugar que preserva os costumes mais antigos da dança de São Gonçalo. A Autora
revela aqui aspectos importantes para a discussão da cultura popular, que é o
contato com a urbanização e as transformações que esta impõe aos costumes de
grupos subalternos. Mas o assunto é tratado superficialmente.
Outro aspecto interessante abordado pela autora é a questão da
substituição das danças folclóricas pelas escolas de samba. Observo que o
assunto permite uma nova investigação já que as décadas se passaram e as
escolas de samba não se destacaram como cultura popular em Cuiabá.
O HOMEM DO BARRANCO
Carlos Ferreira, 1991.
Apontamentos
A peça teatral trabalha a relação da mulher ribeirinha com as águas do
Rio Cuiabá. A história só se torna possível por causa do rio. Ele é visto como a
fonte da subsistência dos moradores, de onde é retirado o barro para a fabricação
da cerâmica e o alimento através da pesca. Mas, o mesmo rio que dá o sustento
84
para o ribeirinho, traz também o sofrimento quando chegam as enchentes. O rio
aparece, ainda, como fonte das crenças populares como o Minhocão e Homem do
Barranco, protetor dos ribeirinhos. Está presente aqui o imaginário popular.
A encenação apresenta, ainda, a relação da mulher ribeirinha com a
natureza que lhe dá o barro e a água. Aparece aí uma outra identidade local, que
é o fazer cerâmico, descrito através da personagem ceramista que fala sobre a
lida com o barro, as formas das peças e a venda do artesanato.
A relação do bairro com os pesquisadores aparece também na peça de
Carlos Ferreira. Em determinado momento da encenação a personagem
ceramista é entrevistada, revelando, assim, essa particularidade do bairro como
local de intensa movimentação de investigadores do costume de seus moradores.
85
3 - VÍDEO E CULTURA
O olhar deseja sempre mais do que o que lhe é dado a ver.
Adauto Novaes
86
3.1 - O Vídeo como Expressão Cultural
No início do século XXI o Vídeo se consolidou como instrumento de
expressão e criatividade. De uma certa forma, ele tem contribuído para uma
diversificação técnica, de conteúdo e de linguagem na Televisão e também no
Cinema. Mas conquista a cada dia novos espaços atuando como um fomentador
de informação – nem só difundida pela indústria cultural – como a escola, os
bairros, aldeias indígenas, presídios etc
Neste trabalho pretendo mostrar os caminhos que o Vídeo percorreu, como
meio de criação, nos seus primeiros trinta anos de existência e sua atual difusão
entre os diversos grupos sociais brasileiros como forma de expressão. Antes de
qualquer coisa é preciso definir o que é Vídeo para entendermos como este
aparato está presente na cultura contemporânea.
Segundo Machado (1995), Vídeo pressupõe todas as modalidades de
mensagens através de imagens eletrônicas vistas pelo receptor de tevê. Aí se
inclui a programação convencional dos canais de televisão transmitida por ondas
eletromagnéticas, por satélite ou cabo (broadcasting). Mas não é só isso. O
monitor de tevê também serve como ”olho” de sistemas fechados de videoteipe
utilizados com câmaras de segurança e como receptor para o videocassete
doméstico. Machado vê ainda o aparato vídeo e monitor de tevê presente em
terminais de saída de sistemas digitais como computadores, videogames,
videodiscos etc...
O termo vídeo abrange o conjunto de todos esses fenômenos
significantes que se deixam estruturar na forma simbólica da
imagem eletrônica, ou seja, como imagem codificada em linhas
sucessivas de retículas luminosas. Nesse sentido, abrange
também isso que convencionalmente nós chamamos de televisão,
ou seja, o modelo broadcasting de difusão de imagem eletrônica.
( MACHADO,1995 p.06)
87
Entendo Vídeo como um complexo eletrônico e/ou digital formado por
videocassete, monitor de tevê e câmara. Tanto pode ser o videocassete e a tevê
como equipamentos de exibição, quanto à câmara como equipamento de
captação de imagens. Os três juntos formam o aparato que cria infinitas
possibilidades de linguagens e de interação com o público. Antes, porém, de falar
sobre as diferentes formas de produção em Vídeo presentes na sociedade é
preciso situar alguns aspectos técnicos e históricos para melhor entender o
fenômeno da produção de imagens na atualidade.
Como os termos Cinema e Vídeo estão cada vez mais unidos por causa
das novas tecnologias é interessante observar também algumas diferenças e
aproximações que os dois veículos possuem. A captação de imagens, por
exemplo. No cinema o processo é físico-quimico, isto é, a imagem é captada pela
câmara, impressa numa película fotossensível (o filme) e depois revelada num
laboratório, através de banhos químicos. No vídeo ou televisão, o processo pode
ser analógico ou digital. No primeiro deles, a câmara capta a imagem e a
transforma em impulsos elétricos impressos em fita magnética. No segundo caso,
a câmara capta a imagem que é codificada em dígitos binários. Em ambos os
casos, o resultado pode ser visto imediatamente ao tirar a fita da câmara e inserila num videocassete, observando pelo monitor de tevê, sem a necessidade de
revelação em laboratório.
Com a tecnologia da TV Digital ou TV de Alta Definição Cinema e Vídeo
estão se unindo num mesmo aparato que elimina a necessidade do uso de
película, passando a captação de imagens para o processo de dígitos binários
com a mesma qualidade de imagem produzida por película. O resultado pode ser
visto, por exemplo, na novela da TV Globo, Sinhá Moça, uma das produções
televisivas pioneiras no uso da TV Digital, no ar entre março e setembro de 2006.
88
A contribuição do Vídeo com o Cinema, porém, começou bem antes em
experimentos nos anos 196011 consolidando-se na década de 1980, quando
modificou aspectos importantes do processo cinematográfico. O vídeo Assist
12
,
por exemplo, permitiu ao diretor uma nova forma de ver o filme sem precisar
esperar o copião do laboratório. Com isso introduziu a possibilidade de ver o
registro no momento da captação, economizando tempo e dinheiro. Pelo recurso
do playback o Vídeo permitiu também a análise da imagem quantas vezes fossem
necessárias sem precisar se deslocar do set de filmagem.
O norte-americano Francis Ford Coppola é considerado um dos grandes
incentivadores do registro eletrônico no processo cinematográfico. Em “A Arte do
Vídeo”, Machado descreve o método Coppola utilizado no filme One From the
Heart ( O Fundo do Coração, 1981). O filme foi concebido como um programa de
televisão e antes mesmo de ter as primeiras cenas filmadas já possuía uma
versão editada baseada nos desenhos do storyboard, o que Coppola chamou de
storyboard eletrônico. Em todo o tempo das filmagens de One From the Heart,
continua Machado, o storyboard eletrônico era alimentado por imagens captadas
em vídeo. Assim, o diretor pôde observar o ritmo das cenas ao mesmo tempo das
filmagens. Em outros momentos, o emprego do suporte videográfico antes de
filmar a cena permitiu verificar se determinados movimentos de câmara seriam
acertados para a cena ou não, dando mais segurança ao diretor. Ele utilizou ainda
recursos em vídeo para compor determinadas cenas com sobreposição de
imagens, método repetido também no seu filme Rumble Fish (O Selvagem da
Motocicleta, 1986), mostrando as possibilidades da imagem eletrônica em
convergência com a captação em película.
Na televisão, programas como “Brasil Legal”, da TV Globo, surgiram da
experiência de videomakers como Sandra Kogut, criadora de vídeo-instalações,
11
Credita-se ao cineasta Jerry Lewis em 1961 o pioneirismo no uso de um VTR como auxiliar na
filmagem de “O Terror das Mulheres”. Segundo Arlindo Machado( 1995, p.181) em “A Arte do
Vídeo” , Lewis registrava os ensaios em vídeo que depois eram analisados em um monitor.
12
O vídeo assist é um monitor de TV acoplado à câmara de cinema que mostra ao diretor a
imagem que está sendo captada no momento da filmagem.
89
uma forma de expressão que tem como objetivo mostrar as possibilidades de
linguagens do Vídeo, muito além daquilo que costumamos ver na Televisão.
3.1.1 - O início
Quando surgiu em 1956 o vídeoteipe13 era um meio de armazenar imagens
produzidas em estúdio, já que o seu tamanho era muito grande. O primeiro
formato, da empresa Ampex, trazia uma fita de duas polegadas de largura
acondicionada em rolo ou carretéis. Por causa do tamanho não se pensava em
captação externa de imagens nessa época.
Mas o avanço tecnológico foi
importante para as emissoras de televisão que passaram a contar com a
possibilidade de gravar programas que antes eram transmitidos ao vivo como
única opção disponível.
Daí para frente a tecnologia diminuiu o tamanho das fitas e criou a
possibilidade de armazenagem da mesma em caixa plástica, os chamados
cassetes. Em 1969, a Sony lançou o formato U-Matic cuja largura da fita era de ¾”
de polegada. O aparato composto de uma câmara e um vídeoteipe acoplado, o
VT, possibilitou a captação externa de imagens já que poderia ser operado por
duas pessoas: um cinegrafista para manusear a câmara e um auxiliar para acionar
o VT, uma caixa grande, de aproximadamente doze quilos, ligada à câmara por
um conjunto de cabos.
A novidade só foi superada na década de 1980 com a entrada no mercado
dos formatos que continham a câmara e o VT num mesmo equipamento.
Surgiram, então, uma variedade de possibilidades tanto para consumo caseiro
como profissional. Entre eles os que alcançaram mais sucesso foram o VHS, para
produções amadoras, e o Betacam, para as redes de televisão e produtoras de
vídeo. Na década de 1990 apareceram os primeiros formatos digitais, com uma
nova tecnologia para a captação de imagens, que resultaram na TV de Alta
Definição.
13
Em inglês o termo é video tape.
90
Não pretendo aqui discorrer sobre esses diferentes formatos, suas
vantagens e desvantagens, assunto que possui vasta bibliografia a disposição dos
interessados. Meu objetivo é mostrar as possibilidades de discursos que o Vídeo
introduziu na sociedade como forma de socializar mensagens e democratizar a
produção, sem perder de vista a dimensão cultural presente com essa tecnologia
e sua contribuição para o universo audiovisual, como nos fala Almeida (1985).
Como um veículo que está entre a Televisão e o Cinema, o Vídeo permite a
circulação de conteúdos desses dois meios de comunicação que o antecederam.
Nos anos 1970 chegou-se a afirmar que o Vídeo seria um mero repassador de
imagens. Mas logo opiniões contrárias surgiram, mostrando que havia sim
possibilidades de linguagens surgindo pelas mãos de artistas.
Tais possibilidades foram se ampliando a partir do momento que a indústria
passou a produzir o aparato em grande escala para o consumo das massas. A
diminuição de tamanho e peso das câmaras e as vendas de videocassete
domiciliar mudaram a relação do próprio espectador com a circulação de imagens.
O aparato permitiu a gravação de programas de televisão até então disponíveis
para serem vistos somente no momento da transmissão. Também fez crescer uma
indústria de entretenimento paralela ao cinema e derivado deste: os filmes para
aluguel em locadoras.
A princípio essas foram as duas principais contribuições do Vídeo para o
mercado consumidor. Mas com o barateamento dos equipamentos cresceu
também o uso caseiro das câmaras, sucessoras das antigas máquinas de Super
8, restritas `as famílias mais abastadas. Assim, o espectador passou também a
produtor de imagens, mesmo que muitas vezes sem um brilho criativo, ao registrar
as festas de família, batizados, aniversários e casamentos. Mas não ficou só
nisso, permitindo também colocar a produção de imagens ao alcance das mãos de
produtores culturais que se lançaram em experimentos artísticos.
91
Segundo Almeida, o Vídeo não apareceu para disputar com o Cinema e a
Televisão, mas possibilitou uma “unificação de um discurso fragmentado” ao servir
como meio alternativo de “corporificação de um universo de códigos dispersos”.
Almeida vai além ao afirmar que o vídeo possibilitou a socialização da mensagem.
[...] surge como um canal de dinamização do produto
cinematográfico, ampliando o seu raio de amostragem e
sintetizando sim, a televisão e o cinema, mas sem jamais
prescindir de ambos, e atuando na verdade como elemento de
interação neste grande projeto de democratização do audiovisual.
(ALMEIDA,1985, p.08)
Diferente do Super 8, a câmara de vídeo permitiu ao fazedor de imagens videomaker - o resultado imediato do que estava sendo gravado, uma vez que o
aparato eletrônico dispensa o processo de revelação do filme.
3.1.2 - Vídeo-Arte
A idéia de vídeo-arte surgiu com o coreano, exilado nos EUA, Nam June
Paik e um grupo de artistas plásticos que buscaram no vídeo recursos para
experimentalismo.
Almeida (1985) afirma que eles usavam o vídeo como um
suporte material, da mesma forma como se aproveita o spray ou a madeira. A
perspectiva foi mudando na medida em que se percebeu a penetração e o impacto
visual que tal aparato conseguia junto ao público. A princípio o movimento dirigiu
suas críticas a Televisão vista como a inimiga da criação artística.
Segundo Almeida, a vídeo-arte lida “com o conceito estimulando a
participação intelectual do público dentro do processo de decodificação da
mensagem” (Almeida, 1985, p.44). Essa forma de expressão busca espaços
alternativos de exibição, uma vez que os trabalhos não são vinculados nos canais
de televisão. Também podem ganhar a forma de vídeo-instalações, onde o espaço
de exibição se divide em vários ambientes cênicos. Neles o público interage com
92
experimentos baseados no conjunto câmara, vídeo e monitor de tevê. Outra forma
de se apresentar é através das vídeo-perfomances, onde a presença física de um
ator relaciona-se com o aparato de vídeo.
3.1.3 - Vídeo Independente
Segundo Almeida o vídeo independente é “um produto audiovisual que,
além de ter sido gerado fora das empresas comerciais de televisão, busca manter
um compromisso mais definido com aspectos culturais ou ideológicos”
(Almeida,1985, p.78).
A grande luta dos produtores independentes é por um circuito de exibição já
que poucos deles conseguem fechar acordos comerciais para exibição de seus
produtos audiovisuais em canais de televisão. Mesmo os canais por assinatura
não abriram as portas para a produção independente como se imaginou na
década de 1980. As exibições ficam restritas a canais educativos, festivais de
cinema e vídeo ou mostras alternativas nos guetos culturais das cidades.
Hoje, a luta pela democratização dos meios de comunicação tem como uma
de suas metas a regulamentação de horários para a exibição de produção
independente regional dentro da grade de programação das emissoras,
principalmente no horário nobre das redes de sinal aberto.
3.1.4 - Vídeo Educação
Aos poucos, o Vídeo ganhou a sala de aula. Passou a ser companheiro
indispensável de professores como um motivador dos mais diversos conteúdos.
Ciência, História, Literatura, Geografia etc. Para os governos fica cada vez mais
clara a necessidade de voltar-se para os meios de comunicação como um
fenômeno de massa que influencia na aprendizagem, mesmo que nem sempre
reconhecido formalmente pelos órgãos competentes.
93
Citelli (2001) lembra que como resposta ao avanço da tecnologia e sua
presença no cotidiano dos estudantes, as secretarias de educação passaram a
dotar as escolas de equipamentos audiovisuais como aparelho de som, antena
parabólica, televisão, videocassete e computadores. Daí surgiu um problema:
como fazer com que professores usassem tal material incorporado à escola para
ensinar?
Citelli, numa leitura de Martin-Barbero14, afirma que os meios de
comunicação passaram a funcionar como “mediadores dos processos educativos”,
isto é, a escola não é a única a promover o ensino. A informação está disponível
através de outros mecanismos até pouco tempo atrás privativo do espaço escolar.
A discussão envolve o significado dos meios de comunicação e as tecnologias da
informação como um desafio cultural para a escola. Há uma distância crescente
entre a cultura ensinada pelos professores e a aprendida pelos alunos. O motivo
está nos meios de comunicação que descentram as formas de transmissão e de
circulação do saber. Assim, funcionam como um decisivo aparato de “socialização
ao atuarem por mecanismos de identificação/projeção de estilos de vida,
comportamentos e padrões de gosto” (Martin-Barbero apud Citelli, p.22). Os meios
de comunicação passam a ser vistos como de caráter estratégicos para o
entendimento do processo cultural na atualidade.
Orozco Gómez (1997) acredita que a tecnologia deve funcionar na escola
como mecanismo de transformação e não para reforçar o processo educativo
tradicional. Para que essa ressignificação da escola ocorra é preciso implementar
um “diálogo” com as novas tecnologias na perspectiva da ampliação cultural,
vencendo a barreira conceitual e operacional.
Citelli entende como barreira conceitual o fato dos professores não se
sentirem seguros para empregar os recursos mediáticos em sala de aula pelo
14
MARTIN-BARBERO, J. Heredando el Futuro. Pensar la educación desde la comunicación.
Revista Nómadas. Bogotá, Fundación Universidad Central, 1996.
94
pouco conhecimento de seus sistemas e processos. Mesmo reconhecendo o forte
impacto que os meios de comunicação provocam em alunos e professores.
O precário conhecimento acerca dos mecanismos de
funcionamento das linguagens institucionalmente não-escolares,
bem como, evidentemente, as carências estruturais da escola
brasileira, que, em muitos casos, impossibilitam tanto a superação
do déficit conceitual como a própria modernização física das salas
de aula, terminam por afastar os agentes educadores do campo
das comunicações. (CITELLI,2001, p.23)
No plano operacional, o autor entende que a formação profissional dos
professores é um entrave para operar com os meios de comunicação. Há um
desconhecimento das novas linguagens ou complicadores operacionais que estão
fora da estrutura dos cursos de qualificação do magistério. O ensino de graduação
continua pautado em balizas fora de sintonia com a dinâmica social, diz Citelli. Ele
observa que os cursos de magistério e as licenciaturas estão orientados,
basicamente no sentido das operações com as linguagens verbal ou numérica
tendo como referencia algarismos, palavras geralmente formatadas em textos.
Portanto, há uma perda quando se pensa em outras dimensões discursivas, a
maioria ancorada nos códigos imagéticos que possibilitam mecanismos de
produção de sentidos.
Nesse aspecto, o uso do Vídeo na educação pode funcionar como um
mediador entre o ensino formal e os meios de comunicação, no sentido de
despertar novos olhares, criando uma consciência crítica sobre a produção
mediática.
3.1.5 - Olhar das minorias
O Vídeo hoje está ao alcance de todos. Fugiu do controle das grandes
corporações e empresas de Televisão e Vídeo. Os espaços de produção se
multiplicaram. Várias Organizações Não Governamentais estão criando núcleos
95
de produções de cinema e vídeo, oferecendo oficinas em comunidades pobres. A
Revista Raiz (2006) dedicou uma edição ao que chamou de “visões periféricas”.
Olhares distantes das elites e das escolas feitas com “uma câmera barata na mão
e uma identidade na cabeça”.
O despertar de favelas, aldeias indígenas, grupos de cultura afro, entre
outros, para a produção de imagens dá a oportunidade para milhares de jovens
mostrar a sua visão sobre a realidade que vivem. O interesse no audiovisual virou
profissão para muitos que estão repassando os conhecimentos adquiridos nas
próprias oficinas para os mais jovens, formando, assim, novas gerações de
fazedores de imagens.
No Rio de Janeiro, a ONG “Nós do Cinema” ensina literatura e discute
filmes com os alunos da oficina, filhos da Favela Vidigal. No bairro de Heliópolis,
em São Paulo, a associação cultural local estimula a produção de vídeos que
discutem os problemas de seus moradores como a falta de acesso a saúde, ao
lazer e ao trabalho. O projeto Vídeo nas Aldeias, de Vicent Carelli, começou em
1987 estimulando os Nambiquara a se retratarem com imagens. Hoje, com apoio
financeiro internacional, o projeto ensina audiovisual nas aldeias e estimula a
produção. Os filmes tratam da situação do índio contemporâneo, aproximando os
jovens das tradições e fazendo o intercâmbio entre nações indígenas.
Todos esses exemplos mostram o que observa Martin-Barbero sobre o
novo lugar da recepção frente aos meios de comunicação social. É pensar a
relação da recepção com os meios e não mais a suposição do que os meios
querem ou podem fazer com a recepção. São exemplos também das
possibilidades de novas produções culturais estimuladas pelos meios de
comunicação social.
96
4 - OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO: ANÁLISE DOS VÍDEOS
O olhar perscruta e investiga, indaga a partir e
para além do visto, e parece originar-se sempre da
necessidade de ‘ver de novo’ (ou ver o novo) como intento de
‘olhar bem’.
Sérgio Cardoso
97
4.1 – Caminhos metodológicos
Este trabalho partiu da pesquisa bibliográfica sobre o São Gonçalo. Após o
levantamento da literatura sobre o bairro e a realização do inventário passei para a
definição de um método para a pesquisa de campo. A tipologia mais adequada
para cumprir meus objetivos é de natureza híbrida com tendência qualitativa e
abordagem cultural.
As visitas ao São Gonçalo começaram em 2005. O primeiro contato foi com
a moradora, Domingas Leonor da Silva, conhecida por seu envolvimento com a
cultura local. Ela é uma das fundadoras do grupo folclórico, Flor Ribeirinha.
Através dela fui procurar o presidente do bairro, Dalmi Lucio de Almeida.
A principio, a idéia era realizar um vídeo com os moradores do São
Gonçalo, onde os próprios ribeirinhos iriam roteirizar e gravar o que fosse do
interesse deles sobre o bairro em que vivem. Para isso, o planejamento inicial
previa a realização de oficinas onde eu daria lições preliminares da função da
câmera e sobre a linguagem audiovisual. Os trabalhos deveriam se iniciar no final
de 2005. Mas, na terceira visita ao bairro, o presidente da associação de
moradores, Dalmi de Almeida, falou sobre a existência de fitas gravadas a seu
pedido por jovens moradores do São Gonçalo, sobre o cotidiano daquele espaço
urbano. Percebi, então, que tais registros dos moradores já continham o “olhar
sobre si mesmo” que eu desejava investigar.
Assim, resolvi dar a esta pesquisa um novo encaminhamento, partindo
desse olhar de dentro do espaço São Gonçalo sobre as atividades deles mesmos,
através dos registros em vídeo. Por outro lado, analiso o que os produtores
culturais da cidade registraram em vídeo sobre essa mesma população,
observando as aproximações e afastamentos entre os olhares interno e externo,
do ponto de vista dos Estudos Culturais.
98
Nesse caminho metodológico a coleta de dados incluiu, então, além
dos citados trabalhos pesquisados em bibliotecas, secretarias de cultura do estado
e do município e produtoras de vídeo, a coleta das fitas gravadas pelo Seo Dalmi.
No delineamento da pesquisa incluo a observação participante das conversas com
moradores a fim de conhecer melhor o universo investigado, assim como a
etnografia, descrevendo a realidade atual do bairro. Por fim, faço um tratamento
analítico dos dados, através da análise dos processos de construção da cultura e
das identidades, presentes nos registros audiovisuais feitos pelos moradores do
São Gonçalo.
4.2 – Dois Vídeos sobre o São Gonçalo
Vídeo 1 - ORA VIVA MEU SÃO GONÇALO, OI TORNA A REVIVA´
roteiro: Luiz Carlos Ribeiro direção: Kátia Meirelles, 2001.
As primeiras imagens do vídeo mostram um lugar bucólico, calmo, com moradores
em rede, outros na porta de casa, imagens do rio e animais . A trilha sonora entoa
“Oi viva meu São Gonçalo oi torna reviva´”, enquanto vemos também imagens de
cerâmicas, argila, fornos de barro e crianças. A narrativa é conduzida em primeira
pessoa pelos entrevistados. São moradores e a pesquisadora Aline Figueiredo,
que assina também a pesquisa do vídeo. Ainda na introdução, rapidamente, temos
três depoimentos: a moradora Domingas Leonor diz: “o São Gonçalo faz parte da
minha vida”. Depois outra moradora, Maria Conceição, diz: “eu me criei aqui e
meu pessoal também”. Em seguida, vem Aline Figueiredo que afirma: “se quiser
saber a história de Cuiabá é possível pegar um ônibus via São Gonçalo”. Fim da
introdução.
A primeira entrevista é com a moradora, Domingas Leonor. Ela fala sobre
as ceramistas deixarem de ser artesãs para tornarem-se domésticas por causa da
falta de apoio para continuar na atividade tradicional. Domingas reclama dos
políticos, do governo, dos pesquisadores que estão sempre por lá e até dos
turistas que vão ao São Gonçalo, mas não compram sequer uma peça de
99
cerâmica de cinqüenta centavos. Afirma que os moradores do bairro são
explorados por essa gente. Ela lembra da enchente de 1974 e daqueles que
ajudaram os ceramistas na época. Cita a professora Terezinha Arruda e Aline
Figueiredo como as únicas pessoas que tiveram “dó das ceramistas”. Enquanto
fala, Domingas aparece amassando a argila, depois moldando e criando uma
cesta com um caju dentro.
Na seqüência, vem o depoimento do artesão Clinio Moraes. Ele fala que já
foi pescador, lavrador e marinheiro. Depois conta como virou artesão e que sua
família só lida com o artesanato cerâmico. Esta primeira parte do vídeo destaca,
em vários momentos, imagens de peças cerâmicas, uma das atividades mais
famosas do local.
A terceira entrevista é com a artista plástica e pesquisadora Aline
Figueiredo. Ela é a personagem que várias vezes aparece no vídeo explicando a
vida no São Gonçalo. No inicio, diz que a história de Cuiabá está ali. Depois, Aline
afirma que a comunidade é festeira, característica que une os moradores. As
festas possibilitam encontros para danças e cantos (siriri e cururu). Aline enumera
as festas comemoradas no bairro: São Gonçalo, dia do Artesão (no mesmo dia do
ìndio), dia das Mães, dia dos Pais, São João, São Pedro, Santo Antonio.
Depois, aparecem imagens dos preparativos para a festa de São Gonçalo.
Os homens pintando o salão, arrumando o aceiro para o churrasco, cortando
lenha. Um outro grupo de moradores enfeitando o centro comunitário com
bandeirolas. Crianças aparecem fazendo pandorgas. As mulheres carregando
vasilhas, preparando bebidas e comidas.
Aline
continua
seu
depoimento,
afirmando
que
os
moradores
desempenham vários papeis. Ora são ceramistas, ora são pescadores, ora são
cantadores, enfim, que são vários personagens ao mesmo tempo.
100
Na seqüência, é dia, início da manhã. Moradores e músicos chegam para a
festa de São Gonçalo. A trilha sonora utilizada na edição para acompanhar estas
imagens é o Hino de São Benedito. Em seguida, vemos uma multidão guiada por
Domingas e um cantador com viola-de-cocho. Os dois iniciam a cantoria com as
seguintes estrofes da canção tema do Santo:
Quando vós for a Bahia me traga um São Gonçalinho.
Se não puderes um grande, me traga um pequenininho.
A cantoria é repetida depois por todos os que acompanham a procissão. A
cena seguinte é a chegada ao local da celebração, ainda com todos cantando a
mesma música tema do Santo. Depois começa a missa. Destaque para o áudio
natural da celebração, onde o padre pede a proteção de São Gonçalo a todos.
Em seguida, vemos uma mesa recheada de salgados e doces típicos. Um
chá com bolo que faz parte da festa. As imagens seguintes cortam a conexão com
a comilança da manhã. A idéia é fazer uma passagem de tempo. Para isso
mostra-se o rio Cuiabá, crianças soltando pipa, homens de bicicleta com varas de
pescar, jovem carpindo e paisagens do lugar.
Em seguida, ainda de dia, as imagens são de um grande churrasco. O
preparo da carne nos espetos, churrasqueiros, panelas imensas de carne e os
convidados comendo na festa. A seqüência traz imagens noturnas da festa de
São Gonçalo. Fogos de artifício no céu. Entra uma entrevista com o morador Ivo
Antunes que fala sobre a festa do Santo ser uma tradição. São Gonçalo é para Ivo
o padroeiro do lugar e um santo milagroso. Ele diz que nasceu e se criou no local
e não quer o fim dessa tradição. Então, aparecem pessoas beijando a bandeira
do Santo e as danças ao redor do mastro erguido no meio do pátio do centro
comunitário, ao som de viola-de-cocho e de mocho.
Depois volta ao depoimento da Aline Figueiredo, afirmando que ali está o
berço do falar cuiabano; que o local é uma fonte de cultura popular; que “a cidade
precisa reconhecer isso”; ali está a raiz do povo mato-grossense: branco, negro e
101
índio. O vídeo encerra mostrando vários momentos da festa de São Gonçalo `a
noite com as danças típicas.
A trilha sonora utilizada no vídeo mistura o áudio ambiente dos rituais
captados no lugar com outras canções pesquisadas. E´ um som desconectado
das imagens, inserido na edição do vídeo. Na cena da chegada de moradores e
músicos da banda `a festa, no inicio da manhã, as imagens são embaladas pelo
Hino de São Benedito como anteriormente descrito. Nos créditos finais há a
indicação desta melodia ao compositor cuiabano, Bolinha. Em outros trechos, o
mesmo recurso é utilizado com as seguintes canções creditadas na ficha técnica:
Cururu Siriri, Dança de São Gonçalo, Cuiabá Cidade Verde (Muxirum Cuiabano);
Rincão Guarani, Fim de Baile, Mercedita (Helena Meirelles); Teu Lencinho (versão
Delio e Delinhas).
Leitura possível
Aqui me parece indispensável responder a uma interrogação baseada nos
estudos apontados por Hall (2004) sobre o sentimento do que significa ser do São
Gonçalo? E também observar Woodward quando afirma que as identidades criam
sentidos através “da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são
representadas” (2000, p.09).
O vídeo de Kátia Meirelles apresenta elementos simbólicos que ganham
diferentes significados pelo olhar dos moradores, o olhar da pesquisadora e o
olhar da própria diretora do vídeo, uma vez que sua função é ordenar as imagens
e entrevistas captadas dando sentido ao material audiovisual.
De modo geral, o olhar de Kátia Meirelles é impregnado do sentimento de
manter viva as tradições do local, ou seja, o artesanato cerâmico e a festa de São
Gonçalo. As imagens da natureza, dos homens de canoa, dos moradores
sentados a beira do rio conversando, a criança deitada na rede sob as copas das
árvores frondosas, dos animais pelos quintais, são imagens que invocam um
102
comportamento típico daqueles ribeirinhos. De um lugar calmo, onde o tempo
demora a passar, o que torna a localidade um paraíso.
Já em seguida, o depoimento de Domingas Leonor traz a discussão da
cultura popular para o plano do econômico e do político, mas com um certo
sentimento de assistencialismo. Ela reclama da falta de apoio para que os
ceramistas possam sobreviver do artesanato. E´ possível entender que sem o
financiamento governamental as artesãs são obrigadas a deixar o ofício para
trabalharem como domésticas.
Ao afirmar que os políticos só aparecem no bairro São Gonçalo na época
de eleição, Domingas mostra que os moradores percebem a intenção daqueles
que não fazem parte do cotidiano do bairro. Ela fala de um sentimento de
exploração do local por políticos e pesquisadores. Há na fala dela um tom de
revolta. Mas observando de forma mais atenta é possível concluir também que a
moradora faz na verdade um jogo de intenções. A fala de Domingas,
aparentemente ingênua, logo se transforma na sua arma de contra ataque. Ela
sabe que a divulgação do vídeo pode ser um meio das artesãs conseguirem o
apoio que desejam. Domingas faz esse jogo, chegando mesmo a criar uma certa
performance diante da câmera ao amassar o barro para fazer a cerâmica e no tom
de voz utilizada.
Domingas é uma liderança no bairro e faz questão de deixar isso claro no vídeo.
Ela representa a fala da experiência imediata dos moradores. Domingas aparece à
frente das cenas da procissão do Santo no dia da festa de São Gonçalo. E´ ela
quem puxa a música, ao mesmo tempo em que toca o ganzá. Também aparece
socando o pilão nos preparativos para a festa. O seu discurso revela que como
liderança política do bairro ela anseia receber as benesses da sociedade.
Aparece, então, no discurso de Domingas um distanciamento entre os anseios dos
moradores e o descaso daqueles que estão do outro lado da cidade, onde se
103
encontra a cultura dos socialmente reconhecidos. Estaríamos, assim, diante de
um embate entre a cultura de elite e a cultura popular.
Ecléa Bosi (1985), em texto sobre a cultura das classes pobres, afirma que
enquanto a cultura popular não está articulada com a cultura da elite ela é vista
como “a outra”, como folclore, fonte da diferença. Estariam, assim, se defrontando
dois grupos: o das realizações culturais significadas socialmente e um segundo
cujas realizações só adquirem significado quando postas em oposição à cultura
dominante.
Domingas deseja ser reconhecida como igual pela diferença, ou seja, como
representante do lugar que deu origem ao falar cuiabano e que mantém vivo os
mais antigos costumes desta terra. Há aqui uma aproximação com as
observações apontadas por Woodward (2000) quando afirma que a identidade é
marcada pela diferença, ao mesmo tempo em que é uma construção simbólica e
social.
Dos quatro moradores entrevistados no vídeo, a fala de Domingas, Maria
Conceição e Ivo Antunes apresenta o sentimento de pertença àquele lugar como
uma marca da identidade local. Um traço de enraizamento observado por Ecléa
Bosi (2004). Os três se referem ao fato de terem nascido e se criado naquele
bairro. Para eles, os mais antigos, a comemoração da festa de São Gonçalo e a
tradição do artesanato cerâmico funcionam como uma reação defensiva aos
tempos modernos, no sentido de preservar a cultura ameaçada, como nos fala
Hall (2004).
Também aparece no vídeo a identidade do ceramista como uma marca do
lugar. Este sentimento está presente na fala do morador Clinio Moraes que conta
como se tornou um ceramista, uma vez que é esta identidade profissional que lhe
garante o sustento e o da sua família. No vídeo, a representação da família
ceramista está ancorada nas imagens de Seo Clínio trabalhando nas peças.
104
Domingas também reforça essa identidade, pois ela aparece amassando a argila e
falando das dificuldades de se manter como artesã da cerâmica por causa da
falta de apoio oficial.
Já o olhar da pesquisadora Aline de Figueiredo traz novos elementos para
reforçar as identidades locais presentes no bairro São Gonçalo. Local onde os
moradores moldam a argila, fazem e tocam a viola-de-cocho, recitam versos,
dançam e são festeiros. Ela afirma que os moradores desempenham vários
personagens ao mesmo tempo. Ora na pesca, ora na lida com o barro; ora na
dança, ora no canto. Nesse sentido é possível uma referência entre
“personagens”, como afirma Aline, e as identidades fragmentadas, como invoca
Hall (2004). A fragmentação das identidades desempenhadas pelos moradores do
São Gonçalo todas ligadas a uma tradição.
Mas a preocupação do vídeo, encarnada no discurso de Aline, de que a
sociedade cuiabana e mato-grossense precisa reconhecer os valores do São
Gonçalo, denuncia que essas mesmas identidades ligadas a uma tradição hoje
estão ameaçadas ou em processo de transformação. Daí a necessidade de
reforçar as identidades locais como reação defensiva aos avanços da urbanização
de Cuiabá e, conseqüentemente, a entrada de novas culturas naquele espaço.
Outro aspecto abordado é a devoção dos moradores. O vídeo é construído
em torno da fé de homens e mulheres ao Santo milagroso e da tradição católica.
Nesse sentido é interessante observar o que fala Arantes (1990) sobre cultura
popular, quando afirma que práticas e concepções tradicionais são vistas, muitas
vezes, como resquícios de cultura culta de outras épocas “filtrada ao longo do
tempo pelas sucessivas camadas da estratificação social”. (Arantes, 1990 p.16).
Assim, a Festa de São Gonçalo, com o seu ritual de procissão, missa, o chá com
bolo, o almoço e demais danças ao longo do dia e da noite, pode ser vista como o
tradicional que está ligado a um passado da origem cuiabana. Então, enquanto
105
cultura popular, tal festejo se justifica por ser uma forma de preservar a suposta
origem desse modo de vida dos ribeirinhos.
Mas no aspecto da fé é importante notar ainda que em momento algum as
falas dos entrevistados se referem ao aspecto religioso. A fé se justifica apenas
pelas imagens do ritual da Festa, ou seja, o andor com o Santo, a missa, o beijo
na bandeira do Santo, as velas acesas.
Também é possível observar que o vídeo trabalha,
superficialmente, a
idéia de que o estar juntos é uma característica da identidade local no preparativo
das festas. O que Araújo (1977, p15) chama de “coesão social”, despertada com
as festas de santo, isto é, um espírito de cooperação. As imagens de homens e
mulheres preparando as comidas, arrumando as bandeirolas no salão, pintando o
lugar, realçam a idéia de que o trabalho é feito em mutirão, com a participação dos
antigos e dos mais novos também, mesmo que estes estejam mais interessados
na fabricação de suas pipas ou pandorgas.
Há ainda a observar, a presença marcante da artista plástica e
pesquisadora Aline Figueiredo. Ao pontuar o vídeo, explicando o modo de vida
daqueles moradores, Aline funciona como a personagem culturalmente superior
cuja tarefa é interpretar o sentimento dos moradores do São Gonçalo para os
espectadores. Mas, ao mesmo tempo, Aline não representa o ser “culto” que se
contrapõe ao que é considerado “popular”. Pelo contrário, a artista legitima o saber
popular para a sociedade que vai assistir ao vídeo, mostrando-se afetuosa e
aliada dos ribeirinhos. Na sua fala final ela reivindica o reconhecimento da
sociedade “culta” ao São Gonçalo como berço do falar cuiabano.
Nesse ponto, destaca-se um fator marcante para a identidade local: a
língua. Silva (2005) nos lembra que a língua faz parte do processo de fixação de
106
uma identidade. Ao ser referir a forma peculiar como os ribeirinhos falam15, Aline
estabelece uma raiz para esse linguajar típico. Este, fruto de um hibridismo, uma
miscigenação ligada `a colonização mato-grossense entre índios, portugueses,
espanhóis e africanos.
Podemos concluir, então, que o vídeo tem sua narrativa pontuada por duas
personagens centrais. De um lado, Domingas Leonor, a moradora que representa
a fala da experiência imediata do São Gonçalo. Do outro, Aline Figueiredo é uma
espécie de voz do saber que não está ligada a experiência, mas sim a pesquisa, a
observação antropológica de quem visita o lugar, constantemente, e conhece seus
moradores. Domingas, a ceramista, está ligada ao “fazer”. Aline, a pesquisadora,
ao “saber”.
Como nos ensina Bernadet (2003) as imagens do vídeo em análise não
podem ser consideradas uma expressão dos moradores do São Gonçalo, mas sim
uma manifestação da relação que se estabelece entre produtores, pesquisadores ,
videastas e o povo do lugar.
Vídeo 2 - O BAIRRO PERDIDO DO SÃO GONÇALO
roteiro e direção: Marcelo Okamura, 2001.
O vídeo começa com imagens da fachada do Museu do Rio e de
bandeirolas penduradas. Em efeito visual aparece a logo do governo do Estado.
Depois, uma bandeira do Brasil. Da bandeira sai em efeito a bandeira de Mato
Grosso e, novamente, em efeito, a logomarca da Lei de Incentivo `a Cultura.
Aparece, então, a imagem de uma menina manuseando o barro, criando uma
peça em cerâmica. Outro efeito visual e, desta vez, do meio da peça sai a
logomarca da Secretaria de Cultura. Depois mostra-se um homem fabricando um
15
Heug (2000, p.49) faz uma análise dessa peculiaridade do falar dos ribeirinhos,
exemplificando assim: “a pronúncia do j, g, x e ch, antes de vogais tem o som de dj, dg tx e tch, a
exemplo de adjuda, dgente , tchão”.
107
jacá. Das tranças de palha sai a logomarca do patrocinador, a Telemat. Todo esse
trecho ao som de uma canção tocada na viola-de-cocho. Fim da introdução.
O vídeo começa com a voz off16 da moradora Domingas Leonor da Silva,
apresentando o local, ao som de músicas de cururu e siriri. As imagens que
acompanham a voz de Domingas destacam o rio Cuiabá e sua paisagem.
Domingas, em off, fala que o lugar tem o rio e os ceramistas. Ela fala sobre a
pesca e a cerâmica como duas atividades essenciais do São Gonçalo, citando
moradores ilustres do local e seus ofícios. Para Domingas eles são os maiores
artesãos de Mato Grosso. Corta.
Em seguida, aparece um pescador que caminha até a beira do rio, arruma
a canoa, tira a água empossada de dentro da pequena embarcação e sai pelo rio
Cuiabá para mais um dia de pesca. Corta.
Na próxima cena vemos Domingas. Ela está diante de um altar com
santos. Uma das imagens, grande e ao fundo, é a de São Benedito. Domingas diz
que o bairro São Gonçalo é a vida dela. Que ali todos formam uma família, são
todos parentes. Ela fala que trabalha pela “comunidade”, que essa é a vida dela.
O depoimento de Domingas continua, mas volta a ser uma voz em off,
falando sobre o trabalho de ceramista, enquanto vemos outro morador, seo Cândi,
lixando um vaso grande no colo e imagens de um forno de barro. A voz off de
Domingas segue, afirmando que o trabalho dos ceramistas é manual, “puro”. Que
jamais ela vai trocar esse ofício por técnicas modernas porque seu desejo é que o
São Gonçalo continue do jeito que é.
O depoimento seguinte é de seo “Cândi”, Candido Manoel da Silva, que fala
sobre suas atividades. Ele conta que a arte da cerâmica vai passando da gente
16
Voz off é empregada aqui, no sentido telejornalístico, como a voz de um entrevistado que não aparece na
imagem mostrada.
108
velha para a gente nova. Ele começou no ofício aos 15 anos e está com 60 anos.
Seu cândi diz que pesca numa época do ano e na outra faz cerâmica, quando o
pescado fica escasso. A imagem mostra o forno de barro e as peças sendo
retiradas após a queima. Depois ele fala de siriri e cururu. Que é uma tradição e
que enquanto ele “tiver perna vai continuar farreando”. Volta-se a mostrar as
cerâmicas.Tudo ao som de músicas cantaroladas por violeiros e cantadores do
local. Sobressaem as seguintes estrofes:
Quem quer ver mulher bonita vai na casa de capim
Na casa de teia tem mas não é bonita assim...
Em seguida, vemos um homem limpando um peixe e, então, mostra-se o
jacá, o cesto típico dos ribeirinhos que era usado para guardar o peixe vivo dentro
do rio. Entra entrevista com o pescador Expedito Valdir da Silva. Ele diz que desde
criança gostou do ramo ao qual foi acostumado junto com o pai. Do avô herdou a
arte de fazer o jacá. Ele fala que o cesto não é mais utilizado como antigamente;
que ele só faz a peça por encomenda para exposição, mas que os pescadores
não usam mais no rio porque “o peixe some no outro dia” (referência ao furto de
peixes). Corte.
A próxima cena é uma roda de viola-de-cocho em baixo de uma árvore,
onde está um trio de dois senhores e uma senhora. Eles cantam as seguintes
estrofes:
Passarinho verde só Maracanã
Vestido de seda só pra me assanha´
A entrevista agora é com Gerônimo Rodrigues de Arruda, um desses
senhores, que conta sobre o seu contato com o instrumento, desde a infância na
zona rural, em Mimoso, antes de mudar para a cidade. Ele fala sobre o uso do
instrumento nas danças típicas como o siriri, nas rodas de cururu e na festa de
São Gonçalo; que a viola-de-cocho é um divertimento sadio que o acompanha
desde a infância. Seo Gerônimo conta que deixou a roça para dar estudo a seus
filhos, instrução que ele e a mulher não tiveram. Agora, 36 anos depois de vir para
109
a cidade, gostaria de voltar para a roça, onde acha que tem mais fartura. Mas não
tem como porque os filhos estudaram e não querem deixar a cidade. Geronimo
afirma que não esquece da viola-de-cocho e que sente a necessidade de “uma
pessoa grande” se interessar por ela porque a viola é muito boa.
A fala de Gerônimo é interrompida pelo depoimento de Maria Joana da
Silva que completa a frase do amigo: “pra viola não acabar”. Ela diz que hoje o
instrumento é mais usado em baile do que no cururu. Joana conta que cresceu em
roda de siriri e que gosta de escutar as cantorias e participar das danças típicas.
Depois é a vez do artesão Clínio de Moura ( no outro vídeo ele é creditado
como Clinio Moraes) que conta como se tornou um ceramista (a mesma história
contada no vídeo anterior). Ele fala sobre a venda de peças, atividade difícil no
início dos anos 1970, quando só amigos da Universidade e do governo
compravam o artesanato. Segundo Clinio, a divulgação melhorou com a criação
da Casa do Artesão em 1975. Aí ele ficou conhecido e melhorou sua situação
financeira. Sua família, então, voltou-se ao trabalho. Toda a entrevista é dada
enquanto trabalha fazendo um peixe de cerâmica.
Em seguida volta a voz off da moradora Domingas Leonor, dizendo que a
cerâmica é a sobrevivência da comunidade; que é um trabalho artístico passado
de pai para filho e que eles hoje têm o dever de continuar a tradição; que é preciso
preservar tais costumes. Enquanto isso, vemos imagens de peças de cerâmica de jacarés, galinhas e potes – e imagens de São Gonçalo. A fala em off de
Domingas termina com a moradora dizendo que recebeu essa herança da avó,
mas que nem todos preservam e que ela tem medo que isso acabe. Enquanto
isso, aparecem imagens do preparativo de um andor e de São Gonçalo.
Vemos imagens noturnas da procissão do Santo pelas ruas do bairro do
Porto e a chegada até o Museu do Rio. Lá o grupo folclórico encena trechos do
ritual da festa de São Gonçalo e apresenta danças típicas ao som de “olha viva
110
meu São Gonçalo, oi torna reviva´”. Depois de vários momentos da dança no
Museu do Rio volta a imagem para a Domingas falando que o bairro está sendo
esquecido pelo povo.
O vídeo termina com o trio de velhinhos cantando ao redor de uma rede, onde um
deles está sentado e tocando viola-de-cocho. A senhora em pé canta:
a lua clareia e o sol alumeia
menina caçando amor que não bambeia
Os letreiros finais expressam a necessidade de preservar a cultura local
com os seguintes dizeres: “agradecimento especial `a toda a comunidade do
bairro São Gonçalo pela preservação da cultura matogrossense”.
Leitura Possível
O vídeo de Marcelo Okamura,
como o de Kátia Meireles, expressa o
mesmo sentimento de preservação de uma cultura popular. A manifestação dos
ribeirinhos - no trato com o artesanato, a pesca, as cantorias e danças - aparece
como representações do folclore cuiabano. Assim, para cada manifestação
cultural o vídeo trabalha com um elemento simbólico da cultura local: para o
artesanato, a cerâmica. Para a pesca, o jacá. Para o siriri e o cururu, a viola-decocho.
Neste vídeo o único olhar externo ao São Gonçalo é o do próprio videasta.
A narrativa é pontuada pelos depoimentos dos moradores que vão esclarecendo
sobre as transformações nos costumes do lugar. O videomaker Marcelo Okamura
é mais explícito ao provocar o espectador, no sentido de mostrar o São Gonçalo
como um bairro esquecido que corre o risco de desaparecer com suas tradições.
O “berço da cuiabania” é retratado com nostalgia. Esse sentimento está presente
nas falas de seus moradores, a maioria mulheres e homens idosos, que falam
com verdadeira devoção ao lugar.
111
Como no vídeo anterior, o sentimento de pertencer ao bairro é mostrado
como uma identidade dos moradores. Quando fala
com orgulho sobre os
ceramistas, Domingas introduz a outra identidade do São Gonçalo, como o lugar
que possui os melhores artistas do ramo. Na sua fala ela não admite que haja
transformações no fazer desses artistas, situando a arte dos ceramistas como
“pura”, “manual”, sem interferência das tecnologias modernas.
Neste ponto observamos uma aproximação com o que diz Woodward
(2000), quando aponta que a identidade reivindica um essencialismo sobre quem
pertence ou não a um determinado grupo identitário, no qual “a identidade é vista
como fixa e imutável” (Woodward, 2000, p13).
É´ como se Domingas quisesse congelar o
tempo, impedir as
transformações do cotidiano nos costumes locais. Na fala dela não há lugar para o
futuro, só para o passado “como forma de preservar uma suposta origem daquele
modo de vida” (Arantes, 1990, p.16).
Mas o próprio vídeo mostra a interferência dos novos tempos nos costumes locais.
O pescador Expedito esclarece que o jacá não é mais um utensílio do pescador
porque pessoas de fora do bairro furtavam o peixe que ali ficava (essa explicação
é bem superficial no vídeo. Só fica clara para quem conhece o bairro). Então, hoje
o pescador não usa mais. A fabricação do objeto ganhou um novo significado
como peça de exposição. E´ feita sob encomenda para o consumo do turista,
portanto, com um valor de troca.
O mesmo sentimento de transformação está nos depoimentos do trio de velhinhos
sobre a viola-de-cocho. Seo Gerônimo e Dona Joana afirmam que o instrumento
agora é usado para animar os bailes, mas estão cada vez mais raras as rodas de
siriri e cururu que eles viveram tempos atrás. Os dois exemplos confirmam o que
diz Arantes (1990), quando observa a dinâmica cultural da sociedade. Para o autor
112
é possível a preservação de gestos, objetos, palavras e características plásticas
exteriores, mas os significados se alteram no contexto da produção cultural.
A fala de Seo Gerônimo traz um outro elemento interessante. Ele diz que deixou a
roça para viver na cidade para dar instrução aos filhos. A personagem quer voltar
para o lugar de onde veio, mas não é possível o retorno por causa dos filhos que
aprenderam na cidade um novo modo de vida. Em Eclea Bosi (1996) é possível
observar como a busca de instrução subverte a cultura do próprio povo. "A
concepção de cultura como necessidade satisfeita pelo trabalho da instrução leva
a atitudes que reificam, ou melhor, condenam `a morte os objetos e as
significações da cultura do povo porque impedem ao sujeito a expressão de sua
própria classe” (Bosi, 1996, p.17).
O vídeo deixa que os próprios moradores expressem os seus costumes. Ao
contrário do vídeo de Kátia Meirelles, não há uma personagem externa áquele
ambiente para explicar o cotidiano dos moradores do São Gonçalo. A voz do
“saber”, o outro, esta´ligada ao próprio autor do vídeo na montagem do material,
na organização dos depoimentos, criando sentido `a historia.
Mesmo que os dois vídeos sejam carregados de um sentimento de
preservação da cultura popular do bairro São Gonçalo há uma diferença entre eles
neste sentido. Enquanto Kátia Meirelles legitima sua posição através da
personagem de Aline Figueiredo, Marcelo Okamura deixa explícito seu sentimento
a favor da preservação das tradições locais no letreiro final.
No depoimento do Seo Gerônimo chama a atenção o fato do velho violeiro
reivindicar o apoio, ainda que implícito, de uma “pessoa grande” para ajudar na
preservação da viola-de-cocho. A expressão “pessoa grande” pode ser entendida
como alguém ou instituição de fora daquele ambiente, mas com prestígio
113
suficiente na sociedade mato-grossense para legitimar o que ele e seus amigos
consideram como um caráter essencial, que é a sobrevivência da viola-de-cocho.
Seo Gerônimo reivindica um reconhecimento da sua cultura, a popular, por
parte do outro, a elite. Para ele a viola-de-cocho merece apresentar-se como uma
“realização
cultural”
com
um
“significado
social”,
aspectos
geralmente
considerados apenas nas atividades ligadas `a cultura dominante. “Enquanto não
articulada com a nossa, aquela cultura é a outra para nós, o folclore, a fonte vital
do diferente”, afirma Bosi (1996, p16). Nesse sentido, o que Seo Gerônimo deseja
é uma articulação entre a cultura dele e a outra, o que retiraria da cultura popular o
seu caráter de diferente.
O depoimento de Seo Cândi fala sobre dois tempos: o da pesca e o do artesanato.
Essa divisão em ciclos é encontrada em culturas rurais do Brasil ou áreas pobres
das cidades, afirma Alfredo Bosi (2004). A fala do morador revela essa dimensão
cíclica presente nos costumes de quem vive no bairro São Gonçalo. A pesca e a
cerâmica são atividades reforçadas pela memória coletiva do lugar e adquire valor
num constante ir e vir.
O depoimento do Seo Clinio põe em discussão a dimensão econômica do
artesanato cerâmico. Quando fala das peças que fabrica, do envolvimento da sua
família com a melhora das vendas, do que os turistas mais compram, ele
comprova o que outras vezes foi observado sobre as mudanças de significação
ocorridas com o tempo. A cerâmica, que foi utensílio de uso diário, hoje é objeto
de ornamentação. Houve uma alteração no seu valor simbólico como resultado do
processo de urbanização da cidade e da expansão do capitalismo.
O vídeo termina com uma encenação no Museu do Rio dos rituais da festa de São
Gonçalo. Neste ponto é possível interpretar como as transformações sociais
operam no interior das culturas populares. O fato de encenar os rituais aponta
114
para uma ressignificação das danças e cantorias, deslocadas do seu ambiente
natural. Assim, torna-se espetáculo para o turista, para o de fora daquela cultura,
para o outro, ao mesmo tempo em que, aos olhos externos, o ritual é visto como
mera curiosidade, reforçando o distanciamento do popular ao erudito.
Segundo Ecléa Bosi (2004) o espetáculo é a forma como o capitalismo se apropria
do popular, subvertendo o seu caráter original de enraizamento. Até o fato de a
encenação ter como palco um “Museu do Rio” pressupõe a condição de que o
que está sendo visto pertence a um passado e dessa forma só pode ser visto
como folclore.
4.3 – O olhar ribeirinho
A análise a seguir é uma forma de oportunizar reflexões acerca dos textos
em vídeo produzidos sobre o São Gonçalo, na ótica dos moradores. Este trabalho
partiu das conversas com o presidente do bairro, Dalmi de Almeida, durante visita
feita ao local em 2006, quando dos preparativos para a festa de São Gonçalo que
acontece no dia 10 de janeiro.
Sentados `a beira do rio Cuiabá numa tarde da semana, `as vésperas da
festa, foi que Seo Dalmi me contou sobre o costume dele de registrar em vídeo as
atividades festivas dos moradores. Até então eu desconhecia a existência dessas
imagens. Ele disse ainda que deixou de fazer as gravações porque o equipamento
está com defeito. Indagado sobre quem faz as imagens, ele respondeu apenas
que é “os meninos, a moçada mais jovem” sem alongar a resposta.
Por várias vezes tentei em vão conseguir essas imagens. Somente em Abril
de 2006, tive finalmente acesso ao material. São dezesseis fitas em formato VHSCompacto ou VHS-C, como é mais conhecido. As fitas ficam guardadas na casa
do Seo Dalmi. Ele contou que nunca foram exibidas para os moradores. O
115
material captado não possui uma identificação apropriada, o que dificulta precisar
a época de sua realização. Mas a maioria dos registros identificada é dos anos de
1999 e 2000.
Eu assisti `as imagens, pela primeira vez, junto com o Seo Dalmi - ele
gentilmente me recebeu em sua casa em abril de 2006. Aos poucos fui
entendendo o enredo daquelas imagens. Trata-se de registros em estado bruto,
isto é, sem ter passado por processo de edição, contendo atividades dos
moradores em momentos festivos.
Assim é possível ver imagens sobre uma manhã de limpeza no rio Cuiabá
(campanha Salve o Peixe, Salve o Rio Cuiabá); Festa do dia das Mães; Festa do
dia dos Pais; Festa de Natal; Festa de São Gonçalo; Dia das Crianças; Mutirão e
Horta Comunitária; Dança de Quadrilha; Gincana em 1999; Encontro de Ciriri (sic);
Futebol; Reunião, Inauguração de Barragem; viveiro. Cada fita tem em média
trinta minutos de gravação.
Diante de vasto material e a impossibilidade de analisar tudo, o
questionamento seguinte foi sobre como escolher aqueles registros mais
significativos para esta pesquisa. Escolhi analisar as imagens sobre a festa de
São Gonçalo e sobre a limpeza do rio Cuiabá. A primeira por permitir traçar um
paralelo com os vídeos sobre o SG que também enfocam a festa e a devoção dos
moradores. A segunda opção por se tratar da preocupação com o meio ambiente,
algo que também é descrito nos trabalhos acadêmicos sobre o São Gonçalo. Na
análise, primeiro descrevo as imagens desses vídeos e depois faço a leitura sobre
o texto videográfico com aporte nos Estudos Culturais.
O São Gonçalo hoje é um bairro integrado a cidade de Cuiabá. Sua
principal via de acesso está asfaltada até o local onde se localiza o restaurante
Regionalíssimo. A pavimentação foi entregue `a população em 2003 pelo governo
estadual. Segundo o presidente da associação de moradores, Seo Dalmi, a luta
116
junto aos políticos ainda é o asfaltamento de mais 500 metros de estrada de chão
no bairro e melhorar o transporte coletivo, pois são poucos ônibus e sem linha
direta para o centro de Cuiabá.
Boa parte da população trabalha na cidade. As hortas comunitárias não
existem mais, segundo o Seo Dalmi, por desinteresse dos moradores em fazer o
cultivo de forma coletiva. Muitos ainda pescam, mas não é uma atividade
econômica determinante para o sustento de todos os ribeirinhos. È´ comum ouvir
dos moradores queixas sobre a escassez do peixe nas águas do rio Cuiabá. Ao
longo da rua principal do bairro, muitas casas mantêm na entrada a placa
informando sobre a venda de cerâmicas, objetos que podem ser encontrados
também na “loja” do artesão, aberta no bairro em 2003, ao lado do restaurante
Regionalíssimo. Turistas e moradores de Cuiabá vão ao local para almoçar e,
muitas vezes, compram souvenires do artesanato expostos `a venda.
Segundo os moradores, a “loja”, situada no centro comunitário, deu um
novo impulso `a produção de artesanato. Famílias que haviam abandonado o
ofício voltaram a produzir pelo aumento da demanda. Com o apoio do Sebrae os
ceramistas do São Gonçalo estão introduzindo novas técnicas que permitem
ampliar a produção e melhorar a qualidade. É o caso de formas de gesso que
ajudam a padronizar as peças para o mercado consumidor. Os moldes diminuem
o tempo de produção, mesmo com o acabamento ainda sendo feito manualmente.
O resultado é o aumento das encomendas. Algumas chegam a cinco mil peças, o
que significa uma média dois meses de trabalho.
Dona Alice, que coordena a venda de peças na loja de artesanato, diz que
o consumo de cerâmicas fez com que muitos jovens se interessassem pelo ofício
dos pais e avós. A motivação vem pelo fator econômico por causa do aumento
das vendas.
117
Com o aumento da produção os ceramistas necessitam de mais argila. A
forma tradicional de extrair a matéria prima, descendo o rio de canoa, não é
suficiente. Segundo os moradores esta modalidade acontece ainda, mas de forma
esporádica. A associação de moradores consegue argila com os empresários das
cerâmicas da cidade. Uma “tombeira” é suficiente para meses de trabalho dos
artesãos. Segundo o seo Dalmi, ao ano são quatro “tombeiras” que descarregam
o material nas casas dos ceramistas.
Também percebe-se no local um interesse comercial por peixarias, que
começam a aparecer ao longo do rio, na avenida principal do bairro. Algumas
casas estão se adaptando como restaurantes especializados no cardápio, como já
acontece do outro lado do rio Cuiabá, nas localidades de Bom Sucesso , Praia
Grande e Passagem da Conceição, no município de Vázea Grande.
Recentemente, a prefeitura de Cuiabá anunciou um projeto de incentivo ao
turismo que prevê a construção de um planetário indígena no São Gonçalo, num
local conhecido como “caminho das estrelas”. E também a construção de um
monumento em homenagem ao encontro das águas do rio Cuiabá com o Coxipó.
Vídeo 1 – Festa de São Gonçalo
Ano de produção: 2000
O vídeo começa com uma procissão ao longo da estrada de acesso
ao bairro ainda sem asfalto. A tomada é feita em Plano Geral (PG), localizando o
lugar. A mesma tomada fecha-se em Zoom17 até a imagem do santo, que está
num andor carregado por quatro pessoas. Nessa tomada é possível ver as duas
da frente. Como a câmera está à longa distancia da procissão, o uso da Zoom faz
17
A Zoom é um falso movimento de câmera, através da mudança de ângulo de visão da objetiva
da lente, dando a sensação de aproximação ou afastamento de um objeto focalizado.
118
a imagem tremer, não fixando-se exatamente sobre o santo. Mas parece ser essa
a intenção. É possível observar também a presença de um cinegrafista de um
canal de televisão local (TV Record), fazendo imagens bem próximo a multidão.
(corte)
Novamente, a estrada é vista em Plano Geral18. Um leve movimento
panorâmico à esquerda e volta-se a abrir em Zoom, mostrando a procissão em
PG. (corte) Agora mostra a procissão de perfil tendo ao fundo o rio Cuiabá. A
imagem mostra crianças e jovens; homens e mulheres carregam o santo. A
moradora Domingas, figura conhecida no meio cultural local, vai à frente tocando
ganzá acompanhada de um homem tocando viola-de-cocho. O cortejo é
acompanhado por uma banda e por pessoas que soltam fogos de artifício. Os
presentes usam “roupas de festa” isto é, nota-se que estão produzidos para a
procissão. A câmera se aproxima em Zoom das pessoas que carregam o santo e
rapidamente volta-se a abrir para PG. (corte)
No plano seguinte, a banda pára de tocar. Quem entoa a canção agora é
Domingas e o violeiro. O som não é captado com clareza, mas é possível
entender a seguinte estrofe: “quando voltar da Bahia me traga um são
gonçalinho”. A estrofe é repetida pela multidão que canta e bate palma
sincronizada com a batida da viola-de-cocho. (corte) Na tomada seguinte, a
câmera mostra a procissão chegando a associação dos moradores, onde vai se
celebrar a missa. (corte) Durante a celebração as tomadas são na maioria em
Planos Abertos19, movimentos Panorâmicos20 e alguns movimentos de Zoom, sem
exatamente aproximar em Close. Ouve-se o padre falando e as orações dos fiéis
entrecortadas por músicas de louvor a Deus. (corte)
18
Na nomenclatura clássica para vídeo, em Santos (1995), o PG representa o enquadramento feito
de corpo inteiro com destaque para o ambiente da ação.
19
O mesmo que Plano Geral, destacam o ambiente da ação.
20
Nos movimentos panorâmicos a câmera gira em torno do eixo do seu tripé na horizontal ou
vertical.
119
Numa outra tomada aparece o presidente do bairro, Dalmi de Almeida,
falando para os fiéis. Enquanto fala, a câmera percorre o ambiente em Pan e
fecha em Zoom numa imagem de São Gonçalo. Depois retorna até Dalmi. Ele diz
o seguinte: “... e pedir a Deus uma benção pra todos eles. E que ano que vem, se
Deus nos der saúde, pra que nós pudermos estar aqui mais uma vez orando ao
nome de nosso senhor Jesus Cristo e de São Gonçalo aqui na nossa comunidade.
Nossa intenção como presidente da associação é divulgar a nossa comunidade e
fazer com que ela cresça; e que as crianças passem a gostar daquilo que é a
cultura que é o artesanato que é a vida da comunidade. Porque o dia que acabar a
cultura, o artesanato, acaba o São Gonçalo. E também deixar uma mensagem
para essas crianças, esses jovens que seguem ... ( não dá pra entender) esses
mais velhos de luta pela nossa cultura e crescimento do nosso bairro e
desenvolvimento. E pedir a Deus que abençoe todos nós”. (corte)
Ainda na celebração as imagens mostram outras pessoas fazendo
agradecimentos, enquanto a câmera passeia em Close sobre o altar, onde se
encontra a imagem de São Gonçalo. Novamente os fiéis passam a cantar para
São Gonçalo e bater palmas. A câmera passeia pelos fiéis e em Zoom fecha até a
imagem do santo. (corte) Em seguida, vem o chá com bolo. A imagem mostra a
mesa farta e as pessoas comendo. Vê-se equipes de TV colhendo imagens
também. Noutra tomada vê-se a banda tocando, enquanto as pessoas encostadas
num muro estão comendo. O cinegrafista mexe com um casal que está próximo
ao muro. O casal tenta se esconder da câmera. Em outra tomada, o cinegrafista
,agora na rua, pede aos moradores que sorriem e falem alguma coisa para a
câmera. As pessoas olham meio desconfiadas. (corte)
A tomada seguinte é feita`a noite. Aparecem violeiros tocando e cantando
cururu enquanto mostra a imagem do santo. Novo plano aberto de tocadores. Em
seguida plano de pessoas segurando velas seguindo em Pan e Zoom dos
presentes. Aparece a cova, onde será fincado o mastro com a bandeira do
120
santo21. Seo Dalmi e Domingas amarram a bandeira de São Gonçalo na ponta do
mastro enquanto os cururueiros tocam. Vê-se então, em um novo plano, a figura
de um menino, de cinco anos aproximadamente, tocando ganzá. A câmera
aproxima dele em Zoom (mais tarde descobri que o menino chama-se
Marcelinho). Mostra-se outros meninos segurando velas. Em seguida, a colocação
do mastro erguido no meio do salão da associação dos moradores. Na próxima
tomada os presentes formam uma fila e seguram velas. A câmera passeia entre o
público. As mulheres dançam e batem palma. A fila segue até um canto do local
onde está uma mesa com a imagem do santo. Eles entoam cantos a São Gonçalo.
Noutra tomada, aparece uma roda interna de mulheres dançando e cantando e
por fora uma outra roda de homens tocando viola de cocho, ganzá e batendo
palmas. FIM.
Vídeo 2 – Limpeza do Rio
Ano de produção: não identificado
O vídeo começa no cartaz onde está escrito “Socorro... Preciso continuar
vivendo – Rio Cuiabá”. Depois a câmera mostra outro cartaz onde se lê: “Rio
Cuiabá... Essência da Vida”. Em seguida aparece em plano fechado sacos
plásticos com alevinos dentro. Os sacos estão dentro de um caminhão. A câmera
passeia entre os sacos em Pan. Na tomada seguinte aparecem crianças seguindo
em direção ao rio, todas com camisetas da campanha “Salve o Peixe Salve o Rio
Cuiabá”.
As crianças carregam sacos e elas são mostradas retirando entulhos, lixos
e sujeiras da beira do rio e depositando nos sacos. Em seguida vê-se o lixo
amontoado com as crianças em volta. Aparece, então, mulheres e crianças
alegres dançando e requebrando. Na tomada seguinte vê-se em Plano Geral
crianças caminhando ao longo de um estrada de terra. Elas vêm com uma faixa na
frente escrita: ”Rio Cuiabá e Coxipó: Patrimônio Cultural Ecológico. Preserve-o
21
Segundo pesquisa de Haug (2000), a cova é chamada de Sepultura de Jesus, ou no linguajar
típico dos ribeirinhos sepurtura de jesuis.
121
(sic)”. Mais uma tomada em PG da caminhada. Nesse ponto descobre-se que as
crianças são alunos de uma escola e estão acompanhadas de professores. Noutra
imagem aparece o político Murilo Domingos, idealizador da campanha de
preservação, chegando ao local. Em seguida mostram-se as crianças em fila para
pegar o lanche na associação de moradores do São Gonçalo. Depois várias
tomadas das crianças comendo e bebendo.
As cenas seguintes são externas. Os presentes estão aglomerados e
ouvem os discursos de autoridades. A câmera está longe, num ponto superior e
não mostra muito as pessoas. Tenta focar apenas aqueles que discursam. Seu
Dalmi, o presidente do bairro, fala que a comunidade vive do peixe e do
artesanato; que as crianças devem defender a natureza para preservar o futuro.
Na sua fala identifica-se a escola cujos alunos, da 1ª a 4ª séries, estão ali naquela
atividade. É´o colégio Hermelinda de Figueiredo, do bairro Cophema. Aparece,
então, outro morador discursando pela preservação. As professoras também
discursam agradecendo. Por último fala o político. Ele conta sobre como surgiu a
campanha Salve o Peixe Salve o Rio; que está empenhado em trazer mais
recursos de Brasília para investir na preservação do local e faz agradecimentos.
Em seguida aparecem as crianças plantando árvores na região e depois os peixes
no rio. FIM
Leituras possíveis
As imagens dos dois vídeos têm um caráter documental, uma vez que se
enquadram como registros de uma realidade com sentido informativo, não
ficcional. O primeiro vídeo capta uma manifestação popular que se repete no
bairro São Gonçalo todos os anos. O segundo enfoca um problema ambiental com
conseqüências sociais.`A princípio, é possível notar que os vídeos não
apresentam uma preocupação formal com a linguagem. Sua intenção é registrar
um acontecimento, utlizando-se de um aparato técnico que hoje não está restrito
ao uso de profissionais. Nesta análise, detive-me ao seu caráter temático – na
relação entre o discurso verbal e/ou não-verbal - e menos na forma como esse
122
discurso é construído. Mesmo porque as imagens apresentam-se em estado
bruto, sem ter passado por processo de edição e pós-produção.
Bernadet (2003) enfoca o problema do documento visual em estado bruto
“como se um fragmento da realidade tivesse sido transportado sem elaboração do
mundo para a tela” (Bernadet, 2003, p.285). O autor afirma, em seguida, que a
noção de fragmento bruto é discutível. Para ele o melhor seria dizer “fragmento da
cotidianidade” que pouco elabora e apronta, referindo-se a imagem em movimento
quando se torna espetáculo.
Quanto aos paradigmas da produção de imagem, o registro em vídeo
enquadra-se no paradigma fotográfico, pois são “imagens produzidas por conexão
dinâmica e captação física de fragmentos do mundo visível, ou seja, imagens que
dependem de uma máquina de registro e que implicam necessariamente a
presença de objetos e situações reais preexistentes ao registro” (Santaella, 2002,
p.112)
A própria condição do vídeo como suporte de captação de imagens que se
presta ao registro em movimento – para diferenciar-se da fotografia tradicional dá conta do caráter referencial que lhe cabe, no sentido semiótico. Portanto, a
imagem videográfica documental22 é o real em um tempo passado.
O primeiro vídeo, sobre a Festa de São Gonçalo, apresenta alguns
elementos que merecem ser destacados: a procissão, a missa, o chá com bolo, a
fincada do mastro à noite, os instrumentos musicais. É´ a partir deles que seguirei
minha análise.
A procissão e a missa são momentos em que se observa a representação da fé
dos moradores ao padroeiro do local. E´ durante a procissão que escutamos a
22
Falo em imagem videografica documental porque é possível produzir imagens videográficas não
documentais, de forma sintética, através da computação gráfica que se enquadram no paradigma
pós-fotográfico.
123
entoação da música tema da festa, o canto a São Gonçalo. A toada é
acompanhada de ganzá, viola-de-cocho e das palmas do cortejo. Há momentos
em que o ritual torna-se um unívoco, um coral, que ora dá vivas a São Gonçalo,
ora repete as estrofes do canto ao Santo, ora bate palmas no ritmo da música.
Esse é um ritual de enraizamento, como nos fala Ecléa Bosi (2004), uma vez que
constituí-se em cantos, gestos e toques de instrumentos que guardam a memória
dos antigos moradores. Quem participa da procissão revive um costume do
passado. “Sentimento enraizador e portador de esperança é cantar de novo os
cânticos das festas comunais. Um dos atrativos desses hinos é a convicção de
que os homens de ouros tempos assim os cantaram” (Eclea Bosi, 2004, p.39).
A celebração é o momento em que os fiéis se juntam para agradecimento,
regozijo e pedidos de proteção. Mas é possível observar na fala do presidente do
bairro, Seo Dalmi, que a missa é momento também para outras reflexões dos
ribeirinhos. No trecho em que ele aparece falando aos fiéis, o líder local diz que
sua intenção como presidente do bairro é “divulgar a comunidade e fazer com que
ela cresça”. Percebe-se, então, a importância da imprensa estar presente na
Festa. Para Dalmi a imprensa representa esse “divulgar” que ele acredita ser
necessário para a perpetuação do bairro de São Gonçalo.
Então, é possível afirmar o que Martin-Barbero (1995) observa sobre o
entrelaçamento entre a cultura popular e a cultura de massa. Uma necessita da
outra num jogo de interesses. Essa condição parece ser indispensável na
Contemporaneidade. Por trás do fato de se fazer a Festa, de se reviver a tradição,
há os interesses ocultos entre as próprias lideranças locais. A divulgação da Festa
na imprensa representa, pelo menos para o Seo Dalmi, que a associação de
moradores está trabalhando para a perpetuação dos costumes do bairro São
Gonçalo.
Seo Dalmi ainda diz na sua fala, durante a missa, que é preciso fazer com
que as crianças admirem o que é a cultura do lugar ligada ao artesanato cerâmico,
124
sob pena de se acabar o bairro. Ou seja, os moradores antigos do São Gonçalo
acreditam que a sobrevivência do local está ligada aos costumes dos seus
antepassados que vêm se transformando com o passar dos anos, mas que ainda
permanecem vivos.
Então, a mesma televisão que interfere nos costumes locais produzindo
novas formas de percepção do cotidiano é o meio de comunicação que pode
ajudar os moradores a perpetuar a tradição da Festa de São Gonçalo. Há um
paradoxo nessa posição que representa o paradoxo da cultura hoje.
Araújo (1977) observa que as festas populares têm como características
uma coesão grupal, um sentido de cooperação entre homens e mulheres que se
unem, principalmente, nos momentos dos preparativos. O autor afirma que as
festas populares foram incorporando, com o passar dos tempos, o padroeiro e o
santo, por causa da influência da igreja católica no Brasil. As comemorações
também foram adicionando a gastronomia, a procissão, o baile, a liturgia etc.
As festas tiveram uma origem comum: uma forma de culto
externo tributado a uma divindade, realizado em determinados
tempos e locais desde a arqueocivilização. Recebeu, porem,
roupagens novas após o evento do cristianismo. A Igreja Católica
Romana determinou certos dias para que fossem dedicados ao
culto divino, considerando-os dias de festa, formando o seu
conjunto o ano eclesiástico (ARAÚJO, 1977, pp.11-12)
Assim, é possível observar no vídeo nº 1, além do ritual litúrgico, o
momento dedicado à comezaina, que é o chá com bolo. O alimento e a música
são dois princípios enraizadores, segundo Ecléa Bosi (2004). A autora afirma que
ao falar de enraizamento não significa pensar um grupo social
isolado de
influências externas. Mas o termo refere-se a uma forma de defesa cultural e
sobrevida dessa cultura em contato com os antagonismos da sociedade em que
tal grupo está inserido.
125
A Festa de São Gonçalo pertence a um ciclo. Ela se repete todos os anos,
no dia 10 de janeiro. Para Alfredo Bosi, o tempo da cultura popular pressupõe
ciclos. “O seu fundamento é o retorno de situações e atos que a memória grupal
reforça atribuindo-lhes valor” (Bosi, 2004, p.11).
É´ uma festa de calendário, principalmente ligada `a tradição da zona rural.
Segundo Araújo, “o grupo social repetindo em consonância com essa
periodicidade nos ciclos agrícolas, as reuniões, acabou dando `a festa uma função
comemorativa” (Araújo,1977, p.11)
É´ preciso pensar também sobre a construção das identidades que o vídeo
sugere. Segundo Silva (2005) a identidade e a diferença são criações culturais e
sociais. São resultados da criação de significados e que, portanto, não são ligadas
ao mundo natural. São resultados da produção simbólica e discursiva. Ao afirmar
a sua identidade, um grupo marca a sua diferença em relação ao outro, expondo
o desejo de ter acesso privilegiado a determinados bens sociais. Portanto,
segundo o autor, “a identidade e a diferença não são nunca inocentes” (Silva,
2005, p.81).
O jogo das identidades está presente nas relações no bairro São Gonçalo.
Ao afirmar sua identidade local, ligada a uma tradição, os moradores querem na
verdade benefícios para o bairro. Seo Dalmi refere-se na homilia `a luta pelo
desenvolvimento do lugar. Então, ele expõe ali um sentimento de que o bairro
precisa se modernizar, receber as benesses da vida urbana, como transporte,
asfalto, mas, ao mesmo tempo, sem se desligar do passado que dá a eles a
condição de diferentes e que, por isso mesmo, eles precisam ser valorizados pela
tradição da cerâmica, da Festa de São Gonçalo, do cururu e da viola-de-cocho. E
isso só será preservado se as autoridades investirem em benefícios para o bairro.
Eles querem se sentir incluídos nas benesses.
126
O vídeo nº 2 se constrói através das representações que o Rio Cuiabá
desperta nos moradores do São Gonçalo. Segundo Ortiz (2003), cultura significa
também adequação ao meio ambiente. A idéia inicial do vídeo relaciona-se a
morte do rio devido `a poluição de suas águas. As imagens das crianças retirando
os entulhos reforçam essa posição que nos foi apresentada pela faixa inicial
“Socorro... preciso continuar vivendo – Rio Cuiabá”.
Ao descobrirmos que o movimento de retirada de lixo é feito por alunos de
uma escola de um bairro vizinho ao São Gonçalo aparece aí um processo de
identificação com a causa em favor da preservação do rio. Essa identificação na
perspectiva do senso comum, como nos fala Hall (2005), no vídeo se caracteriza
pelo reconhecimento de uma causa comum, compartilhada por grupos que
defendem um mesmo ideal, ou seja, salvar o rio ameaçado pela poluição. Então, o
que vemos é uma representação de uma solidariedade entre alunos de uma
escola, professores e políticos por uma causa que seria pertinente aos ribeirinhos,
pois estes vivem `as margens do Rio Cuiabá.
Então, o olhar de fora se junta aqui ao olhar do ribeirinho sobre a fonte de
sobrevivência, tanto dos de dentro como dos de fora. É possível identificar nessas
imagens uma outra referência ligada a existência humana: está ali a idéia da
sobrevivência da própria localidade e indiretamente da cidade cortada pelo rio
Cuiabá. Constróe-se, assim, uma identidade coletiva, politicamente correta, em
favor da natureza. Mas ela também é construída por causa da ameaça,
estabelecendo um jogo dicotômico entre vida e morte do rio.
A morte lenta do rio Cuiabá e de seu afluente, o rio Coxipó, está
diretamente relacionada com as práticas dos ribeirinhos, isto é, a pesca e o
artesanato, como diz no vídeo o presidente do bairro, Dalmi Almeida. No caso da
pesca, a redução da sua importância para a sobrevivência dos moradores tem
como fato a escassez do peixe por causa da poluição das águas. O rio também
fornece a matéria-prima para a produção do artesanato cerâmico, isto é, a argila.
127
No vídeo, Seo Dalmi fala que as crianças devem defender a natureza para
preservar o futuro. Então, os moradores articulam a possibilidade do fim do
costume artesanal caso o rio morra.
É interessante notar que a luta pela sobrevivência do rio é apropriada pelo
olhar de fora. Isto é, existe uma campanha Salve o Peixe Salve o Rio Cuiabá cuja
criação é atribuída a um político de Várzea Grande. Identidade que é reforçada
pelos meios de comunicação e que se constitui na principal bandeira eleitoral do
mesmo político. O apoio da população ribeirinha a essa “causa” funciona como
uma ação que legitima o seu caráter de homem público sério que possui
responsabilidades com o seu eleitor. Portanto, a identidade do ribeirinho ligada ao
rio não é mais somente dele. Passa a ser uma causa coletiva, de toda a sociedade
cuiabana, que depende do rio.
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os processos de construção da cultura constituem-se num campo aberto
para múltiplas investigações. A pretensão deste trabalho é ser mais um olhar
sobre a questão, cuja discussão envolve uma reflexão sobre a importância da
dimensão simbólica na constituição do mundo social.
Como vimos, o conceito de cultura é polissêmico. Todavia, pode-se
canalizar para duas grandes concepções. A primeira delas relaciona-se com os
aspectos da vida social. A interação do homem com a natureza, a produção de
idéias e artefatos que são dotados de sentidos. É´ nas relações sociais que os
artefatos significam e re-significam. Na segunda concepção, cultura se apresenta
como manifestação do espírito, desvinculada da vida material. Nesse sentido, ela
opera na esfera do sagrado , separando o culto do popular.
A dimensão cultural é um processo em constantes transformações que
acontecem no nível mais elementar, que é o cotidiano. Então, é na investigação
dos diferentes modos de vida dos grupos sociais que se busca a compreensão de
sua existência e da sua própria sobrevivência, como nos revela Ecléa Bosi (1996).
As leituras de imagens dos olhares sobre o bairro São Gonçalo Beira Rio
indicam que há uma preocupação em significar o lugar como originário de uma
tradição popular expressa pelo artesanato cerâmico, pelas festas de santo, pelo
siriri e cururu. Daí é possível algumas considerações sobre a valoração do popular
na relação estabelecida entre pesquisadores, videomakers e os moradores do São
Gonçalo Beira Rio.
Nas representações atribuídas ao universo do bairro nos vídeos analisados,
observa-se que a cultura espiritual do lugar é associada `a Festa de São Gonçalo.
A cultura material está ligada, principalmente, ao artesanato cerâmico. Ao fazer
uma aproximação do que foi mostrado nos vídeos de Kátia Meirelles e Marcelo
Okamura, com as obras acadêmicas citadas neste trabalho é possível afirmar que
129
a identidade do bairro ligada ao fazer cerâmico é muito forte em todas as
abordagens científicas.
Em Januário e na peça teatral
Homem do Barranco, aparecem em
destaque também duas outras representações: a mitológica presente nas crenças
populares e a de que o ribeirinho é um ser protetor da natureza.
O vídeo de Marcelo Okamura dá `a viola-de-cocho um destaque como
expressão popular ligada aos moradores locais, através das cantorias, da dança
de São Gonçalo, do siriri e do versejar. O instrumento traz uma relação histórica
com as regiões de cultura caipira, mas que vem sofrendo transformações em seu
uso. Assim, nesse vídeo, os depoimentos traduzem esse sentimento de perda, de
desenraizamento, na medida em que os moradores afirmam que a viola-de-cocho
hoje está mais presente em bailes do que nas rodas de cururu. Portanto, as
construções materiais de um povo permanecem, mas mudam-se seus significados
com o passar do tempo. O mesmo se aplica ao fazer cerâmico, na medida em que
as peças deixam de ser utilitárias passando a ornamentais. Há aí uma resignificação da cultura material.
Sobre as mudanças na simbologia das cerâmicas estas podem ser
interpretadas como a penetração do global no local, uma vez que novas técnicas
de produção da cerâmica têm sido introduzidas – o uso de fôrmas de gesso - para
diminuir o tempo de produção e aumentar o número de peças. Por sua vez, a
criação de peças de peso e tamanho padrão e, em série, dá uma dimensão
industrial ao trabalho, projetando a atividade para a dimensão da cultura de
massa.
Em trabalhos como o de Januário e Palma há uma aproximação entre o
culto e o popular. Esses autores expressam um sentimento de respeito e
valoração pelos costumes locais. Eles representam, de alguma forma, a sociedade
intelectual da cidade que cumpre uma função social: a de legitimar as práticas
130
culturais dos ribeirinhos. Ao legitimar essa outra cultura eles reconhecem a
pluralidade do conceito de cultura.
O mesmo acontece com a pesquisadora e artista plástica, Aline Figueiredo,
no vídeo “Oi viva meu São Gonçalo ou torna reviva´”. Essa personagem
representa
a sociedade culta cuiabana que reconhece os costumes dos
ribeirinhos como um modo de vida importante para a história da cidade.
Existe nesses intelectuais uma preocupação com as transformações que
esses costumes vem sofrendo com o avanço da urbanização de Cuiabá e a
penetração intensa dos meios de comunicação, gerando novos comportamentos
entre os ribeirinhos. Mas, mesmo o respeito com que esses intelectuais lidam com
o modo de vida dos ribeirinhos, suas práticas culturais continuam vistas pela
sociedade cuiabana como a outra, o folclore, o curioso, o histórico, algo que
pertence ao passado.
Os meios de comunicação, principalmente a televisão, trabalham
reforçando as identidades do bairro São Gonçalo como origem da cidade, núcleo
de ceramistas e mantenedor das raízes cuiabanas do siriri e do cururu. Existe uma
memória coletiva que vincula as tradições do são Gonçalo `a ”aquilo
que é
nosso”. A televisão regional opera no sentido de divulgar essa representação. “A
memória coletiva se apresenta como tradição”, como nos fala Ortiz (2003, p.133).
Ela se vincula ao grupo social que celebra a revificação de antigos costumes,
como a Festa de São Gonçalo. Ao preservar a sua memória os moradores
preservam o grupo. Mas a memória coletiva só pode existir enquanto vivência do
grupo, enquanto prática diária do moradores.
Existe aí uma tensão entre cultura de massa e cultura popular. Essas
práticas são reforçadas pela mídia, mas por um interesse que também é dos
moradores. Entendo que nesse caso “os meios de comunicação de massa estão
servindo satisfatoriamente `a cultura popular”, com diz Ecléa Bosi (1996, p.33).
131
Nesse jogo de interesses negociados a imprensa também é interessante
por revelar os costumes do ribeirinho para “os de fora”, o Outro, aproximando o
local do global. Por outro lado, mostrar o modo de vida dos moradores do São
Gonçalo como o “o reviver da tradição”, o folclórico, o curioso, torna-se
interessante para a mídia na medida em que atrai a audiência.
É preciso atentar para o fato de que entre os moradores existem aqueles
que alcançaram uma consciência militante pelos anos de embates com as
autoridades locais, buscando reconhecimento pela luta dos que vivem no São
Gonçalo. O ribeirinho não é um ser ingênuo, despolitizado, como poderiam alguns
supor.
Existe um jogo entre o folclore e a vida real desses moradores. Quando se
apresentam para os turistas no Museu do Rio ou nos eventos governamentais o
que se vê é uma encenação de antigos costumes dos ribeirinhos. O que era o
modo de vida deles passou a ser espetáculo para os olhos dos turistas. Essa é
uma identidade que convém a eles, ou seja, os ribeirinhos querem ser vistos
assim pelo olhar do Outro.
Mas, reconhecê-los como diferentes, como berço da cuiabania, só se torna
interessante na medida em que essa identidade possa ajudá-los naquilo que eles
mais precisam no bairro, que é as melhorias de infra-estrutura, isto é, mais
transporte coletivo, a conclusão do asfalto no bairro e o fortalecimento do
artesanato como fonte de economia. A identidade torna-se uma garantia.
Assim, a cultura é uma dimensão simbólica que se articula com o político.
Identidade e diferença precisam ser representadas, como diz Silva (2005). E é por
meio da representação que a identidade e a diferença se ligam `as relações de
poder. Estas também estão presentes na dimensão interna ao São Gonçalo. O
registro audiovisual feito pelos moradores não é só um arquivo do cotidiano do
132
bairro. Aí também existe uma relação de poder, pois as imagens constituem-se
num documento sobre o trabalho de um líder comunitário, à frente de ações em
benefício do bairro, como representa as imagens do mutirão de limpeza do rio e a
organização da Festa de São Gonçalo.
Aí está o meu olhar sobre os outros olhares...
Outros olhares ainda virão...
133
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140
ANEXOS
VÍDEO 1 -
“FESTA DE SÃO GONÇALO”
figura 1
Procissão pela manhã. Nota-se um cinegrafista da imprensa local,
acompanhando o cortejo.
141
figura 2
Roda de cururu .
figura 3
Presença da imprensa na Festa de São Gonçalo
142
figura 4
Chá com bolo durante a Festa de São Gonçalo
figura 5
Missa de São Gonçalo
143
figura 6
O presidente do bairro, Seo Dalmi, na celebração.
VIDEO 2 – “ LIMPEZA DO RIO”
figura 7
Passeata pelas ruas do bairro em defesa do meio ambiente.
144
figura 8
Mutirão de limpeza na beira do rio Cuiabá.
figura 9
Presença de políticos e da imprensa durante o mutirão de limpeza.
145
figura 10
Passeata em defesa do meio ambiente.
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