MOACIR FRANCISCO DE SANT´ANA BARROS ENTRE VÍDEOS E CERÂMICAS: OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO Universidade Federal de Mato Grosso Instituto de Linguagens Cuiabá – MT 2006 2 MOACIR FRANCISCO DE SANT´ANA BARROS ENTRE VÍDEOS E CERÂMICAS: OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens. Área de concentração: Cultura, Mídia e Política: teorias e práticas. Orientadora: Prof.ª Dra. Lucia Helena Vendrúsculo Possari Universidade Federal de Mato Grosso Instituto de Linguagens Cuiabá – MT 2006 3 B2776e Barros, Moacir Francisco de Sant’ana. Entre vídeos e cerâmicas: olhares sobre o ribeirinho. / Moacir Francisco de Sant’ana Barros. – Cuiabá: o autor, 2006. 135 fl. Orientadora: ProfªDrª Lúcia Helena Vendrúsculo Possari. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Campus de Cuiabá. 1. Sociologia. 2. Cultura popular. 3. Identidade. 4. Imagens. 5. Ribeirinhos. 6. Cuiabá. 7. São Gonçalo Beira Rio. I. Título. CDU 316.7(817.2) 4 DEDICATÓRIA A minha mãe Joanita de Sant`Ana Barros por sua dedicação aos seus oito filhos, lutando sempre para que todos estudassem, sem esquecer nunca da dose de carinho distribuída igualmente entre todos. Ao meu pai Luiz de França Barros (em memória). 5 AGRADECIMENTOS Agradeço a cooperação enriquecedora da minha orientadora, Lucia Helena, pela paciência e dedicação a este trabalho; Ao professor Dr. Mário César Silva Leite e as professoras, Dra. Denize Dall`Bello e Dra. Martha Johanna Haug pelas observações pertinentes que fizeram à pesquisa; Aos meus colegas de mestrado pelas discussões estimulantes; Ao Sr. Dalmi de Almeida e toda a gente do São Gonçalo pela colaboração a mim dispensada. A Isa por me aturar e `as crias, Pedro, Gabriel e Maria Luísa por serem a razão disso tudo. Aos colaboradores: Prof.Dr. Yuji Gushiken, Joubert Evangelista, Mateus Copriva, Carlos Ferreira, Márcia Aparecida. 6 RESUMO BARROS, Moacir F.S. Entre vídeos e cerâmicas: olhares sobre o ribeirinho. Este trabalho apresenta uma reflexão sobre os aspectos de identidade e cultura popular, através de textos videográficos, pela abordagem dos Estudos Culturais, no bairro São Gonçalo Beira Rio. Analisa-se o conteúdo de vídeos feitos sobre os ribeirinhos e imagens produzidas pelos próprios moradores, observando a produção de sentidos por eles mesmos. Por um lado, mostra-se a preocupação dos videomakers em falar de uma “tradição” cultural a ser preservada. Por outro, a preocupação dos moradores em registrar imagens de um bairro que está mudando em decorrência do processo de urbanização da cidade. Palavras-Chave: Cultura Popular – Identidade – Vídeo . 7 ABSTRACT BARROS, Moacir F.S. Between Videos and Ceramics: looks on the riverain. This work presents thoughts about the aspects of identity and popular culture, through videografics texts, for Cultural Studies teory from São Gonçalo Beira Rio neighbourhood , Cuiabá, Mato Grosso. The results of these videos made about the riverain and the images produced for the living own are analyzed observing the sense by they themselves. For one hand, the observations of videomakers in speaking of one reveals the preoccupation of cultural tradition preservation and, by other hand, the concernments of the inhabitants in registering images from a neighbourhood that is in transformation due the urbanization process of the city . word-Key: Culture - Identity - Video 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................10 CAPÍTULO I – APORTE TEÓRICO METODOLÓGICO.........................................16 1.1 Sobre o Conceito de Cultura ...............................................................17 1.1.1 Cultura Popular e Folclore.............................................................27 1.1.2 Cultura Popular e Comunicação de Massa....................................28 1.1.3 Cultura Brasileira............................................................................29 1.2 Os Estudos sobre Identidade..............................................................32 1.2.1 Identidade e Diferença...................................................................39 1.2.2 Entre o Local e o Global................................................................43 1.3 Os Caminhos da Recepção................................................................47 1.3.1 Recepção e Estudos Culturais.......................................................47 1.3.2 Trama Conceitual.......................................................................... 54 CAPÍTULO II – INVENTÁRIO SOBRE O BAIRRO SÃO GONÇALO ....................57 2.1 Espaços Urbanos X Comunidade........................................................58 2.2 Inventário sobre o São Gonçalo...........................................................62 2.2.1 Detalhamento do Inventário...........................................................70 CAPÍTULO III – VÍDEO E CULTURA.....................................................................85 3.1. O Vídeo como expressão cultural ......................................................86 3.1.1 O Início...........................................................................................89 3.1.2 Vídeo-Arte......................................................................................91 3.1.3 Vídeo Independente.......................................................................92 3.1.4 Vídeo Educação.............................................................................92 3.1.5 Olhar das Minorias.........................................................................94 CAPÍTULO IV – OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO: ANÁLISE DOS VÍDEOS....96 4.1. Caminhos Metodológicos...................................................................97 4.2. Dois Vídeos sobre o São Gonçalo.....................................................98 4.3. O Olhar Ribeirinho...........................................................................114 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................128 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS.....................................................................133 OBRAS CONSULTADAS.....................................................................................138 ANEXOS...............................................................................................................140 10 INTRODUÇÃO Neste início de século XXI estamos diante de uma complexidade de comportamentos marcados pela problematização do global e do local. As questões que envolvem processos de produção de sentidos, - neste caso uma análise de vídeos - identidade e cultura popular passam por essa discussão. Há um pensamento dominante sobre a expansão do capitalismo pós-queda do muro de Berlim que teria transformado o processo de globalização numa ação irreversível. Numa primeira perspectiva, o “mundo sem fronteiras” atuaria como fator de homogeneização de comportamentos, com reflexos nas percepções populares. Num segundo ponto de vista, o processo de globalização é visto como operações complexas que destacam a diversidade cultural, as segmentações sociais e criam novas diferenças. A crise na contemporaneidade das instituições tradicionais como Estado, Família, Escola e Igreja, dentro da sociedade globalizada, permitiu a expansão dos meios de comunicação que, assim, ditam os comportamentos afunilando a interpretação do mundo em que vivemos. Nossas percepções são sempre o resultado de informações filtradas, que no dizer da pesquisadora Maria Aparecida Baccega (2002) constitui um “mundo editado”, isto é, a realidade que nos apresenta é sempre o resultado dessa edição que chega até nós. Nesse contexto, a expansão dos meios de comunicação mina a resistência de espaços tradicionalistas como resultado do processo de urbanização. Há uma visível transformação nos comportamentos e no modo de vida dessas localidades. O consumo urbano de peças artesanais, por exemplo, pode indicar uma alteração no significado da produção material e simbólica das culturas tradicionais. 11 Esses espaços urbanos também são alvo de investigadores científicos. Exploradas muitas vezes de forma predatória por intelectuais, que devassam a intimidade dos moradores, sugam o conhecimento popular e nada retornam àqueles que serviram de objeto científico.Tornam-se nada mais do que isso: objetos. A concepção de que podem ser sujeitos de seus destinos e das políticas culturais fica apenas no discurso acadêmico. O interesse da presente pesquisa é pela discussão sobre o papel das identidades e da cultura popular no universo do bairro São Gonçalo Beira Rio, através da abordagem dos Estudos Culturais. Desse ponto de vista, proponho reflexões acerca dos textos em vídeo produzidos sobre o espaço São Gonçalo pelo viés cultural de cada produção; também analiso registros audiovisuais produzidos pelos próprios moradores, buscando ver a produção dos sentidos por eles mesmos. Durante a pesquisa houve um deslocamento dos objetivos propostos, uma vez que, ao inserir-me no campo, deparei-me com os registros audiovisuais dos próprios moradores feitos sem a interferência de produtores culturais. Após negociar com o presidente do bairro, Dalmi Lucio de Almeida, o uso dessas fitas nesta pesquisa, me propus a analisá-las, pois os sentidos com a câmera já estariam ali presentes. Na análise me interessa observar como os ritos são mostrados nos vídeos. Como os videomakers abordam a questão cultural, o que interessa para eles, o que interessa para os moradores? Pensar sobre as transformações sócio-culturais naquele grupo a partir das imagens. O bairro São Gonçalo Beira Rio foi escolhido por representar as origens da capital mato-grossense. Sua história está documentada em autores como Lenine Póvoas (1977 e 1987), Virgílio Correa Filho (1994), Joseph Barboza de Sá (1975), Rubens de Mendonça (1982) para citar somente os mais antigos. 12 Localizado na margem esquerda do rio Cuiabá, na região sul da capital mato-grossense, o São Gonçalo Beira Rio pertence ao distrito do Coxipó da Ponte. Segundo dados do IPDU – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Urbano - o bairro tem seus limites com outras áreas urbanas do município cuiabano que inclui o Parque Geórgia, Vista Alegre, Coxipó, Coophema, Parque Atalaia e também o rio Coxipó (anexo). Um levantamento feito pela Regional Sul da cidade, em 2004, apontou 290 moradores em São Gonçalo. Mas, segundo o presidente da associação de moradores, Dalmi de Almeida, aproximadamente 350 pessoas distribuídas em 75 famílias vivem no bairro, em 2006. A predominância de pessoas idosas é observável entre os ribeirinhos. Os relatos dos moradores indicam uma tendência de os mais novos deixarem o lugar para viver em outras áreas de Cuiabá, em busca de melhores condições de vida. Eles costumam visitar os pais e avós nos finais de semana. O processo de urbanização da cidade tem constantemente alterado aspectos sócio-economicos e de infra-estrutura do lugar. A rua principal possui asfalto, desde 2003. O bairro está sendo atingido pela pressão imobiliária que busca novas áreas. Observa-se o aparecimento de peixarias no local, como já acontece na margem direita do rio Cuiabá, no município de Várzea Grande1. Até meados do século passado, o São Gonçalo ficava fora do perímetro urbano de Cuiabá. Seus moradores tinham costumes típicos dos ribeirinhos que viviam da pesca e da agricultura de subsistência. Outra atividade desenvolvida por seus habitantes era a produção de cerâmica utilitária, como panelas, potes e moringas. A região foi rica em argila, que era tirada até dos quintais dos moradores. Hoje, a retirada é feita cada vez mais longe do bairro, rio abaixo. Os 1 As localidades de Praia Grande, Passagem da Conceição e Bonsucesso são conhecidas pela abundância de peixarias que atraem turistas em busca de saborear a comida local. 13 ceramistas enfrentam a concorrência das empresas cerâmicas que também utilizam a matéria-prima para fabricar tijolos e telhas. Devotos de São Gonçalo, os antigos moradores eram católicos fervorosos – herança dos desbravadores bandeirantes que por lá passaram. Esses moradores ensinaram `as futuras gerações a tradição da dança do siriri e do cururu, durante as festas do Santo. Com o processo de urbanização de Cuiabá, intensificado nas décadas de 70 e 80 do século XX, houve mudanças no modo de vida desses moradores. É´ o que revelam algumas dessas pesquisas feitas em São Gonçalo2. A chegada dos turistas, por exemplo, levou os ceramistas a mudarem o tipo de produção artesanal baseada em utensílios domésticos para objetos de decoração, mostrando, assim, a influência das relações sócio-econômicas e sua ingerência no cotidiano daquele espaço. O local é muito freqüentado por cientistas que já escreveram muita coisa sobre a variedade cultural presente entre seus moradores. A principal delas é o artesanato de cerâmica, atividade descrita em monografias, dissertações, teses, livros, vídeos, peças de teatro e reportagens. Mas há também trabalhos acadêmicos sobre a pesca, plantas medicinais, danças folclóricas, narrações míticas e sobrenaturais do imaginário dos moradores até assuntos relativos à educação ambiental, saneamento, etnobotânica e questões indígenas. Como caminho a seguir, para a construção do conhecimento, a partir do objeto desta investigação, esta pesquisa apresenta-se como um estudo de tipologia híbrida de tendência qualitativa. O ângulo da abordagem é cultural. Para Santaella (2001) a área da Comunicação Social costuma apresentar investigações de tipologia híbrida, uma vez que o tipo de pesquisa desenvolvida nutre-se de abordagens mistas, isto é, empírica, trabalho de campo, laboratório etc. 2 Apresento inventário sobre pesquisas já realizadas em SG no capítulo 2. 14 Neste caso, a pesquisa documental (vídeo, monografias, dissertações, livros etc) vai hibridar com a etnografia, com a observação participante, com entrevistas, para que se possa desvendar o espaço São Gonçalo. Interessa, sobretudo, explicitar aspectos culturais - interno ao espaço da pesquisa e os externos sobre o São Gonçalo. Portanto, o foco da investigação apresenta duas grandes questões: que olhares são esses sobre o bairro São Gonçalo ? Como os moradores se olham, através da câmera? O primeiro capítulo do trabalho aborda as teorias que dão sustentação a esta discussão sob a ótica cultural. Apresento as idéias de autores que dissertam sobre a complexidade do tema cultura, como Laraia, Williams e Geertz, passando, também, pela discussão sobre cultura popular com Gramsci, Bosi, Arantes, entre outros, e a importância desse conceito para os Estudos Culturais. Também abordo as teorias de recepção na ótica dos latino-americanos, como Martin-Barbero e os processos de hibridação cultural na concepção de Garcia Canclini. A relação entre o global e o local aparece no questionamento sobre as identidades culturais na contemporaneidade. O assunto é tratado através das discussões propostas por Stuart Hall sobre o “descentramento” do sujeito e sua inserção no mundo contemporâneo. O tema também aparece em Escosteguy, Woodward, Silva e nos latino-americanos citados acima. No segundo capítulo apresento um inventário sobre pesquisas já realizadas no universo do São Gonçalo Beira Rio. É um levantamento bibliográfico acerca dos mais variados assuntos já abordados por pesquisadores que ali estiveram. O material levantado serviu para um prévio conhecimento panorâmico das riquezas naturais e culturais do meu objeto de pesquisa. Nesse sentido, fiz alguns apontamentos sobre as identidades atribuídas ao São Gonçalo por esses pesquisadores. Aproveito também para uma breve discussão sobre o conceito de comunidade e o meu posicionamento a respeito. Procuro tratar o São Gonçalo 15 como um espaço urbano, dentro da visão moderna de cidade e urbanismo apresentado por Lima e Maleque (2004). Além do material pesquisado em bibliotecas procurei também, junto às secretarias de cultura municipal e estadual, realizadores de audiovisual e produtoras de vídeo, registros em imagens sobre o São Gonçalo. Por falta de conservação, muitos desses registros não são mais possíveis de ser investigados. Detive-me nos vídeos encontrados a partir do ano 2000 para frente. No capítulo três, proponho uma discussão sobre o Vídeo como expressão cultural. Com base em autores que investigam o tema e da minha própria experiência como profissional de Comunicação Social, disserto sobre os caminhos que a tecnologia videográfica vem tomando neste princípio do século XXI. Assim, falo sobre a sua evolução histórica até o formato digital que vem oportunizando a produção de imagens não só por profissionais inseridos no mercado da indústria cultural, mas também por grupos sociais subalternos. Moradores de favelas, de aldeias indígenas, grupos de cultura afro estão se expressando através de imagens mostrando a sua visão sobre a realidade que vivem. No quarto capítulo, apresento a análise dos vídeos sobre o bairro São Gonçalo, tanto os que foram produzidos por videomakers, como os registros audiovisuais dos próprios moradores, relacionando-os com as teorias dos Estudos Culturais. Todo o detalhamento do processo de produção audiovisual está relatado, mostrando como se deu o trabalho. Inicialmente foram recolhidas quinze fitas gravadas pelos moradores com assuntos sobre festas, mutirões e lazer. Desse material foram escolhidos dois assuntos para análise: meio ambiente e os festejos de São Gonçalo. Por fim, faço as considerações sobre as leituras dos textos em vídeo, discutindo aspectos da cultura popular e identidade. 16 1 - APORTE TEÓRICO METODOLÓGICO A narração nunca é um dado aparente das imagens, ou o efeito de uma estrutura que as sustenta; é conseqüência das próprias imagens aparentes, das imagens sensíveis enquanto tais, como primeiro se definem por si mesmas. Gilles Deleuze 17 1.1 Sobre o Conceito de Cultura A idéia de cultura, na contemporaneidade, e particularmente, dentro de uma pesquisa em Estudos Culturais, leva-nos a um emaranhado de sentidos e significados oriundos dos estudos antropológicos e sociológicos. A evolução dos meios de comunicação e a penetração destes nos costumes das sociedades atuais têm proporcionado mais polêmica ao assunto. Laraia (2004) investiga o conceito, reconstruindo a idéia de cultura, desde o iluminismo, afastando-a do determinismo biológico e geográfico. O autor mostra que na Alemanha do século XVIII a palavra Kultur era usada no sentido de simbolizar aspectos espirituais, enquanto na França, a palavra civilization siginificava as realizações materiais de um povo. Em sua leitura de Edward Tylor (1871) destaca o termo Culture como: [...] tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.(LARAIA, 2004, p.25) Na busca de um crescente afastamento entre o domínio cultural e o natural, o autor mostra que Tylor foi seguido por Alfred Kroeber (1947) em seus estudos, onde afirma que o homem diferencia-se dos outros animais pela “possibilidade de comunicação oral e a capacidade de fabricação de instrumentos capazes de tornar mais eficiente o seu aparato biológico” (Laraia, 2004, p.28). Para Kroeber, essas duas propriedades permitem afirmar que o homem é o único ser possuidor de cultura. Ele pensava o ser humano como “eminentemente cultural”, independente de carga genética, mas que passa por um processo de aprendizagem. O conhecimento e a experiência são frutos de um processo acumulativo das gerações passadas. As invenções e inovações são resultados da 18 manipulação adequada desse patrimônio cultural por toda uma comunidade e não a ação isolada de um gênio. Laraia mostra ainda que Tylor tinha uma visão evolucionista da cultura. Baseado no pensamento de Charles Darwin, ele acreditava que esta desenvolvia– se de maneira uniforme, de modo que cada sociedade percorreria as etapas dessa evolução até chegar as sociedades mais avançadas. A visão evolucionista, segundo Gonçalves (1996) explica cultura como uma noção extensiva a toda humanidade, mas diferenciada por hierarquia, havendo sociedades mais evoluídas culturalmente do que outras. As sociedades européias do século XIX estariam no ápice dessa escala evolutiva. As outras sociedades estariam mais ou menos evoluídas de acordo com esse padrão de referência. Os critérios para essa evolução seriam a presença do Estado, propriedade privada, família monogâmica, desenvolvimento tecnológico etc. Para os evolucionistas a noção de cultura estava ligada a noção de evolução biológica uma vez que os chamados povos primitivos eram considerados assim também no plano biológico. Os evolucionistas consideravam a cultura uma palavra singular. Não admitiam “culturas”. Raymond Williams é um dos teóricos tido como referência para os Estudos Culturais. Ele se debruçou sobre a dificuldade em se definir o termo cultura. Das acepções mais antigas, a palavra pode designar o cultivo da terra e da criação de animais. Também diz respeito ao ativo da mente humana que, na Inglaterra e na Alemanha, configurou-se como “do espírito” que revela “o modo de vida global” de determinado povo. Williams (1992) estudou o pensamento de Herder (1784-91), que foi o primeiro a empregar o termo no plural, “culturas”, com a intenção de não confundir o termo com “civilização”. 19 Para Gonçalves (1996), a noção pluralista de cultura é obra do discurso moderno antropológico, do século XX, presente em autores como Boas, Malinowski, Durkheim e Mauss. Eles elaboraram um vocabulário alternativo falando em uma noção etnográfica de cultura que inclui noções como “trabalho de campo”, “observação participante” “etnografia” (Gonçalves, 1996, p. 160) Nas teorias modernas, o pensamento de Clifford Geertz é considerado de suma importância para a evolução do conceito de cultura. Em A Interpretação das Culturas, o autor afirma, logo no início do livro, que está `a procura de um conceito “justo” para a palavra cultura de modo que esta tenha sua importância continuada. O pesquisador norte-americano considera o homem dividido em três níveis: biológico, psicológico e cultural. Ele entende que a cultura deve ser vista como um complexo de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, programas para governar o comportamento. Para Geertz a criança nasce apta a ser socializada em qualquer cultura existente. Mas essas possibilidades são reduzidas ao contexto real e específico onde de fato ela crescer. O autor passa a discorrer sobre os vários significados dados a palavra cultura por Clyde Kluckhohn, no livro Mirror for Man , onde o termo é definido como: 1 – o modo de vida global de um povo; 2 – o legado social que o individuo adquire do seu grupo; 3 – uma forma de pensar, sentir e acreditar; 4 – uma abstração do comportamento; 5 – uma teoria, elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente; 6 – um celeiro de aprendizagem em comum 7 – um conjunto de orientações padronizadas para os problemas recorrentes 8 – comportamento aprendido; 9 – um mecanismo para a regulamentação normativa do comportamento; 10 – um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens 11- um precipitado da historia. (KLUCKHOHN apud GEERTZ, 1973, p.14): Para Geertz, os símbolos e significados são partilhados pelos atores - os membros do sistema cultural - entre eles, mas não dentro deles. Assim, ele 20 associa o estudo da cultura ao estudo de um código de símbolos compartilhados pelos membros dessa cultura. O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, `a procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por si mesma uma explicação.(GEERTZ, 1973, p.15) A antropologia de Geertz vai defender a idéia de entender os primitivos a partir de sua própria perspectiva. Para isso era preciso o estudo da língua falada nessas sociedades para o entendimento de seus costumes. O uso da palavra cultura no plural está associado à concepção de linguagem ou linguagens, enquanto sistemas de signos como empregou Ferdinand de Sausssure. As experiências humanas vão ser pensadas a partir da metáfora da linguagem. Essa concepção, conhecida como “relativismo cultural” pressupõe o ser humano constituído por sistemas de signos diferenciados que permitem o pensamento e a articulação das experiências com a sociedade e a natureza. O ponto de vista de Geertz tem sido referência para autores brasileiros também. Arantes (1990) afirma que a cultura constitui-se por signos e símbolos que são convencionais e arbitrários. O significado cultural é resultado de uma articulação, em contextos específicos, e da ação social. Como conseqüência, os eventos culturais devem ser considerados na sua totalidade, tendo como limites critérios internos às situações observadas. Williams (1992) observa que as discussões sobre o conceito de cultura fazem parte dos estudos da sociologia da cultura. Segundo o autor, este é um 21 ramo da sociologia vista com certa desconfiança pelos mais antigos que a considera ambígua. Assim, ela não só parece ser, como é de fato subdesenvolvida. Não há escassez real de estudos específicos, embora em relação a este, como a outros tópicos, haja muito mais a ser feito. Enquanto não é reconhecida como convergência, e como um problema de convergência, a reação habitual diante dela, mesmo quando compreensiva (e isso, numa geração mais antiga e tradicional é relativamente raro), é encará-la com pouco mais do que um agrupamento indefinido de estudos de especialistas, quer em comunicações, em sua forma especializada modernas de ‘meios de comunicação de massa’, quer no campo bem diversamente especializado das ‘artes’. (WILLIAMS, 1992, p.9) Para Williams, a sociologia da cultura investiga aspectos possíveis e demonstráveis oriundos dos processos de comunicação, arte e novas linguagens observáveis na sociedade contemporânea, procurando uma re-elaboração das idéias mais tradicionais e gerais dos estudos sociológicos, como também propondo novos questionamentos e evidências para o trabalho das ciências sociais. Williams nos fala sobre os significados tanto dentro da antropologia quanto fora desta, mas que produzem significados convincentes: “a ênfase no espírito formador – ideal, religioso ou nacional” (Williams, 1992, p.11) – até o emprego como “cultura vivida” que envolve processos sociais atrelados a questões de ordem econômica ou política. O autor afirma que cultura ora refere-se significativamente a questões globais, ora traz referências parciais. De modo geral, o sentido de cultura está ligado ao cultivo ativo da mente. Ele mostra que é possível empregar o termo com vários significados. O primeiro ligado ao “estado mental desenvolvido” – “pessoa de cultura”, “pessoa culta”. Num segundo momento designa “os processos desse desenvolvimento” – como em “interesses culturais”, “atividades culturais”. Outro emprego recai sobre “os meios 22 desses processos” – cultura como “arte” e o “trabalho intelectual do homem”. Este último emprego, referente `a arte e ao trabalho intelectual do homem, é o mais comum de cultura. Mesmo sendo usual nas outras formas, convivendo muitas vezes de forma desconfortável com o uso antropológico e sociológico “para indicar ‘modo de vida global’ de determinado povo ou grupo social” (Williams, 1992,p.11). Diante da dificuldade em fixar um sentido a palavra cultura, Williams propõe que se encare a discussão de forma mais proveitosa como resultado de uma convergência de interesses. Do sentido idealista – ênfase no “espírito formador” que pressupõe um modo de vida global com interesse específico nas atividades culturais “uma certa linguagem, estilos de arte, tipos de trabalho intelectual” (Williams, 1992, p.11) – ao sentido materialista – ênfase numa ordem social global cujas manifestações culturais específicas, estilo de arte e trabalho intelectual é visto como produto de outras atividades sociais. O pensamento de Geertz destaca o impacto da noção de cultura sobre o conceito de homem. O que no pensamento iluminista era visto como imutável, idêntico, que partilha uma mesma razão em qualquer lugar e sociedade, passa a ser pensado como um homem descentrado e fragmentado. A concepção relativista de cultura vai manter uma tensão com a noção universalista. Para esta última, as chamadas “culturas” são “disfarces”, “máscaras”, “roupas” que escondem as profundas identidades dos homens. Já na visão relativista as diferenças culturais revelam pensamentos, emoções e práticas diferenciadas dos seres humanos, ou seja, culturas e linguagens são parte dos seres humanos. Segundo Williams, ainda que nas obras contemporâneas mantenha-se e pratique-se as duas posições, observa-se, a partir da segunda metade do século XX, o delineamento de uma nova forma de convergência. Cultura passa a ser encarada como um sistema de significações. Assim, há certa convergência prática entre os sentidos antropológicos e sociológicos de cultura como ‘modo de vida 23 global’ distinto, dentro do qual percebe-se, hoje, um ‘sistema de significações’ bem definido não só como essencial, mas como essencialmente envolvido em todas as formas de atividade social, e o sentido mais especializado, ainda que também mais comum, de cultura como ‘atividades artísticas e intelectuais’, embora estas , devido à ênfase em um sistema de significações geral, sejam agora definidas de maneira muito mais ampla, de modo a incluir não apenas as artes e as formas de produção intelectual tradicionais, mas também todas as ‘práticas significativas’ – desde a linguagem, passando pelas artes e filosofia, até o jornalismo, moda e publicidade – que agora constituem esse campo complexo e necessariamente extenso. (WILLIAMS,1992, p.13) Há, portanto, no entender do autor, um entrelaçamento e uma ampliação dos sentidos da palavra cultura, cuja investigação dá-se hoje através dos chamados Estudos Culturais, ramo da sociologia geral sem um caráter reservado ou especializado, diz Williams, mas que dá ênfase aos sistemas de significações, `as práticas e produção culturais manifestas. Martin-Barbero (2003) nos fala de um “descentramento” do conceito de cultura no seu eixo semântico e pragmático com uma investigação voltada agora para o popular e das relações deste com a história, os meios de comunicação e a política. Há, segundo o autor, uma re-elaboração geral das relações cultura/povo e povo/classes sociais que recupera o pensamento de Gramsci e a idéia de hegemonia. O lugar do popular é “re-situado” e investigado como “parte da memória constituinte do processo histórico”(Martin-Barbero, 2003, p.102). Na obra Literatura e Vida Nacional, Gramsci (1968) analisa a cultura italiana, investigando as aproximações e afastamentos entre as concepções de vida culta e popular. Assim, há uma cultura erudita transmitida pela escola e oficializada pelas instituições. De outro lado, há uma cultura vinda do povo, cujos costumes não se enquadram nos esquemas oficiais. Do lado erudito há ainda uma 24 relação de oposição entre a visão conservadora e aqueles que defendem as inovações, ou seja, uma vanguarda que se contrapõe ao pré-estabelecido. Bosi (1985), em “A cultura do Povo”, afirma que enquanto a cultura popular não está articulada com a cultura de elite ela é vista como “a outra”, como folclore, fonte da diferença. Defrontam-se, assim, dois grupos: o primeiro tem suas realizações culturais significadas socialmente; na outra, as realizações só assumem significado quando postas em oposição `a cultura dominante. Fleuri (1998), no estudo sobre Intercultura e Movimentos Sociais, aponta o monoculturalismo como a perspectiva ligada `a classe dominante, com uma visão igualitária, singular e universal. Já o multiculturalismo enfatiza a história, leva em consideração a construção das identidades culturais, das diferenças que devem ser respeitadas. Ele lembra que os estudos antropológicos mostraram que as sociedades e classes subalternas também são depositárias de cultura, superando a idéia de que esta seria um privilégio da classe dominante. A tolerância `a diferença e a solidariedade aparecem como o cimento que une os movimentos sociais em uma rede planetária que promova a igualdade com respeito `as diferenças culturais, assim como a luta contra os processo crescentes de exclusão social inerentes `a globalização. (FLEURI, 1998, p.11) Em Literatura e Vida Nacional, Gramsci conta uma passagem de De Sancti que trabalhou para a unificação da “classe culta” de Nápolis, mas percebia também a necessidade de uma nova atitude diante das classes populares. Era preciso um novo conceito de nacional, mais amplo e menos exclusivista. Gramsci interpreta a frase de De Sanctis que diz: “Falta a fibra porque falta a fé. E falta a fé porque falta a cultura”. O autor afirma que o enunciado significa uma concepção da vida e do homem que é coerente, unitária e nacionalmente difundida. “Uma ‘religião laica’, uma filosofia que tenha se transformado precisamente em ‘cultura’, isto é, que tenha gerado uma ética, um modo de viver, uma conduta civil e individual” (Gramsci,1968, p.04). 25 Gramsci fala da necessidade de uma “cultura laica” que nunca houve na Itália. Segundo o autor, o resultado disso foi a preferência dos italianos pelos folhetins franceses aos romances nacionais. A literatura francesa representava, assim, “um humanismo moderno, este laicismo em sua forma moderna” (Gramsci, 1968, p.108) Nesse estudo do intelectual italiano fica clara a sua defesa por um reencontro da cultura com os problemas concretos da vida social e nacional em detrimento (ou afastamento) da cultura cosmopolita “sem raízes”, advinda pela tradição católica na Itália. Essa mudança na perspectiva histórica sobre o popular implicava, segundo Martin-Barbero (2003), numa releitura sobre o popular na cultura da Idade Média. Apoiando-se em Le Goff, o autor nos fala da Idade Média que deixa de ser o tempo da lenda negra e da áurea para o tempo “que criou a cidade, a Nação, o Estado, a Universidade, o moinho, a máquina, o relógio, a hora, o livro...e, finalmente, a Revolução” (Martin-Barbero, 2003,p.103). Na investigação dessa outra história, continua o autor, Le Goff pesquisou a oposição entre cultura erudita e cultura popular. Uma história feita de conflitos e diálogos. Muitas vezes em nome de uma cultura oficial foram destruídos objetos, representações de deuses, abolidas práticas e rituais que, de outra forma, foram recuperadas pela Igreja. Esse embate acabou criando um “diálogo ‘feito de pressões e repressões, empréstimos e resistências’ entre Cristo e Merlin, santos e dragões, Joana D´Arc e Melusiana” (Martin-Barbero, 2003, p.105) A implicação do popular na análise de Martin-Barbero, está na mudança metodológica, “a partir da qual se deve reler a história não enquanto história da cultura, mas enquanto história cultural” (Martin-Barbero, 2003, p.104). 26 Gramsci (1999) recupera a questão nos anos 1960, a partir do conceito de hegemonia, discutindo a dinâmica de dominação como um processo que envolve a representação de interesses de uma classe, mas que também são reconhecidos como seus pela classe subalterna. Assim, a hegemonia é um jogo que faz e se desfaz, permanentemente; que envolve força, apropriação de sentido pelo poder, mas também sedução e cumplicidade. Em outras palavras, a cultura popular possui uma representatividade no espaço social que expressa o modo de viver e pensar das classes subalternas. Mas também a sua sobrevivência e as formas como absorvem o discurso hegemônico ao mesmo tempo em que fundem e integram com a sua própria memória histórica. Nessa trama entre o discurso hegemônico e o discurso popular, Garcia Canclini (1982) chama a atenção para o fato de que nem todo discurso hegemônico é assimilado pela classe subalterna, e nem toda recusa significa uma resistência àquele discurso. Mas existem outras lógicas presentes nessa relação, além da dominação. Fleuri (1998) nos lembra que, por outro lado, a vida globalizada tende a anular as diferenças e atenuar as desigualdades em nome do mercado, do consumo e das comunicações globais. Assim, uma cultura (singular) poria fim as especificidades, nivelando o cotidiano das pessoas em nome de uma vida melhor. Mas nas fissuras da economia de mercado surgem novos comportamentos marginais e localizados que evidenciam a complexidade das culturas (plural), não só de classes sociais ou grupos territoriais, como também de faixas etárias, experiências, instituições, organizações produtivas etc. Bosi (1996) observa que a cultura popular está em constante re-elaboração. Nem tudo é herdado, mas os temas se refazem com o passar das gerações. Existe uma motivação espontânea dos membros de uma comunidade que os empurra a reviver a dimensão folclórica, atualizando-a. 27 Segundo Laraia (2004) existem dois tipos de mudança cultural: a primeira é interna - resultante da dinâmica do próprio sistema cultural . A segunda é resultado do contato de um sistema cultural com outro. Nesse sentido, Laraia afirma que cada sistema cultural está sempre em mudança. A compreensão dessa dinâmica é importante para diminuir o choque entre gerações e evitar atitudes preconceituosas. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar seriamente este constante e admirável mundo novo do por vir. (LARAIA, 2004, p.101) 1.1.1 - Cultura Popular e Folclore Ortiz (2003) situa a questão a partir da assimilação da noção de folclore como cultura popular. Para o autor nessa dimensão recupera-se a idéia de tradição, tanto como “forma de tradição-sobrevivência”, como na “perspectiva de memória coletiva que age dinamicamente no mundo da práxis” (Ortiz, 2003, p.70). Observa, assim, uma ênfase no caráter conservador desse posicionamento. Ele afirma, ainda, que no Brasil o folclore está ligado `a vida rural, das camadas tradicionais agrárias, e menos `a burguesia urbana, como acontece na Europa. O autor ressalta que a cultura popular como folclore valoriza a tradição como a presença do passado. Nessa perspectiva, o progresso é visto como forma de “de-sacralizar” o conhecimento popular. “Concebe-se, assim, uma pretensa autenticidade das manifestações populares que irá radicalmente se opor a qualquer movimento de transformação da realidade social” (Ortiz, 2003, p.71) Observa, ainda, que a atuação dos Centros Populares de Cultura no Brasil, nos anos 1960, foi fundamental para romper com essa concepção que unia o 28 conceito de cultura popular ao de folclore. Assim, o folclore passou a ser visto como a representação das manifestações populares conservadoras, enquanto a cultura popular exprimiria a idéia de transformação, ligada `a tomada de consciência política, como o momento histórico apregoava na época da ditadura militar. Essa visão é criticada hoje, uma vez que pressupunha que os intelectuais de esquerda deveriam ensinar o povo a ser povo. Ela encerra em seu interior o entendimento de que o povo era alienado e precisaria de uma elite que lhe abrisse os olhos para a transformação social do país que só poderia vir através da política. Assim, o pensamento do CPC traz um paradoxo pois, nega o conhecimento popular ao mesmo tempo em que se apóia nele para buscar a transformação social. Nesse sentido, Arantes (1990) propõe que o debate considere as culturas efetivamente no que são, nos processos que as constituem e no que expressam, em detrimento do que foram, seriam ou deverão ser. 1.1. 2 - Cultura Popular e Comunicação de Massa Ecléa Bosi (1996) apresenta um outro elemento importante para a compreensão da dimensão cultural na Contemporaneidade. O contexto da comunicação de massa, no século XX, que expandiu o acesso da informação a todas as classes sociais. A autora discute a questão dos Meios de Comunicação de Massa (MCM) servirem, satisfatoriamente, `a cultura popular, uma vez que possuem como pressuposto o alcance do maior número de pessoas possíveis. Ecléa Bosi analisa as várias teorias criadas para explicar os MCM: a teoria funcionalista, o interesse pelos efeitos dos meios sobre o homem; a visão de Marshal Macluhan, dos meios como extensão do homem; a teoria crítica na visão dos frankfurtianos. Quando investiga a cultura de massa com a cultura popular, a 29 autora afirma que os teóricos não conseguiram “aclarar” a distinção entre “uma realidade cultural imposta de ‘cima para baixo’ (dos produtores para os consumidores) e uma realidade cultural estruturada a partir de relações internas no coração da sociedade” (Bosi, 1996, p.63). Diante da indagação sobre uma possível absorção da cultura de massa pela popular ela argumenta que do ponto de vista histórico e funcional “a cultura popular pode atravessar a cultura de massa tomando seus elementos e transfigurando esse cotidiano em arte... pode assimilar novos significados em um fluxo contínuo e dialético” (Bosi, 1996, p.65). 1.1.3 - Cultura brasileira Ao refletir sobre a cultura brasileira, Alfredo Bosi (2004) afirma que a cultura popular se encontra em certas ocasiões com a cultura de massa, esta com a cultura erudita e vice-versa. Há ainda as imbricações entre as velhas culturas ibéricas, indígenas e africanas. Cada uma destas também polimorfas pelas fusões dos contatos interétnicos. E existem ainda as miscigenações mais recentes, resultantes do contato entre as culturas migrantes (japonesa, italiana, alemã, síria etc) com as regionais (nordestina, gaúcha, paulista etc). Alfredo Bosi diz ainda que já houve quem pensasse a cultura brasileira como unitária e outros que extraíram dessa pretensa unidade uma idéia de identidade nacional. Ele afirma que não existe uma cultura brasileira homogênea, geradora dos nossos comportamentos e dos nossos discursos. Ao contrário, é fundamental admitir o seu caráter plural para a compreensão dos efeitos de sentido, resultantes de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço. Segundo o autor, essa multiplicidade causa uma aparência de caos. Daí o uso corrente de expressões jocosas criadas para definir a mente brasileira como 30 “geléia geral” ou “samba do crioulo doido”. Mas, ao deslocarmos o olhar de consumidor para o de analista da cultura, é possível definir linhas de força que remetem a estruturas sociais diferenciadas. A idéia de caos e nonsense fica como fruto da “civilização de massa”, mas o plural cultural se impõe e é preciso olhar esse plural detalhadamente. Alfredo Bosi afirma que um dos princípios diferenciadores para nortear a análise seja o sentido de tempo. “Os ritmos das culturas no Brasil são diversos” (Bosi, 2004, p.08). Existe um tempo cultural acelerado, diz o autor, que é o da cultura de massa. Da mídia que produz cultura para consumo 24h por dia. TV, rádio, sessão corrida no cinema, internet, publicação de revistas mensais, semanais, jornais diários e até a pesquisa universitária precisa ser publicada se não torna-se perene. Tudo ligado ao consumo: tiragem, prazo, lucro. Bens simbólicos em ritmo industrial. Essa cultura, segundo o autor, é alimentada pela idéia de novidade. É imperiosa a substituição de signos de tempos em tempos para redefinir padrões, modas, comportamentos. Para ele essa cultura industrial ocupa o tempo de relógio e o interior do cidadão. Em decorrência há uma generalizada perda de memória social. Para que o cidadão faça uma seleção e adquira um ponto crítico sobre a sua representação de mundo é preciso que ele conheça ritmos diversos ao da indústria de signos. Segundo o autor, é isso que tira o cidadão do risco da massificação. Alfredo Bosi leva-nos a indagar sobre qual seria essa outra cultura capaz de resistir `a indústria cultural e enriquecer o cidadão no seu campo de significações. Para ele a resposta se bifurca: ou é a cultura popular, das classes pobres e iletradas, ou a cultura erudita conquistada com a escolaridade. Apesar de cercadas pelos meios de comunicação, as duas alternativas guardam um centro de resistência intencional ou não. “Resistência pressupõe, aqui, diferença: historia interna especifica; ritmo próprio; modo peculiar de existir no tempo histórico e no 31 tempo subjetivo” (Bosi, 2004, p.10). Nem a cultura popular nem a erudita constroem-se sob o regime da produção em série das linhas de montagens ou da imposição dos horários mecânicos, afirma o autor. O tempo da cultura popular pressupõe ciclos. Tempo sazonal, lunar, das marés, do plantio e da colheita, da menstruação, do cio etc. O seu fundamento está no retorno a situações e atos reforçados pela memória coletiva do grupo, atribuindo-lhes valor. A inovação penetra a cultura popular traduzida e transposta em velhos padrões de percepção e sentimentos já interiorizados. “De resto, a condição material de sobrevivência das práticas populares é o seu enraizamento” (Bosi, 2004, p11). Ao nutrir-se da aparência do novo, os meios de comunicação afastam-se do ciclo, do sazonal, do enraizamento. Caso o público um dia se visse saciado das excitações televisivas, o sistema entraria em colapso, afirma Bosi. Já nas manifestações populares o ato de participar cria uma identificação entre todos. Mas a partir do momento que os meios de comunicação apoderam-se dessas práticas cria-se um distanciamento e o que é popular torna-se espetáculo, ocultando o caráter original de enraizamento. Assim, o autor sustenta que no Brasil os estudos de cultura precisam se relativizar, pois geralmente nossas fontes de informação têm como origem a cultura erudita estabelecida na Europa e nos Estados Unidos. Por isso, a tarefa das ciências humanas no país é aprofundar os estudos históricos-comparativos sobre a formação social brasileira. Quanto a nossa cultura, Alfredo Bosi observa que ela é plural, mas não caótica, transpassada pela divisão social. Fazer o seu levantamento e divisar no claro-escuro do cotidiano as relações entre vida simbólica, economia e política é recusar-se a cair na tentação do absurdo que nos ronda mal deitamos os olhos nas manchetes dos jornais. (BOSI, 2004, p.15) 32 1.2 - Os estudos sobre Identidade A questão das identidades culturais está entre as principais discussões que envolvem as teorias sociais hoje. O tema relaciona-se com o sujeito e sua inserção no mundo, a partir da modernidade, quando o indivíduo centrado e unificado da era iluminista passa por questionamentos no pensamento ocidental. Este sujeito é definido historicamente e não mais biologicamente. A análise passa a ser vinculada `as representações culturais que se multiplicam na contemporaneidade, o que leva a uma multiplicidade de identidades. A questão tem uma de suas marcas no questionamento sobre as diferenças. Para Hall (2004) as identidades modernas estão sendo "descentradas", isto é, deslocadas ou fragmentadas. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas desde o final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Noções que no passado eram consideradas sólidas para o indivíduo na sociedade. Essas transformações estão abalando as identidades pessoais, interrogando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Essa perda de sentido de si é chamada de deslocamento ou descentramento do sujeito. Aí está posta a crise de identidade para o indivíduo. Woodward (2000) afirma que as identidades adquirem sentido, através da linguagem e dos sistemas simbólicos que as constituem. A autora apresenta a questão sob duas perspectivas: a essencialista e a não-essencialista. A primeira trata a identidade como algo que não se altera com o tempo. Ela é vista como autêntica, cristalina. A visão essencialista fundamenta-se na história e na biologia. A autora exemplifica com a maternidade, que seria uma identidade baseada na biologia do corpo feminino. Por outro lado, os movimentos étnicos e religiosos reivindicam uma cultura ou história comum para a fundamentação de sua identidade. 33 Uma visão não-essencialista, segundo Woodward, foca-se nas diferenças, assim como em características comuns ou partilhadas entre grupos. Mas também observa as mudanças que tais características adquirem através dos séculos. Portanto, é atribuída a identidade um caráter de construção social. Nas relações interpessoais e em grupo existem entrelaçamentos da vida cotidiana com aspectos econômicos, políticos e culturais ligados `a subordinação e dominação. Segundo a autora, todas as práticas de significação simbólica incluem relação de poder, constituindo-se em critérios de inclusão e exclusão social. Escosteguy (2001) aponta equívocos nas duas correntes. A essencialista não considera as diferenças do “outro", que é sempre visto de uma perspectiva universalista. A segunda posição, por ser um produto social que destaca as diferenças e descontinuidades históricas, olha o 'outro' pela perspectiva da especificidade cultural única, sem entender a base comum da humanidade entre as culturas, diz a autora. Para a autora as duas posições correm o risco de se tornarem preconceituosas. A universalista descuida da especificidade do "outro" em nome de uma verdade absoluta e histórica. Assim, tende a julgar outras culturas com base na sua própria. Por outro lado, a visão historicista ao destacar as diferenças pode julgar o "outro" como inferior. Para a autora, é diante desse quadro que se evidencia a problematização das identidades culturais. Examinando autores como Stuart Hall, Jesús Martin-Barbero e Néstor Garcia Canclini, que dão sustentação ao texto de Escosteguy, assim como o de Woodward, observa-se que a discussão sobre identidade e diferença faz-se no cenário da globalização e da pós-modernidade. Segundo Hall (2004), globalização refere-se a processos em escala global que ultrapassam fronteiras nacionais, “integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo em 34 realidade e experiência mais interconectado” (Hall, 2004, p.67). Essa nova percepção de tempo e espaço, resultante da compressão de distâncias e escalas temporais presentes no fenômeno da globalização, reflete sobre as identidades culturais. O autor vê como conseqüência do processo de globalização três aspectos sobre a identidade cultural: 1 - a desintegração das antigas identidades como resultado da homogeneização cultural e do pós-moderno global; 2 - as identidades nacionais e outras locais estão se reforçando pela resistência a globalização; 3 as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades, híbridas, estão surgindo. Hall examina três concepções de identidade. A primeira delas é o sujeito iluminista que traz uma concepção da pessoa humana como indivíduo centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. A identidade nasce com o sujeito e se desenvolve com ele. Grande parte da história da filosofia ocidental consiste de reflexões ou refinamentos da concepção do sujeito, seus poderes e suas capacidades. Muitos movimentos na cultura ocidental também o foram. A fé guiou os destinos do homem durante séculos, tendo Deus como o centro do universo. O renascimento, o iluminismo, confere ao Homem a capacidade para questionar, investigar e conhecer os mistérios da natureza. O Homem racional, centrado, científico foi libertado do dogma e da intolerância. Portanto, o sujeito moderno nasceu do descentramento de Deus do universo. Para Descartes, a concepção do homem como sendo o centro - "penso, logo existo" - traz a concepção do sujeito racional, pensante e consciente, situado no centro do conhecimento, o "sujeito Cartesiano". Para John Locke a identidade da pessoa alcança a exata extensão em que sua consciência pode ir. Traz a 35 noção de "indivíduo soberano" - um sujeito da razão e das conseqüências das suas práticas. A segunda concepção é o sujeito sociológico, cuja noção reflete a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que o núcleo interior do sujeito não é autônomo e auto-suficiente. Na medida em que as sociedades modernas se tornavam mais complexas, a vida se tornou mais coletiva e social. As teorias clássicas baseadas nos direitos individuais foram obrigadas a dar conta das estruturas do estado-nação e das grandes massas que fazem uma democracia moderna. Emergiu, então, uma concepção mais social do sujeito. O indivíduo passou a ser visto como parte das estruturas da sociedade moderna, a partir do século XVIII. A sociologia forneceu críticas ao "individualismo racional" do sujeito cartesiano. Localizou o indivíduo em processos de grupo e normas coletivas. Em conseqüência desenvolveu uma explicação do modo como os indivíduos são formados subjetivamente, através da participação nas relações sociais mais amplas. Há uma internalização do mundo exterior no sujeito que depois volta a exteriorizá-la. A exteriorização do interior. Esse modelo sociológico interativo com sua reciprocidade estável entre o "interior" e "exterior" é em grande parte um produto da primeira metade do século XX, quando as ciências sociais assumem sua forma disciplinar atual. O sujeito sociológico é formado nas relações com outras pessoas importantes para o sujeito. Essas pessoas mediam para ele os valores, sentidos, símbolos - a cultura, do mundo que habitam. O sujeito ainda tem um núcleo interior, mas este é formado e modificado num diálogo constante com o mundo exterior, as identidades que o mundo lhe oferecem. Ele abrange o espaço interior e exterior, o mundo pessoal e o público. Internalizamos valores que passam a fazer parte de nós, alinhando os sentimentos subjetivos com os lugares objetivos 36 do mundo social e cultural. A identidade, então, costura, “sutura” o sujeito `a estrutura. Sujeito e mundo cultural são unificados e estáveis. A terceira concepção é o sujeito pós-moderno cuja identidade previamente estabelecida como unificada e estável está se tornando fragmentada. Composto não de uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas. Mudanças estruturais e institucionais estão na raiz dessa transformação. Há um colapso das paisagens sociais que asseguravam a conformidade da vida subjetiva com as necessidades do mundo objetivo. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, que não tem uma identidade fixa, essencial, permanente. A identidade torna-se uma "celebração móvel", formada e transformada de acordo com as representações e interpelações dos sistemas culturais vigentes. Na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, confrontamos uma multiplicidade de identidades possíveis com as quais podemos nos identificar, ao menos provisoriamente. Segundo Hall, a sustentação do pensamento pós-moderno da fragmentação das identidades passa também por deslocamentos. Primeiro, através da releitura do pensamento de Marx, nos 1960, sob a luz da afirmação que "homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhe são dadas" (Hall, 2004, p.34), quer dizer, os agentes da história só podem agir com base nas condições históricas criadas pelos seus antecessores, utilizando os recursos materiais e de cultura que lhes foram fornecidos por gerações anteriores. O segundo descentramento no pensamento ocidental do século XX vem dos estudos freudianos sobre o inconsciente. A teoria de que nossas identidades, nossa sexualidade, e a estrutura dos nossos desejos são formadas por processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona por uma lógica diferente daquela da razão. O pensamento de Freud nega o conceito de sujeito cartesiano. 37 Para Freud, a subjetividade é o produto de processos psíquicos inconscientes. Jaques Lacan, interpretando Freud, diz que a imagem do eu como inteiro e unificado é algo que a criança aprende gradualmente e com dificuldade. A formação do eu dá-se na relação com os outros. Na relação com os pais, a chamada "fase do espelho". A formação do eu no "olhar" do outro, de acordo com Lacan (1999), inicia a relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela mesma e assim se dá a entrada dela nos sistemas de significação, incluindo língua, cultura, diferença sexual. Os sentimentos contraditórios e não resolvidos que acompanham a criança são aspectos chave da formação inconsciente do sujeito. (amor e ódio do pai, o conflito do desejo de agradar e o impulso para rejeitar, a divisão entre as partes boa e má, a negação da parte masculina ou feminina). Tudo o que deixa o sujeito dividido permanece com a pessoa por toda a vida. Entretanto, embora o sujeito esteja sempre partido, dividido, ele vivencia sua própria identidade como se ela estivesse resolvida e definida, unificada. Algo que ele formou na fase do espelho. Essa, de acordo com esse raciocínio psicanalítico é a origem contraditória da identidade. A identidade, portanto, forma-se ao longo do tempo, por processos inconscientes. Está sempre em processo, sempre sendo transformada. O terceiro descentramento está associado à lingüística estrutural de Ferdinand de Saussure (1995) para quem a língua é um sistema social e não individual. Falar uma língua é antes de expressar nossos pensamentos, ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais. O significado surge nas relações de similaridade e diferença que as palavras têm com outras palavras no interior do código da língua. Por exemplo, a noção do que é "noite" porque sabemos que é diferente de "dia". O quarto descentramento vem do trabalho do filósofo e historiador Michel Foucault (2000). Ele destaca um novo tipo de poder que ele chama de poder 38 disciplinar que se desdobra ao longo do século XIX. O poder disciplinar está preocupado, com a regulação, a vigilância é o governo da espécie humana, de populações, do indivíduo e do corpo. Seus locais são as novas instituições que policiam e disciplinam as populações modernas - oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais, clínicas. O poder disciplinar é fruto das novas instituições coletivas. Suas técnicas envolvem uma aplicação do poder e do saber que individualiza ainda mais o sujeito e envolve mais intensamente seu corpo. O quinto descentramento é o feminismo, tanto como uma crítica teórica quanto como movimento social. Faz parte dos novos movimentos sociais que surgiram nos 1960 - marco da modernidade tardia. O feminismo apelava `as mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, `as lutas raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas. Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como política de identidade. A preocupação de Hall é com a identidade nacional. No mundo moderno, as culturas nacionais constituem-se em uma das principais fontes de identidade cultural. Elas são vistas como da natureza essencial do Homem. Mas as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas no interior da representação. Sabemos o que é ser brasileiro pelo modo como a brasilidade veio a ser representada. A nação não é uma entidade política, mas algo que produz sentidos - um sistema de representação cultural. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade. Hall apresenta aspectos sobre a narrativa da cultura nacional como fonte de significados. 1 - Narrativa da Nação como é contada na história, na literatura, na mídia e cultura popular. Dá importância e significado a nossa existência, conectando nossas vidas cotidianas com o destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte (idéia de continuidade). 39 2 - Estratégia da Tradição, mesmo que certas vezes essas práticas façam parte de um passado recente e algumas vezes inventadas, busca inculcar valores e normas de comportamento pela repetição, implicando a continuidade. 3 - O Mito Fundacional: uma estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que se perdem nas brumas do tempo, não o tempo real mas o tempo mítico. 4 - A identidade nacional é também baseada muitas vezes numa idéia de povo puro, original (folk). Assim, o discurso de cultura nacional constrói identidades que são colocadas de forma ambígua, entre o passado e o futuro. Ortiz (2003) observa a questão do ponto de vista da autenticidade. O fato da identidade ser uma construção simbólica elimina as dúvidas sobre a falsidade ou veracidade do que é produzido. O autor entende que não há uma identidade autêntica, “mas uma pluralidade de identidades construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos” (Ortiz, 2003, p.08). 1.2.1 - Identidade e Diferença De acordo com Ortiz (2003) toda identidade se define por algo que lhe é exterior, isto é, a diferença. Daí a preocupação em constituir a idéia de uma cultura nacional. Por outro lado, o autor observa que a questão envolve também uma dimensão interna. Não basta dizer que somos diferentes, mas mostrar com o que identificamos. Para Hall (2004) a idéia de cultura nacional constitui uma "comunidade imaginada": as memórias do passado, o desejo por viver em conjunto, a perpetuação da herança. Para os defensores desse posicionamento uma cultura nacional busca unificar classe, gênero ou raça numa identidade cultural que represente a grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma 40 identidade desse tipo unificadora que anula e subordina a diferença cultural? Indaga-nos Hall. Essa idéia gera dúvidas, segundo o autor, por várias razões: as nações são constituídas de culturas separadas que foram unificadas após longo processo de conquista violenta. Segundo, que as nações são constituídas de diferentes classes sociais, etnias, gêneros. Terceiro, os países colonizadores exerceram influências nas culturas colonizadas, exercendo uma hegemonia cultural. Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, Hall observa que deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas diferenças internas, sendo unificadas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. Como no pensamento lacaniano do "eu inteiro" as identidades nacionais continuam a ser representadas unificadas. A etnia é o termo utilizado para nos referirmos `a língua, ` a religião, aos costumes, `as tradições e aos sentimentos de lugar. Mas é um mito tentar usar a etnia como algo fundacional no mundo atual. As nações modernas, no entender de Hall, são todas “híbridos culturais”. Seria mais difícil unificar a identidade utilizando-se da noção de raça. Esta não é uma característica biológica, contrariamente a crença generalizada. Raça é uma categoria discursiva, organizadora das formas de falar, sistemas de representação e práticas sociais (discurso) que utilizam um sistema frouxo em termos de diferenças de características físicas. As nações européias são geralmente de sangue misto: França (célticos, ibéricos e germânicos), Alemanha (célticos, germânicos e eslavos). Portanto, a idéia de nação como identidade cultural unificada perde sentido quando se constata que as identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo do poder, de divisões e 41 contradições internas, de lealdades e diferenças sobrepostas. É importante ter em mente a forma como as culturas nacionais costuram as diferenças numa única identidade. Para Hall (2004), sob a perspectiva desta fábula pode-se caracterizar melhor o que entendemos por um sujeito múltiplo: ele se inscreve na ordem do mestiço, do impuro, do entrecruzamento, do nem isso nem aquilo, da incerteza, da instabilidade. Hall fala por experiência própria já que ele mesmo é fruto desse hibridismo cultural por ser africano e viver na Inglaterra. Martin-Barbero (1995) identifica, na América Latina, a presença de movimentos diferenciados de negociação de sentidos que incorporam “imagens” dessa “cultura de massa global”, mas com marcas de uma outra identidade construída numa outra história. É a diferença que rege essas relações. Para o autor, a América Latina é o resultado de várias temporalidades e de histórias plurais que impedem uma visão unificada dos processos de desenvolvimento dos países da região. Assim, sociedades mais avançadas convivem com outras menos modernas e outras mais tradicionais. Por isso não se pode pensar a América Latina por um esquema de oposição rural/urbano, universal/ local ou erudito/popular. A América Latina é entendida por Martin-Barbero como espaço de mestiçagens, onde na construção do massivo, a identidade cultural na modernidade tardia é resultado de cruzamentos, fusões e mesclas entre popular, massivo e culto. Para ele o popular é o principal lugar das mestiçagens e das apropriações de significados. Isso evidencia a contradição em que se vive no continente, com sua heterogeneidade e descontinuidade de tempos, memórias e imaginários. Ao contrário da Europa que entrou na modernidade através dos livros, na América Latina, Martin-Barbero (2003) identifica a modernidade como o resultado 42 de uma tradição oral que continuou evidenciada através do rádio e se mesclou com a cultura visual do cinema e da televisão. No mesmo caminho de Martin-Barbero encontra-se o pensamento do argentino Néstor Garcia Canclini. Ao analisar a América Latina como uma articulação entre tradição e modernidade, onde coexistem múltiplas formas de desenvolvimento, o autor utiliza o termo “hibridismo cultural” para explicar a identidade cultural latino-americana. Garcia Canclini (1995), ao estudar a presença dos meios de comunicação na formação das identidades latino-americanas, afirma que o rádio e o cinema foram importantes para organizar os relatos da identidade e cidadania nacional, na primeira metade do século XX. Eles agregaram, `as narrativas de heróis, o falar popular e os hábitos comuns que diferenciavam os povos. Então, num primeiro momento, programas de rádio, por exemplo, serviram para conectar os grupos que viviam no mesmo país em zonas distantes. Na década de 1960, os meios massivos renovaram sua função, quando aliados à televisão ajudaram a organizar o imaginário desenvolvimentista dessas sociedades. Criaram costumes cosmopolitas ao incentivar o uso de aparelhos domésticos eletrônicos, unificando o consumo. A publicidade difundia, assim, os produtos nacionais na tentativa de fortalecer a indústria nacional. Na década de 1980, observa Garcia Canclini, a abertura das economias nacionais para o mercado global e os processos de integração regional reduziram o papel das culturas nacionais. Na perspectiva do mundo sem fronteiras a comercialização de bens culturais interferiu na significação das identidades tradicionais, criando novas formas de percepção do mundo. Para Martin-Barbero (2003) a presença dos meios de comunicação de massa no cotidiano latino-americano desvaloriza a visão sobre o nacional. Assim, 43 encarnam uma posição mediadora na construção de outras identidades: urbanas, regionais e locais. O autor acredita num esfacelamento das identidades tradicionais pelos meios massivos e redes eletrônicas uma vez que veiculam um multiculturalismo. Dessa forma, Martin-Barbero observa que os processos de comunicação atuam na produção de identidades, na reconstituição de sujeitos e atores sociais. O autor não vê os meios de comunicação como simples fenômeno comercial ou de manipulação ideológica, mas um espaço onde as pessoas vivem a constituição do sentido da vida. Para Garcia Canclini (1997) o processo de hibridização é principalmente urbano e definido pelos meios de comunicação. Há uma oferta simbólica heterogênea que se renova na interação do local, com o regional e o global. Assim, culturas híbridas envolvem toda a produção onde não é possível separar o culto, o popular ou o massivo. Sua análise observa também a importância do mercado e seu poder na constituição de identidades, inferiorizando a influência do Estado nos processos atuais de consumo. Garcia Canclini (1995) propõe em Consumidores e Cidadãos que os problemas de consumo não se relacionam apenas com a eficácia comercial ou a publicidade, mas é uma questão de gosto pessoal. Sua justificativa passa por questões como a “oposição entre o próprio e o alheio; as intersecções do global mediado pelo local; a necessidade de definição de políticas culturais em tempos de integração cultural e globalização”. 1.2.2 - Entre o local e o global A compressão de espaços e tempos no processo de globalização acentua as tensões entre o local e o global. Para Hall (2004), ao invés de pensar o global substituindo o local é mais certo pensar numa nova articulação entre os dois pólos. Este local não deve ser confundido com velhas identidades tradicionais, 44 bem delimitadas. Há uma possibilidade de negociação das relações de origem, do tradicional, com a modernidade sem a ilusão de um retorno ao passado. O local atua na lógica do global. Garcia Canclini (1995) observa que nas artes o fenômeno da globalização não impediu que a indústria cultural mantivesse nichos mercadológicos para produtos que valorizam as identidades locais ou nacionais. Ao mesmo tempo em que há uma força em direção a uma “desterritorialização das artes” o autor indica uma outra, de reação, a favor de uma “reterritorialização”. Esta é representada “por movimentos sociais que afirmam o local e também por processos de comunicação de massa” (Garcia Canclini, 1995, p.170) Ortiz (2000) observa que uma cultura mundializada não significa o fim de outras manifestações culturais. “Ela cohabita e se alimenta delas” (Ortiz, 2000, p. 27). A língua inglesa, por exemplo, está espalhada pelo planeta por causa do colonialismo inglês, do poderio da indústria cultural norte-americana no séc. XX, do avanço da informática. Mas não se pode pensar apenas como uma imposição da língua, algo rígido. A língua inglesa se adapta aos territórios em que habita criando espaços “transglóssicos” no qual outras expressões lingüísticas se manifestam. Há portanto, um enraizamento no cotidiano das práticas sociais. Para Ortiz, não há uniformidade quando se discute as questões culturais. Ao invés de pensarmos num mundo dividido entre homogeneidade e heterogeneidade é melhor discutir como os diversos grupos que vivem no cenário da globalização compartilham gostos, atitudes, estilos de vida. Então, o consumo é estimulado dentro de uma lógica global, mas mantendo sua promoção entre grupos específicos. Garcia Canclini (1995) observa que nações e etnias continuam existindo, mas com influência diferenciada sobre os grupos sociais, pois diversos sistemas simbólicos se entrelaçam nesse cenário. Elas não serão exterminadas no 45 processo de globalização, mas é preciso analisar como as identidades étnicas, nacionais e regionais se comportam nos processos de hibridização intercultural. Para o autor a reflexão atual deve considerar a diversidade de possibilidades artísticas e dos meios de comunicação que contribuem para a reconstituição das identidades. No espaço da “cultura histórico-territorial”, ou seja, dos saberes mais enraizados - como nas zonas rurais -, os efeitos da globalização são menores pela limitação da abertura econômica. Nos espaços dos meios de comunicação de massa, Garcia Canclini observa que países como o Brasil e o México possuem uma tecnologia própria que gera certa autonomia dos padrões impostos pela globalização. Mas a situação de dependência se aprofunda na maioria dos países da região, em relação ao padrão global, principalmente o imposto pela cultura norte-amercana. Garcia Canclini analisa ainda que o enfraquecimento das identidades nacionais é maior no terreno das tecnologias de informação, como satélites e redes óticas. Nesse aspecto há uma remodelagem dos comportamentos em empresas e no entretenimento baseada nos padrões globais. Nesse cenário de trabalho e de consumo, o autor afirma que os conceitos de hegemonia e resistência continuam úteis, pois os conflitos de identidade e cidadania estão no centro dessa discussão. Mas sem perder o olhar para os processos de negociação de sentidos, na medida em que as interações são híbridas e multiculturais. Para Hall (2004) a globalização também impulsionou o processo migratório, principalmente, em direção aos países produtores de bens de consumo. Ondas de migrantes que fogem das condições precárias de seus países de origem, tanto econômica quanto socialmente. O resultado é a formação de enclaves étnicos 46 minoritários no interior dos estados-nação do ocidente que leva a uma pluralização de culturas nacionais e de identidades nacionais, num mesmo território. Assim, num mundo de fronteiras dissolvidas, as velhas certezas e hierarquias da identidade são postas em cheque. O fortalecimento de identidades locais pode ser visto como uma reação defensiva `a presença de outras culturas em determinada região. Também há evidências do surgimento de novas identidades advindas com a globalização como o sentido de black para o inglês asiáticos e afrocaribenhos são considerados de cultura black na Inglaterra, segundo o autor. Parece que a globalização tem sim o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e fechadas de uma cultura nacional. Tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo novas possibilidades, tornando as identidades mais posicionais, políticas, mais plurais e diversas. Em toda parte estão surgindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições. Há ainda uma outra possibilidade: a da tradução. A formação de identidade de pessoas que ultrapassam a fronteira natural, pessoas que foram dispersas para sempre da sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Nas novas culturas em que vivem são obrigadas a negociar. Elas são produtoras de várias histórias e culturas interconectadas e pertencem a várias "casas" ao mesmo tempo. È o que Hall (2004) chama de “hibridismo”. Pessoas traduzidas pelas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Pessoas que habitam em si duas identidades, pertencem a duas culturas diferentes ao mesmo tempo e estão constantemente traduzindo-se e em processo de negociação cultural. Para Hall, o ressurgimento de movimentos puristas mostra uma virada bastante inesperada dos acontecimentos na época da globalização e dessa busca 47 de homogenização global. Tanto o liberalismo como o marxismo, em suas diferentes formas, davam a entender que o apego ao local e ao particular daria lugar, gradativamente, para valores e identidades mais universais. Entretanto, a globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do global nem a persistência de versões nacionalistas do local. Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas e seus oponentes, afirma Hall. 1.3 - Os Caminhos da Recepção Uma das questões atuais mais debatidas no meio acadêmico e até mesmo pelos próprios mass media é a supremacia dos meios de comunicação na sociedade contemporânea. O que muitos chamam de uma sociedade mediática3 é a constatação da forte presença dos meios de comunicação no cotidiano das pessoas, levando a indagações sobre o papel que desempenham na sociedade. Muitas vezes, de forma equivocada, há uma supervalorização do poder de atuação dos mass media4 sobre os consumidores/receptores, como se estes fossem incapazes de possuir opinião própria. Dentro dos Estudos Culturais entendo que a pesquisa de recepção ocupa um lugar de destaque nas análises sobre os meios de comunicação, uma vez que mostra as formas socialmente diferenciadas de apreensão de sentidos pelo leitor/espectador. Este passa a ser entendido como sujeito ativo e crítico, passível de interpretações diferenciadas do texto mediático ( verbal e não-verbal). 1.3.1 - Recepção e Estudos Culturais Nos Estudos Culturais, a temática que envolve a relação cultura/comunicação massiva, com foco nas estratégias de interpretação popular, passou por transformações a partir dos anos 1960. Segundo Escosteguy (1999) , 3 4 Mantenho a forma original da palavra que vem do latim media. Meios de massa em inglês 48 num primeiro momento com a atenção voltada para a recepção e o consumo mediático, principalmente a televisão. A autora observa que Stuart Hall – do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham - identificava três posições hipotéticas de interpretação do conteúdo televisivo no seu estudo “Enconding and decoding in television discourse”, publicado em 1973. A posição “dominante”, quando a audiência decodifica a mensagem com referências em quem construiu tal discurso; uma segunda posição “negociada”, onde o sentido da mensagem está “em negociação” com as condições particulares do grupo receptor; e ainda uma terceira via, de contraposição ao discurso dominante. Nos anos de 1970, os Estudos Feministas na Inglaterra dão uma nova dimensão à recepção ao introduzir questões de identidade pensadas através de novos ângulos, onde a cultura de classe é colocada em segundo plano, passandose a observar fenômenos ligados a gênero, raça e etnia. Mattelart e Neveu (2004) destacam a pesquisa de Laura Mulvey, em 1975, que, baseada na psicanálise, analisou como filmes hollywoodianos identificavam o prazer com o “olhar masculino”. Nos anos de 1980 e 1990, tanto Escosteguy quanto Mattelart e Neveu observam uma multiplicação das análises dos meios de comunicação que se espalham por academias de todo o mundo, com destaque ao pensamento latino americano. Também há um re-posicionamento quanto aos métodos investigativos, com atenção maior ao trabalho etnográfico. Mattelart e Neveu (2004) destacam o trabalho do britânico David Morley que foi pioneiro no uso de grupos focais para observar a audiência de programas de televisão. De certa forma ele recupera o modelo de codificação-decodificação de Stuart Hall, mas exibe um posicionamento crítico a esse método. 49 [...] Centrado sobre a importância das posições de classe, ele não permite perceber a importância do quadro doméstico de percepção, das relações no seio da família e mais especialmente o lugar das mulheres. O trabalho com os focus groups faz nascer interrogações inovadoras sobre o papel da mídia na produção de diversos registros identitários. O deslocamento das problemáticas iniciado por Morley aqui se acentua, ruma `a dimensão do “gênero” (gendered) nos processos de recepção e na relação com os instrumentos técnicos de comunicação. (MATTELART E NEVEAU, 2004, p.98) Em seu estudo intitulado América Latina e os Anos Recentes : o estudo da Recepção em Comunicação Social, Martin-Barbero (1995) defende a idéia de que a recepção não é apenas uma etapa do processo de comunicação, mas um lugar novo, de onde deve-se repensar os estudos e a pesquisa de comunicação. O autor sugere a explosão do modelo mecânico, isto é, emissor – mensagem – recepção: Entendo modelo mecânico como sendo aquele em que não há nem verdadeiros atores nem verdadeiros intercâmbios. É o modelo em que comunicar é fazer chegar uma informação, um significado já pronto, já construído, de um pólo a outro. Nele, a recepção é um ponto de chegada daquilo que já está concluído. Ele leva a uma confusão epistemológica muito grave. Estaríamos confundindo, permanentemente, a significação da mensagem com o sentido do processo e o das práticas de comunicação, como também reduzindo o sentido destas práticas na vida das pessoas ao significado que veicula a mensagem. (MARTIN-BARBERO, 1995, p.40) O autor considera que esse modelo “condutista” concentra todo o significado da mensagem do lado do emissor enquanto ao receptor caberia apenas reagir aos estímulos enviados pelo emissor. Uma epistemologia que vê o receptor sempre como o que recebe, lugar de chegada. Mas Barbero afirma que é preciso ver a recepção também como um lugar de partida, de produção de sentidos. 50 A concepção “condutista” aliou-se a epistemologia iluminista “segundo a qual o processo de educação, desde o século XIX, era concebido como um processo de transmissão do conhecimento para quem não conhece. O receptor era “tábua rasa”, apenas um “recipiente vazio para depositar os conhecimentos originados, ou produzidos, em outro lugar”. (Martin-Barbero,1995, p.41) Segundo o autor as duas concepções, condutista e iluminista – aliam-se ainda a idéia moralista de que o receptor é uma vítima, um ser manipulado, condenado “ao que se quer fazer com ele”. Uma visão que coincidiu com o avanço da crítica de esquerda na América Latina, uma visão crítica política e social. Dos anos 60 para os anos 90 conviveram na América Latina essas duas visões, segundo Martin-Barbero, da “politização absoluta das análises de mensagem com a despolitização, a dessocialização do receptor pensado individualmente, como um coitado, exposto `as manipulações dos meios”.(MartinBarbero,1995, p.42) Martin-Barbero (2003) traz uma releitura do conceito de hegemonia de Gramsci. Ele afirma que a dominação não se dá apenas pela imposição da força, mas passa também pelo consentimento das classes subalternas. Está em primeiro lugar o conceito de hegemonia elaborado por Gramsci, possibilitando pensar o processo de dominação social já não como imposição a partir de um exterior e sem sujeitos, mas como um processo no qual uma classe hegemoniza, na medida em que representa interesses que também reconhecem de alguma maneira como seus as classes subalternas. E “na medida” significa aqui que não há hegemonia, mas sim que ela se faz e desfaz, se refaz permanentemente num processo vivido, feito não só de força, mas também de sentido, de apropriação do sentido pelo poder, de sedução e de cumplicidade. (MARTINBARBERO, 2003, p.116) Para Martin-Barbero esses conflitos são articulados no espaço da cultura. Daí a necessidade de, nas ciências sociais, observar também o conceito 51 gramsciano de folclore como cultura popular, no sentido de “concepção do mundo e de vida” que está em contraposição ao modo de vida culta, `as concepções de vida oficiais estabelecidas ao longo da história. Para Barbero, Gramsci liga cultura popular a subalternidade, mas de um modo que identifica nessa cultura “uma tenacidade, uma espontânea capacidade de aderir `as condições materiais de vida e suas mudanças, tendo `as vezes um valor político progressista, de transformação”.(Martin Barbero,2003, p.117) Mas, observa que não se pode exagerar na interpretação e considerar toda ação popular como extremamente positiva, de resistência ou revolucionária. Ele cita Garcia Canclini que já havia notado tais excessos entre pensadores de esquerda em concluir, apressadamente, que entre a cultura hegemônica e a subalterna a tarefa da primeira é a dominação e da segunda é a resistência. Em todo caso, ver o popular a partir da ótica gramsciana redunda totalmente contrário ao facilismo maniqueísta que Garcia Canclini critica. Se algo nos ensinou é a prestar atenção `a trama: que nem toda assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo de submissão, assim como a mera recusa não é de resistência, e que nem tudo que vem “de cima” são valores da classe dominante, pois há coisas que vindo de lá respondem a outras lógicas que não são as da dominação. (MARTIN-BARBERO, 2003, p.119) Pensando a recepção como lugar e não como etapa vislumbra-se, inicialmente, as mediações. A primeira delas é a questão das anacronias e das diferentes relações com o tempo, pois na reflexão sobre a pós-modernidade há uma crítica radical a essa visão unidirecional da história, buscando um resgate da “heterogeneidade de temporalidades”. A concepção progressista da história de que ela vai apenas para uma direção, impediu de ver a multiplicidade de temporalidades, a multiplicidade de histórias, com seus próprios ritmos e com suas próprias lógicas. Assim, a primeira questão que se introduz na investigação da recepção é a de que não há mais só uma história, nem sequer naquele sentido em que Marx pensava, isto é, a burguesia como classe universal que unificava 52 os tempos.Parece-me importante na pós-modernidade essa nova sensibilidade, envolvendo a multiplicidade, e a heterogeneidade de temporalidades que combinem. (MARTIN-BARBERO, 1995, p.43) Segundo o autor, a concepção de oposição entre modernidade e tradição está mudando porque na sociedade atual há grupos moderníssimos e outros menos modernos e tradicionais.”Não há mais passo da tradição à modernidade como se não houvesse aspectos absolutamente contraditórios, mas sim formas de articulação entre diversos processos de modernidade e tradição”.(MartinBarbero,1995, p.44) Um segundo aspecto de mediação é sobre as novas fragmentações sociais e culturais. Os meios de comunicação cada vez mais investem na programação diferenciada buscando um público específico. Para Martin-Barbero essa fragmentação não tem nada de novo uma vez que aprofunda as velhas divisões de classe e que apenas inova na forma de produzir a fragmentação. Uma fragmentação causada pela tecnologia que cria novas sensibilidades, novos modos de relação de jovens com a tecnologia, diferentemente dos mais velhos, para quem a tecnologia causa um certo medo. As novas tecnologias reorganizam a experiência das pessoas, criam uma nova sensibilidade. Então, as relações sociais hoje são fragmentadas por sexo, idade, etnia etc. Há também uma nova organização entre o espaço público e o privado. Não é somente a privatização da economia, mas também a desprivatização da vida íntima, vide programas como Big Brother. Há também as fragmentações dos públicos cada vez mais especializados, voltados para estratos sociais como mulheres urbanas, mulheres rurais etc. 53 A segunda questão polêmica colocada pelo autor é sobre a reorganização cultural na modernidade5. Martin-Barbero indaga-nos sobre como estamos pensando essa nova estrutura quando ainda convivemos na sociedade com altos índices de analfabetismo na América Latina. Ele observa que para os que não lêem há uma passagem da cultura oral para modernidade por meio da gramática do rádio, do cinema e da televisão. “Enquanto nós estamos pensando na modernidade ligada `a ilustração, ao livro, como o grande meio ilustrado, nossas maiorias não apenas estão sendo incorporadas à modernidade, estão apropriando-se da modernidade”. (Martin-Barbero,1995, p.50) Essa apropriação faz-se sem deixar a cultura oral, pois a maioria continua não lendo. Cria-se então novas fragmentações e rearticulações das relações entre culto e popular, massa e vanguarda. Para o autor não dá para pensar a cultura Latino-Americana nos moldes dos europeus, pensando em pureza cultural, pois a nossa história é a história das mestiçagens. Não existe mais a pureza cultural do tempo das colônias dos séculos 18 e 19. Então, segundo o autor, não há como culpar a Televisão se os jovens não lêem mais. Há uma nova sensibilidade aí que os mais antigos não estavam captando e que agora é preciso rever. Outro aspecto da recepção destacado por Barbero diz respeito à exclusão cultural. Tudo o que é de gosto popular é desqualificado, deslegitimado, considerado vulgar. “Não podemos estudar a recepção sem analisar essas dimensões de exclusão que hoje continuam vivas em nossa sociedade, por mais transformações que tenha havido”.(Martin-Barbero,1995, p.52) Mas há também outra reflexão a ser feita. A recepção não pode tudo, não é tudo. Não se pode confiar no slogan publicitário de que o consumidor tem a palavra e ponto final. A reação do receptor depende do que é emitido, num processo de mediação. Também não se pode desligar o estudo da recepção dos 5 Martin-Barbero considera que na América Latina vivemos a modernidade tardia e não a contemporaneidade, termo que eu prefiro para definir as relações culturais na atualidade. 54 processos de produção. “Eu não poderia compreender o que faz o receptor, sem levar em conta a economia de produção, a maneira como a produção se organiza e se programa, como e por que pesquisar as expectativas do receptor.” (MartinBarbero,1995, p.55) Portanto, o autor não abdica da ideologia na sua análise sobre a recepção, mas muda o olhar em relação a ela. Ressalta que é preciso considerar na análise a economia de produção, a maneira como a produção se organiza e se programa; a concentração econômica e o poder político. Isto é, não se pode pensar que o receptor é uma vítima manipulável como também desconsiderar os saberes cada vez mais especializados dos produtores de mídia. São dois extremos perigosos. Há, portanto, uma interação entre esses dois pólos da comunicação. Finalmente, há que se considerar ainda os modos de interação com o próprio meio, no uso desses aparatos socialmente reconhecidos e comercialmente legitimados. Assim, é preciso observar a recepção como “espaço de interação”, processo de negociação de sentido. Na interação há uma circulação de significados, mas não podemos cair nos extremos: quem sabe sobre comunicação é o emissor ou pensar o receptor como aquele que faz o que quer com a mensagem. A proposta de Barbero é que se faça uma interação não só com a mensagem, mas com a sociedade, com outros atores sociais, não só com os aparatos. 1.3.2 - Trama conceitual Para Martin_Barbero (2003) as investigações sobre a recepção possuem quatro caminhos a ser seguidos: os estudos da vida cotidiana, os estudos sobre o consumo, os estudos sobre estética e semiótica da leitura, e sobre a história social e cultural dos gêneros. Sobre os estudos da vida cotidiana, destacam-se os autores brasileiros. Essa pesquisa rompe com a visão puramente reprodutiva da vida diária como espaço da reprodução da força do trabalho. Mas a vê como espaço em que se produz. “A sociedade está sendo ativamente produzida, pela e 55 para a maioria das pessoas[...] A vida cotidiana é o lugar em que os atores sociais se fazem visíveis do trabalho ao sonho, da ciência ao jogo” (Martin-Barbero,1995, p.59). É preciso resgatar o viver cotidiano como espaço de produção do conhecimento e de troca de sensibilidades. Segundo o autor é interessante notar que Habermas, um continuador do marxismo da Escola de Frankfurt, tenha admitido que a categoria da comunicação é hoje mais importante nas relações sociais que a categoria do trabalho. Então, em que medida a vida cotidiana é o espaço de reconhecimentos socialmente importantes? Outra categoria para análise é o consumo que pode ser observado como ponto de organização da diferença, da distinção social, dos modos de consumir. Barbero cita como exemplo o cartel de Cali, que ao invés de tentar tomar o poder na Colômbia tomou a maneira de organizar as casas, os mobiliários e as edificações, impondo o seu gosto. Então o consumo além de ser prática de apropriação dos produtos sociais é ainda lugar da diferenciação social. Também pode ser analisado como modo de circulação e popularização de sentido, pois para haver a diferenciação social os grupos precisam comunicar essa diferença. Em quarto lugar, o consumo é cenário de objetivação de desejos, pois muitas vezes consumimos sem levar em conta aspectos econômicos, mas pelo prazer de consumir. Por último está a dimensão do ritual do consumo que fixa tempos, modelos, pauta etc. Por último é preciso falar do gênero como estratégia de comunicação ligada aos diversos universos da cultura. A partir dos trabalhos de semiótica do russo Yuri Lotman, o autor latino-americano verifica a existência de duas culturas na sociedade: uma interessada em conhecer a gramática dos textos culturais e outra em que o prazer está no próprio texto. Como exemplo, Martin-Barbero cita a pessoa que vê um filme policial, se apaixona e passa a conhecer esse gênero pelo fato de sempre assistir a filmes policiais. Ele acaba se especializando naquilo. 56 Como acontece com o brasileiro em relação `as novelas. Por entender assim o gênero essas pessoas acabam sendo expressão dessa cultura. Assim, é possível avançar as análises da relação dos meios com os consumidores culturais. A questão não é mais reconhecer os meios, nem a pluralidade cultural, nem afirmar a relação de dominação. O aparato ideológico está presente, diariamente, em noticiários, novelas, filmes e programas de variedades. Mas é possível acreditar que se os efeitos produzidos pelos meios não são homogêneos nos receptores então é possível acreditar que na recepção está o germe da mudança, afirma Martin-Barbero. No processo de comunicação a recepção não pode mais ser entendida como lugar de chegada. Esta deve ser vista sob uma nova dimensão como apontam os estudos de Jesus Martin-Barbero. Um lugar de partida, de produção de sentidos, mas que leve em consideração a economia de produção e o conhecimento dos produtores culturais. A afirmação de que “não é o meio que é ruim, mas o uso que o homem faz dele”6 talvez nos revele uma saída sobre o domínio dos meios de comunicação na sociedade atual. Com o aporte teórico apresentado neste capítulo acredito ter pavimentado o caminho que continuo a trilhar. 6 Ouvi o termo numa aula com o professor Mauro Wilton de Souza, durante um curso ministrado aos professores de Comunicação Social da UFMT, num convênio com a ECA-USP, em 1997. 57 2 - INVENTÁRIO SOBRE O BAIRRO SÃO GONÇALO Nenhum milagre é permitido agora... E lá se iria o resto de prestígio Que no meu bairro eu inda possa ter!... Mário Quintana 58 2 .1 - Espaços urbanos x comunidade Antes de mergulhar nas pesquisas sobre o São Gonçalo creio ser importante posicionar-me diante de uma discussão já posta em outros trabalhos que o situam como uma comunidade ribeirinha. Consultando vários desses pesquisadores, percebi que a maioria utiliza-se do conceito de comunidade para definir a convivência entre seus moradores. Outros simplesmente o apresentam assim, sem um questionamento sobre o que é ser ou não comunidade. Entre esses trabalhos me chamou a atenção a pesquisa de Torezan (2000) que coloca em discussão o fato de o São Gonçalo ser tratado como comunidade, tanto pelo senso comum como em pesquisas acadêmicas. Januário (1997) é um dos pesquisadores que emprega o conceito de comunidade para o São Gonçalo baseado no pensamento de Rocher Guy (1979) para quem: A comunidade é formada por pessoas unidas por laços naturais ou espontâneos, assim como por objetivos comuns que transcendem os interesses particulares de cada indivíduo. Um sentimento de ‘pertença’ `a mesma coletividade domina o pensamento e as ações das pessoas, assegurando a cooperação de cada membro e a unidade ou união do grupo. A comunidade é, pois, um todo orgânico no seio do qual a vida e os interesses dos membros se identificam com a vida e o interesse do conjunto. (GUY, 1979, pp.168-169) Da mesma forma, a historiadora Neuza Kerche, baseada na definição acima, afirma que o São Gonçalo é uma comunidade “pois entre seus moradores existe, apesar do tempo e das mudanças, este sentimento de pertencimento e união que é visível a qualquer pessoa que converse com os mesmos” (Kerche, 2004, p.13). 59 Ao questionar tal definição, Torezan afirma que o conceito de comunidade em Ciências Sociais recebeu muitas críticas pela sua insuficiência metodológica, apesar de muito presente nos estudos das décadas de 1940 e 1950. Ao pretender a compreensão da sociedade como um todo, através do estudo de um grupo isoladamente, os estudos de comunidade utilizavam o método da descrição das partes para se chegar ao todo. As relações de dependência externa eram desconsideradas, importando os estudos das estruturas fechadas e autônomas. Para Torezan, a falha conceitual está na abordagem do objeto que desconsidera qualquer relação deste com a realidade externa. Para a autora, essa interpretação resulta numa realidade social fragmentada por não dar conta de todas as relações ali imbricadas. Não podemos dizer que o São Gonçalo, em algum tempo, foi uma comunidade – no sentido teórico do termo – por sabermos que desde a sua ocupação as pessoas que ali moravam mantinham relações de interdependência com outras localidades. Hoje esta interpretação é mais pertinente do que nunca, pois o que podemos constatar é que o grupo social em questão está totalmente voltado para o mercado de trabalho urbano. (TOREZAN, 2000, p.08) Ela justifica seu posicionamento, mostrando que mesmo os ceramistas e os pescadores precisam de um mercado consumidor externo ao espaço do São Gonçalo. Além disso, a agricultura - que foi atividade importante entre os ribeirinhos e abastecia o mercado urbano - é hoje quase inexistente entre os moradores. As transformações sociais levaram aqueles ribeirinhos a procurar emprego na cidade, principalmente na construção civil e serviços domésticos, mesmo mantendo as atividades de pesca e artesanato. Segundo a autora, essa constatação leva os moradores a um paradoxo entre a “estrutura microssocial” – com sua cultura “tradicional” e a “macroestrutura” com as atividades dentro do perímetro urbano e suas conexões com o mundo exterior. 60 Sua opção é por tratar a população do São Gonçalo como um “grupo social” para que não haja equívocos na teoria adotada por ela. Para a autora o grupo passou por mudanças profundas no modo de vida, desde a ocupação pelos bandeirantes até o processo de urbanização de Cuiabá. Ela considera o São Gonçalo uma “estrutura social que se mantém enquanto microestrutura na medida em que reforça a sua cultura perante a estrutura macrossocial à qual está inserida” (Torezan, 2000, p.29). Torezan observa ainda que entre os ribeirinhos permanece uma tendência de considerar as atividades tradicionais como a essência das relações sociais, ao mesmo tempo em que se percebe uma dependência crescente das atividades externas ao São Gonçalo. Ao constatar a presença cada vez maior da macro-estrutura social no bairro São Gonçalo busquei referências em Sanchez (2004) para explicar a cultura e a renovação urbana. A autora - baseada em autores que pensam os espaços urbanos dentro da Contemporaneidade, como Debord (1995), Arantes (2000), Bienenstein (2000) e Jameson (1995), entre outros - afirma que a reestruturação urbana está ligada a dinâmica econômica do mundo capitalista. Assim, as cidades seguem um receituário que inclui parcerias do setor público com o setor privado, com realizações de projetos urbanísticos que inserem esses espaços no processo de mercantilização das cidades. A autora questiona tal postura dos administradores urbanos pois, muitas vezes, a experiência beneficia apenas o capital imobiliário sem mudanças significativas, por exemplo, na geração de empregos para a população. Sanchez discute também a relação do capitalismo com a cultura em sua “versão urbana contemporânea”. A autora mostra como a cultura se insere no mundo dos negócios. Investimentos em museus, centros culturais, contratação de arquitetos internacionais, preservação de monumentos e outras estratégias de negócios transformam os centros urbanos em cidades-espetáculos, lembrando Debord (1995) para quem a Sociedade do Espetáculo teria a cultura como a vedete do capitalismo. 61 Não se pode afirmar que Cuiabá se insere dentro dos padrões do que a autora descreve como cidade-espetáculo, é verdade. Mas é possível observar que há uma tendência, por parte da administração local, em criar projetos urbanísticos para aumentar a mercantilização dos espaços urbanos. É o caso do estudo sobre a implantação do plano conjunto de urbanização entre Cuiabá e Várzea Grande (aglomerado urbano), das estratégias de revitalização da cidade com a proliferação dos parques – Parque Mãe Bonifácia, Parque Massairo Okamura, Parque da Cidade, Parque da Saúde no Coxipó, e mais recentemente o Parque Nair Nigro e o Parque das Águas7. E ainda os espaços destinados a grandes monumentos. Segundo o secretário de cultura da cidade, Mário Olimpio, a prefeitura pretende construir dez monumentos até o final de 2007. Entre eles estão o Monumento ao Boi, do artista plástico Umberto Espíndola - no mirante do Centro de Eventos do Pantanal - e a Casa da Manga, de Gervane de Paula, no Museu do Rio.8 Dentro dessa visão da cultura nos espaços urbanos contemporâneos é interessante notar também a contratação da empresa do renomado arquiteto Jaime Lerner para desenvolver projetos urbanísticos em Cuiabá. Entre eles estão a revitalização do cais do Porto da cidade com cafés e teatros; a Barra do Pari, `as margens do rio Cuiabá, ganhará uma praia de arame para preservar sua vegetação, e o Farol do Minhocão, para relembrar seu mais famoso mito; e a reurbanização do Beco do Candieiro, que receberá tons de ouro para lembrar sua formação histórica da época da exploração aurífera da cidade no século XVIII. O próprio São Gonçalo ganhará também espaços de visitação turística com a construção de um planetário no local onde se encontram as águas do rio Coxipó com as do rio Cuiabá.9 7 O Parque Nair Nigro e o Parque das Àguas são projetos previstos para inaugurar até dezembro de 2007. Fonte: Prefeitura de Cuiabá. 8 Fonte: secretaria de Cultura de Cuiabá 9 Fonte: IPDU, prefeitura de Cuiabá. 62 Mas não é meu interesse discutir com profundidade tal assunto por não ser esse o objetivo desta pesquisa. Toda esta retórica é para justificar a minha posição em situar o São Gonçalo Beira Rio não como uma comunidade, mas como um espaço urbano que está em interação com outros espaços da cidade e totalmente inserido na vida urbana de Cuiabá. Complementando, Maciel da Silva (2002) mostra no seu Estudo da Percepção em Espaços Urbanos Preservados como a cidade se tornou um espaço indispensável para a sociedade por estar inserida no processo de produção capitalista: No sistema capitalista a cidade se tornou um fenômeno que aglutina em torno de 80% da população mundial e acabou se tornando um espaço condicionante da sociedade, pois viabiliza a continuidade da sua produção; é também, local de relacionamento das classes sociais ou grupos e por isso tem uma dimensão simbólica, uma vez que envolve o cotidiano; é cenário e objeto das lutas sociais cujos grupos sociais visam os seus direitos. (MACIEL DA SILVA, 2002, p.08) 2.2 - Inventário sobre o São Gonçalo Para a melhor compreensão da relação do espaço São Gonçalo com os pesquisadores, eu fiz um levantamento das investigações científicas realizadas ali nos últimos anos, principalmente, da década de 1990 em diante. Após a listagem inicial, dissertei sobre aqueles trabalhos que considerei mais importantes do ponto de vista cultural e que, assim, trariam mais contribuição para esta incursão no universo do São Gonçalo. Para situá-los, enquanto obras acadêmicas, eu ordenei as pesquisas pela hierarquia de titulação a que seus autores aspiravam na época. No resumo da obra a minha preocupação foi manter a idéia de seu autor, principalmente, daqueles trabalhos que tratam de assuntos técnicos distantes da minha formação profissional. Por último listei os trabalhos 63 audiovisuais e cênicos encontrados sobre o São Gonçalo (SG). Num segundo momento, detalhei os trabalhos acadêmicos com maior ênfase na discussão cultural envolvida no universo do bairro, na perspectiva de entrelaçar as considerações apresentadas por esses pesquisadores com a minha experiência nesta incursão ao São Gonçalo. TRABALHOS ACADÊMICOS 1 – KEUTZ, Irene. Cuidado Popular com Ferida: representações e práticas na comunidade de São Gonçalo. São Paulo: USP, 1999. Tese de Doutorado, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 1999. Estudo etnográfico da comunidade de SG com o objetivo de compreender o cuidado com feridas nesse contexto sócio-cultural. A pesquisa mostrou que os moradores têm modos peculiares de explicar as feridas, revelando uma concepção etiológica de multicausalidade, admitindo causas naturais, sociais e sobrenaturais que orientam seus procedimentos terapêuticos. As representações e conceitos diversos em oposição às práticas dos profissionais do sistema oficial de saúde. Há então um hiato entre esses profissionais e a população. Barreiras lingüísticas e culturais. Frente a estas constatações discute-se a importância e a necessidade do estabelecimento de um diálogo intercultural ente os dois grupos, o que poderá ser conseguido por meio de mudanças nos paradigmas que orientam o ensino, a pesquisa e a prática dos enfermeiros e demais professores da área de saúde. Hemeroteca: TES/ 709 2 – ARRUDA, Maria Lúcia de Mello. Plantas Medicinais: conhecimento popular x conhecimento científico. Cuiabá: UFMT, 1997. Dissertação de Mestrado em Educação, Cultura e Sociedade, Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, 1997. 64 O trabalho enfoca a relação paradigmática entre conhecimento científico e conhecimento popular. Pretende aproximar a prática dos raizeiros do SG da prática dos cientistas da UFMT. Biblioteca setorial de Educação: 09/97 DIE 3 – JANUÁRIO, Elias Renato da Silva. As vidas do Ribeirinho: meio ambiente, cotidiano e educação na comunidade ribeirinha do São Gonçalo. Cuiabá: UFMT, 1997. Dissertação de Mestrado em Educação e Meio Ambiente, Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, 1997. O trabalho se propõe a conhecer o universo do ribeirinho do SG na perspectiva etnográfica; coloca em evidência a dinâmica sócio-cultural do ribeirinho, apontando para os elementos cotidianos que integram a relação homem-natureza. Biblioteca setorial de Educação: 20/97 DIE 4 – LOPEZ, Mariângela Solla. Com a Cara e a Coragem – para ouvir as vozes da comunidade ribeirinha de São Gonçalo. Cuiabá:UFMT/USP, 2000. Dissertação de Mestrado interinstitucional em Comunicação),Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2000. O trabalho articula dois eixos de ação: o rádio como objeto de estudo para compreender a cultura de uma sociedade e os estudos de recepção, como perspectiva de análise. A pesquisa aborda a lógica da produção de mensagens radiofônicas e a lógica do consumo dos meios pela audiência para estudar o processo de recepção do programa “Com a cara e a Coragem”, na comunidade ribeirinha SG. Um estudo qualitativo de interpretação da audiência que parte da recepção e toma como mediações a cultura e o território para entender como 65 aconteceu os processos de negociação de sentidos e de apropriação de significados pelos ouvintes. Hemeroteca: TMT 00865 5 – ANDRADE, Ivanilza Vanusa. Gosto de Tauá – a cerâmica de São Gonçalo: suas mudanças e ressignificações. Cuiabá: UFMT, 2000. Especialização em Antropologia: teoria e métodos, Centro de Ciências Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso, 2000. O trabalho tenta compreender o motivo da permanência e aumento da produção de objetos artesanais e indagar-se a respeito dos motivos que o “sistema social” oferece para tanto. Analisar o agrupamento ribeirinho de SG enfocando sua interação com a produção artesanal de cerâmica tanto pelo condicionamento econômico como pela representatividade sócio-cultural que esta ocupação traz. Esclarecer como o consumo urbano altera o significado da produção material e simbólico das culturas tradicionais. Hemeroteca ESP/2259 6 – BORGES, Organizacional. Luiz Cuiabá: Oliveira. UFMT,1986. O Discurso Especialização e a Materialização em Administração, Universidade Federal de Mato Grosso, 1986. Na introdução do trabalho o autor versa sobre a produção das organizações modernas tendo como objetivo verificar a organização da produção no hospital Julio Muller. Sobre o significado das teorias no trabalho cita o exemplo da comunidade SG falando sobre o modo de produção artesanal de cerâmica Hemeroteca: ESP/302 7 – PALMA, Lucia C. Na Boca do Forno a Forma de um Povo. Cuiabá: UFMT, 1986. Especialização em Educação e Cultura - Fundamentação didático-metodológica de Formação Docente em nível superior, Faculdade de Direito, Universidade Federal de Mato Grosso, 1986. 66 O trabalho analisa o trabalho da mulher na produção da cerâmica. Aborda a questão produção/circulação/consumo do artesanato de São Gonçalo. Tenta ainda mostrar a importância de políticas culturais voltadas para as camadas populares. Finaliza o trabalho mostrando o papel fundamental que o próprio produtor tem em conduzir seu próprio destino; e que o futuro das culturas populares depende da força conjunta de toda a sociedade. Hemeroteca: ESP/ 286 8 – TOREZAN, Ariane Patrícia Domingos. São Gonçalo: uma análise das transformações nas formas de obtenção da subsistência da população ribeirinha. Cuiabá: UFMT, 2000. Especialização em Antropologia, Departamento de Antropologia, Universidade Federal de Mato Grosso, 2000. Propõe uma discussão sobre a situação paradoxal entre a estrutura microssocial – cultura tradicional X macroestrutura que abrange o perímetro urbano e toda a conexão que possa proporcionar com o mundo exterior. Esta tensão entre o micro/local e o macro/global se traduz na maior preocupação da Antropologia Contemporânea. Pretende fazer uma discussão a respeito das formas de obtenção da subsistência e as transformações que esta tem sofrido levando em conta os problemas que os ribeirinhos enfrentam, atualmente, para conseguir sobreviver. Hemeroteca: ESP / 2275 9 – SOUZA, Luzia Francisca de. Levantamento Etnobotânico na Comunidade São Gonçalo. Cuiabá: pesquisa do programa inter-institucional CNPq/UFMT/UNIR/UFAC, 1992. Departamento de Botânica e Ecologia, Universidade Federal de Mato Grosso, 1992. Estudo realizado em 1991 para obtenção de dados etnobotânicos através do contato com moradores e coleta de material botânico. Foram evidenciados 07 itens de utilização da flora do cerrado e da mata ciliar que delimitam a localidade como: medicina caseira, frutos comestíveis, curandeirismo, trabalho ceramista, artefatos de madeira e similares, plantas utilizadas na pesca. 67 Hemeroteca: MT/ 794 – MA 10 – ARRUDA, Maria Lucia de Mello. Cultura Popular: a arte cerâmica de São Gonçalo. Revista Leopoldianum – revista de estudos e comunicações vol. XVI. Cuiabá, 1989. Pesquisa realizada em 1982, abordando o artesanato da cerâmica feito em SG. Através de entrevistas com moradores, a pesquisadora revela o desenvolvimento do processo artesanal. A manifestação folclórica da cerâmica foi registrada desde o seu início, que a busca da matéria prima, o barro, a modelagem até a venda dos objetos artesanais. Estes permanecem na sociedade como resquícios da uma cultura herdada que aos poucos vão se transformando com o reflexo e como espelho do modo de vida urbano atual. Hemeroteca: MT / 1599 11– ARRUDA, Maria Lucia de Mello. Cultura Popular: a dança de São Gonçalo. Coleção Pesquisa nº 1, Departamento de Artes, UFMT, Cuiabá, 1982. Pesquisa sobre a dança de SG partindo do processo de urbanização no BR, MT, até chegar a Cuiabá e as transformações do universo habitacional em zona urbana nas décadas de 60, 70, com um modo de vida diverso do provinciano o que determinou mudanças estruturais. Procurou-se mostrar o fenômeno que se apresenta em Cuiabá como causador do enfraquecimento das manifestações folclóricas e da substituição destas por outras manifestações que se caracterizam como populares, nascidas em grupos pertencentes a uma nova realidade social, englobando as características do desenvolvimento moderno e absorvendo suas modificações, como é o caso das escolas de samba. Hemeroteca: MT/ 906 12 – MONTEIRO, Nancy B. A. L. Avaliação de Ações Antrópicas e dos Impactos Sedimentológicos na sub-bacia do Córrego São Gonçalo. Cuiabá: 68 UFMT, 1997. Monografia, Depto Eng.Sanitária, Universidade Federal de Mato Grosso, 1997. O trabalho de conclusão de curso propõe uma avaliação do mau uso e ocupação do solo e o comprometimento dos impactos sedimentológicos na sub-bacia do córrego SG, em função da forma desordenada do seu uso na área de estudo envolvida e no seu entorno. Hemeroteca: TCC/ 771 13 – ROSA, Ana Carla. Avaliação dos Impactos Antrópicos e sedimentológicos na sub-bacia do córrego são Gonçalo - perímetro urbano. Cuiabá: UFMT, 1996. Monografia, Depto. Engenharia Sanitária, Universidade Federal de Mato Grosso, 1996. Trabalho de conclusão de curso cujo objetivo é avaliar o grau de impacto hidrossedimentológico na sub-bacia do córrego SG, em função das ações antrópicas antropogênicas e do mau uso e ocupação do solo na parte envoltória do sistema conectado. Hemeroteca: TCC/1201 LIVROS 1 - KERCHE, Neuza M. E. Comunidade São Gonçalo, História, Lendas e Tradições. Cuiabá: ed. Centro América, 2004. O livro é destinado, principalmente, para alunos de 1º e 2º graus. Os temas são tratados de forma bastante superficial. A autora afirma que buscou informações no trabalho de mestrado de Elias da Silva Januário. Utiliza dados históricos para falar sobre a posição geográfica do bairro. Defende a idéia de que o SG é uma comunidade. Conta histórias sobre a origem do povoado e do nome, a procedência de seus moradores, as atividades desenvolvidas no local. Dá um destaque maior ao artesanato da cerâmica. Nas transformações ocorridas no bairro ressalta o papel da televisão como meio desagregador do local, de inserção de novos costumes. 69 2 - SANTOS, Abel. Viola-de-cocho: novas perspectivas. Cuiabá: ed. UFMT,1993. O livro tem como objetivo despertar o interesse das pessoas pela viola-decocho. Segundo o autor, a pesquisa serve também para uma aproximação da música com as escolas de 1º e 2º graus, com o propósito de reintegrar a música ao currículo escolar. O livro conta histórias sobre a viola-de-cocho e descreve aspectos técnicos dela, a fabricação, seus acordes, afinação e até um repertorio musical regional. Como proposta para a introdução da música na grade curricular das escolas, o autor defende que a viola-de-cocho é o instrumento adequado para essa tarefa, pela importância que tem para a cultura mato-grossense e para a sua reintrodução ao cotidiano das pessoas. O autor não cita o São Gonçalo como local de sua pesquisa. Em alguns momentos, Abel Santos se refere a entrevistas com violeiros ligados a Associação Folclórica de Mato Grosso. VÍDEOS 1 - COMUNIDADE de São Gonçalo “Ora viva meu São Gonçalo, oi torna reviva”. Produção Alailton Campos e Marcio Moreira. Direção Geral Kátia Meirelles. Cuiabá: Imagem e Som, 2001. 1 fita de vídeo (17 min. Aprox.), miniDV, son. Color. O vídeo tem como tema a Festa de São Gonçalo realizada no início de janeiro. Através dos preparativos para o festejo mostra o cotidiano dos moradores e sua ligação com a pesca e o artesanato da cerâmica. Tenta passar a idéia da necessidade da preservação das tradições locais. 2 - O BAIRRO perdido do São Gonçalo. Produção Marcelo Okamura. Direção Marcelo Okamura. Cuiabá: MTO, abril 2001. 1 fita de vídeo (19 min), Betacam, son. Color. O vídeo mostra o SG numa perspectiva saudosista, do lugar das origens de Cuiabá que está sendo esquecido pela população. Destaca a produção da cerâmica, mas fala também sobre a pesca e a viola-de-cocho como riquezas do 70 lugar que estão passando por transformações com o progresso da cidade. É enfático na idéia da necessidade de um certo “resgate” das tradições locais. PEÇA DE TEATRO 1 - O HOMEM do barranco. Texto e Direção Carlos Ferreira, 1991. Texto dramático baseado na Bíblia (Gêneses) e nas histórias contadas pelas mulheres do SG. Uma narrativa feita através das personagens da lavadeira, da ceramista, Mãe Oxum e do Homem do Barranco, todas interpretadas pelo próprio Carlos Ferreira. Na peça estão presentes os principais elementos do universo do ribeirinho, como a fé, as crendices, o sofrimento com as enchentes do Rio Cuiabá, a natureza, a lida com o barro para a confecção de cerâmicas, as danças e cantos típicos dos moradores do SG. 2.2.1 – Detalhamento do Inventário Este inventário de pesquisas científicas constitui-se num olhar externo sobre o São Gonçalo. A Ciência tem essa característica de olhar sobre um objeto e extrair dele muito mais do que a simples aparência real nos revela. Nesse contato com o Outro a revelação se faz pelo olhar. É preciso ver o invisível, como observou Merleau-Ponty (1971). É isso que todos esses pesquisadores se propõe a fazer quando analisam o modo de vida dos ribeirinhos, procurando sentidos que nem sempre se revelam na superfície das relações sociais. Abaixo, passo a descrever algumas das obras listadas acima, nas quais o meu olhar de pesquisador observa elementos mais representativos para um breve diálogo com este trabalho. Não que as outras pesquisas não os tenham, pois é impossível a todas essas incursões ao São Gonçalo separar o aspecto cultural da Medicina, da Educação, da Botânica ou da Biologia. Mas foi preciso delimitar as observações, principalmente, às Ciências Sociais, para que a minha pesquisa não desviasse do seu foco principal, que é a análise de imagens. Também levei 71 em consideração o fato de que determinados aspectos abordados por um autor estão mais detalhados em outro, não sendo necessário, então, a repetição. Assim, exponho a seguir cinco trabalhos, nos quais centrei-me na observação de como esses cientistas estabelecem identidades para os ribeirinhos. Minha intenção não é dissecá-los, com análises profundas sobre a obra, sua abordagem metodológica, sobre a própria Ciência. Faço apenas apontamentos. É importante destacar também que esses trabalhos apresentam aspectos de interdisciplinaridade, quando falam de Educação, Antropologia, Comunicação, Sociologia e Cultura. Interdisciplinaridade que está presente nos Estudos Culturais. Em Palma e Januário é possível observar outros trabalhos, mais antigos, citados por esses autores, que foram feitos em São Gonçalo, desde meados do século XX. Os vídeos serão analisados no capítulo quatro, pois constituem o foco principal desta pesquisa. A intersecção destes trabalhos com o objeto estudado aparecerá nas considerações finais. AS VIDAS DO RIBEIRINHO Elias Renato da Silva JANUÁRIO, 1987. A pesquisa toma como objetivo compreender as transformações que vêm ocorrendo na “comunidade” e suas implicações ambientais; identificar as alterações no ambiente ribeirinho; verificar a forma de ocupação do espaço e uso dos recursos naturais da região; observar o conhecimento dos ribeirinhos em relação `a natureza e o papel da educação formal quanto aos princípios da educação ambiental. O problema parte da relação homem-natureza. O autor entende ribeirinho como pessoa que vive próxima a rios ou ribeiras e que se relaciona com o ambiente local (perspectiva etnográfica). Ao descrever trabalhos realizados em comunidades ribeirinhas, Januário afirma que na esteira desta e outras pesquisas o universo das comunidades assentadas na depressão 72 cuiabana passou a ser estudado com um caráter mais profundo, com reflexões sobre a relação homem-natureza-educação. Na perspectiva etnográfica, o autor se propõe a observar o cotidiano dos ribeirinhos, descrevendo o universo deste grupo e respeitando a sua diversidade cultural. Januário compreende cultura como um texto que pode ser lido e interpretado, sendo que estas interpretações aguardam novas indagações e formulações sempre mais densas. O autor diz que usou a história como instrumento de domínio científico. Na busca de compreender os acontecimentos pelos caminhos da memória, procurou “evidenciar o papel relevante das lembranças das mulheres, exímias observadoras, não desconsiderando contudo, os depoimentos proporcionados pelos senhores da comunidade” (Januário,1987, p.10). O autor diz que não identificou as entrevistas para preservar os informantes e que encontrou resistência nos moradores no início por causa de uma reportagem que saiu na imprensa na época. O trabalho está dividido como se segue: no capítulo I, Januário descreve a localização, limites, geografia, flora, fauna, população e o rio Cuiabá. No capítulo II fala sobre o uso dos recursos naturais na região de SG com depoimentos de agricultores.; como é o cotidiano do agricultor; as práticas domésticas para combater pragas na lavoura. O autor afirma que o agricultor de SG “vive uma situação de desequilíbrio econômico, marcada pelas alterações de ordem ambiental que se processaram na região como efeito do desenvolvimento urbano de Cuiabá, desintegrando as relações comerciais com a cidade e transformando a região em subúrbio da capital” (Januário, 1987, p.102). Enfoca também a redução da produção agrícola nas décadas de 1960/70 com a urbanização. Fala sobre a usina de SG; a criação de animais, a pesca, dos tipos de pescadores, situação econômica, relação dos danos ecológicos com a pesca; aborda o artesanato: 73 sobre quem faz, onde vende, os 30 artesãos da comunidade, detecta problemas no mercado consumidor. Por último fala das doceiras de SG. Em seguida, passa a descrever a atividade ligada a cerâmica. Conta que o trabalho era feito basicamente por mulheres. O assunto e´ abordado com mais detalhes “não apenas pelo condicionante econômico, mas pela representatividade sócio-cultural que esta ocupação traz imbuída, respondendo pela conservação de várias tradições peculiares do povo ribeirinho mato-grossense” (Januário,1987, p.119). Januário conta sobre o processo de elaboração da cerâmica, da retirada do barro, a secagem, a confecção de peças , o polimento, a queima. O autor diz que pesquisou em cadernos cuiabanos da prefeitura de Cuiabá, 1978 . Januário se mostrou detalhista, num trabalho criterioso de observação e estudo bibliográfico sobre o tema. Descreve o forno, a extração da lenha, consumo de lenha por forno, custos, fala sobre o impacto ambiental com a queima da madeira , fala sobre loteamentos e propriedades em torno da comunidade. Os efeitos do progresso sobre a cerâmica. Cita Garcia Canclini em “As culturas populares do capitalismo”. Segundo o autor, a Casa do Artesão possibilitou a mudança das peças produzidas como objetos utilitários (moringas, panelas, pratos) para peças decorativas (vasos, pássaros, fruteiras etc). Depois discute o futuro de tal costume com o declínio, a concorrência, o cotidiano do ceramista, os jovens que não prosseguem a tradição. O capítulo III aborda a organização social e as práticas culturais como “imagens do cotidiano”. Januário faz uma narração sobre o que é observado no local: o ambiente, as habitações. Como é a moradia, disposição de móveis, divisão de quartos, objetos, higiene pessoal. Cita a infra-estrutura do lugar, telefone, água encanada, segurança, energia elétrica. 74 O autor passa a discutir as transformações ocasionadas com a chegada da TV e as mudanças de valores. O medo de sair `a noite, violência nas ruas do bairro. Aborda aspectos como abuso sexual entre pai/filha/enteada; a entrada das drogas a partir da década de 1970; estrutura social; família, a solidariedade (prática do muxirum para assuntos de coletividade, mas não se ajuda mais uma pessoa em particular); a divisão do trabalho e a educação em casa. Januário aborda também sobre o conhecimento e o respeito à natureza, prática transmitida “ao longo da formação dos filhos por meio da observação participante” (Januário,1987, p.175). Afirma que comunidades como a de SG são “conservadores da natureza” consciente ou não. Fala sobre casamento, filho, mãe solteira, prostituição, homossexualismo; o cemitério, o sepultamento. Segundo o autor “a morte para o ribeirinho está relacionada com os presságios, ou seja, as pessoas mais próximas do morto pressentem, mesmo estando distante...” (Januário,1987, p. 189). A pesquisa revela ainda aspectos sobre alimentação, religião, as festas religiosas. Discute as necessidades dos grupos folclóricos, passando por dificuldades financeiras por causa do crescimento urbano. Analisa através de causas sócios-economicas baseadas nos cadernos de folclore matogrossense, n°3, prefeitura Cuiabá. Januário entra também nas questões relacionadas a mitos e crenças populares; benzição; narrativas míticas; assombração. O autor faz relação entre imaginário ribeirinho e conservação do meio ambiente; cita os mitos sobre pedra 21, boi do rio, poço do pari etc No capitulo IV a pesquisa de Januário discorre sobre o ensino formal em SG como um parâmetro para estudo do meio ambiente. Fala da escola rural mista de SG, sua criação em 1909; o ensino na zona rural; analisa o período estudado 82 a 92 – a experiência educacional no ensino rural na planície do médio rio 75 Cuiabá. Depois fala sobre a escola estadual Hermelinda de Figueiredo (HF); o conhecimento das crianças sobre meio ambiente, através de questionário e desenhos. A prática educacional sobre meio ambiente na escola HF. Por último, descreve os trabalhos já feitos sobre comunidades ribeirinhas. Nas considerações finais, o autor afirma que a pesquisa descreve com detalhes o universo do ribeirinho, através da pesquisa etnográfica. Ele procurou contribuir para o entendimento das transformações sócio-ambientais ocorridas. A abordagem etnográfica foi fundamentada na teoria Interpretativa da cultura de Clifford Geertz. A abordagem culturalista, a partir da observação direta dos comportamentos dos indivíduos. Segundo o autor, o estudo evidencia um saudosismo que enseja um desejo de conservação das coisas belas ocorridas num passado imaginário. Pesquisa feita principalmente com idosos (olhar do pesquisador). O autor diz que procurou fazer uma leitura dos diversos aspectos culturais do grupo estudado. Ele discute algumas questões levantadas ao longo da trajetória do estudo que permite discorrer sobre “a identidade do ribeirinho em meio a tantas aspectos contraditórios criados pelo avanço do progresso”. Ambiente físico: observa a diminuição da biodiversidade (fauna e flora); afirma que a educação informal é importante para a conservação do meio ambiente,que a ocupação sempre foi extrativista; que a urbanização favoreceu a opressão ao meio ambiente e a descaracterização desse ambiente físico e das relações sócio-econômicas do ribeirinho; desintegração da relação homemnatureza. Oferece propostas adequadas para os problemas sócio ambientais; que as ações do Estado estão afastadas da realidade educacional dos moradores; que a escola urbana fequentada pelos moradores não leva em consideração os saberes do ribeirinho, só o siriri e o cururu.; que o ensino é monoculturalista e reproduz a ordem social do grupo hegemônico. Não leva em consideração a diversidade cultural. 76 A pesquisa encontrou também a presença de elementos regionais típicos dos grupos ribeirinhos, por exemplo, as danças e festas de santo, artesanato, práticas de subsistência, medicina caseira, crença no sobrenatural. O autor caracteriza o SG como área tradicional que está perdendo suas características por causa do progresso (encontro do tradicional e do moderno). Apontamentos sobre o trabalho Como se percebe, a pesquisa de Januário é extremamente rica na descrição dos aspectos culturais que envolvem a região do São Gonçalo Beira Rio. Destaco a forma como o autor elabora a identidade do ribeirinho ligada a natureza. Ele afirma que os moradores do São Gonçalo são “conservadores da natureza”. Esta talvez seja a principal característica apontada por Januário, pois estabelece uma relação das ações do cotidiano do ribeirinho com o meio ambiente. Uma interação que está em transformação por causa do progresso da cidade que penetra naquele espaço, modificando os costumes locais. A identidade do ribeirinho como ceramista é outro aspecto apontado pelo autor. Mas sem perder de vista a relação com a natureza, analisando o impacto ambiental da queima da madeira, por exemplo, com a atividade. Januário analisa também o consumo das peças artesanais e as transformações nos valores projetados sobre as peças que deixaram de ser objetos utilitários para se tornar peças decorativas. Assim, o que era de uso diário passa a ser de interesse turístico. O autor mostra também a relação do ribeirinho com o imaginário mitológico e das crenças populares, mas sempre estabelecendo um contato entre mitos e meio ambiente. Januário identifica ainda as relações do bairro com as festas e a fé dos moradores. 77 É importante destacar ainda que Januário caracteriza o bairro São Gonçalo como um local tradicional que vem sendo invadido pela urbanização, principalmente, pelo que esta tem de ruim, como a violência, a poluição e, principalmente, a descaracterização do modo de vida ribeirinho. Mas, mesmo afirmando que a sua pesquisa evoca um saudosismo, as considerações finais do autor não revelam uma ilusão de um retorno ao passado. COM A CARA E A CORAGEM Mariângela Solla Lopez, 2000. A proposta da autora é discutir a recepção radiofônica e identificar como os processos culturais determinam o modo de consumo, através de conteúdos emitidos pelo rádio. O São Gonçalo é considerado por ela “uma comunidade ribeirinha importante pela referencia histórica e social” para Cuiabá e que por isso foi escolhido para a pesquisa, que analisa a recepção do programa popular “Com a Cara e a Coragem”, da Rádio Cultura. O trabalho foi dividido em dois capítulos. O primeiro fala sobre as teorias de recepção, com destaque para os autores latino-americanos como Garcia Canclini e Martin-Barbero. Mas também utiliza-se de conceitos encontrados em Michel Maffesoli como a idéia de tribo. O segundo capitulo versa sobre o rádio no contexto sócio-histórico de Cuiabá. A autora caracteriza o programa Com a Cara e a Coragem e sua audiência. Parte, então, para a abordagem da recepção, através das práticas culturais dos moradores de SG. Lopez trabalhou com grupos de ouvintes que fizeram a audição de seis programas escolhidos por ela e depois discutiram os temas apresentados no programa, material que foi utilizado para a sua análise de recepção. Nas considerações finais a autora volta a afirmar que a ‘comunidade’ SG, pela forma “particular de viver, permeada por construções simbólicas extremamente ricas, constitui-se em um espaço único” (Lopez, 2000, p.109). Ela 78 afirma ainda que as manifestações culturais do local estão em “constante processo de hibridização” com a população cuiabana, hoje formada por migrantes de várias regiões do país,”o que significa estar interagindo com uma oferta simbólica heterogênea” (Lopez, 2000, p.109). Sobre o programa analisado Lopez observa que o seu conteúdo atende, além da lógica comercial, aspectos da “trama cultural e dos modos de ser da comunidade” SG. Para ela, se isso não ocorresse seria difícil encontrar ouvintes do programa entre os ribeirinhos. A autora destaca também que o programa Com a Cara e a Coragem funciona como elemento que reafirma a identidade dos ouvintes por abordar temas ligados a realidade dos moradores de SG. Afirma ainda que os traços culturais marcantes da “comunidade” foram influentes na audição do programa, pois a apropriação de significados foi mediada pela cultura e pelo território. Apontamentos sobre o trabalho A pesquisa de Lopez torna-se interessante por abordar aspectos ligados a Cultura de Massa. Sua análise de recepção de um programa radiofônico identifica os ribeirinhos como pessoas de “hábitos originados de uma tradição” que se constitui em “símbolos culturais da comunidade” (Lopez, 2000, p.111) A autora destaca a mediação territorial que os ribeirinhos fazem das mensagens radiofônicas, incorporando a elas os seus costumes. Mas não há uma preocupação de detalhar esses costumes. O São Gonçalo é visto por Lopez como um local que possui uma forma particular de viver, um espaço único – com o qual os moradores se identificam, estabelecem um sentimento de pertencimento ao lugar – e que é rico em construções simbólicas. Mas observa que as manifestações culturais estão em constante processo de hibridização com as 79 outras regiões da cidade e do país. Percebe-se nessa consideração que a autora identifica uma tensão entre o tradicional e o moderno. NA BOCA DO FORNO A FORMA DE UM POVO Lúcia Palma, 1986. O trabalho tem como objetivos: analisar a participação da mulher na produção da cerâmica; aborda a questão produção/ circulação/ consumo do artesanato de SG; tenta mostrar a importância de políticas culturais voltadas para as camadas populares. Finaliza o trabalho mostrando o papel fundamental do próprio produtor em conduzir seu próprio destino e que o futuro da cultura popular depende da força conjunta de toda a sociedade. Na metodologia a autora destaca que em vários momentos coloca observações pessoais porque “vivenciou os fatos”. Palma faz um trabalho que aborda questões históricas, depois sobre a produção da cerâmica – técnica, modelagem, divisão social do trabalho, participação da mulher na economia domestica, a comunidade, festas – comercialização/consumo e a conclusão. No corpo da pesquisa a autora começa por um breve histórico do lugar. Aborda aspecto histórico da colonização do Brasil até a fundação de Cuiabá. Fala sobre as civilizações amazônicas, colonização e características culturais que persistem. Uma entrevista com Hildes Dorileo narra a história das comunidades do Coxipó e do São Gonçalo. A autora afirma que não tem bibliografias sobre o SG, daí a entrevista com o senhor Hildes. Em seguida, ela passa a abordar a produção e o consumo. Na produção fala do processo, desde o apanhador do barro até a queima das peças. Depois aborda a técnica utilizada para fazer as cerâmicas. Segundo a autora, o objetivo “foi demonstrar o extenso trabalho das ceramistas como o valor social do trabalho e a pouca valorização por parte do governo”. 80 Palma dá um enfoque cronológico da penetração urbana no lugar e também do contato dos artistas locais com o bairro. A pesquisadora elenca projetos / ações desenvolvidas em SG como se segue: 1968 – exposição cerâmica com a participação de artistas locais; foi destruída pela PF. (Assunto está no dicionário de artes de Aline Figueiredo.); 1974 gravação de depoimentos de ceramistas – núcleo de documentação histórica Terezinha Arruda; 1975 – filmagem do núcleo SG – depoimentos Cândido Alberto da Fonseca (roteiro e execução); 1978 – documentação audiovisual – núcleo de documentação histórica regional – Edir Pina de Barros. A autora também observa o local, de onde pegam a lenha para a queima, tipos de cerâmica produzida etc. Palma dividiu o processo do trato com barro em etapas, descrevendo seus passos: da massa, da louça, o bojo, acabamento, lisa a louça, a pintura, a queima; Ao abordar aspectos do consumo do artesanato, Palma fala da questão econômica que envolve a retirada do barro. Trabalha com depoimentos de pessoas de meia idade para frente. Observa a vida das crianças, cita a relação com a natureza e com a televisão. Afirma que o São Gonçalo é uma comunidade; fala sobre transporte, ensino, luz elétrica, saúde. A pesquisadora toma partido dos moradores no caso da disputa de terra no local onde ficava o cemitério da localidade10. Palma trabalha com conceitos de Garcia Canclini (1983) em “As culturas populares no capitalismo”, quando aborda as questões que envolvem consumo de peças artesanais. Apresenta lista anexa de perguntas feitas em cada etapa do trabalho. A referência parece ter sido de Maria Arruda Mello em ”A dança de SG”. 10 Ver `a pagina 99 da citada pesquisa. 81 Tem ainda um glossário de termos visto também em Januário “As vidas do Ribeirinho”. Na conclusão ela começa citando a falta de políticas culturais consistentes. Palma fala sobre “a descontextualização e ressignificação que ocorre com o artesanato, através de estratégias que a cultura hegemônica cumpre diante das culturas subalternas, deslocando seus produtos do espaço nativo para outro: loja urbana, museu, butique artesanal. Discute também a descaracterização das danças siriri e cururu transformadas em “espetáculos” descontextualizados; Fala sobre a influência dos meios de comunicação nos valores locais; aponta para a questão da urbanização. Num outro momento afirma a autora que “o espírito desconfiado para dar entrevistas parecem suspeitar que todos querem tirar apenas proveitos da comunidade”. Isso, segundo Palma, afeta os pesquisadores sérios. A autora fala também sobre a ingerência de órgãos públicos no processo produção/circulação/consumo. Aborda ainda a questão das cerâmicas que estouram na queima, fazendo um alerta para pesquisadores da área química, geológica, sanitarista etc que poderiam contribuir para diminuir o problema. Palma aponta ainda a necessidade de lazer para os moradores - praça, parque para crianças com escorregadores, campo de futebol - necessidade de hortas; aparelho telefônico, veterinários, melhoria da escola, solução para transporte coletivo, barco a motor para facilitar o transporte do barro. Calçamento e asfalto como necessidade; arrumar ponte, iluminação pública; capacitação nas áreas de saúde, educação, agricultura. Resolver o problema do cemitério X loteamento; A autora encerra citando Garcia Canclini sobre a importância do produtor ser protagonista nas políticas culturais democratização radical da sociedade civil. como conseqüência de uma 82 Apontamentos sobre o trabalho Na Boca do Forno a Forma de um Povo aborda uma questão de gênero: a participação da mulher nas atividades desse grupo social. Esse é o ponto principal da pesquisa de Palma. O trabalho feminino orienta as discussões sobre a produção cultural do São Gonçalo, reforçando a identidade local como núcleo ceramista de Cuiabá. Toda a discussão de Palma é em torno da atividade do artesanato, apesar de não se deter só na descrição dessa atividade. Ela analisa as transformações na relação produção/circulação/consumo de peças cerâmicas, assim como nas mudanças da construção do valor simbólico das mesmas que deixaram de ser utensílios domésticos para se tornar peças decorativas. É importante destacar também como a autora toma posição em defesa dos ribeirinhos, estabelecendo um sentimento de apreço e simpatia pelas questões culturais do bairro. Assim como em Januário, Palma - como representante da classe culta da cidade – reconhece o valor da cultura popular. Não há um distanciamento entre o culto e o popular, mas uma aproximação, quando reivindica melhorias para o bairro, critica o descaso do Estado e defende o direito dos ribeirinhos de serem sujeitos das políticas culturais. A DANÇA DE SÃO GONÇALO Maria Lucia de Mello Arruda, 1982. Este pequeno livro começa situando a cultura em pequenas comunidades do Brasil. Fala sobre o processo de urbanização na Humanidade até Mato Grosso e Cuiabá. Aborda também as escolas de samba como manifestação popular advinda com o processo de modernização. Os dois aspectos manifestação popular e urbanização – são discutidos no mesmo capítulo. Depois 83 fala sobre a teoria do folclore. A dança no Brasil e um histórico da dança do SG. Em seguida, descreve como se dá a dança de SG em Cuiabá. Conclui falando que o fato da cidade ter se urbanizado enfraquece “a manifestação folclórica de SG”. Indaga se esta vai sobreviver ou será substituída. Diz que o folclore está perdendo espaço para as escolas de samba que é uma manifestação popular advinda com a urbanização. Apontamentos sobre o trabalho Este trabalho mostra uma outra identidade relacionada com o bairro. A de lugar que preserva os costumes mais antigos da dança de São Gonçalo. A Autora revela aqui aspectos importantes para a discussão da cultura popular, que é o contato com a urbanização e as transformações que esta impõe aos costumes de grupos subalternos. Mas o assunto é tratado superficialmente. Outro aspecto interessante abordado pela autora é a questão da substituição das danças folclóricas pelas escolas de samba. Observo que o assunto permite uma nova investigação já que as décadas se passaram e as escolas de samba não se destacaram como cultura popular em Cuiabá. O HOMEM DO BARRANCO Carlos Ferreira, 1991. Apontamentos A peça teatral trabalha a relação da mulher ribeirinha com as águas do Rio Cuiabá. A história só se torna possível por causa do rio. Ele é visto como a fonte da subsistência dos moradores, de onde é retirado o barro para a fabricação da cerâmica e o alimento através da pesca. Mas, o mesmo rio que dá o sustento 84 para o ribeirinho, traz também o sofrimento quando chegam as enchentes. O rio aparece, ainda, como fonte das crenças populares como o Minhocão e Homem do Barranco, protetor dos ribeirinhos. Está presente aqui o imaginário popular. A encenação apresenta, ainda, a relação da mulher ribeirinha com a natureza que lhe dá o barro e a água. Aparece aí uma outra identidade local, que é o fazer cerâmico, descrito através da personagem ceramista que fala sobre a lida com o barro, as formas das peças e a venda do artesanato. A relação do bairro com os pesquisadores aparece também na peça de Carlos Ferreira. Em determinado momento da encenação a personagem ceramista é entrevistada, revelando, assim, essa particularidade do bairro como local de intensa movimentação de investigadores do costume de seus moradores. 85 3 - VÍDEO E CULTURA O olhar deseja sempre mais do que o que lhe é dado a ver. Adauto Novaes 86 3.1 - O Vídeo como Expressão Cultural No início do século XXI o Vídeo se consolidou como instrumento de expressão e criatividade. De uma certa forma, ele tem contribuído para uma diversificação técnica, de conteúdo e de linguagem na Televisão e também no Cinema. Mas conquista a cada dia novos espaços atuando como um fomentador de informação – nem só difundida pela indústria cultural – como a escola, os bairros, aldeias indígenas, presídios etc Neste trabalho pretendo mostrar os caminhos que o Vídeo percorreu, como meio de criação, nos seus primeiros trinta anos de existência e sua atual difusão entre os diversos grupos sociais brasileiros como forma de expressão. Antes de qualquer coisa é preciso definir o que é Vídeo para entendermos como este aparato está presente na cultura contemporânea. Segundo Machado (1995), Vídeo pressupõe todas as modalidades de mensagens através de imagens eletrônicas vistas pelo receptor de tevê. Aí se inclui a programação convencional dos canais de televisão transmitida por ondas eletromagnéticas, por satélite ou cabo (broadcasting). Mas não é só isso. O monitor de tevê também serve como ”olho” de sistemas fechados de videoteipe utilizados com câmaras de segurança e como receptor para o videocassete doméstico. Machado vê ainda o aparato vídeo e monitor de tevê presente em terminais de saída de sistemas digitais como computadores, videogames, videodiscos etc... O termo vídeo abrange o conjunto de todos esses fenômenos significantes que se deixam estruturar na forma simbólica da imagem eletrônica, ou seja, como imagem codificada em linhas sucessivas de retículas luminosas. Nesse sentido, abrange também isso que convencionalmente nós chamamos de televisão, ou seja, o modelo broadcasting de difusão de imagem eletrônica. ( MACHADO,1995 p.06) 87 Entendo Vídeo como um complexo eletrônico e/ou digital formado por videocassete, monitor de tevê e câmara. Tanto pode ser o videocassete e a tevê como equipamentos de exibição, quanto à câmara como equipamento de captação de imagens. Os três juntos formam o aparato que cria infinitas possibilidades de linguagens e de interação com o público. Antes, porém, de falar sobre as diferentes formas de produção em Vídeo presentes na sociedade é preciso situar alguns aspectos técnicos e históricos para melhor entender o fenômeno da produção de imagens na atualidade. Como os termos Cinema e Vídeo estão cada vez mais unidos por causa das novas tecnologias é interessante observar também algumas diferenças e aproximações que os dois veículos possuem. A captação de imagens, por exemplo. No cinema o processo é físico-quimico, isto é, a imagem é captada pela câmara, impressa numa película fotossensível (o filme) e depois revelada num laboratório, através de banhos químicos. No vídeo ou televisão, o processo pode ser analógico ou digital. No primeiro deles, a câmara capta a imagem e a transforma em impulsos elétricos impressos em fita magnética. No segundo caso, a câmara capta a imagem que é codificada em dígitos binários. Em ambos os casos, o resultado pode ser visto imediatamente ao tirar a fita da câmara e inserila num videocassete, observando pelo monitor de tevê, sem a necessidade de revelação em laboratório. Com a tecnologia da TV Digital ou TV de Alta Definição Cinema e Vídeo estão se unindo num mesmo aparato que elimina a necessidade do uso de película, passando a captação de imagens para o processo de dígitos binários com a mesma qualidade de imagem produzida por película. O resultado pode ser visto, por exemplo, na novela da TV Globo, Sinhá Moça, uma das produções televisivas pioneiras no uso da TV Digital, no ar entre março e setembro de 2006. 88 A contribuição do Vídeo com o Cinema, porém, começou bem antes em experimentos nos anos 196011 consolidando-se na década de 1980, quando modificou aspectos importantes do processo cinematográfico. O vídeo Assist 12 , por exemplo, permitiu ao diretor uma nova forma de ver o filme sem precisar esperar o copião do laboratório. Com isso introduziu a possibilidade de ver o registro no momento da captação, economizando tempo e dinheiro. Pelo recurso do playback o Vídeo permitiu também a análise da imagem quantas vezes fossem necessárias sem precisar se deslocar do set de filmagem. O norte-americano Francis Ford Coppola é considerado um dos grandes incentivadores do registro eletrônico no processo cinematográfico. Em “A Arte do Vídeo”, Machado descreve o método Coppola utilizado no filme One From the Heart ( O Fundo do Coração, 1981). O filme foi concebido como um programa de televisão e antes mesmo de ter as primeiras cenas filmadas já possuía uma versão editada baseada nos desenhos do storyboard, o que Coppola chamou de storyboard eletrônico. Em todo o tempo das filmagens de One From the Heart, continua Machado, o storyboard eletrônico era alimentado por imagens captadas em vídeo. Assim, o diretor pôde observar o ritmo das cenas ao mesmo tempo das filmagens. Em outros momentos, o emprego do suporte videográfico antes de filmar a cena permitiu verificar se determinados movimentos de câmara seriam acertados para a cena ou não, dando mais segurança ao diretor. Ele utilizou ainda recursos em vídeo para compor determinadas cenas com sobreposição de imagens, método repetido também no seu filme Rumble Fish (O Selvagem da Motocicleta, 1986), mostrando as possibilidades da imagem eletrônica em convergência com a captação em película. Na televisão, programas como “Brasil Legal”, da TV Globo, surgiram da experiência de videomakers como Sandra Kogut, criadora de vídeo-instalações, 11 Credita-se ao cineasta Jerry Lewis em 1961 o pioneirismo no uso de um VTR como auxiliar na filmagem de “O Terror das Mulheres”. Segundo Arlindo Machado( 1995, p.181) em “A Arte do Vídeo” , Lewis registrava os ensaios em vídeo que depois eram analisados em um monitor. 12 O vídeo assist é um monitor de TV acoplado à câmara de cinema que mostra ao diretor a imagem que está sendo captada no momento da filmagem. 89 uma forma de expressão que tem como objetivo mostrar as possibilidades de linguagens do Vídeo, muito além daquilo que costumamos ver na Televisão. 3.1.1 - O início Quando surgiu em 1956 o vídeoteipe13 era um meio de armazenar imagens produzidas em estúdio, já que o seu tamanho era muito grande. O primeiro formato, da empresa Ampex, trazia uma fita de duas polegadas de largura acondicionada em rolo ou carretéis. Por causa do tamanho não se pensava em captação externa de imagens nessa época. Mas o avanço tecnológico foi importante para as emissoras de televisão que passaram a contar com a possibilidade de gravar programas que antes eram transmitidos ao vivo como única opção disponível. Daí para frente a tecnologia diminuiu o tamanho das fitas e criou a possibilidade de armazenagem da mesma em caixa plástica, os chamados cassetes. Em 1969, a Sony lançou o formato U-Matic cuja largura da fita era de ¾” de polegada. O aparato composto de uma câmara e um vídeoteipe acoplado, o VT, possibilitou a captação externa de imagens já que poderia ser operado por duas pessoas: um cinegrafista para manusear a câmara e um auxiliar para acionar o VT, uma caixa grande, de aproximadamente doze quilos, ligada à câmara por um conjunto de cabos. A novidade só foi superada na década de 1980 com a entrada no mercado dos formatos que continham a câmara e o VT num mesmo equipamento. Surgiram, então, uma variedade de possibilidades tanto para consumo caseiro como profissional. Entre eles os que alcançaram mais sucesso foram o VHS, para produções amadoras, e o Betacam, para as redes de televisão e produtoras de vídeo. Na década de 1990 apareceram os primeiros formatos digitais, com uma nova tecnologia para a captação de imagens, que resultaram na TV de Alta Definição. 13 Em inglês o termo é video tape. 90 Não pretendo aqui discorrer sobre esses diferentes formatos, suas vantagens e desvantagens, assunto que possui vasta bibliografia a disposição dos interessados. Meu objetivo é mostrar as possibilidades de discursos que o Vídeo introduziu na sociedade como forma de socializar mensagens e democratizar a produção, sem perder de vista a dimensão cultural presente com essa tecnologia e sua contribuição para o universo audiovisual, como nos fala Almeida (1985). Como um veículo que está entre a Televisão e o Cinema, o Vídeo permite a circulação de conteúdos desses dois meios de comunicação que o antecederam. Nos anos 1970 chegou-se a afirmar que o Vídeo seria um mero repassador de imagens. Mas logo opiniões contrárias surgiram, mostrando que havia sim possibilidades de linguagens surgindo pelas mãos de artistas. Tais possibilidades foram se ampliando a partir do momento que a indústria passou a produzir o aparato em grande escala para o consumo das massas. A diminuição de tamanho e peso das câmaras e as vendas de videocassete domiciliar mudaram a relação do próprio espectador com a circulação de imagens. O aparato permitiu a gravação de programas de televisão até então disponíveis para serem vistos somente no momento da transmissão. Também fez crescer uma indústria de entretenimento paralela ao cinema e derivado deste: os filmes para aluguel em locadoras. A princípio essas foram as duas principais contribuições do Vídeo para o mercado consumidor. Mas com o barateamento dos equipamentos cresceu também o uso caseiro das câmaras, sucessoras das antigas máquinas de Super 8, restritas `as famílias mais abastadas. Assim, o espectador passou também a produtor de imagens, mesmo que muitas vezes sem um brilho criativo, ao registrar as festas de família, batizados, aniversários e casamentos. Mas não ficou só nisso, permitindo também colocar a produção de imagens ao alcance das mãos de produtores culturais que se lançaram em experimentos artísticos. 91 Segundo Almeida, o Vídeo não apareceu para disputar com o Cinema e a Televisão, mas possibilitou uma “unificação de um discurso fragmentado” ao servir como meio alternativo de “corporificação de um universo de códigos dispersos”. Almeida vai além ao afirmar que o vídeo possibilitou a socialização da mensagem. [...] surge como um canal de dinamização do produto cinematográfico, ampliando o seu raio de amostragem e sintetizando sim, a televisão e o cinema, mas sem jamais prescindir de ambos, e atuando na verdade como elemento de interação neste grande projeto de democratização do audiovisual. (ALMEIDA,1985, p.08) Diferente do Super 8, a câmara de vídeo permitiu ao fazedor de imagens videomaker - o resultado imediato do que estava sendo gravado, uma vez que o aparato eletrônico dispensa o processo de revelação do filme. 3.1.2 - Vídeo-Arte A idéia de vídeo-arte surgiu com o coreano, exilado nos EUA, Nam June Paik e um grupo de artistas plásticos que buscaram no vídeo recursos para experimentalismo. Almeida (1985) afirma que eles usavam o vídeo como um suporte material, da mesma forma como se aproveita o spray ou a madeira. A perspectiva foi mudando na medida em que se percebeu a penetração e o impacto visual que tal aparato conseguia junto ao público. A princípio o movimento dirigiu suas críticas a Televisão vista como a inimiga da criação artística. Segundo Almeida, a vídeo-arte lida “com o conceito estimulando a participação intelectual do público dentro do processo de decodificação da mensagem” (Almeida, 1985, p.44). Essa forma de expressão busca espaços alternativos de exibição, uma vez que os trabalhos não são vinculados nos canais de televisão. Também podem ganhar a forma de vídeo-instalações, onde o espaço de exibição se divide em vários ambientes cênicos. Neles o público interage com 92 experimentos baseados no conjunto câmara, vídeo e monitor de tevê. Outra forma de se apresentar é através das vídeo-perfomances, onde a presença física de um ator relaciona-se com o aparato de vídeo. 3.1.3 - Vídeo Independente Segundo Almeida o vídeo independente é “um produto audiovisual que, além de ter sido gerado fora das empresas comerciais de televisão, busca manter um compromisso mais definido com aspectos culturais ou ideológicos” (Almeida,1985, p.78). A grande luta dos produtores independentes é por um circuito de exibição já que poucos deles conseguem fechar acordos comerciais para exibição de seus produtos audiovisuais em canais de televisão. Mesmo os canais por assinatura não abriram as portas para a produção independente como se imaginou na década de 1980. As exibições ficam restritas a canais educativos, festivais de cinema e vídeo ou mostras alternativas nos guetos culturais das cidades. Hoje, a luta pela democratização dos meios de comunicação tem como uma de suas metas a regulamentação de horários para a exibição de produção independente regional dentro da grade de programação das emissoras, principalmente no horário nobre das redes de sinal aberto. 3.1.4 - Vídeo Educação Aos poucos, o Vídeo ganhou a sala de aula. Passou a ser companheiro indispensável de professores como um motivador dos mais diversos conteúdos. Ciência, História, Literatura, Geografia etc. Para os governos fica cada vez mais clara a necessidade de voltar-se para os meios de comunicação como um fenômeno de massa que influencia na aprendizagem, mesmo que nem sempre reconhecido formalmente pelos órgãos competentes. 93 Citelli (2001) lembra que como resposta ao avanço da tecnologia e sua presença no cotidiano dos estudantes, as secretarias de educação passaram a dotar as escolas de equipamentos audiovisuais como aparelho de som, antena parabólica, televisão, videocassete e computadores. Daí surgiu um problema: como fazer com que professores usassem tal material incorporado à escola para ensinar? Citelli, numa leitura de Martin-Barbero14, afirma que os meios de comunicação passaram a funcionar como “mediadores dos processos educativos”, isto é, a escola não é a única a promover o ensino. A informação está disponível através de outros mecanismos até pouco tempo atrás privativo do espaço escolar. A discussão envolve o significado dos meios de comunicação e as tecnologias da informação como um desafio cultural para a escola. Há uma distância crescente entre a cultura ensinada pelos professores e a aprendida pelos alunos. O motivo está nos meios de comunicação que descentram as formas de transmissão e de circulação do saber. Assim, funcionam como um decisivo aparato de “socialização ao atuarem por mecanismos de identificação/projeção de estilos de vida, comportamentos e padrões de gosto” (Martin-Barbero apud Citelli, p.22). Os meios de comunicação passam a ser vistos como de caráter estratégicos para o entendimento do processo cultural na atualidade. Orozco Gómez (1997) acredita que a tecnologia deve funcionar na escola como mecanismo de transformação e não para reforçar o processo educativo tradicional. Para que essa ressignificação da escola ocorra é preciso implementar um “diálogo” com as novas tecnologias na perspectiva da ampliação cultural, vencendo a barreira conceitual e operacional. Citelli entende como barreira conceitual o fato dos professores não se sentirem seguros para empregar os recursos mediáticos em sala de aula pelo 14 MARTIN-BARBERO, J. Heredando el Futuro. Pensar la educación desde la comunicación. Revista Nómadas. Bogotá, Fundación Universidad Central, 1996. 94 pouco conhecimento de seus sistemas e processos. Mesmo reconhecendo o forte impacto que os meios de comunicação provocam em alunos e professores. O precário conhecimento acerca dos mecanismos de funcionamento das linguagens institucionalmente não-escolares, bem como, evidentemente, as carências estruturais da escola brasileira, que, em muitos casos, impossibilitam tanto a superação do déficit conceitual como a própria modernização física das salas de aula, terminam por afastar os agentes educadores do campo das comunicações. (CITELLI,2001, p.23) No plano operacional, o autor entende que a formação profissional dos professores é um entrave para operar com os meios de comunicação. Há um desconhecimento das novas linguagens ou complicadores operacionais que estão fora da estrutura dos cursos de qualificação do magistério. O ensino de graduação continua pautado em balizas fora de sintonia com a dinâmica social, diz Citelli. Ele observa que os cursos de magistério e as licenciaturas estão orientados, basicamente no sentido das operações com as linguagens verbal ou numérica tendo como referencia algarismos, palavras geralmente formatadas em textos. Portanto, há uma perda quando se pensa em outras dimensões discursivas, a maioria ancorada nos códigos imagéticos que possibilitam mecanismos de produção de sentidos. Nesse aspecto, o uso do Vídeo na educação pode funcionar como um mediador entre o ensino formal e os meios de comunicação, no sentido de despertar novos olhares, criando uma consciência crítica sobre a produção mediática. 3.1.5 - Olhar das minorias O Vídeo hoje está ao alcance de todos. Fugiu do controle das grandes corporações e empresas de Televisão e Vídeo. Os espaços de produção se multiplicaram. Várias Organizações Não Governamentais estão criando núcleos 95 de produções de cinema e vídeo, oferecendo oficinas em comunidades pobres. A Revista Raiz (2006) dedicou uma edição ao que chamou de “visões periféricas”. Olhares distantes das elites e das escolas feitas com “uma câmera barata na mão e uma identidade na cabeça”. O despertar de favelas, aldeias indígenas, grupos de cultura afro, entre outros, para a produção de imagens dá a oportunidade para milhares de jovens mostrar a sua visão sobre a realidade que vivem. O interesse no audiovisual virou profissão para muitos que estão repassando os conhecimentos adquiridos nas próprias oficinas para os mais jovens, formando, assim, novas gerações de fazedores de imagens. No Rio de Janeiro, a ONG “Nós do Cinema” ensina literatura e discute filmes com os alunos da oficina, filhos da Favela Vidigal. No bairro de Heliópolis, em São Paulo, a associação cultural local estimula a produção de vídeos que discutem os problemas de seus moradores como a falta de acesso a saúde, ao lazer e ao trabalho. O projeto Vídeo nas Aldeias, de Vicent Carelli, começou em 1987 estimulando os Nambiquara a se retratarem com imagens. Hoje, com apoio financeiro internacional, o projeto ensina audiovisual nas aldeias e estimula a produção. Os filmes tratam da situação do índio contemporâneo, aproximando os jovens das tradições e fazendo o intercâmbio entre nações indígenas. Todos esses exemplos mostram o que observa Martin-Barbero sobre o novo lugar da recepção frente aos meios de comunicação social. É pensar a relação da recepção com os meios e não mais a suposição do que os meios querem ou podem fazer com a recepção. São exemplos também das possibilidades de novas produções culturais estimuladas pelos meios de comunicação social. 96 4 - OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO: ANÁLISE DOS VÍDEOS O olhar perscruta e investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre da necessidade de ‘ver de novo’ (ou ver o novo) como intento de ‘olhar bem’. Sérgio Cardoso 97 4.1 – Caminhos metodológicos Este trabalho partiu da pesquisa bibliográfica sobre o São Gonçalo. Após o levantamento da literatura sobre o bairro e a realização do inventário passei para a definição de um método para a pesquisa de campo. A tipologia mais adequada para cumprir meus objetivos é de natureza híbrida com tendência qualitativa e abordagem cultural. As visitas ao São Gonçalo começaram em 2005. O primeiro contato foi com a moradora, Domingas Leonor da Silva, conhecida por seu envolvimento com a cultura local. Ela é uma das fundadoras do grupo folclórico, Flor Ribeirinha. Através dela fui procurar o presidente do bairro, Dalmi Lucio de Almeida. A principio, a idéia era realizar um vídeo com os moradores do São Gonçalo, onde os próprios ribeirinhos iriam roteirizar e gravar o que fosse do interesse deles sobre o bairro em que vivem. Para isso, o planejamento inicial previa a realização de oficinas onde eu daria lições preliminares da função da câmera e sobre a linguagem audiovisual. Os trabalhos deveriam se iniciar no final de 2005. Mas, na terceira visita ao bairro, o presidente da associação de moradores, Dalmi de Almeida, falou sobre a existência de fitas gravadas a seu pedido por jovens moradores do São Gonçalo, sobre o cotidiano daquele espaço urbano. Percebi, então, que tais registros dos moradores já continham o “olhar sobre si mesmo” que eu desejava investigar. Assim, resolvi dar a esta pesquisa um novo encaminhamento, partindo desse olhar de dentro do espaço São Gonçalo sobre as atividades deles mesmos, através dos registros em vídeo. Por outro lado, analiso o que os produtores culturais da cidade registraram em vídeo sobre essa mesma população, observando as aproximações e afastamentos entre os olhares interno e externo, do ponto de vista dos Estudos Culturais. 98 Nesse caminho metodológico a coleta de dados incluiu, então, além dos citados trabalhos pesquisados em bibliotecas, secretarias de cultura do estado e do município e produtoras de vídeo, a coleta das fitas gravadas pelo Seo Dalmi. No delineamento da pesquisa incluo a observação participante das conversas com moradores a fim de conhecer melhor o universo investigado, assim como a etnografia, descrevendo a realidade atual do bairro. Por fim, faço um tratamento analítico dos dados, através da análise dos processos de construção da cultura e das identidades, presentes nos registros audiovisuais feitos pelos moradores do São Gonçalo. 4.2 – Dois Vídeos sobre o São Gonçalo Vídeo 1 - ORA VIVA MEU SÃO GONÇALO, OI TORNA A REVIVA´ roteiro: Luiz Carlos Ribeiro direção: Kátia Meirelles, 2001. As primeiras imagens do vídeo mostram um lugar bucólico, calmo, com moradores em rede, outros na porta de casa, imagens do rio e animais . A trilha sonora entoa “Oi viva meu São Gonçalo oi torna reviva´”, enquanto vemos também imagens de cerâmicas, argila, fornos de barro e crianças. A narrativa é conduzida em primeira pessoa pelos entrevistados. São moradores e a pesquisadora Aline Figueiredo, que assina também a pesquisa do vídeo. Ainda na introdução, rapidamente, temos três depoimentos: a moradora Domingas Leonor diz: “o São Gonçalo faz parte da minha vida”. Depois outra moradora, Maria Conceição, diz: “eu me criei aqui e meu pessoal também”. Em seguida, vem Aline Figueiredo que afirma: “se quiser saber a história de Cuiabá é possível pegar um ônibus via São Gonçalo”. Fim da introdução. A primeira entrevista é com a moradora, Domingas Leonor. Ela fala sobre as ceramistas deixarem de ser artesãs para tornarem-se domésticas por causa da falta de apoio para continuar na atividade tradicional. Domingas reclama dos políticos, do governo, dos pesquisadores que estão sempre por lá e até dos turistas que vão ao São Gonçalo, mas não compram sequer uma peça de 99 cerâmica de cinqüenta centavos. Afirma que os moradores do bairro são explorados por essa gente. Ela lembra da enchente de 1974 e daqueles que ajudaram os ceramistas na época. Cita a professora Terezinha Arruda e Aline Figueiredo como as únicas pessoas que tiveram “dó das ceramistas”. Enquanto fala, Domingas aparece amassando a argila, depois moldando e criando uma cesta com um caju dentro. Na seqüência, vem o depoimento do artesão Clinio Moraes. Ele fala que já foi pescador, lavrador e marinheiro. Depois conta como virou artesão e que sua família só lida com o artesanato cerâmico. Esta primeira parte do vídeo destaca, em vários momentos, imagens de peças cerâmicas, uma das atividades mais famosas do local. A terceira entrevista é com a artista plástica e pesquisadora Aline Figueiredo. Ela é a personagem que várias vezes aparece no vídeo explicando a vida no São Gonçalo. No inicio, diz que a história de Cuiabá está ali. Depois, Aline afirma que a comunidade é festeira, característica que une os moradores. As festas possibilitam encontros para danças e cantos (siriri e cururu). Aline enumera as festas comemoradas no bairro: São Gonçalo, dia do Artesão (no mesmo dia do ìndio), dia das Mães, dia dos Pais, São João, São Pedro, Santo Antonio. Depois, aparecem imagens dos preparativos para a festa de São Gonçalo. Os homens pintando o salão, arrumando o aceiro para o churrasco, cortando lenha. Um outro grupo de moradores enfeitando o centro comunitário com bandeirolas. Crianças aparecem fazendo pandorgas. As mulheres carregando vasilhas, preparando bebidas e comidas. Aline continua seu depoimento, afirmando que os moradores desempenham vários papeis. Ora são ceramistas, ora são pescadores, ora são cantadores, enfim, que são vários personagens ao mesmo tempo. 100 Na seqüência, é dia, início da manhã. Moradores e músicos chegam para a festa de São Gonçalo. A trilha sonora utilizada na edição para acompanhar estas imagens é o Hino de São Benedito. Em seguida, vemos uma multidão guiada por Domingas e um cantador com viola-de-cocho. Os dois iniciam a cantoria com as seguintes estrofes da canção tema do Santo: Quando vós for a Bahia me traga um São Gonçalinho. Se não puderes um grande, me traga um pequenininho. A cantoria é repetida depois por todos os que acompanham a procissão. A cena seguinte é a chegada ao local da celebração, ainda com todos cantando a mesma música tema do Santo. Depois começa a missa. Destaque para o áudio natural da celebração, onde o padre pede a proteção de São Gonçalo a todos. Em seguida, vemos uma mesa recheada de salgados e doces típicos. Um chá com bolo que faz parte da festa. As imagens seguintes cortam a conexão com a comilança da manhã. A idéia é fazer uma passagem de tempo. Para isso mostra-se o rio Cuiabá, crianças soltando pipa, homens de bicicleta com varas de pescar, jovem carpindo e paisagens do lugar. Em seguida, ainda de dia, as imagens são de um grande churrasco. O preparo da carne nos espetos, churrasqueiros, panelas imensas de carne e os convidados comendo na festa. A seqüência traz imagens noturnas da festa de São Gonçalo. Fogos de artifício no céu. Entra uma entrevista com o morador Ivo Antunes que fala sobre a festa do Santo ser uma tradição. São Gonçalo é para Ivo o padroeiro do lugar e um santo milagroso. Ele diz que nasceu e se criou no local e não quer o fim dessa tradição. Então, aparecem pessoas beijando a bandeira do Santo e as danças ao redor do mastro erguido no meio do pátio do centro comunitário, ao som de viola-de-cocho e de mocho. Depois volta ao depoimento da Aline Figueiredo, afirmando que ali está o berço do falar cuiabano; que o local é uma fonte de cultura popular; que “a cidade precisa reconhecer isso”; ali está a raiz do povo mato-grossense: branco, negro e 101 índio. O vídeo encerra mostrando vários momentos da festa de São Gonçalo `a noite com as danças típicas. A trilha sonora utilizada no vídeo mistura o áudio ambiente dos rituais captados no lugar com outras canções pesquisadas. E´ um som desconectado das imagens, inserido na edição do vídeo. Na cena da chegada de moradores e músicos da banda `a festa, no inicio da manhã, as imagens são embaladas pelo Hino de São Benedito como anteriormente descrito. Nos créditos finais há a indicação desta melodia ao compositor cuiabano, Bolinha. Em outros trechos, o mesmo recurso é utilizado com as seguintes canções creditadas na ficha técnica: Cururu Siriri, Dança de São Gonçalo, Cuiabá Cidade Verde (Muxirum Cuiabano); Rincão Guarani, Fim de Baile, Mercedita (Helena Meirelles); Teu Lencinho (versão Delio e Delinhas). Leitura possível Aqui me parece indispensável responder a uma interrogação baseada nos estudos apontados por Hall (2004) sobre o sentimento do que significa ser do São Gonçalo? E também observar Woodward quando afirma que as identidades criam sentidos através “da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas” (2000, p.09). O vídeo de Kátia Meirelles apresenta elementos simbólicos que ganham diferentes significados pelo olhar dos moradores, o olhar da pesquisadora e o olhar da própria diretora do vídeo, uma vez que sua função é ordenar as imagens e entrevistas captadas dando sentido ao material audiovisual. De modo geral, o olhar de Kátia Meirelles é impregnado do sentimento de manter viva as tradições do local, ou seja, o artesanato cerâmico e a festa de São Gonçalo. As imagens da natureza, dos homens de canoa, dos moradores sentados a beira do rio conversando, a criança deitada na rede sob as copas das árvores frondosas, dos animais pelos quintais, são imagens que invocam um 102 comportamento típico daqueles ribeirinhos. De um lugar calmo, onde o tempo demora a passar, o que torna a localidade um paraíso. Já em seguida, o depoimento de Domingas Leonor traz a discussão da cultura popular para o plano do econômico e do político, mas com um certo sentimento de assistencialismo. Ela reclama da falta de apoio para que os ceramistas possam sobreviver do artesanato. E´ possível entender que sem o financiamento governamental as artesãs são obrigadas a deixar o ofício para trabalharem como domésticas. Ao afirmar que os políticos só aparecem no bairro São Gonçalo na época de eleição, Domingas mostra que os moradores percebem a intenção daqueles que não fazem parte do cotidiano do bairro. Ela fala de um sentimento de exploração do local por políticos e pesquisadores. Há na fala dela um tom de revolta. Mas observando de forma mais atenta é possível concluir também que a moradora faz na verdade um jogo de intenções. A fala de Domingas, aparentemente ingênua, logo se transforma na sua arma de contra ataque. Ela sabe que a divulgação do vídeo pode ser um meio das artesãs conseguirem o apoio que desejam. Domingas faz esse jogo, chegando mesmo a criar uma certa performance diante da câmera ao amassar o barro para fazer a cerâmica e no tom de voz utilizada. Domingas é uma liderança no bairro e faz questão de deixar isso claro no vídeo. Ela representa a fala da experiência imediata dos moradores. Domingas aparece à frente das cenas da procissão do Santo no dia da festa de São Gonçalo. E´ ela quem puxa a música, ao mesmo tempo em que toca o ganzá. Também aparece socando o pilão nos preparativos para a festa. O seu discurso revela que como liderança política do bairro ela anseia receber as benesses da sociedade. Aparece, então, no discurso de Domingas um distanciamento entre os anseios dos moradores e o descaso daqueles que estão do outro lado da cidade, onde se 103 encontra a cultura dos socialmente reconhecidos. Estaríamos, assim, diante de um embate entre a cultura de elite e a cultura popular. Ecléa Bosi (1985), em texto sobre a cultura das classes pobres, afirma que enquanto a cultura popular não está articulada com a cultura da elite ela é vista como “a outra”, como folclore, fonte da diferença. Estariam, assim, se defrontando dois grupos: o das realizações culturais significadas socialmente e um segundo cujas realizações só adquirem significado quando postas em oposição à cultura dominante. Domingas deseja ser reconhecida como igual pela diferença, ou seja, como representante do lugar que deu origem ao falar cuiabano e que mantém vivo os mais antigos costumes desta terra. Há aqui uma aproximação com as observações apontadas por Woodward (2000) quando afirma que a identidade é marcada pela diferença, ao mesmo tempo em que é uma construção simbólica e social. Dos quatro moradores entrevistados no vídeo, a fala de Domingas, Maria Conceição e Ivo Antunes apresenta o sentimento de pertença àquele lugar como uma marca da identidade local. Um traço de enraizamento observado por Ecléa Bosi (2004). Os três se referem ao fato de terem nascido e se criado naquele bairro. Para eles, os mais antigos, a comemoração da festa de São Gonçalo e a tradição do artesanato cerâmico funcionam como uma reação defensiva aos tempos modernos, no sentido de preservar a cultura ameaçada, como nos fala Hall (2004). Também aparece no vídeo a identidade do ceramista como uma marca do lugar. Este sentimento está presente na fala do morador Clinio Moraes que conta como se tornou um ceramista, uma vez que é esta identidade profissional que lhe garante o sustento e o da sua família. No vídeo, a representação da família ceramista está ancorada nas imagens de Seo Clínio trabalhando nas peças. 104 Domingas também reforça essa identidade, pois ela aparece amassando a argila e falando das dificuldades de se manter como artesã da cerâmica por causa da falta de apoio oficial. Já o olhar da pesquisadora Aline de Figueiredo traz novos elementos para reforçar as identidades locais presentes no bairro São Gonçalo. Local onde os moradores moldam a argila, fazem e tocam a viola-de-cocho, recitam versos, dançam e são festeiros. Ela afirma que os moradores desempenham vários personagens ao mesmo tempo. Ora na pesca, ora na lida com o barro; ora na dança, ora no canto. Nesse sentido é possível uma referência entre “personagens”, como afirma Aline, e as identidades fragmentadas, como invoca Hall (2004). A fragmentação das identidades desempenhadas pelos moradores do São Gonçalo todas ligadas a uma tradição. Mas a preocupação do vídeo, encarnada no discurso de Aline, de que a sociedade cuiabana e mato-grossense precisa reconhecer os valores do São Gonçalo, denuncia que essas mesmas identidades ligadas a uma tradição hoje estão ameaçadas ou em processo de transformação. Daí a necessidade de reforçar as identidades locais como reação defensiva aos avanços da urbanização de Cuiabá e, conseqüentemente, a entrada de novas culturas naquele espaço. Outro aspecto abordado é a devoção dos moradores. O vídeo é construído em torno da fé de homens e mulheres ao Santo milagroso e da tradição católica. Nesse sentido é interessante observar o que fala Arantes (1990) sobre cultura popular, quando afirma que práticas e concepções tradicionais são vistas, muitas vezes, como resquícios de cultura culta de outras épocas “filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas camadas da estratificação social”. (Arantes, 1990 p.16). Assim, a Festa de São Gonçalo, com o seu ritual de procissão, missa, o chá com bolo, o almoço e demais danças ao longo do dia e da noite, pode ser vista como o tradicional que está ligado a um passado da origem cuiabana. Então, enquanto 105 cultura popular, tal festejo se justifica por ser uma forma de preservar a suposta origem desse modo de vida dos ribeirinhos. Mas no aspecto da fé é importante notar ainda que em momento algum as falas dos entrevistados se referem ao aspecto religioso. A fé se justifica apenas pelas imagens do ritual da Festa, ou seja, o andor com o Santo, a missa, o beijo na bandeira do Santo, as velas acesas. Também é possível observar que o vídeo trabalha, superficialmente, a idéia de que o estar juntos é uma característica da identidade local no preparativo das festas. O que Araújo (1977, p15) chama de “coesão social”, despertada com as festas de santo, isto é, um espírito de cooperação. As imagens de homens e mulheres preparando as comidas, arrumando as bandeirolas no salão, pintando o lugar, realçam a idéia de que o trabalho é feito em mutirão, com a participação dos antigos e dos mais novos também, mesmo que estes estejam mais interessados na fabricação de suas pipas ou pandorgas. Há ainda a observar, a presença marcante da artista plástica e pesquisadora Aline Figueiredo. Ao pontuar o vídeo, explicando o modo de vida daqueles moradores, Aline funciona como a personagem culturalmente superior cuja tarefa é interpretar o sentimento dos moradores do São Gonçalo para os espectadores. Mas, ao mesmo tempo, Aline não representa o ser “culto” que se contrapõe ao que é considerado “popular”. Pelo contrário, a artista legitima o saber popular para a sociedade que vai assistir ao vídeo, mostrando-se afetuosa e aliada dos ribeirinhos. Na sua fala final ela reivindica o reconhecimento da sociedade “culta” ao São Gonçalo como berço do falar cuiabano. Nesse ponto, destaca-se um fator marcante para a identidade local: a língua. Silva (2005) nos lembra que a língua faz parte do processo de fixação de 106 uma identidade. Ao ser referir a forma peculiar como os ribeirinhos falam15, Aline estabelece uma raiz para esse linguajar típico. Este, fruto de um hibridismo, uma miscigenação ligada `a colonização mato-grossense entre índios, portugueses, espanhóis e africanos. Podemos concluir, então, que o vídeo tem sua narrativa pontuada por duas personagens centrais. De um lado, Domingas Leonor, a moradora que representa a fala da experiência imediata do São Gonçalo. Do outro, Aline Figueiredo é uma espécie de voz do saber que não está ligada a experiência, mas sim a pesquisa, a observação antropológica de quem visita o lugar, constantemente, e conhece seus moradores. Domingas, a ceramista, está ligada ao “fazer”. Aline, a pesquisadora, ao “saber”. Como nos ensina Bernadet (2003) as imagens do vídeo em análise não podem ser consideradas uma expressão dos moradores do São Gonçalo, mas sim uma manifestação da relação que se estabelece entre produtores, pesquisadores , videastas e o povo do lugar. Vídeo 2 - O BAIRRO PERDIDO DO SÃO GONÇALO roteiro e direção: Marcelo Okamura, 2001. O vídeo começa com imagens da fachada do Museu do Rio e de bandeirolas penduradas. Em efeito visual aparece a logo do governo do Estado. Depois, uma bandeira do Brasil. Da bandeira sai em efeito a bandeira de Mato Grosso e, novamente, em efeito, a logomarca da Lei de Incentivo `a Cultura. Aparece, então, a imagem de uma menina manuseando o barro, criando uma peça em cerâmica. Outro efeito visual e, desta vez, do meio da peça sai a logomarca da Secretaria de Cultura. Depois mostra-se um homem fabricando um 15 Heug (2000, p.49) faz uma análise dessa peculiaridade do falar dos ribeirinhos, exemplificando assim: “a pronúncia do j, g, x e ch, antes de vogais tem o som de dj, dg tx e tch, a exemplo de adjuda, dgente , tchão”. 107 jacá. Das tranças de palha sai a logomarca do patrocinador, a Telemat. Todo esse trecho ao som de uma canção tocada na viola-de-cocho. Fim da introdução. O vídeo começa com a voz off16 da moradora Domingas Leonor da Silva, apresentando o local, ao som de músicas de cururu e siriri. As imagens que acompanham a voz de Domingas destacam o rio Cuiabá e sua paisagem. Domingas, em off, fala que o lugar tem o rio e os ceramistas. Ela fala sobre a pesca e a cerâmica como duas atividades essenciais do São Gonçalo, citando moradores ilustres do local e seus ofícios. Para Domingas eles são os maiores artesãos de Mato Grosso. Corta. Em seguida, aparece um pescador que caminha até a beira do rio, arruma a canoa, tira a água empossada de dentro da pequena embarcação e sai pelo rio Cuiabá para mais um dia de pesca. Corta. Na próxima cena vemos Domingas. Ela está diante de um altar com santos. Uma das imagens, grande e ao fundo, é a de São Benedito. Domingas diz que o bairro São Gonçalo é a vida dela. Que ali todos formam uma família, são todos parentes. Ela fala que trabalha pela “comunidade”, que essa é a vida dela. O depoimento de Domingas continua, mas volta a ser uma voz em off, falando sobre o trabalho de ceramista, enquanto vemos outro morador, seo Cândi, lixando um vaso grande no colo e imagens de um forno de barro. A voz off de Domingas segue, afirmando que o trabalho dos ceramistas é manual, “puro”. Que jamais ela vai trocar esse ofício por técnicas modernas porque seu desejo é que o São Gonçalo continue do jeito que é. O depoimento seguinte é de seo “Cândi”, Candido Manoel da Silva, que fala sobre suas atividades. Ele conta que a arte da cerâmica vai passando da gente 16 Voz off é empregada aqui, no sentido telejornalístico, como a voz de um entrevistado que não aparece na imagem mostrada. 108 velha para a gente nova. Ele começou no ofício aos 15 anos e está com 60 anos. Seu cândi diz que pesca numa época do ano e na outra faz cerâmica, quando o pescado fica escasso. A imagem mostra o forno de barro e as peças sendo retiradas após a queima. Depois ele fala de siriri e cururu. Que é uma tradição e que enquanto ele “tiver perna vai continuar farreando”. Volta-se a mostrar as cerâmicas.Tudo ao som de músicas cantaroladas por violeiros e cantadores do local. Sobressaem as seguintes estrofes: Quem quer ver mulher bonita vai na casa de capim Na casa de teia tem mas não é bonita assim... Em seguida, vemos um homem limpando um peixe e, então, mostra-se o jacá, o cesto típico dos ribeirinhos que era usado para guardar o peixe vivo dentro do rio. Entra entrevista com o pescador Expedito Valdir da Silva. Ele diz que desde criança gostou do ramo ao qual foi acostumado junto com o pai. Do avô herdou a arte de fazer o jacá. Ele fala que o cesto não é mais utilizado como antigamente; que ele só faz a peça por encomenda para exposição, mas que os pescadores não usam mais no rio porque “o peixe some no outro dia” (referência ao furto de peixes). Corte. A próxima cena é uma roda de viola-de-cocho em baixo de uma árvore, onde está um trio de dois senhores e uma senhora. Eles cantam as seguintes estrofes: Passarinho verde só Maracanã Vestido de seda só pra me assanha´ A entrevista agora é com Gerônimo Rodrigues de Arruda, um desses senhores, que conta sobre o seu contato com o instrumento, desde a infância na zona rural, em Mimoso, antes de mudar para a cidade. Ele fala sobre o uso do instrumento nas danças típicas como o siriri, nas rodas de cururu e na festa de São Gonçalo; que a viola-de-cocho é um divertimento sadio que o acompanha desde a infância. Seo Gerônimo conta que deixou a roça para dar estudo a seus filhos, instrução que ele e a mulher não tiveram. Agora, 36 anos depois de vir para 109 a cidade, gostaria de voltar para a roça, onde acha que tem mais fartura. Mas não tem como porque os filhos estudaram e não querem deixar a cidade. Geronimo afirma que não esquece da viola-de-cocho e que sente a necessidade de “uma pessoa grande” se interessar por ela porque a viola é muito boa. A fala de Gerônimo é interrompida pelo depoimento de Maria Joana da Silva que completa a frase do amigo: “pra viola não acabar”. Ela diz que hoje o instrumento é mais usado em baile do que no cururu. Joana conta que cresceu em roda de siriri e que gosta de escutar as cantorias e participar das danças típicas. Depois é a vez do artesão Clínio de Moura ( no outro vídeo ele é creditado como Clinio Moraes) que conta como se tornou um ceramista (a mesma história contada no vídeo anterior). Ele fala sobre a venda de peças, atividade difícil no início dos anos 1970, quando só amigos da Universidade e do governo compravam o artesanato. Segundo Clinio, a divulgação melhorou com a criação da Casa do Artesão em 1975. Aí ele ficou conhecido e melhorou sua situação financeira. Sua família, então, voltou-se ao trabalho. Toda a entrevista é dada enquanto trabalha fazendo um peixe de cerâmica. Em seguida volta a voz off da moradora Domingas Leonor, dizendo que a cerâmica é a sobrevivência da comunidade; que é um trabalho artístico passado de pai para filho e que eles hoje têm o dever de continuar a tradição; que é preciso preservar tais costumes. Enquanto isso, vemos imagens de peças de cerâmica de jacarés, galinhas e potes – e imagens de São Gonçalo. A fala em off de Domingas termina com a moradora dizendo que recebeu essa herança da avó, mas que nem todos preservam e que ela tem medo que isso acabe. Enquanto isso, aparecem imagens do preparativo de um andor e de São Gonçalo. Vemos imagens noturnas da procissão do Santo pelas ruas do bairro do Porto e a chegada até o Museu do Rio. Lá o grupo folclórico encena trechos do ritual da festa de São Gonçalo e apresenta danças típicas ao som de “olha viva 110 meu São Gonçalo, oi torna reviva´”. Depois de vários momentos da dança no Museu do Rio volta a imagem para a Domingas falando que o bairro está sendo esquecido pelo povo. O vídeo termina com o trio de velhinhos cantando ao redor de uma rede, onde um deles está sentado e tocando viola-de-cocho. A senhora em pé canta: a lua clareia e o sol alumeia menina caçando amor que não bambeia Os letreiros finais expressam a necessidade de preservar a cultura local com os seguintes dizeres: “agradecimento especial `a toda a comunidade do bairro São Gonçalo pela preservação da cultura matogrossense”. Leitura Possível O vídeo de Marcelo Okamura, como o de Kátia Meireles, expressa o mesmo sentimento de preservação de uma cultura popular. A manifestação dos ribeirinhos - no trato com o artesanato, a pesca, as cantorias e danças - aparece como representações do folclore cuiabano. Assim, para cada manifestação cultural o vídeo trabalha com um elemento simbólico da cultura local: para o artesanato, a cerâmica. Para a pesca, o jacá. Para o siriri e o cururu, a viola-decocho. Neste vídeo o único olhar externo ao São Gonçalo é o do próprio videasta. A narrativa é pontuada pelos depoimentos dos moradores que vão esclarecendo sobre as transformações nos costumes do lugar. O videomaker Marcelo Okamura é mais explícito ao provocar o espectador, no sentido de mostrar o São Gonçalo como um bairro esquecido que corre o risco de desaparecer com suas tradições. O “berço da cuiabania” é retratado com nostalgia. Esse sentimento está presente nas falas de seus moradores, a maioria mulheres e homens idosos, que falam com verdadeira devoção ao lugar. 111 Como no vídeo anterior, o sentimento de pertencer ao bairro é mostrado como uma identidade dos moradores. Quando fala com orgulho sobre os ceramistas, Domingas introduz a outra identidade do São Gonçalo, como o lugar que possui os melhores artistas do ramo. Na sua fala ela não admite que haja transformações no fazer desses artistas, situando a arte dos ceramistas como “pura”, “manual”, sem interferência das tecnologias modernas. Neste ponto observamos uma aproximação com o que diz Woodward (2000), quando aponta que a identidade reivindica um essencialismo sobre quem pertence ou não a um determinado grupo identitário, no qual “a identidade é vista como fixa e imutável” (Woodward, 2000, p13). É´ como se Domingas quisesse congelar o tempo, impedir as transformações do cotidiano nos costumes locais. Na fala dela não há lugar para o futuro, só para o passado “como forma de preservar uma suposta origem daquele modo de vida” (Arantes, 1990, p.16). Mas o próprio vídeo mostra a interferência dos novos tempos nos costumes locais. O pescador Expedito esclarece que o jacá não é mais um utensílio do pescador porque pessoas de fora do bairro furtavam o peixe que ali ficava (essa explicação é bem superficial no vídeo. Só fica clara para quem conhece o bairro). Então, hoje o pescador não usa mais. A fabricação do objeto ganhou um novo significado como peça de exposição. E´ feita sob encomenda para o consumo do turista, portanto, com um valor de troca. O mesmo sentimento de transformação está nos depoimentos do trio de velhinhos sobre a viola-de-cocho. Seo Gerônimo e Dona Joana afirmam que o instrumento agora é usado para animar os bailes, mas estão cada vez mais raras as rodas de siriri e cururu que eles viveram tempos atrás. Os dois exemplos confirmam o que diz Arantes (1990), quando observa a dinâmica cultural da sociedade. Para o autor 112 é possível a preservação de gestos, objetos, palavras e características plásticas exteriores, mas os significados se alteram no contexto da produção cultural. A fala de Seo Gerônimo traz um outro elemento interessante. Ele diz que deixou a roça para viver na cidade para dar instrução aos filhos. A personagem quer voltar para o lugar de onde veio, mas não é possível o retorno por causa dos filhos que aprenderam na cidade um novo modo de vida. Em Eclea Bosi (1996) é possível observar como a busca de instrução subverte a cultura do próprio povo. "A concepção de cultura como necessidade satisfeita pelo trabalho da instrução leva a atitudes que reificam, ou melhor, condenam `a morte os objetos e as significações da cultura do povo porque impedem ao sujeito a expressão de sua própria classe” (Bosi, 1996, p.17). O vídeo deixa que os próprios moradores expressem os seus costumes. Ao contrário do vídeo de Kátia Meirelles, não há uma personagem externa áquele ambiente para explicar o cotidiano dos moradores do São Gonçalo. A voz do “saber”, o outro, esta´ligada ao próprio autor do vídeo na montagem do material, na organização dos depoimentos, criando sentido `a historia. Mesmo que os dois vídeos sejam carregados de um sentimento de preservação da cultura popular do bairro São Gonçalo há uma diferença entre eles neste sentido. Enquanto Kátia Meirelles legitima sua posição através da personagem de Aline Figueiredo, Marcelo Okamura deixa explícito seu sentimento a favor da preservação das tradições locais no letreiro final. No depoimento do Seo Gerônimo chama a atenção o fato do velho violeiro reivindicar o apoio, ainda que implícito, de uma “pessoa grande” para ajudar na preservação da viola-de-cocho. A expressão “pessoa grande” pode ser entendida como alguém ou instituição de fora daquele ambiente, mas com prestígio 113 suficiente na sociedade mato-grossense para legitimar o que ele e seus amigos consideram como um caráter essencial, que é a sobrevivência da viola-de-cocho. Seo Gerônimo reivindica um reconhecimento da sua cultura, a popular, por parte do outro, a elite. Para ele a viola-de-cocho merece apresentar-se como uma “realização cultural” com um “significado social”, aspectos geralmente considerados apenas nas atividades ligadas `a cultura dominante. “Enquanto não articulada com a nossa, aquela cultura é a outra para nós, o folclore, a fonte vital do diferente”, afirma Bosi (1996, p16). Nesse sentido, o que Seo Gerônimo deseja é uma articulação entre a cultura dele e a outra, o que retiraria da cultura popular o seu caráter de diferente. O depoimento de Seo Cândi fala sobre dois tempos: o da pesca e o do artesanato. Essa divisão em ciclos é encontrada em culturas rurais do Brasil ou áreas pobres das cidades, afirma Alfredo Bosi (2004). A fala do morador revela essa dimensão cíclica presente nos costumes de quem vive no bairro São Gonçalo. A pesca e a cerâmica são atividades reforçadas pela memória coletiva do lugar e adquire valor num constante ir e vir. O depoimento do Seo Clinio põe em discussão a dimensão econômica do artesanato cerâmico. Quando fala das peças que fabrica, do envolvimento da sua família com a melhora das vendas, do que os turistas mais compram, ele comprova o que outras vezes foi observado sobre as mudanças de significação ocorridas com o tempo. A cerâmica, que foi utensílio de uso diário, hoje é objeto de ornamentação. Houve uma alteração no seu valor simbólico como resultado do processo de urbanização da cidade e da expansão do capitalismo. O vídeo termina com uma encenação no Museu do Rio dos rituais da festa de São Gonçalo. Neste ponto é possível interpretar como as transformações sociais operam no interior das culturas populares. O fato de encenar os rituais aponta 114 para uma ressignificação das danças e cantorias, deslocadas do seu ambiente natural. Assim, torna-se espetáculo para o turista, para o de fora daquela cultura, para o outro, ao mesmo tempo em que, aos olhos externos, o ritual é visto como mera curiosidade, reforçando o distanciamento do popular ao erudito. Segundo Ecléa Bosi (2004) o espetáculo é a forma como o capitalismo se apropria do popular, subvertendo o seu caráter original de enraizamento. Até o fato de a encenação ter como palco um “Museu do Rio” pressupõe a condição de que o que está sendo visto pertence a um passado e dessa forma só pode ser visto como folclore. 4.3 – O olhar ribeirinho A análise a seguir é uma forma de oportunizar reflexões acerca dos textos em vídeo produzidos sobre o São Gonçalo, na ótica dos moradores. Este trabalho partiu das conversas com o presidente do bairro, Dalmi de Almeida, durante visita feita ao local em 2006, quando dos preparativos para a festa de São Gonçalo que acontece no dia 10 de janeiro. Sentados `a beira do rio Cuiabá numa tarde da semana, `as vésperas da festa, foi que Seo Dalmi me contou sobre o costume dele de registrar em vídeo as atividades festivas dos moradores. Até então eu desconhecia a existência dessas imagens. Ele disse ainda que deixou de fazer as gravações porque o equipamento está com defeito. Indagado sobre quem faz as imagens, ele respondeu apenas que é “os meninos, a moçada mais jovem” sem alongar a resposta. Por várias vezes tentei em vão conseguir essas imagens. Somente em Abril de 2006, tive finalmente acesso ao material. São dezesseis fitas em formato VHSCompacto ou VHS-C, como é mais conhecido. As fitas ficam guardadas na casa do Seo Dalmi. Ele contou que nunca foram exibidas para os moradores. O 115 material captado não possui uma identificação apropriada, o que dificulta precisar a época de sua realização. Mas a maioria dos registros identificada é dos anos de 1999 e 2000. Eu assisti `as imagens, pela primeira vez, junto com o Seo Dalmi - ele gentilmente me recebeu em sua casa em abril de 2006. Aos poucos fui entendendo o enredo daquelas imagens. Trata-se de registros em estado bruto, isto é, sem ter passado por processo de edição, contendo atividades dos moradores em momentos festivos. Assim é possível ver imagens sobre uma manhã de limpeza no rio Cuiabá (campanha Salve o Peixe, Salve o Rio Cuiabá); Festa do dia das Mães; Festa do dia dos Pais; Festa de Natal; Festa de São Gonçalo; Dia das Crianças; Mutirão e Horta Comunitária; Dança de Quadrilha; Gincana em 1999; Encontro de Ciriri (sic); Futebol; Reunião, Inauguração de Barragem; viveiro. Cada fita tem em média trinta minutos de gravação. Diante de vasto material e a impossibilidade de analisar tudo, o questionamento seguinte foi sobre como escolher aqueles registros mais significativos para esta pesquisa. Escolhi analisar as imagens sobre a festa de São Gonçalo e sobre a limpeza do rio Cuiabá. A primeira por permitir traçar um paralelo com os vídeos sobre o SG que também enfocam a festa e a devoção dos moradores. A segunda opção por se tratar da preocupação com o meio ambiente, algo que também é descrito nos trabalhos acadêmicos sobre o São Gonçalo. Na análise, primeiro descrevo as imagens desses vídeos e depois faço a leitura sobre o texto videográfico com aporte nos Estudos Culturais. O São Gonçalo hoje é um bairro integrado a cidade de Cuiabá. Sua principal via de acesso está asfaltada até o local onde se localiza o restaurante Regionalíssimo. A pavimentação foi entregue `a população em 2003 pelo governo estadual. Segundo o presidente da associação de moradores, Seo Dalmi, a luta 116 junto aos políticos ainda é o asfaltamento de mais 500 metros de estrada de chão no bairro e melhorar o transporte coletivo, pois são poucos ônibus e sem linha direta para o centro de Cuiabá. Boa parte da população trabalha na cidade. As hortas comunitárias não existem mais, segundo o Seo Dalmi, por desinteresse dos moradores em fazer o cultivo de forma coletiva. Muitos ainda pescam, mas não é uma atividade econômica determinante para o sustento de todos os ribeirinhos. È´ comum ouvir dos moradores queixas sobre a escassez do peixe nas águas do rio Cuiabá. Ao longo da rua principal do bairro, muitas casas mantêm na entrada a placa informando sobre a venda de cerâmicas, objetos que podem ser encontrados também na “loja” do artesão, aberta no bairro em 2003, ao lado do restaurante Regionalíssimo. Turistas e moradores de Cuiabá vão ao local para almoçar e, muitas vezes, compram souvenires do artesanato expostos `a venda. Segundo os moradores, a “loja”, situada no centro comunitário, deu um novo impulso `a produção de artesanato. Famílias que haviam abandonado o ofício voltaram a produzir pelo aumento da demanda. Com o apoio do Sebrae os ceramistas do São Gonçalo estão introduzindo novas técnicas que permitem ampliar a produção e melhorar a qualidade. É o caso de formas de gesso que ajudam a padronizar as peças para o mercado consumidor. Os moldes diminuem o tempo de produção, mesmo com o acabamento ainda sendo feito manualmente. O resultado é o aumento das encomendas. Algumas chegam a cinco mil peças, o que significa uma média dois meses de trabalho. Dona Alice, que coordena a venda de peças na loja de artesanato, diz que o consumo de cerâmicas fez com que muitos jovens se interessassem pelo ofício dos pais e avós. A motivação vem pelo fator econômico por causa do aumento das vendas. 117 Com o aumento da produção os ceramistas necessitam de mais argila. A forma tradicional de extrair a matéria prima, descendo o rio de canoa, não é suficiente. Segundo os moradores esta modalidade acontece ainda, mas de forma esporádica. A associação de moradores consegue argila com os empresários das cerâmicas da cidade. Uma “tombeira” é suficiente para meses de trabalho dos artesãos. Segundo o seo Dalmi, ao ano são quatro “tombeiras” que descarregam o material nas casas dos ceramistas. Também percebe-se no local um interesse comercial por peixarias, que começam a aparecer ao longo do rio, na avenida principal do bairro. Algumas casas estão se adaptando como restaurantes especializados no cardápio, como já acontece do outro lado do rio Cuiabá, nas localidades de Bom Sucesso , Praia Grande e Passagem da Conceição, no município de Vázea Grande. Recentemente, a prefeitura de Cuiabá anunciou um projeto de incentivo ao turismo que prevê a construção de um planetário indígena no São Gonçalo, num local conhecido como “caminho das estrelas”. E também a construção de um monumento em homenagem ao encontro das águas do rio Cuiabá com o Coxipó. Vídeo 1 – Festa de São Gonçalo Ano de produção: 2000 O vídeo começa com uma procissão ao longo da estrada de acesso ao bairro ainda sem asfalto. A tomada é feita em Plano Geral (PG), localizando o lugar. A mesma tomada fecha-se em Zoom17 até a imagem do santo, que está num andor carregado por quatro pessoas. Nessa tomada é possível ver as duas da frente. Como a câmera está à longa distancia da procissão, o uso da Zoom faz 17 A Zoom é um falso movimento de câmera, através da mudança de ângulo de visão da objetiva da lente, dando a sensação de aproximação ou afastamento de um objeto focalizado. 118 a imagem tremer, não fixando-se exatamente sobre o santo. Mas parece ser essa a intenção. É possível observar também a presença de um cinegrafista de um canal de televisão local (TV Record), fazendo imagens bem próximo a multidão. (corte) Novamente, a estrada é vista em Plano Geral18. Um leve movimento panorâmico à esquerda e volta-se a abrir em Zoom, mostrando a procissão em PG. (corte) Agora mostra a procissão de perfil tendo ao fundo o rio Cuiabá. A imagem mostra crianças e jovens; homens e mulheres carregam o santo. A moradora Domingas, figura conhecida no meio cultural local, vai à frente tocando ganzá acompanhada de um homem tocando viola-de-cocho. O cortejo é acompanhado por uma banda e por pessoas que soltam fogos de artifício. Os presentes usam “roupas de festa” isto é, nota-se que estão produzidos para a procissão. A câmera se aproxima em Zoom das pessoas que carregam o santo e rapidamente volta-se a abrir para PG. (corte) No plano seguinte, a banda pára de tocar. Quem entoa a canção agora é Domingas e o violeiro. O som não é captado com clareza, mas é possível entender a seguinte estrofe: “quando voltar da Bahia me traga um são gonçalinho”. A estrofe é repetida pela multidão que canta e bate palma sincronizada com a batida da viola-de-cocho. (corte) Na tomada seguinte, a câmera mostra a procissão chegando a associação dos moradores, onde vai se celebrar a missa. (corte) Durante a celebração as tomadas são na maioria em Planos Abertos19, movimentos Panorâmicos20 e alguns movimentos de Zoom, sem exatamente aproximar em Close. Ouve-se o padre falando e as orações dos fiéis entrecortadas por músicas de louvor a Deus. (corte) 18 Na nomenclatura clássica para vídeo, em Santos (1995), o PG representa o enquadramento feito de corpo inteiro com destaque para o ambiente da ação. 19 O mesmo que Plano Geral, destacam o ambiente da ação. 20 Nos movimentos panorâmicos a câmera gira em torno do eixo do seu tripé na horizontal ou vertical. 119 Numa outra tomada aparece o presidente do bairro, Dalmi de Almeida, falando para os fiéis. Enquanto fala, a câmera percorre o ambiente em Pan e fecha em Zoom numa imagem de São Gonçalo. Depois retorna até Dalmi. Ele diz o seguinte: “... e pedir a Deus uma benção pra todos eles. E que ano que vem, se Deus nos der saúde, pra que nós pudermos estar aqui mais uma vez orando ao nome de nosso senhor Jesus Cristo e de São Gonçalo aqui na nossa comunidade. Nossa intenção como presidente da associação é divulgar a nossa comunidade e fazer com que ela cresça; e que as crianças passem a gostar daquilo que é a cultura que é o artesanato que é a vida da comunidade. Porque o dia que acabar a cultura, o artesanato, acaba o São Gonçalo. E também deixar uma mensagem para essas crianças, esses jovens que seguem ... ( não dá pra entender) esses mais velhos de luta pela nossa cultura e crescimento do nosso bairro e desenvolvimento. E pedir a Deus que abençoe todos nós”. (corte) Ainda na celebração as imagens mostram outras pessoas fazendo agradecimentos, enquanto a câmera passeia em Close sobre o altar, onde se encontra a imagem de São Gonçalo. Novamente os fiéis passam a cantar para São Gonçalo e bater palmas. A câmera passeia pelos fiéis e em Zoom fecha até a imagem do santo. (corte) Em seguida, vem o chá com bolo. A imagem mostra a mesa farta e as pessoas comendo. Vê-se equipes de TV colhendo imagens também. Noutra tomada vê-se a banda tocando, enquanto as pessoas encostadas num muro estão comendo. O cinegrafista mexe com um casal que está próximo ao muro. O casal tenta se esconder da câmera. Em outra tomada, o cinegrafista ,agora na rua, pede aos moradores que sorriem e falem alguma coisa para a câmera. As pessoas olham meio desconfiadas. (corte) A tomada seguinte é feita`a noite. Aparecem violeiros tocando e cantando cururu enquanto mostra a imagem do santo. Novo plano aberto de tocadores. Em seguida plano de pessoas segurando velas seguindo em Pan e Zoom dos presentes. Aparece a cova, onde será fincado o mastro com a bandeira do 120 santo21. Seo Dalmi e Domingas amarram a bandeira de São Gonçalo na ponta do mastro enquanto os cururueiros tocam. Vê-se então, em um novo plano, a figura de um menino, de cinco anos aproximadamente, tocando ganzá. A câmera aproxima dele em Zoom (mais tarde descobri que o menino chama-se Marcelinho). Mostra-se outros meninos segurando velas. Em seguida, a colocação do mastro erguido no meio do salão da associação dos moradores. Na próxima tomada os presentes formam uma fila e seguram velas. A câmera passeia entre o público. As mulheres dançam e batem palma. A fila segue até um canto do local onde está uma mesa com a imagem do santo. Eles entoam cantos a São Gonçalo. Noutra tomada, aparece uma roda interna de mulheres dançando e cantando e por fora uma outra roda de homens tocando viola de cocho, ganzá e batendo palmas. FIM. Vídeo 2 – Limpeza do Rio Ano de produção: não identificado O vídeo começa no cartaz onde está escrito “Socorro... Preciso continuar vivendo – Rio Cuiabá”. Depois a câmera mostra outro cartaz onde se lê: “Rio Cuiabá... Essência da Vida”. Em seguida aparece em plano fechado sacos plásticos com alevinos dentro. Os sacos estão dentro de um caminhão. A câmera passeia entre os sacos em Pan. Na tomada seguinte aparecem crianças seguindo em direção ao rio, todas com camisetas da campanha “Salve o Peixe Salve o Rio Cuiabá”. As crianças carregam sacos e elas são mostradas retirando entulhos, lixos e sujeiras da beira do rio e depositando nos sacos. Em seguida vê-se o lixo amontoado com as crianças em volta. Aparece, então, mulheres e crianças alegres dançando e requebrando. Na tomada seguinte vê-se em Plano Geral crianças caminhando ao longo de um estrada de terra. Elas vêm com uma faixa na frente escrita: ”Rio Cuiabá e Coxipó: Patrimônio Cultural Ecológico. Preserve-o 21 Segundo pesquisa de Haug (2000), a cova é chamada de Sepultura de Jesus, ou no linguajar típico dos ribeirinhos sepurtura de jesuis. 121 (sic)”. Mais uma tomada em PG da caminhada. Nesse ponto descobre-se que as crianças são alunos de uma escola e estão acompanhadas de professores. Noutra imagem aparece o político Murilo Domingos, idealizador da campanha de preservação, chegando ao local. Em seguida mostram-se as crianças em fila para pegar o lanche na associação de moradores do São Gonçalo. Depois várias tomadas das crianças comendo e bebendo. As cenas seguintes são externas. Os presentes estão aglomerados e ouvem os discursos de autoridades. A câmera está longe, num ponto superior e não mostra muito as pessoas. Tenta focar apenas aqueles que discursam. Seu Dalmi, o presidente do bairro, fala que a comunidade vive do peixe e do artesanato; que as crianças devem defender a natureza para preservar o futuro. Na sua fala identifica-se a escola cujos alunos, da 1ª a 4ª séries, estão ali naquela atividade. É´o colégio Hermelinda de Figueiredo, do bairro Cophema. Aparece, então, outro morador discursando pela preservação. As professoras também discursam agradecendo. Por último fala o político. Ele conta sobre como surgiu a campanha Salve o Peixe Salve o Rio; que está empenhado em trazer mais recursos de Brasília para investir na preservação do local e faz agradecimentos. Em seguida aparecem as crianças plantando árvores na região e depois os peixes no rio. FIM Leituras possíveis As imagens dos dois vídeos têm um caráter documental, uma vez que se enquadram como registros de uma realidade com sentido informativo, não ficcional. O primeiro vídeo capta uma manifestação popular que se repete no bairro São Gonçalo todos os anos. O segundo enfoca um problema ambiental com conseqüências sociais.`A princípio, é possível notar que os vídeos não apresentam uma preocupação formal com a linguagem. Sua intenção é registrar um acontecimento, utlizando-se de um aparato técnico que hoje não está restrito ao uso de profissionais. Nesta análise, detive-me ao seu caráter temático – na relação entre o discurso verbal e/ou não-verbal - e menos na forma como esse 122 discurso é construído. Mesmo porque as imagens apresentam-se em estado bruto, sem ter passado por processo de edição e pós-produção. Bernadet (2003) enfoca o problema do documento visual em estado bruto “como se um fragmento da realidade tivesse sido transportado sem elaboração do mundo para a tela” (Bernadet, 2003, p.285). O autor afirma, em seguida, que a noção de fragmento bruto é discutível. Para ele o melhor seria dizer “fragmento da cotidianidade” que pouco elabora e apronta, referindo-se a imagem em movimento quando se torna espetáculo. Quanto aos paradigmas da produção de imagem, o registro em vídeo enquadra-se no paradigma fotográfico, pois são “imagens produzidas por conexão dinâmica e captação física de fragmentos do mundo visível, ou seja, imagens que dependem de uma máquina de registro e que implicam necessariamente a presença de objetos e situações reais preexistentes ao registro” (Santaella, 2002, p.112) A própria condição do vídeo como suporte de captação de imagens que se presta ao registro em movimento – para diferenciar-se da fotografia tradicional dá conta do caráter referencial que lhe cabe, no sentido semiótico. Portanto, a imagem videográfica documental22 é o real em um tempo passado. O primeiro vídeo, sobre a Festa de São Gonçalo, apresenta alguns elementos que merecem ser destacados: a procissão, a missa, o chá com bolo, a fincada do mastro à noite, os instrumentos musicais. É´ a partir deles que seguirei minha análise. A procissão e a missa são momentos em que se observa a representação da fé dos moradores ao padroeiro do local. E´ durante a procissão que escutamos a 22 Falo em imagem videografica documental porque é possível produzir imagens videográficas não documentais, de forma sintética, através da computação gráfica que se enquadram no paradigma pós-fotográfico. 123 entoação da música tema da festa, o canto a São Gonçalo. A toada é acompanhada de ganzá, viola-de-cocho e das palmas do cortejo. Há momentos em que o ritual torna-se um unívoco, um coral, que ora dá vivas a São Gonçalo, ora repete as estrofes do canto ao Santo, ora bate palmas no ritmo da música. Esse é um ritual de enraizamento, como nos fala Ecléa Bosi (2004), uma vez que constituí-se em cantos, gestos e toques de instrumentos que guardam a memória dos antigos moradores. Quem participa da procissão revive um costume do passado. “Sentimento enraizador e portador de esperança é cantar de novo os cânticos das festas comunais. Um dos atrativos desses hinos é a convicção de que os homens de ouros tempos assim os cantaram” (Eclea Bosi, 2004, p.39). A celebração é o momento em que os fiéis se juntam para agradecimento, regozijo e pedidos de proteção. Mas é possível observar na fala do presidente do bairro, Seo Dalmi, que a missa é momento também para outras reflexões dos ribeirinhos. No trecho em que ele aparece falando aos fiéis, o líder local diz que sua intenção como presidente do bairro é “divulgar a comunidade e fazer com que ela cresça”. Percebe-se, então, a importância da imprensa estar presente na Festa. Para Dalmi a imprensa representa esse “divulgar” que ele acredita ser necessário para a perpetuação do bairro de São Gonçalo. Então, é possível afirmar o que Martin-Barbero (1995) observa sobre o entrelaçamento entre a cultura popular e a cultura de massa. Uma necessita da outra num jogo de interesses. Essa condição parece ser indispensável na Contemporaneidade. Por trás do fato de se fazer a Festa, de se reviver a tradição, há os interesses ocultos entre as próprias lideranças locais. A divulgação da Festa na imprensa representa, pelo menos para o Seo Dalmi, que a associação de moradores está trabalhando para a perpetuação dos costumes do bairro São Gonçalo. Seo Dalmi ainda diz na sua fala, durante a missa, que é preciso fazer com que as crianças admirem o que é a cultura do lugar ligada ao artesanato cerâmico, 124 sob pena de se acabar o bairro. Ou seja, os moradores antigos do São Gonçalo acreditam que a sobrevivência do local está ligada aos costumes dos seus antepassados que vêm se transformando com o passar dos anos, mas que ainda permanecem vivos. Então, a mesma televisão que interfere nos costumes locais produzindo novas formas de percepção do cotidiano é o meio de comunicação que pode ajudar os moradores a perpetuar a tradição da Festa de São Gonçalo. Há um paradoxo nessa posição que representa o paradoxo da cultura hoje. Araújo (1977) observa que as festas populares têm como características uma coesão grupal, um sentido de cooperação entre homens e mulheres que se unem, principalmente, nos momentos dos preparativos. O autor afirma que as festas populares foram incorporando, com o passar dos tempos, o padroeiro e o santo, por causa da influência da igreja católica no Brasil. As comemorações também foram adicionando a gastronomia, a procissão, o baile, a liturgia etc. As festas tiveram uma origem comum: uma forma de culto externo tributado a uma divindade, realizado em determinados tempos e locais desde a arqueocivilização. Recebeu, porem, roupagens novas após o evento do cristianismo. A Igreja Católica Romana determinou certos dias para que fossem dedicados ao culto divino, considerando-os dias de festa, formando o seu conjunto o ano eclesiástico (ARAÚJO, 1977, pp.11-12) Assim, é possível observar no vídeo nº 1, além do ritual litúrgico, o momento dedicado à comezaina, que é o chá com bolo. O alimento e a música são dois princípios enraizadores, segundo Ecléa Bosi (2004). A autora afirma que ao falar de enraizamento não significa pensar um grupo social isolado de influências externas. Mas o termo refere-se a uma forma de defesa cultural e sobrevida dessa cultura em contato com os antagonismos da sociedade em que tal grupo está inserido. 125 A Festa de São Gonçalo pertence a um ciclo. Ela se repete todos os anos, no dia 10 de janeiro. Para Alfredo Bosi, o tempo da cultura popular pressupõe ciclos. “O seu fundamento é o retorno de situações e atos que a memória grupal reforça atribuindo-lhes valor” (Bosi, 2004, p.11). É´ uma festa de calendário, principalmente ligada `a tradição da zona rural. Segundo Araújo, “o grupo social repetindo em consonância com essa periodicidade nos ciclos agrícolas, as reuniões, acabou dando `a festa uma função comemorativa” (Araújo,1977, p.11) É´ preciso pensar também sobre a construção das identidades que o vídeo sugere. Segundo Silva (2005) a identidade e a diferença são criações culturais e sociais. São resultados da criação de significados e que, portanto, não são ligadas ao mundo natural. São resultados da produção simbólica e discursiva. Ao afirmar a sua identidade, um grupo marca a sua diferença em relação ao outro, expondo o desejo de ter acesso privilegiado a determinados bens sociais. Portanto, segundo o autor, “a identidade e a diferença não são nunca inocentes” (Silva, 2005, p.81). O jogo das identidades está presente nas relações no bairro São Gonçalo. Ao afirmar sua identidade local, ligada a uma tradição, os moradores querem na verdade benefícios para o bairro. Seo Dalmi refere-se na homilia `a luta pelo desenvolvimento do lugar. Então, ele expõe ali um sentimento de que o bairro precisa se modernizar, receber as benesses da vida urbana, como transporte, asfalto, mas, ao mesmo tempo, sem se desligar do passado que dá a eles a condição de diferentes e que, por isso mesmo, eles precisam ser valorizados pela tradição da cerâmica, da Festa de São Gonçalo, do cururu e da viola-de-cocho. E isso só será preservado se as autoridades investirem em benefícios para o bairro. Eles querem se sentir incluídos nas benesses. 126 O vídeo nº 2 se constrói através das representações que o Rio Cuiabá desperta nos moradores do São Gonçalo. Segundo Ortiz (2003), cultura significa também adequação ao meio ambiente. A idéia inicial do vídeo relaciona-se a morte do rio devido `a poluição de suas águas. As imagens das crianças retirando os entulhos reforçam essa posição que nos foi apresentada pela faixa inicial “Socorro... preciso continuar vivendo – Rio Cuiabá”. Ao descobrirmos que o movimento de retirada de lixo é feito por alunos de uma escola de um bairro vizinho ao São Gonçalo aparece aí um processo de identificação com a causa em favor da preservação do rio. Essa identificação na perspectiva do senso comum, como nos fala Hall (2005), no vídeo se caracteriza pelo reconhecimento de uma causa comum, compartilhada por grupos que defendem um mesmo ideal, ou seja, salvar o rio ameaçado pela poluição. Então, o que vemos é uma representação de uma solidariedade entre alunos de uma escola, professores e políticos por uma causa que seria pertinente aos ribeirinhos, pois estes vivem `as margens do Rio Cuiabá. Então, o olhar de fora se junta aqui ao olhar do ribeirinho sobre a fonte de sobrevivência, tanto dos de dentro como dos de fora. É possível identificar nessas imagens uma outra referência ligada a existência humana: está ali a idéia da sobrevivência da própria localidade e indiretamente da cidade cortada pelo rio Cuiabá. Constróe-se, assim, uma identidade coletiva, politicamente correta, em favor da natureza. Mas ela também é construída por causa da ameaça, estabelecendo um jogo dicotômico entre vida e morte do rio. A morte lenta do rio Cuiabá e de seu afluente, o rio Coxipó, está diretamente relacionada com as práticas dos ribeirinhos, isto é, a pesca e o artesanato, como diz no vídeo o presidente do bairro, Dalmi Almeida. No caso da pesca, a redução da sua importância para a sobrevivência dos moradores tem como fato a escassez do peixe por causa da poluição das águas. O rio também fornece a matéria-prima para a produção do artesanato cerâmico, isto é, a argila. 127 No vídeo, Seo Dalmi fala que as crianças devem defender a natureza para preservar o futuro. Então, os moradores articulam a possibilidade do fim do costume artesanal caso o rio morra. É interessante notar que a luta pela sobrevivência do rio é apropriada pelo olhar de fora. Isto é, existe uma campanha Salve o Peixe Salve o Rio Cuiabá cuja criação é atribuída a um político de Várzea Grande. Identidade que é reforçada pelos meios de comunicação e que se constitui na principal bandeira eleitoral do mesmo político. O apoio da população ribeirinha a essa “causa” funciona como uma ação que legitima o seu caráter de homem público sério que possui responsabilidades com o seu eleitor. Portanto, a identidade do ribeirinho ligada ao rio não é mais somente dele. Passa a ser uma causa coletiva, de toda a sociedade cuiabana, que depende do rio. 128 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os processos de construção da cultura constituem-se num campo aberto para múltiplas investigações. A pretensão deste trabalho é ser mais um olhar sobre a questão, cuja discussão envolve uma reflexão sobre a importância da dimensão simbólica na constituição do mundo social. Como vimos, o conceito de cultura é polissêmico. Todavia, pode-se canalizar para duas grandes concepções. A primeira delas relaciona-se com os aspectos da vida social. A interação do homem com a natureza, a produção de idéias e artefatos que são dotados de sentidos. É´ nas relações sociais que os artefatos significam e re-significam. Na segunda concepção, cultura se apresenta como manifestação do espírito, desvinculada da vida material. Nesse sentido, ela opera na esfera do sagrado , separando o culto do popular. A dimensão cultural é um processo em constantes transformações que acontecem no nível mais elementar, que é o cotidiano. Então, é na investigação dos diferentes modos de vida dos grupos sociais que se busca a compreensão de sua existência e da sua própria sobrevivência, como nos revela Ecléa Bosi (1996). As leituras de imagens dos olhares sobre o bairro São Gonçalo Beira Rio indicam que há uma preocupação em significar o lugar como originário de uma tradição popular expressa pelo artesanato cerâmico, pelas festas de santo, pelo siriri e cururu. Daí é possível algumas considerações sobre a valoração do popular na relação estabelecida entre pesquisadores, videomakers e os moradores do São Gonçalo Beira Rio. Nas representações atribuídas ao universo do bairro nos vídeos analisados, observa-se que a cultura espiritual do lugar é associada `a Festa de São Gonçalo. A cultura material está ligada, principalmente, ao artesanato cerâmico. Ao fazer uma aproximação do que foi mostrado nos vídeos de Kátia Meirelles e Marcelo Okamura, com as obras acadêmicas citadas neste trabalho é possível afirmar que 129 a identidade do bairro ligada ao fazer cerâmico é muito forte em todas as abordagens científicas. Em Januário e na peça teatral Homem do Barranco, aparecem em destaque também duas outras representações: a mitológica presente nas crenças populares e a de que o ribeirinho é um ser protetor da natureza. O vídeo de Marcelo Okamura dá `a viola-de-cocho um destaque como expressão popular ligada aos moradores locais, através das cantorias, da dança de São Gonçalo, do siriri e do versejar. O instrumento traz uma relação histórica com as regiões de cultura caipira, mas que vem sofrendo transformações em seu uso. Assim, nesse vídeo, os depoimentos traduzem esse sentimento de perda, de desenraizamento, na medida em que os moradores afirmam que a viola-de-cocho hoje está mais presente em bailes do que nas rodas de cururu. Portanto, as construções materiais de um povo permanecem, mas mudam-se seus significados com o passar do tempo. O mesmo se aplica ao fazer cerâmico, na medida em que as peças deixam de ser utilitárias passando a ornamentais. Há aí uma resignificação da cultura material. Sobre as mudanças na simbologia das cerâmicas estas podem ser interpretadas como a penetração do global no local, uma vez que novas técnicas de produção da cerâmica têm sido introduzidas – o uso de fôrmas de gesso - para diminuir o tempo de produção e aumentar o número de peças. Por sua vez, a criação de peças de peso e tamanho padrão e, em série, dá uma dimensão industrial ao trabalho, projetando a atividade para a dimensão da cultura de massa. Em trabalhos como o de Januário e Palma há uma aproximação entre o culto e o popular. Esses autores expressam um sentimento de respeito e valoração pelos costumes locais. Eles representam, de alguma forma, a sociedade intelectual da cidade que cumpre uma função social: a de legitimar as práticas 130 culturais dos ribeirinhos. Ao legitimar essa outra cultura eles reconhecem a pluralidade do conceito de cultura. O mesmo acontece com a pesquisadora e artista plástica, Aline Figueiredo, no vídeo “Oi viva meu São Gonçalo ou torna reviva´”. Essa personagem representa a sociedade culta cuiabana que reconhece os costumes dos ribeirinhos como um modo de vida importante para a história da cidade. Existe nesses intelectuais uma preocupação com as transformações que esses costumes vem sofrendo com o avanço da urbanização de Cuiabá e a penetração intensa dos meios de comunicação, gerando novos comportamentos entre os ribeirinhos. Mas, mesmo o respeito com que esses intelectuais lidam com o modo de vida dos ribeirinhos, suas práticas culturais continuam vistas pela sociedade cuiabana como a outra, o folclore, o curioso, o histórico, algo que pertence ao passado. Os meios de comunicação, principalmente a televisão, trabalham reforçando as identidades do bairro São Gonçalo como origem da cidade, núcleo de ceramistas e mantenedor das raízes cuiabanas do siriri e do cururu. Existe uma memória coletiva que vincula as tradições do são Gonçalo `a ”aquilo que é nosso”. A televisão regional opera no sentido de divulgar essa representação. “A memória coletiva se apresenta como tradição”, como nos fala Ortiz (2003, p.133). Ela se vincula ao grupo social que celebra a revificação de antigos costumes, como a Festa de São Gonçalo. Ao preservar a sua memória os moradores preservam o grupo. Mas a memória coletiva só pode existir enquanto vivência do grupo, enquanto prática diária do moradores. Existe aí uma tensão entre cultura de massa e cultura popular. Essas práticas são reforçadas pela mídia, mas por um interesse que também é dos moradores. Entendo que nesse caso “os meios de comunicação de massa estão servindo satisfatoriamente `a cultura popular”, com diz Ecléa Bosi (1996, p.33). 131 Nesse jogo de interesses negociados a imprensa também é interessante por revelar os costumes do ribeirinho para “os de fora”, o Outro, aproximando o local do global. Por outro lado, mostrar o modo de vida dos moradores do São Gonçalo como o “o reviver da tradição”, o folclórico, o curioso, torna-se interessante para a mídia na medida em que atrai a audiência. É preciso atentar para o fato de que entre os moradores existem aqueles que alcançaram uma consciência militante pelos anos de embates com as autoridades locais, buscando reconhecimento pela luta dos que vivem no São Gonçalo. O ribeirinho não é um ser ingênuo, despolitizado, como poderiam alguns supor. Existe um jogo entre o folclore e a vida real desses moradores. Quando se apresentam para os turistas no Museu do Rio ou nos eventos governamentais o que se vê é uma encenação de antigos costumes dos ribeirinhos. O que era o modo de vida deles passou a ser espetáculo para os olhos dos turistas. Essa é uma identidade que convém a eles, ou seja, os ribeirinhos querem ser vistos assim pelo olhar do Outro. Mas, reconhecê-los como diferentes, como berço da cuiabania, só se torna interessante na medida em que essa identidade possa ajudá-los naquilo que eles mais precisam no bairro, que é as melhorias de infra-estrutura, isto é, mais transporte coletivo, a conclusão do asfalto no bairro e o fortalecimento do artesanato como fonte de economia. A identidade torna-se uma garantia. Assim, a cultura é uma dimensão simbólica que se articula com o político. Identidade e diferença precisam ser representadas, como diz Silva (2005). E é por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam `as relações de poder. Estas também estão presentes na dimensão interna ao São Gonçalo. O registro audiovisual feito pelos moradores não é só um arquivo do cotidiano do 132 bairro. Aí também existe uma relação de poder, pois as imagens constituem-se num documento sobre o trabalho de um líder comunitário, à frente de ações em benefício do bairro, como representa as imagens do mutirão de limpeza do rio e a organização da Festa de São Gonçalo. Aí está o meu olhar sobre os outros olhares... Outros olhares ainda virão... 133 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, José Mendes. O que é Vídeo. São Paulo:Brasiliense, 1985. ARANTES, Antonio A. O que é cultura popular. 14ª ed. São Paulo: brasiliense, 1990. ARAÚJO, Alceu Maynard. Cultura Popular Brasileira. 3ª ed, São Paulo: Melhoramentos, 1977. ARRUDA, Maria Lucia M. Plantas Medicinais: conhecimento popular X conhecimento científico. Dissertação de Mestrado, Cuiabá: UFMT/IE, 1997. ________________. Cultura Popular – a arte da cerâmica de São Gonçalo. In: Leopoldianum – revista de Estudo e Comunicação, V.16 nº 45, são Paulo, 1989. ________________. A Dança de São Gonçalo. In: Revista Universidade, ano 1, nº3. 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Nota-se um cinegrafista da imprensa local, acompanhando o cortejo. 141 figura 2 Roda de cururu . figura 3 Presença da imprensa na Festa de São Gonçalo 142 figura 4 Chá com bolo durante a Festa de São Gonçalo figura 5 Missa de São Gonçalo 143 figura 6 O presidente do bairro, Seo Dalmi, na celebração. VIDEO 2 – “ LIMPEZA DO RIO” figura 7 Passeata pelas ruas do bairro em defesa do meio ambiente. 144 figura 8 Mutirão de limpeza na beira do rio Cuiabá. figura 9 Presença de políticos e da imprensa durante o mutirão de limpeza. 145 figura 10 Passeata em defesa do meio ambiente.