O Artista no seu labirinto.
“Assi como em todas cousas humanas ha continua
mudança & alteraçaõ, assi he tambem nas lingoagès. E o que
parecia increivel, tambem isto estaa subjecto ao arbitrio da fortuna”
“H Não he letra, mais que na figura. Mas he hua
aspiraçaõ ou assopro, com que se pronunciaõ as
letras, a que se ajunta”
(Duarte Nunes de Leão, 1606)1
“A minha escrita (desenho, pintura) é difícil de ler. Mas Deus, que escreve
direito por linhas (ou letras) tortas, talvez me ajude nesta humilde imitação.
Espero que sendo os meus textos, tal como os de S. João, difíceis de ler,
sejam, também, fáceis de amar” (João Vieira, 2003)2.
“No princípio de tudo, / aquele que é a Palavra já existia” (João 1: 1).
E se no princípio do princípio, antes da palavra já existisse o signo. E se antes
do signo, a forma. E se antes da forma, o gesto. E se antes do gesto, a ideia.
É neste hiato que medeia o “princípio de tudo” e o princípio da existência
daquele “que é a Palavra” que reside o mistério (no sentido de oculto ao olhar não
iniciado) da criação, nas suas diferentes asserções. Di-lo Raquel Henriques da Silva
quando escreve que “escrever a pintura” ou “pintar a escrita” é um exercício
antiquíssimo3 e João Miguel Fernandes Jorge quando afirma que “As letras dos
alfabetos na pintura de João Vieira têm uma força paralela à das pedras sagradas.
Veiculam os Lares, os Génios e as Tutelas”4. Demonstra-o o próprio João Vieira, nos
novos vitrais que fez para a Sé de Vila Real em 2002, ao escolher, para os do
clerestório daquela catedral românica, as palavras do início do Evangelho segundo
1
Duarte Nunes de LEÃO – Origem, e Orthographia da Lingoa Portugueza. Lisboa: Typgraphia do
Panorama, 1864, p. 1 e 111.
2
João VIEIRA – “Do Autor”. João Vieira. Vitrais da Igreja de São Domingos. Sé de Vila Real.
Lisboa: Instituto Português do Património Arquitectónico, Ministério da Cultura, 2003, p. 62.
3
Raquel Henriques da SILVA – “João Vieira: das letras aos corpos”. João Vieira. Corpos de Letras.
Porto: Asa, Fundação de Serralves, 2002, p. 68.
4
João Miguel Fernandes JORGE – “Letras”. João Vieira. Percursos 1960-2001. s.l., ACD Editores,
2001, p. 9.
1
São João – “No início era o Verbo / e o Verbo era com Deus / e o Verbo era Deus”5 –
desconstruindo e reinventado a associação das letras que as formam: [NOP / RIN /
CIP] [IOE / RAO / VER] [BOE / OVE / RBO] [ERA / COM / DEU] [SEO / VER
/ BO] [ERA / DE / US]6.
O mistério da criação está nesta espécie de ritual tautológico que é a Arte, a
partir do qual a espécie humana vem formulando, de geração em geração, novas
respostas para as mesmas perguntas sobre a condição da sua existência. É no
constante exercício desse mistério que radica a inquietude e o experimentalismo que a
maioria dos autores reconhece como característica permanente da obra de João
Vieira7. Está patente quer desde logo na intenção, no pioneirismo dos seus happenings
e das suas performances dos anos iniciais de 1970 (Expansões, 1971; Incorpóreo I,
1972), quer quando convoca para recriar os pintores do passado – Nuno Gonçalves
(Os Painéis e Ecce Homo, 1987), Grão Vasco (São Pedro, o outro e São Pedro, ele
próprio, 1994), Dürer em casa de Marta (1994), Velásquez (1991), Eduardo Viana
(Viana, 1991), Francisco de Holanda ou o Matisse que deu o mote à presente
exposição –, quer sobretudo quando desconstrói ou elabora associações com palavras
e frases para explorar, e não verificar (é fundamental distingui-lo nestes dias da “pósmodernidade”), os limites da pintura. Neste contexto, a letra que antecede o Verbo ou
a Palavra, mesmo na sua acepção bíblica, é a matéria que sustenta a existência.
Na definição de Hélder Macedo, as letras são as formas visuais do conjunto de
formas visuais que é o alfabeto. Quer isto dizer, segundo o mesmo autor, que cada
letra por si só nada significa e que o alfabeto é um conjunto de não-significações.
Somente quando combinadas umas com as outras são capazes de significar tudo o que
há ou possa haver mais o que não há nem pode haver8. Fixam o transitório,
fragmentam o infinito, nomeiam o inominável, impõem tempo à eternidade e
incorporam o que não tem corpo9. Logo, como todas as coisas humanas, são
5
Abro este texto com a mesma citação do Evangelho segundo S. João. Utilizei, intencionalmente, uma
tradução mais recente das Escrituras, a da editada pela Difusora Bíblica em 1993, conhecida como
Bíblia dos Franciscanos Capuchinhos, que muito altera o texto.
6
João VIEIRA – “Do Autor”. João Vieira. Vitrais da Igreja de São Domingos. Sé de Vila Real.
Lisboa: Instituto Português do Património Arquitectónico, Ministério da Cultura, 2003, p. 61, 64 e 65.
7
João FERNANDES – “A letra e o corpo na obra de João Vieira”. João Vieira. Corpos de Letras.
Porto: Asa, Fundação de Serralves, 2002, p. 21.
8
Hélder MACEDO – “Formas de ler”. João Vieira. Corpos de Letras. Porto: Asa, Fundação de
Serralves, 2002, p. 46.
9
Emília FERREIRA – “Olho vivo e mão ligeira”. João Viera. Não-pintura. Almada: Casa da Cerca,
2008, p. 10.
2
circunstanciais. João Vieira parte deste pressuposto, a que não podemos escapar como
seres culturais, históricos e geográficos que somos, para explorar as possibilidades
conceptuais e gráficas das letras e dos textos, na sua duplicidade de signos e
significantes, fazendo agir o seu / nosso olhar sobre o alfabeto, a palavra, o poema, a
citação. Daí não nos parecer que as suas letras sejam completamente desenformadas
da sua função narrativa10. Entendemo-las como entidades poliédricas, seminais,
átomos que se combinam para formar miríades de substâncias, a pluralidade do
mundo, de que a narrativa é, enquanto código, uma das manifestações, e não a menos
importante. São entidades intermediárias, permitindo ao espectador, enquanto
elementos reconhecíveis, acompanhar o pintor no seu jogo criativo e recombinatório.
Não é por acaso que Duarte Nunes de Leão, no século XVII, dizia “letra de lego,
legis, e de iter, que quer dizer caminho: porque abre caminho ao que lee”11; ou ao que
se vê, em João Vieira, dizemos nós.
Também não nos parece fazer sentido enquadrar as letras de João Vieira na
suposta controvérsia entre figuração e abstracção, que se transformou, com a
passagem do tempo, num problema da categorização teórico-crítica. Enquanto formas
reconhecíveis, sinais gráficos que tornam visíveis os sons, as letras são figurativas.
Porque detêm a capacidade de serem transfiguradas em não signos, nas suas possíveis
qualidades visuais de manchas cromáticas, formas, luz e espaço, em reordenamentos e
reconfigurações que multiplicam as imagens, as letras são simultaneamente
abstracções. As palavras (agrupamentos de letras) detêm essa mesma dupla qualidade,
metafísica, de configurar o que é incorpóreo quando o nomeiam, assumindo na grafia
a visibilidade do que não se vê; e de tornar abstractas as realidades empíricas quando
as substituem, designando-as, por conceitos. Razão pela qual ele traz as palavras para
a sua pintura em frases pesadas de significado, densas como a sua mancha (Eros,
Utopia, Alma e Elo, todas obras de 2008, e Éter de 2007), que podem ir até à citação
poética (Só, 2008) ou bíblica, como salientamos inicialmente. Reconhecidas, abrem
uma nova dimensão à interpretação da pintura. Ignoradas, não alteram a natureza
plástica da obra.
10
Emília FERREIRA – Olho vivo e mão ligeira”. João Viera. Não-pintura. Almada: Casa da Cerca,
2008, p. 11.
11
Duarte Nunes de LEÃO – Origem, e Orthographia da Lingoa Portugueza. Lisboa: Typgraphia do
Panorama, 1864, p. 102.
3
Na verdade, as letras de João Vieira são simplesmente pintura, pela virtude de
congregarem as duas dimensões fundamentais da Arte: a da percepção sensível,
universal e atemporal, e a da interpretação cultural, identitária e cultural. Associação
que João Vieira torna intencionalmente explícita e, ao fazê-lo, evoca toda a criação
artística passada (e aqui podíamos retomar o tema das recriações) e profetiza a futura,
presentes na repetição e na elisão, nas pinceladas densas, “em matéria gorda e
sumptuosa, riscadas, à flor da tinta, por mais letras e garatujas”12, no deixar vestígios
do percurso da mão, do gesto de pintar, marca da temporalidade do acto que lembra a
pintura pré-histórica, origem para lá da origem, e que aponta para os conceitos de
devir e inacabado, para a contínua busca, que aponta para além da pintura, para a
ideia de que a obra de arte não tem princípio nem fim, como a Palavra ou o Verbo.
Ao pintar a Dança e a Música a partir de Matisse, João Vieira pôs letras no
lugar de corpos (já tinha vestido os corpos com letras), suspensas sobre fundos
brancos, ligadas ou soltas, encadeadas de maneira a que não se deixe de ler DANÇA e
MUSICA, realidades que também se constituem em códigos por meio da combinação
de movimentos ou sons. Assim, podem ser o que são pela sua leitura convencional, a
verbalização de um conceito que nomeia uma acção – “sequência de passos, de
movimentos corporais, executados geralmente ao som de música por uma ou várias
pessoas, segundo uma arte, técnica ou código cultural específico”13 (dança) ou “arte
de conjugar sons de forma melodiosa e de acordo com determinadas regras, capaz de
exprimir ou despertar emoções e evocar certas realidades”14 (música). Ou
simplesmente a visibilidade dos signos – D, A, N, Ç, M, U, S, I, C. Ou ainda o
delineamento figurativo da matéria plástica que lhe dá corpo. Ou, finalmente, a
possibilidade de serem mil e um códigos distintos, a partir das mil e uma novas
variantes de configuração ou associação que não existiam até passarem a existir. O
que significa que não estaremos tanto perante um exercício de libertação semiótica,
como já se disse acerca da pintura de João Vieira, mas de explorá-la até aos seus
limites, até se exceder para algo novo. Daí o seu gosto pessoal pelos autores
charneira, aqueles que reinventaram os códigos da visibilidade e da linguagem.
12
Raquel Henriques da SILVA – “João Vieira: das letras aos corpos”. João Vieira. Corpos de Letras.
Porto: Asa, Fundação de Serralves, 2002, p. 68 (catálogo da exposição).
13
Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa, Lisboa,
Editorial Verbo, 2001 (I volume), p. 1058.
14
Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa, Lisboa,
Editorial Verbo, 2001 (II volume), p. 2556.
4
São concretizações dessas infinitas possibilidades que João Vieira nos dá a ver
no “penetrável”, das mais ricas e complexas, formal e cromaticamente, às mais
depuradas e gráficas, pelas quais se apropria novamente de Matisse, dos seus recortes,
colagens, litografias e gravuras, frutos de um percurso artístico que passou por
variados registos e suportes. Estruturar o “penetrável” como um labirinto, para onde o
espectador é convidado a entrar pelos seus próprios meios, contaminação de outras
experiências artísticas de João Vieira, da encenação e da performance, revela-se a
solução mais lógica como síntese física e experimentável da complexidade e da
multiplicidade das combinatórias que o acto da criação pode implicar, de que é
impossível ao espectador ter uma consciência plena. Visto do exterior, um labirinto
está perfeitamente delimitado, no interior, o número dos possíveis percursos
tornaram-no infinito.
O labirinto, contudo, é também o espaço do jogo, que implica o prazer da
descoberta e da partilha, porque toda a arte é uma forma de descoberta e de partilha
dos nossos sentimentos e pensamentos mais profundos15. Pelo lúdico, revela a ilusão
das evidências, que só são condicionadas por determinadas circunstâncias.
Terminemos recorrendo às palavras do próprio Matisse: “O papel do artista, assim
como o do cientista, consiste em apreender verdades correntes que lhe foram
constantemente repetidas, mas que para ele assumirão um carácter de novidade e se
tornarão suas no dia em que ele perceber o sentido mais profundo delas. Se os
engenheiros aeronáuticos tivessem de apresentar suas pesquisas, explicar como
puderam sair da terra e se lançar no espaço, dariam simplesmente a confirmação de
princípios de física muito elementares, que outros inventores menos felizes
negligenciaram”16.
Paulo Simões Rodrigues
15
Raquel Henriques da SILVA – “João Vieira: das letras aos corpos”. João Vieira. Corpos de Letras.
Porto: Asa, Fundação de Serralves, 2002, p. 66 (catálogo da exposição); Emília FERREIRA – p. 10.
16
Henri Matisse – “Notas de um pintor”. Henri Matisse. Escritos e reflexões sobre arte. São Paulo:
Cosac Naify, 2007, p. 49.
5
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