Teoria Crítica em
Relações
Internacionais*
Marco Antonio de Meneses Silva**
Não podem restar dúvidas quanto ao revigoramento das discussões
teóricas em Relações Internacionais, sobretudo nas últimas déca1
das . A bem da justiça, não se afirma que a academia houvesse relegado o campo teórico das Relações Internacionais a uma posição de
reduzida relevância, contudo, é razoável supor que as diversas tradições teóricas careciam de um debate real.
A eterna caracterização das relações internacionais como um diálogo meliano perpétuo, isto é, um conflito entre poder e moralidade,
entre força e justiça, não condiz à respeitável e diversificada produ2
ção teórica . As tradições realista e liberalista beneficiaram-se imensamente desse state of affairs, souberam tirar proveito para se fortalecerem na qualidade de perspectivas predominantes (a realista mais
* Artigo recebido em julho e aprovado para publicação em setembro de 2005.
** Mestre em Relações Internacionais pela University of Kent at Canterbury (Reino Unido), professor e
coordenador do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).
CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 249-282.
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Marco Antonio de Meneses Silva
do que a liberalista), mesmo que disfarçando seu domínio, sugerindo
que houvesse um debate com a corrente rival. Quero dizer que, embora seja aceito que majoritariamente os acadêmicos se identificassem com um ou outro protagonista do chamado primeiro debate, tal
quadro não pode ser retratado às expensas das demais abordagens
que surgiram ao longo do século XX, ainda mais nas décadas finais.
Do contrário, trata-se de um desserviço ao estudo da evolução teórica
das Relações Internacionais.
Grosso modo, a chegada de novas correntes teóricas submete-se a
uma lógica. Trata-se de inovações que atingem outros campos de estudo ditos das ciências sociais antes de alcançarem os domínios das
Relações Internacionais. Essa observação se baseia na histórica tendência de os acadêmicos manterem a disciplina hermeticamente fechada e rejeitarem questionamentos acerca dos postulados epistemológicos e ontológicos fundamentais das Relações Internacionais.
Identificamos nitidamente essa tendência no caso do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, assim como na teoria crítica, abordagem
ora em voga.
Não pretendo aqui me aprofundar na apresentação do advento de
correntes novas antes do início dos anos 1980. Esse momento sinaliza o início de um processo de redescoberta das questões metateóricas. Lembramos que, por metateoria, fazemos alusão aos aspectos
ontológicos e epistemológicos na produção de conhecimento. Esse
alerta se deu, em grande parte, pela chegada da teoria crítica às Relações Internacionais. Nisso, não há como menosprezar a influência de
Robert Cox.
Neste artigo, opto por iniciar examinando os pressupostos históricos
da teoria crítica, notadamente o pensamento político e social da chamada Escola de Frankfurt, particularmente o trabalho de Max Horkheimer (1990). Desejo explicitar a estreita relação entre os frankfurtianos em sua busca pela emancipação, e a noção de limite sobre as
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Teoria Crítica em Relações Internacionais
possibilidades de realização dos ideais modernistas, e a conseqüente
distinção entre duas modalidades de teoria: a tradicional e a crítica.
Em seguida, apresento a teoria crítica em Relações Internacionais
per se examinando a contribuição de Robert Cox (1995b). Em um artigo que se tornou um marco para a teoria das Relações Internacionais3, Cox em um só tempo inaugura uma nova época nesse estudo, sobretudo com a incorporação da reflexão sobre a influência do poder e
dos interesses na produção intelectual, além de apresentar sua perspectiva teórica particular, fortemente inspirada no pensamento político de Antonio Gramsci – o materialismo histórico. A questão da
transformação das realidades social e sobretudo política se apresenta
como uma preocupação central da teoria crítica coxiana, bem como
de seus seguidores.
A terceira seção deste trabalho se ocupa da apresentação da teoria
crítica internacional. Essa vertente teórica contemporânea é precipuamente associada à retomada da discussão sobre a busca da emancipação. O nome central é o de Jürgen Habermas. Embora tenha acabado de chegar aos temas e à agenda internacional, em que a figura central tem sido a de Andrew Linklater, esse debate é cada vez mais influente na produção de muitos acadêmicos.
A Teoria Crítica da Escola
de Frankfurt
A teoria crítica nas ciências sociais tem uma extensa tradição intelectual, representando, no princípio, uma variação do pensamento marxista do início dos anos 1920, particularmente vinculada à Escola de
Frankfurt. O termo teoria crítica foi usado pela primeira vez em 1937
em um artigo de Max Horkheimer. Entre outros nomes ligados a essa
corrente estão os de Theodore Adorno, Herbert Marcuse e Walter
Benjamin. Em comum, entre outras coisas, todos eles possuíam uma
mesma origem comum no pensamento marxista.
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Marco Antonio de Meneses Silva
Seguramente, podemos afirmar que a preocupação central da teoria
crítica é a emancipação. Esses teóricos despertaram para o fato de
que as expectativas geradas em torno da expansão da experiência socialista russa, sobretudo para o ocidente, não se concretizavam. Os
temores do mundo ocidental eram de que a revolução ocorrida em
outubro de 1917 se alastrasse para outros cantos, o que acabou não
ocorrendo. Pelo contrário, no ocidente não havia sinais de que os partidos comunistas e socialistas estivessem próximos de chegar ao poder, pelas vias democráticas ou não.
Concentrando a atenção no trabalho de Max Horkheimer (1990), pode-se dizer que, afora ser talvez a figura mais influente da Escola de
Frankfurt, terá grande influência sobre as proposições epistemológicas de Cox.
Para os propósitos deste trabalho, examinaremos uma das idéias
principais de sua obra: a dialética do esclarecimento. Horkheimer
chamava atenção para o papel da racionalidade restritiva no desenvolvimento da civilização ocidental, no desencantamento do mundo.
Findada a era das explicações metafísicas, a racionalidade tomava
seu lugar como critério único e absoluto para a validação do conhecimento humano. Acreditava-se no caráter emancipatório desse novo
modo de conhecer. A racionalidade instrumental da ciência moderna
distanciou-se da busca pela emancipação, passando a prezar a subjugação da natureza pelo homem: conhecer para prever, prever para
controlar. Essa contradição precisava ser esclarecida. A busca pelas
regularidades do mundo real pouco serviu aos propósitos libertários
que a racionalidade moderna advogava. Pelo contrário, o domínio da
ciência serviu, por meio do desenvolvimento da técnica, para o domínio do meio ambiente. Qual seria a implicação para o mundo social?
Horkheimer, apropriadamente, identificou um equívoco fundamental aqui. As chamadas ciências sociais não poderiam seguir os mesmos pressupostos epistemológicos das ciências naturais, as que sem252
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pre serviram de modelo para as demais, por uma razão muito simples: o mundo social distingue-se do mundo natural em diversos aspectos. Cientistas sociais não poderiam ser como seus colegas naturais, no sentido de se considerarem desinteressados e independentes
da sua matéria de estudo porque fazem parte da sociedade que estudam. Repetir os mesmos postulados epistemológicos das ciências
naturais impunha pesados custos sobre as ciências sociais.
A conclusão decorrente disso é a constatação da influência que interesses impõem sobre a produção de conhecimento. Afinal, a aplicação indiscriminada de metodologias das ciências naturais, com suas
posições epistemológicas subjacentes, tendia à reprodução da ordem
existente. Isso é problemático, porque, ao invés de avançar a emancipação, no mundo moderno, constava-se a subjugação da natureza e a
dominação do homem pelo próprio homem. É nesse contexto que
Horkheimer propõe uma ruptura epistemológica.
É aí que surge a diferenciação entre a teoria tradicional e a teoria “crítica”: a primeira enxerga o mundo como um conjunto de fatos que
aguardam ser descobertos pelo uso da ciência – positivismo. Horkheimer defendia que teóricos tradicionais estavam equivocados ao
propor que o “fato” a ser descoberto pudesse ser percebido independentemente da estrutura social em que a percepção ocorria. Mas a situação era mais grave, já que a teoria tradicional estimulava o aumento da manipulação de vidas humanas. Ela via o mundo social como
uma área para controle e dominação, como a natureza, e, portanto,
indiferente às possibilidades da emancipação humana.
Horkheimer propunha a adoção da teoria crítica. Esta não enxerga fatos da mesma forma que a teoria tradicional. Para teóricos críticos,
fatos são produtos de estruturas sociais e históricas específicas. A
percepção de que teorias estão fixadas nessas estruturas permite que
os teóricos críticos reflitam sobre os interesses atendidos por uma teoria particular. O objetivo explícito da teoria crítica é promover a
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emancipação humana, o que significa que a teoria é abertamente normativa, assumindo uma função até no debate político. Nisso, diverge
radicalmente da teoria tradicional ou positivista, na qual a teoria deve
servir à neutralidade e se preocupar somente com a descoberta de fatos preexistentes e de regularidades em um mundo independente e
externo.
Em uma contribuição significativa ao pensamento das ciências sociais, Horkheimer defendia que haveria uma ligação entre conhecimento e poder. Para ele, dessa relação decorria o fato de que as mais
importantes forças para a transformação eram forças sociais, e não a
explicação de uma “lógica independente” a ser revelada. Enquanto o
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conhecimento estivesse associado ao Estado , tenderia a reificar as
relações de poder existentes, sendo que qualquer alteração se submeteria aos interesses estatais. Desta forma, os cientistas comporiam
uma força social cujo dever principal não poderia deixar de ser a
transformação da realidade social de forma a expandir a emancipação humana.
A principal crítica que essa linha de raciocínio recebeu veio dos racionalistas, e se fundamenta sobre a acusação de que o conhecimento
científico há que ser imparcial, neutro, não-normativo e puro. Para
eles, Horkheimer estava politizando, ideologizando a produção de
ciência. Defensores do racionalismo como Popper (1958) e Lakatos
(1978) argumentariam que a ciência se desenvolve seguindo critérios
racionais.
Percebemos, portanto, que divergências ontológicas se encontram na
base da discussão. Respostas distintas às indagações do tipo “o que e
como é a realidade social?”, “as realidades natural e social divergem
fundamentalmente, a ponto de significarem modos igualmente distintos de conhecê-las?” e “o conhecimento é puro, imparcial e neutro?” trazem implicações essenciais à maneira como se percebe o conhecimento. Tais dúvidas não se resolvem de uma forma intrínseca à
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Teoria Crítica em Relações Internacionais
racionalidade. Elas pressupõem um certo grau de subjetividade explicitado pelos postulados metateóricos do teórico/analista.
Desafios Epistemológicos
da Teoria Crítica em
Relações Internacionais
O pensamento frankfurtiano imprimiu um impacto profundo sobre a
produção científica nas ciências sociais já nas primeiras décadas do
século XX. Contudo, as discussões epistemológicas que vieram à
tona há muito se mantiveram além das fronteiras das Relações Inter5
nacionais. Desde sua gênese , as controvérsias que nutriam o desenvolvimento desse campo de estudo eram assaz estreitas, se vistas a
partir das questões a serem levantadas pela teoria crítica. O primeiro
debate (realismo político versus idealismo) foi protagonizado por
correntes que talvez tivessem muito mais semelhanças do que diferenças no que se refere aos fundamentos epistemológicos. O chamado segundo debate (tradicionalistas versus comportamentalistas/cientificistas), embora também conhecido como um debate metodológico, só fez sentido por apartar metodologias que também traziam similitudes epistemológicas. Por fim, o terceiro debate é ele próprio
motivo de debate: para uns, divide neo-realistas e neoliberais; para
outros, neo-realistas e globalistas; para outros ainda, epistemologias
positivistas e pós-positivistas. Portanto, não seria exagero afirmar
que um verdadeiro debate metateórico se inicia com a teoria crítica.
Preliminarmente, convém examinar o ponto de partida de Robert
Cox (1995a). Não há teoria propriamente dita dissociada de um contexto histórico concreto. A teoria é a maneira como a mente funciona
para compreender a realidade confrontada. É a autoconsciência da
mente, a consciência de como a experiência dos fatos é percebida e
organizada para ser compreendida. Além disso, a teoria também precede a construção da realidade no sentido de que ela orienta a mente
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Marco Antonio de Meneses Silva
daqueles que, por meio de suas ações, reproduzem ou transformam a
realidade.
Para apresentar os desafios da teoria crítica, explorei seus quatro alicerces básicos, a saber: a relação entre o sujeito cognitivo e o seu objeto de estudo; a influência de interesses e valores sobre a teoria; a
mutabilidade da realidade social; e os modos de teoria que surgem.
Em seguida, examinarei com maior detalhamento esses alicerces.
A relação tradicional do cientista político com seu objeto de estudo é
de distanciamento para possibilitar a “descoberta” de leis universais.
Esse é um postulado da ciência moderna, aplicável aos demais campos de estudo. Imagina-se uma postura análoga à do cientista natural
que analisa seu objeto de estudo por meio de um microscópio. Nada
exemplifica melhor o distanciamento. O cientista não acredita que
faz parte de seu objeto, muito menos que pode nele interferir de alguma maneira. Sua função se resume a encontrar regularidades que levem à possibilidade de previsão.
Contudo, essa postura é inadequada para as chamadas ciências sociais,
por um motivo basilar: o cientista é ele próprio parte de seu objeto de
estudo. Lembremos que essa característica já fora identificada pela
Escola de Frankfurt. Em vez de reproduzir também suas conseqüências epistemológicas, nesse particular, chamo atenção para a importância que Cox (idem) atribui às ontologias.
A ontologia precede a investigação. Antes de iniciar a tarefa de tentar
tornar o mundo que nos cerca mais inteligível, as ontologias já estão
presentes, já se fazem evidentes na maneira como enxergamos o que
está em nossa volta. Para definir um problema, e esse é o ponto de
partida da investigação científica, da pesquisa, urge conhecer e reconhecer as entidades envolvidas, bem como as relações entre elas. Teorias são construídas sobre tais premissas. Os termos que usamos
para identificar as entidades e as relações têm significados ontológicos. Estes significados não são resultado de descobertas ou revela256
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Teoria Crítica em Relações Internacionais
ções, ou seja, pressupõem a ação do pesquisador. A ontologia central
do campo de estudo das Relações Internacionais tem sido o Estado.
Contudo, não se pode assegurar que o mesmo conceito signifique
coisas idênticas para teóricos distintos. Chama atenção, nesse sentido, a maneira divergente com que Platão e Hobbes conceituam a comunidade política (Cox, 2000).
A teoria segue a realidade, mas também a precede e a modela. Existe
um mundo histórico real em que as coisas acontecem. A teoria é feita
pela reflexão sobre o que nele aconteceu. Contudo, a separação entre
teoria e eventos históricos reflete uma certa maneira de pensar, porque a teoria alimenta também a história, em virtude da forma como
aqueles que fazem a história (indivíduos e coletividades) pensam sobre o que fazem, e dão significados às suas ações.
Dessa forma, os limites da ação individual e/ou coletiva são produtos
da teoria (e ditados pelos eventos históricos). Existe, portanto, uma
teoria dos livros (acadêmica) e uma teoria da vida (sentido comum).
A experiência histórica produz a ontologia das pessoas e incorpora-se ao mundo que estas constroem. É assim, portanto, que o entendimento que temos do Estado, desprovido de existência física, apesar
de produzir conseqüências reais e físicas, explica-se. As ontologias,
por sua vez, são estruturas implícitas (subjacentes) de pensamento e
prática.
Elas se tornam problemáticas quando novos problemas que não podem explicar ou resolver certezas ontológicas dão lugar ao ceticismo. Não se procura a construção de um conhecimento universal e absoluto, mas a criação de uma nova perspectiva adequada ao momento
atual, isto é, novas ontologias.
Por conseguinte, estabelecemos que, de certa maneira, há um aspecto de eleição subjetiva na maneira como assimilamos o meio em que
estamos inseridos. Isso é expresso pelo domínio das ontologias. Por
ontologia, entendemos desde a discussão dos conceitos, isto é, o con257
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ceito que usamos para designar uma determinada idéia, passando pelos diversos entendimentos que um conceito pode expressar, até chegarmos à questão mais abrangente que entenderá que nossa(s) ontologia(s) é (são) também a representação de nossa visão de mundo.
Cox (1995a) afortunadamente aponta a importância que a historicidade exerce sobre essa(s).
Outra característica definidora do campo de estudo das Relações
Internacionais, para Devetak (1995), tem sido a omissão de considerações acerca da relação entre conhecimento e valores. Esta relação
somente atraiu atenção por advertir contra os perigos que se apresentam quando valores influenciam a pesquisa. O estado do conhecimento, a justificação de reivindicações da verdade – truth claims –, a
metodologia aplicada, o escopo e o alcance da pesquisa eram questões fundamentais que as Relações Internacionais ignoravam, em seu
próprio detrimento (idem).
A teoria é obrigatoriamente condicionada pela influência social, cultural e ideológica, e cabe à teoria crítica a tarefa de revelar os efeitos
desse condicionamento. Busca, também, trazer à consciência perspectivas latentes, interesses ou valores que dão origem a, ou orientam
qualquer teoria. O conhecimento que a teoria crítica persegue não é
neutro; é política e eticamente carregado por um interesse na transformação social e política. Hoffman (apud Devetak, 1995) entende
que não é meramente uma expressão das realidades concretas da situação histórica, mas também uma força transformadora dessas condições (Devetak, 1995:151).
É claro que a teoria crítica incorporará nitidamente a dimensão da influência dos interesses na produção teórica. Contudo, o mesmo talvez não proceda na discussão da ação dos valores. A bem da verdade,
teóricos críticos têm sido freqüentemente acusados por teóricos normativos de se absterem das discussões normativas substantivas. A
acusação fundamenta-se no fato de a teoria crítica defender uma “or258
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Teoria Crítica em Relações Internacionais
dem alternativa”, presumivelmente “melhor”; concomitantemente,
não indica com clareza o que constitui uma ordem “boa”, em se tratando da dimensão ética. Em que medida a ordem que se busca supera a ordem atual? Para a teoria normativa, somente o aprofundamento das discussões sobre a ética e a moral nas relações internacionais
poderia oferecer algum tipo de resposta a tais indagações. Nisso, os
teóricos normativos aparentam ter razões ao assinalar o curioso silêncio da teoria crítica a esse respeito.
O enfoque da teoria crítica, além de ser seu interesse manifesto, é a
transformação da ordem internacional, no que se refere à realidade
política, econômica e social. Mais do que isso, para a teoria crítica
qualquer perspectiva que parta da premissa de que existam aspectos
de tal realidade que sejam permanentes ou imutáveis é falaciosa.
Para sustentar essa censura, Cox (1995a) aponta para um equívoco
basilar da tradição realista: a suposição de que o Estado é sempre um
Estado. Dito de outra maneira, realistas tendem a não problematizar
o objeto básico do estudo tradicional das Relações Internacionais.
Ao contrário, sugerem que as cidades-Estados helênicas da Antigüidade Clássica (Tucídides, 2002) têm muito em comum com as cidades-Estados da península itálica na Idade Média (Maquiavel, 1982),
que, por sua vez, não apresentam maiores disparidades se comparadas aos Estados-nação do início da era moderna (Tratados de Paz de
Westfália, 1648), os quais não teriam sofrido mudanças fundamentais até os dias de hoje. Será mesmo que não haveria dessemelhanças
entre essas formas de comunidades políticas distanciadas por milhares de anos? Ontologicamente, o conceito de Estado não significa a
mesma coisa para os contextos citados.
O pensamento realista procura regularidades no sistema internacional, que lhe permitam prever como as entidades políticas se comportarão. Para isso, interpreta realidades distintas, buscando apontar características que sugerem continuidades. Mas será mesmo que a
composição e interação das idéias, a organização material e as insti259
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tuições que constituíam as comunidades políticas permitem que falemos de um “Estado” que atravessa os tempos e não respeita as particularidades de cada contexto histórico? É aceitável propor que forças
sociais e as ordens mundiais geram somente um tipo de comunidade
política?
Há um compromisso normativo intrínseco com a manutenção da ordem, e com aqueles que se beneficiam dela. Por exemplo, o mecanismo que regula e distribui poder entre entidades que se motivam pelo
mesmo objetivo (conquistar ou aumentar seu poder) é o equilíbrio ou
balança do poder. O realismo político é uma perspectiva teórica, portanto, que poderá ser identificada com os interesses do Estado hegemônico.
Para a teoria crítica, por conseguinte, a ordem internacional está em
constante transformação. Essa mutação faz com que, por meio da
agência humana, se possa guiar alterações em direção à emancipação. A teoria cumpre, portanto, um papel de guia para a ação estratégica, isto é, para a ação transformadora. Muito mais do que um reles
instrumento para analisar seu objeto de estudo, a teoria passa a ter
uma função nessa ação. Da mesma forma que cientistas não se devem deixar iludir por um véu de pretensa neutralidade – já que eles
próprios compõem seu objeto de estudo, carregam e cultivam valores, interesses particulares –, a ciência também não é neutra. Pode haver uma teoria interessada na manutenção da atual ordem das coisas,
como pode haver teorias interessadas em sua transformação. Para
Cox (1995a; 1995b), essa opção será o divisor de águas das teorias,
nos termos abaixo.
Em sua forma de distinguir as teorias, Cox (1995a; 1995b) propõe
uma heterogeneidade em três níveis. Entende que teorias devem ser
analisadas com base em três dimensões que permitem a comparação
e a conseqüente classificação dos modos de teoria: a perspectiva, a
problemática e o propósito.
260
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Teoria Crítica em Relações Internacionais
A perspectiva seria a localização espaço-temporal. Em sintonia com
a crença de que o contexto social do sujeito influi em suas definições
ontológicas, na maneira que elege para interpretar a realidade social,
a perspectiva reflete precisamente a extensão dessa função. Por
exemplo, o realismo político é intensamente associado a teóricos es6
tadunidenses (Morgenthau, Deutsch etc.) e britânicos (Carr etc.) . A
localização espaço-temporal aponta para uma coincidência: trata-se
de teóricos de nacionalidade de um Estado-nação hegemônico em
decadência (Grã-Bretanha, ao menos no momento em que Carr escreve) e de um Estado-hegemônico em ascensão (Estados Unidos,
principalmente no pós-Segunda Guerra Mundial). O fato de que o realismo político principia seu domínio no período auge de domínio
estadunidense não pode ser relegado ao acaso. A corrente de pensamento realista parece ter uma ligação clara com uma forma de interpretar as relações internacionais que reflete e atende aos interesses
do Estado hegemônico. De forma semelhante, a aplicação do mesmo
raciocínio sobre os teóricos dependentistas revela uma característica
semelhante: estamos diante, nesse caso, de uma série de pensadores
7
oriundos de Estados periféricos ou semiperiféricos .
“O mundo é visto de uma posição definida em termos de nação ou
classe social; de dominação ou subordinação; de ascensão ou declínio de poder; de um sentido de imobilidade ou de crise atual; de experiências passadas e de esperanças e expectativas para o futuro. Uma
teoria jamais é a expressão pura e simples de sua perspectiva. Por outro lado, quanto maior a sua sofisticação, mais ela reflete sobre si e
transcende sua perspectiva. Por conseguinte, não existe teoria por si
só, divorciada de sua posição no tempo e no espaço. Quando uma teoria se apresenta como tal, faz-se necessário examiná-la como uma
8
ideologia, e tentar revelar sua perspectiva” (Cox, 1995a: 87) .
A crítica coxiana não leva a supor que a busca por um conhecimento
neutro ou imparcial deva inspirar o teórico. Ao contrário, afirma que
todo conhecimento refletirá particularidades de quem o produz, e das
261
Marco Antonio de Meneses Silva
quais o teórico não pode se julgar imune. A perspectiva deve ser
compreendida como o contexto histórico a partir do qual a produção
teórica ocorre. Isso significa examinar de onde emerge o teórico; é o
seu ponto de partida fundamental. Sua teoria poderá transcender esse
ponto de gênese e adquirir uma percepção histórica, ou poderá se limitar a ele.
Cada teoria também abrange uma problemática, ou mais. A problemática refere-se às premissas da vida social que cada teoria deseja
abranger. Cada teoria também elege dentre os múltiplos aspectos da
realidade que compõem seu objeto de estudo, quais serão foco de sua
preocupação. Sendo assim, não é tarefa árdua identificar a problemática do realismo político: a questão da segurança internacional. A teoria da dependência também apresenta uma problemática claramente distinguível. Trata-se de uma abordagem que busca compreender
o motivo que impedia países não-desenvolvidos de evoluírem em direção ao desenvolvimento.
Uma teoria sempre serve a alguém e a algum propósito. É imprescindível conhecer o contexto em que é gerada e usada; igualmente imperativo é conhecer se o objetivo do teórico e de quem se utiliza da teoria é manter a ordem social existente ou mudá-la. Esses dois propósitos levam a duas espécies de teoria. A teoria de resolução de problemas – problem-solving theory – aceita o mundo como um dado, e
aponta para a correção de disfunções ou problemas específicos que
emergem dentro da ordem existente. O objetivo geral da resolução de
problemas é fazer com que as relações e instituições prevalecentes de
dominação social e política funcionem bem por meio do enfoque das
origens específicas dos problemas. Como o padrão geral das relações
e instituições não é passível de crítica, problemas específicos são
analisados em relação às áreas especializadas de atividades em que
surgem. Portanto, a resolução de problemas representa uma modalidade de teoria que tende a colaborar com a manutenção das relações e
instituições sociais e políticas, ou seja, expressa um intento conser262
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Teoria Crítica em Relações Internacionais
vador da ordem social e política. Ela se interessa pelas reformas específicas que têm por fim a manutenção das estruturas existentes.
A outra espécie de teoria, a teoria crítica, dedica-se à forma como a
ordem existente surgiu e às suas possibilidades de transformação. Ao
contrário da teoria de resolução de problemas, a teoria crítica não vê
as instituições e relações sociais e políticas como um dado, mas as
questiona, procurando entender como surgiram e se podem estar em
um processo de transformação. Ela é direcionada justamente para o
quadro de ação, ou problemática, que a resolução de problemas aceita como seus parâmetros. Um dos objetivos centrais à teoria crítica é
esclarecer a diversidade de alternativas possíveis. Há um elemento
de utopia presente, já que se tenta representar um quadro coerente
para uma ordem alternativa, embora a utopia sofra as limitações impostas pela compreensão dos processos históricos. A teoria crítica
deve recusar alternativas improváveis, além de rejeitar a ordem prevalecente. Desta forma, serve de guia para a ação estratégica por levar à ordem alternativa, enquanto a resolução de problemas serve de
guia para a ação tática que, intencionalmente ou não, mantém a ordem existente. Dito de outra maneira, a teoria crítica interessa-se pela
exploração do potencial de mudança estrutural e pela construção de
estratégias para a transformação.
O Pensamento
Neogramsciano nas
Relações Internacionais
Uma das vertentes da teoria crítica mais influentes em Relações
Internacionais tem sido o pensamento de Antonio Gramsci, sobretudo na economia política internacional. Lembramos que esse cientista
político italiano não chegou a produzir um tratado teórico integrado:
ao contrário, sua obra capital, Cadernos do Cárcere (2000), é uma
coletânea de artigos escritos enquanto esteve encarcerado pelo regime de Mussolini nas décadas iniciais do século XX.
263
Marco Antonio de Meneses Silva
Nesta seção, examinarei algumas das idéias centrais do pensamento
gramsciano para, em seguida, observar a sua transposição para as relações internacionais. Observa-se, novamente, o fruto do esforço de
Robert Cox (1995b), embora outros autores também nos sirvam de
referência (Gill, 1993; 1998; Jardim, 2002).
Gramsci é considerado por muitos o maior teórico neomarxista. Sua
preocupação fundamental resume-se em compreender as deficiências nas previsões que Marx havia feito acerca da expansão das experiências revolucionárias socialistas, particularmente nas sociedades
capitalistas mais avançadas. Nisso há um paralelo com a primeira geração da Escola de Frankfurt. Enquanto os frankfurtianos identificaram a influência da cultura, a burocracia, a natureza do autoritarismo,
a questão da razão e da racionalidade e discussões epistemológicas
para explicar o fracasso no alastramento do socialismo, Gramsci buscou elucidar a influência da hegemonia nesse fenômeno. Todos trabalharam uma temática claramente situada na superestrutura.
Há que se ter em mente que o conceito de hegemonia de Gramsci
(2000) guarda pouca semelhança com o termo usado habitualmente
nas Relações Internacionais e com o conceito derivado do realismo.
Para realistas, trata-se do Estado dominante no sistema internacional, ou do Estado mais forte em uma região específica. Gramsci
(idem) buscou alargar esse entendimento em decorrência de seu conceito mais amplo de poder.
O desenvolvimento do conceito gramsciano de hegemonia apresenta-se como uma discussão produtiva. A noção de hegemonia como
uma ordem política relativamente incontestada, e habitualmente aceita de maneira passiva, isto é, uma combinação da coerção e do consentimento, abre múltiplas possibilidades de reinterpretação da rea9
lidade internacional . A hegemonia, exercida por forças sociais que
detêm o controle do Estado, tem por finalidade a produção do consentimento nas demais. Gramsci (idem) entendeu que os valores mo264
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Teoria Crítica em Relações Internacionais
rais, políticos e culturais do grupo dominante são dissipados por
meio das instituições da sociedade civil, obtendo o status de significados intersubjetivos compartilhados, daí a noção de consentimento.
As ideologias dominantes proliferam-se de tal maneira que passam à
qualidade de senso comum.
O sentido do termo “sociedade civil” aqui empregado diz respeito à
rede de instituições e práticas da sociedade que gozam de relativa autonomia do Estado, por meio das quais grupos e indivíduos se organizam, representam-se e expressam-se.
Dessa forma, as possibilidades de mudança surgem da noção de bloco histórico, ou seja, as relações entre a base material (infra-estrutura) e as práticas político-ideológicas que sustentam uma
certa ordem. A transformação somente emergirá se a hegemonia for
contestada. O lócus para tal seria a sociedade civil, uma vez que iniciativas contra-hegemônicas devem desafiar a hegemonia a fim de que
surja um bloco histórico alternativo.
Outra implicação dessas premissas impõe que, se a perpetuação da
dominação da classe governante ocorre por meio da hegemonia, a
transformação só poderá advir se a hegemonia for contestada. Isso
compreende uma luta contra a ordem prevalecente no cerne da sociedade civil, compreende uma contra-hegemonia, em busca de um blo10
co histórico alternativo . A fim de transcender determinada ordem,
há que se ter em mente que na contra-hegemonia, a legitimidade política e a mudança histórica representam estruturas historicamente limitadas.
Nesse ponto, convém afirmar que uma transposição da teoria política
de Gramsci acerca da política doméstica italiana nas décadas de 1920
e 1930 para a esfera internacional ou para a política mundial não é tarefa das mais fáceis, nem pode ser feita de maneira direta. Em que pesem essas dificuldades, os autores dessa corrente têm obtido um êxito surpreendente, constatado a seguir.
265
Marco Antonio de Meneses Silva
Podemos creditar também a Robert Cox o mérito de ter introduzido
Gramsci no estudo da política mundial, em uma abordagem que
compreende o desenvolvimento de uma estrutura alternativa para a
análise dessa. Percebemos uma significativa influência do gramscianismo no desenvolvimento do seu entendimento teórico sobre as ordens mundiais, que se apropriam das fontes de estabilidade de um
dado sistema, bem como da dinâmica dos processos de transformação. Para tal, Cox (1995b) defende que a hegemonia é um conceito
tão central para explicar a manutenção da estabilidade e continuidade no domínio internacional quanto para o nível doméstico. Sucessivos Estados dominantes têm criado e moldado ordens mundiais da
forma mais conveniente aos seus interesses, graças às suas capacidades de coerção, bem como ao consentimento generalizado provocado, mesmo entre aqueles que não (ou pouco) se beneficiam.
Cox (idem) procura entender as ordens mundiais como estruturas
históricas compostas por três categorias de forças: capacidades materiais, idéias e instituições. As capacidades materiais dizem respeito
à esfera econômica da estrutura social. Como tal, incluem o potencial
tecnológico e organizacional; portanto, denotam não somente como
qualquer sociedade se reproduz em sua base material, mas também a
maneira como essa reprodução é planejada, antecipada.
A esfera ideológica subdivide-se em duas partes. Por um lado, encontramos o conceito de significados intersubjetivos, que afetam a
conservação de hábitos e subsidiam expectativas quanto ao comportamento social. Cox (idem) afirma que Estados são exemplos notórios na política mundial, uma vez que representam formas generalizadas de comunidade política. Por outro lado, encontramos as imagens
coletivas da ordem social. Em sua essência, constituem juízos diversos sobre os significados de justiça e dos bens públicos, sobre a legitimidade das relações de poder presentemente cultivadas. O choque de
posições adversárias representa a possibilidade da mudança, o potencial para a produção de uma ordem alternativa. Enquanto signifi266
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Teoria Crítica em Relações Internacionais
cados intersubjetivos tendem a ser largamente generalizados em
dado contexto histórico, as imagens coletivas são significativamente
mais numerosas e divergentes.
As instituições são fundamentais. Segundo Cox (idem), desempenham função vital na estabilização e perpetuação de uma ordem particular. Originalmente, tendem a reforçar as relações de poder estabelecidas, cultivando imagens coletivas compatíveis. Contudo, no
decorrer do tempo, imagens coletivas rivais ou até instituições concorrentes podem ser criadas e lançadas. As instituições refletem, por
conseguinte, uma combinação específica de idéias e poder material,
entretanto, podem também transcender a ordem original e influenciar o desenvolvimento de novas idéias e capacidades materiais.
Essa posição se clarifica quando se aplicam as estruturas históricas a
três níveis: formas de Estado, forças sociais e ordens mundiais. Examinemos as implicações conseqüentes. A interação dos três níveis
proíbe qualquer hierarquia determinada a priori das relações. Além
do mais, cada nível é o resultado da luta entre estruturas rivais.
O nível inicial abrange os complexos Estado/sociedade. Chama-se
atenção para as formas e estruturas de Estado que sociedades específicas desenvolvem. A historicidade da forma de qualquer Estado é
uma derivação da configuração particular das capacidades materiais,
idéias e instituições, que é específica de um complexo Estado/sociedade.
A organização da produção, em especial das forças sociais participantes, constitui o segundo nível. À medida que evolui a produção,
observamos transformações expressas na gênese, no fortalecimento
ou no declínio de forças sociais específicas. Com a forma ainda dominante de um capitalismo hiperliberal, em uma escala global, as
forças sociais associadas à economia real em contraposição aos mercados financeiros (como sindicatos) têm sido enfraquecidas, em favor do fortalecimento de investidores privados, por exemplo.
267
Marco Antonio de Meneses Silva
Por fim, o terceiro nível é representado pelas ordens mundiais. Estas
seriam a constituição precisa de forças que, em seqüência, determinam a maneira como os Estados interagem. Cada contexto histórico
produzirá uma configuração específica das forças sociais, dos Estados, e da inter-relação entre eles que repercutirá como uma ordem
mundial particular. A título de exemplo, tem havido bastante discussão acerca de uma nova ordem mundial inaugurada pela resposta de
George W. Bush aos ataques de 11 de setembro de 2001, em referência clara ao princípio da ação preventiva (Política Externa, 2002). O
impacto gerado pela propagação desse conceito desencadeou a perspectiva de uma mudança fundamental nos padrões atualmente aceitáveis de conduta entre Estados.
Entre os três níveis, no entanto, não encontramos uma relação unilinear. Forças sociais transnacionais têm influenciado Estados por
meio da estrutura mundial, conforme evidenciado pelos reflexos do
capitalismo expansivo do século XIX sobre o desenvolvimento de
estruturas de Estado no centro e na periferia. A conformação conjuntural das ordens mundiais é capaz de exercer influência sobre as formas que assumem os Estados. Em resposta à sensação de ameaça à
existência de um Estado soviético, marcado por uma ordem mundial
hostil, surgiu o stalinismo. Já o complexo industrial-militar dos países centrais justificou sua ingerência sobre os demais, apoiado sobre
um quadro conflituoso da ordem mundial de então. Este quadro se
configurou nos países periféricos com a existência de um militarismo repressivo, sustentado pelo apoio externo do imperialismo, assim
como por uma peculiar conjunção de forças sociais internas nesses
países. Formas de Estado também afetam o desenvolvimento de forças sociais pelos tipos de dominação que exercem, por exemplo,
avançando os interesses de uma classe, às expensas dos interesses de
outra.
Consideradas em separado, forças sociais, formas de Estado e ordens
mundiais podem preliminarmente ser representadas como configu268
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Teoria Crítica em Relações Internacionais
rações específicas de capacidades materiais, idéias e instituições.
Consideradas conjuntamente e, portanto, em direção a uma representação mais completa do processo histórico, cada uma conterá as
demais, assim como será objeto da transformação destas.
Não restam dúvidas de que o pensamento gramsciano em Relações
Internacionais encontrou terreno fértil para se reproduzir. Nota-se
que a inspiração marxista dessa abordagem facilita a penetração de
tais idéias especialmente nos domínios da economia política internacional. Não se deve cometer o equívoco, contudo, de crer na restrição
do alcance de Gramsci nas Relações Internacionais a questões clara11
mente econômicas .
Teoria Crítica Internacional
A teoria crítica internacional representa uma derivação do pensamento coxiano. Seu expoente cardeal, Andrew Linklater, tem sua
trajetória acadêmica marcada por uma sintonia inicial com as idéias
de Cox e uma marcante evolução rumo a uma temática alternativa.
Para Devetak (1995), a tarefa da teoria crítica internacional, consoante Linklater (1996), seria fornecer uma teoria social da política
mundial. Trata-se do alargamento do escopo tradicional das Relações Internacionais, não mais limitado por obsessões “estatocêntricas”. Em comunhão com as preocupações atinentes à transformação
da realidade social e política, essa corrente deve muito às tentativas
de reconstrução do materialismo histórico, em particular ao trabalho
de Jürgen Habermas.
Encontramos, novamente, paralelos com o intuito gramsciano de buscar compreender melhor o papel que idéias, valores, ideologias, isto é,
a superestrutura, desempenham na construção e manutenção das estruturas sociais e políticas. A crítica intrínseca remete-nos a uma sobrevalorização da dimensão material e das forças de produção. Marx
269
Marco Antonio de Meneses Silva
tendeu a imaginar a relação entre infra-estrutura e superestrutura de
maneira automática, ao passo que Habermas (1993) procura entender
a relevância das estruturas normativas, chegando a sugerir que a última se sobrepõe à primeira. Devetak (1995) decifra a questão como
uma mudança paradigmática, do paradigma da produção e consciência em direção ao paradigma da linguagem. Subjaz à transformação o
esforço de diferenciar entre formas de racionalidade e o de compreender a racionalidade comunicativa (ou agir comunicativo), tendo em
vista as formas da razão moral-prática na vida social.
Habermas (1993) propõe que o conhecimento guarda relação com a
idéia de interesses. O interesse técnico procura entender e controlar o
meio ambiente; o interesse prático guarda relação com entender outros sujeitos; e o interesse emancipatório busca a mudança. Sua teoria da ação comunicativa é uma tentativa de combinar interesses práticos e emancipatórios.
Para Habermas, a razão não existe dentro do indivíduo isolado. Ela
requer o diálogo. Ele reforça a noção do sujeito como entidade racional, mas condiciona o surgimento da racionalidade a um quadro, uma
comunidade. Há normas constitutivas para o entendimento comunicativo que devem ser acatadas pelos sujeitos para surgir uma situação
de “discurso ideal”.
Essa situação requer uma certa dose de tolerância no diálogo. Todos
os participantes devem ter oportunidades iguais de participar. Devem
exercer o direito de afirmar, defender ou questionar qualquer posição
normativa. Essa interação não deve ser impedida por papéis ativos ou
diferenças de status. Além disso, os participantes devem se inspirar
no desejo de atingir um consenso sobre a verdade das afirmações e a
validade das normas. Habermas não afirma prover uma prescrição
para dilemas éticos. O agir comunicativo é mais um procedimento,
em que a validação ocorre por meio de um processo de diálogo.
270
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Teoria Crítica em Relações Internacionais
A Linklater (1998) devemos o reconhecimento de ter introduzido e
12
avançado as idéias de Habermas nas Relações Internacionais . Seus
esforços estão em sintonia com a defesa da noção de que a emancipação no domínio internacional deva ser apreciada na forma da expansão das barreiras morais entre comunidades políticas. A emancipação constitui a perda de significado moral e ético das fronteiras dos
Estados. O foco passa a ser as múltiplas formas de inclusão e exclusão promovidas pela política mundial, dentre as quais se destaca o
Estado enquanto comunidade moral. Linklater (idem) defende o universalismo moral sem exclusão.
Esta pode ser compreendida de duas formas. Uma se refere àquilo de
que se tenta evadir-se (participação, recursos) intencionalmente (discriminação visível) ou por meio das estruturas de poder ocultas,
como os discursos que negam, escondem ou marginalizam a diferença. Outro sentido entende exclusão como simplesmente o oposto da
inclusão.
Segundo Linklater, um relato compreensivo sobre a política mundial
requer a análise e múltiplas formas de exclusão. O autor defende que
a exclusão decorre de nós designarmos relevância moral a certas barreiras entre pessoas (tais como fronteiras nacionais, de gênero, de
raça, de classe etc.).
A tarefa que temos adiante é (1) normativo-filosófica – refletir sobre
os critérios que determinam a legitimidade dos modos de inclusão e
exclusão –; (2) histórico-sociológica – examinar as origens, a reprodução e potencial transformação das barreiras morais –; e (3) política
– almejar atingir um equilíbrio justo entre o universal e o particular.
O argumento de Linklater (idem) é amplo e complexo, e não poderá
ser adequadamente resumido aqui. Está centrado no conceito de comunidade, revendo a separação entre as posições comunitarista e
13
cosmopolitista e a natureza das barreiras moralmente relevantes de
inclusão e exclusão da comunidade.
271
Marco Antonio de Meneses Silva
Sua idéia de comunidade política adota a forma de uma comunidade
dialógica: todos estão convidados a participar e qualquer posição
moral está propensa ao questionamento. Já que todos têm voz, e as
regras dizem respeito somente ao procedimento e não ao conteúdo
do diálogo, essa seria a forma mais adequada de determinar os melhores arranjos para a ordem social e de evitar a exclusão enquanto se
celebra a diferença. O diálogo, dessa forma, expressa um valor por si
só, e seu objetivo é estabelecer o consenso. Está claro que estamos diante de uma noção habermasiana de diálogo ou de ética do discurso.
Linklater (1998) acredita que o problema não é universalismo em si,
mas as versões em que se supõe que a razão individual possa descobrir um ponto de vista arquimediano que transcende as distorções e
limitações do tempo e do espaço. É possível uma moralidade reflexiva que reconhece (1) que a construção da identidade requer que se
evite a representação negativa dos outros e (2) que o direito à autodeterminação comunitária há de ser exercido de maneiras que aceite o
princípio moral cosmopolita segundo o qual é legítimo que estrangeiros também reivindiquem bem-estar. A universalidade passa a ter a
forma de responsabilidade de engajamento com outros indivíduos
(independente de suas características raciais ou nacionais) em um
diálogo aberto sobre assuntos que comprometem seu bem-estar. A
questão para Linklater (idem), portanto, não é que a exclusão deixasse de existir, mas que, por meio do diálogo, a comunidade decidiria
sobre como e quem excluir ou incluir, por dar uma voz a todos. A exclusão não seria “injusta”, mas legitimada. Adiante, comunidades dialógicas assim concebidas seriam, por definição, sempre abertas e
dispostas à expansão para incluir mais estrangeiros, e de fato seria
sua responsabilidade incluí-los, sempre que envolvesse o bem-estar
desses. Isso implicaria que as fronteiras não seriam fixas porque não
mais teriam relevância moral, visto que a priori não haveria razão
para excluir ninguém.
O aspecto complicado do esforço admirável de Linklater (idem) é a
tentativa de reconciliar “a celebração da diferença” com um projeto
272
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Teoria Crítica em Relações Internacionais
universalista. Ele escreve abertamente a partir de uma perspectiva liberal-democrática kantiana-hegeliana, o que gera sérios problemas
em sua argumentação. Acreditamos que essas dificuldades tornam
suas idéias no final das contas incapazes de realizar sua tarefa. Sem
nos referirmos a todas as críticas a Linklater (seu viés União Européia e a ausência de indicações quanto à institucionalização dos arranjos políticos pós-westfaliano), alguns problemas são relevantes à
nossa argumentação.
Primeiro, a dimensão do poder – a noção de comunidade dialógica
levanta questões do tipo: e se não houver consenso dentro da comunidade? Quem terá a autoridade de arbitrar a decisão a ser tomada?
Quem definirá as regras do jogo? Parece que a comunidade dialógica
de Linklater (idem) está aberta apenas àqueles que aceitam as regras
do jogo. Que todos irão aceitá-las é uma questão à parte. Sua visão
procedimental sobre a ética obscurece as relações de poder existentes entre os participantes. Como seria uma esfera pública aberta, livre, não-manipulada? Como seria o acesso? Seria possível?
Em segundo lugar, a visão habermasiana de Linklater (idem) parte do
pressuposto de que as metas e valores das pessoas não seriam fundamentalmente incompatíveis, em outras palavras, que somos todos essencialmente “iguais”, na verdade. Essa é uma visão particularmente
liberal. Considera, também, o indivíduo pré-social, abstraído de todos os “outros” aspectos, como a cultura. No entanto, a cultura não
pode ser usada como vestimenta, a ser descartada a qualquer momento. Nossos discursos (raciocínio, linguagem) são eles próprios culturalmente situados e constituídos – assim como os de Linklater
(idem).
Análise
Fica evidente que não se deve menosprezar a força do impacto que
teóricos críticos causaram nas Relações Internacionais, estendendo-se à economia política internacional. Essa repercussão, como vi273
Marco Antonio de Meneses Silva
mos, fundamenta-se sobre uma visão inovadora das discussões epistemológicas no âmbito das Relações Internacionais. Contudo, houve
quem recebeu a teoria crítica e sua vertente neogramsciana com menos entusiasmo. Se não, vejamos os argumentos.
Um dos traços que mereceu censura diz respeito ao pessimismo que
teóricos críticos, em geral, têm demonstrado no que diz respeito aos
agentes da transformação social pretendida, particularmente quando
se trata de organizações não-governamentais (ONGs) e intergovernamentais (OIGs).
De maneira semelhante, há críticas imbuídas de excesso de otimismo, ou de utopia, quanto à mudança estrutural tão preconizada.
Observamos um curioso paradoxo no que se refere ao Estado. Há
desde aqueles que consideram os teóricos críticos por demais obcecados pelos Estados, o que constitui o já citado “estadocentrismo”,
até aqueles que diagnosticam a ausência de uma atenção apropriada
ao Estado.
O tema da globalização trouxe à tona as contribuições singulares dos
neogramscianos para a economia política internacional. Nesse caso,
trata-se da crítica quanto à despersonalização dos fenômenos. Tais
autores preferem enxergá-la como um processo conduzido por alguns Estados.
Em suas discussões, autores contemporâneos descendentes das tradições marxistas, principalmente aqueles que têm devotado atenção
às problemáticas da identidade, aliados aos antropólogos, queixam-se da subestimação das forças culturais, em favor de um reducionismo fundado sobre a produção, sobre o materialismo.
14
O neogramscianismo pressupõe que haja uma “verdadeira consciência”, ou interesses objetivamente identificáveis. Este postulado
se encontra presente até mesmo na divisão epistemológica da teoria
274
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Teoria Crítica em Relações Internacionais
crítica, ao assegurar que não é possível conhecer a realidade a não ser
por um conjunto específico de valores. Segundo Griffiths (2004), a
eleição da emancipação enquanto valor supremo acaba exigindo
uma verdadeira conscientização – sem que indivíduos estejam conscientes da opressão, não poderão ser emancipados. Não seria tarefa
singela, tampouco aberta às interpretações subjetivas, ao relativismo, revelar as forças sociais e materiais que evitam que indivíduos
alcancem seus interesses reais. Ainda consoante Griffiths (idem),
essa posição assevera uma identificação da teoria crítica com o positivismo epistemológico, posição esta que diverge do refletivismo comumente identificado por outros autores na teoria crítica.
Conclusão
Como reflexões finais, convém ressaltar o êxito obtido pela teoria
crítica, em suas diversas abordagens aqui apresentadas.
Preliminarmente, cabe rememorar os impactos profundos sobre as
discussões teóricas em Relações Internacionais que podem ser identificados como tendo origem nas indagações apresentadas por Robert Cox (1995a; 1995b; 2000). Esse ponto não deve ser menosprezado. Se hoje há um vibrante debate metateórico, para o regozijo de
alguns e tristeza de outros, isso se deve em grande parte aos teóricos
críticos e às perspectivas teóricas que se aproveitaram das questões
propostas. Entendemos que a teoria crítica representa uma guinada
importante, em uma nova direção, diante da encruzilhada em que se
encontrava o campo de estudos no início dos anos 1980.
Outra implicação observada remonta à diversificação do escopo teórico das Relações Internacionais, que expandiu significativamente
seus horizontes, conduzindo tal escopo rumo a novas conceituações
dos fenômenos da política mundial. Expuseram-se as limitações
epistemológicas das tradições de pensamento convencionais das Relações Internacionais. Diversas abordagens mais recentes podem,
275
Marco Antonio de Meneses Silva
por conseguinte, ter suas origens identificadas na teoria crítica, como
a teoria normativa, o pós-modernismo, algumas correntes do feminismo, o construtivismo, e daí por diante.
Há outros pontos importantes a serem ressaltados nessa análise sobre
as realizações da teoria crítica. Linklater (1996) aponta-nos quatro
principais. Uma se atém aos desafios impostos ao positivismo epistemológico (racionalismo), uma vez que para a teoria crítica o conhecimento não surge do engajamento neutro do sujeito com uma realidade objetiva; ao contrário, reflete propósitos e interesses sociais preexistentes.
A segunda grande realização seria a contestação da posição segundo
a qual as estruturas sociais atuais são imutáveis, já que essa noção
sustenta as iniqüidades estruturais de poder e riqueza que são por
princípio alteráveis. A preocupação recorrente com a emancipação
nas diversas correntes vistas aqui se sustenta sobre uma concepção
que deve apreciar a possibilidade de transformação da ordem social,
a despeito daquela posição epistemológica que defende uma posição
muito mais contemplativa.
É inegável, por outro lado, a influência do marxismo sobre a teoria
crítica. Esta representa uma tentativa de superação de debilidades
inerentes àquela ao rejeitar que a luta de classes é a forma fundamental de exclusão social, e que a produção é o determinante fundamental da sociedade e da história.
As vertentes mais recentes, particularmente o que chamamos de teoria crítica internacional, julgam arranjos sociais pela sua capacidade
de abraçar diálogos abertos com todos e visualizar novas formas de
comunidade política que rejeitam a exclusão injustificada. Essa é a
quarta grande realização da teoria crítica segundo Linklater (1998).
Por fim, cabe afirmar que, consoante o nosso entendimento, não estamos diante de abordagens que poderão ser nitidamente classificadas
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CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Teoria Crítica em Relações Internacionais
dentro da epistemologia pós-positivista. Aqui há um largo e (pantanoso) terreno para debate. Pelo que entendemos, a teoria crítica pode
ser acusada consistentemente de carregar características híbridas15.
Se, por um lado, é responsável pela incorporação do refletivismo, da
incerteza sobre o alcance da racionalidade, por outro, a teoria crítica
não leva essa intenção adiante. Afinal, se teorias servem a alguém e a
algum propósito, como sustentar a defesa pela emancipação? Se há
uma posição normativa da teoria crítica rejeitando a ordem social
atual, como pode afirmar que a ordem almejada seria “melhor”? A
tarefa caberá ao pós-modernismo em Relações Internacionais, vertente essa que produzirá uma censura consistente sobre os limites auto-impostos da teoria crítica.
Notas
1. Essa proposição é particularmente verdadeira nas academias européias,
principalmente na britânica, e encontra-se respaldada em Burchill e Linklater
(1996) e Smith e Booth (1996). Na academia brasileira das Relações Internacionais, há que se registrar o louvável esforço de Rocha (2002).
2. Trata-se de um episódio relatado por Tucídides (2002) em que a dominadora Atenas pretendia tomar a pequena ilha de Melos, suscitando uma discussão
entre ambas as cidades acerca do poder versus a moralidade nas relações entre
comunidades políticas.
3. Seguramente um dos artigos mais citados em textos desde sua publicação
em 1981. O artigo é mais conhecido por ser encontrado em Keohane (1986).
4. Para um exímio relato da proximidade (quase promíscua) entre as disciplinas científicas e o Estado, sua gênese e sua institucionalização, ver Wallerstein
(1996), sobretudo o capítulo primeiro.
5. Como tantas outras questões, também é motivo de debate nesse campo de
estudo. Para os britânicos, deu-se com a criação da cadeira Woodrow Wilson na
Universidade de Gales em Aberystwyth, no curso de Direito Internacional, em
1919.
277
Marco Antonio de Meneses Silva
6. Raymond Aron curiosamente fica às margens dessa caracterização. Isso,
contudo, não invalida a proposição. Não se trata de estabelecer uma lei universal. Podemos expandir a proposição para incluir Estados-nação centrais, mas
não hegemônicos, sem prejuízo para a validade da proposição (Griffiths, 2004).
7. Aqui, a tentativa de encontrar falhas torna-se mais custosa. No sentido estrito do dependentismo, não parece haver significativa contribuição de autores que
não fossem de países não-centrais: Teotônio dos Santos, Celso Furtado, Raul
Prebisch, Caio Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, André
Gunder Frank, Said Amin, Giovanni Arrighi – todos tiveram seus nomes associados a essa corrente (Silva, 2002).
8. Tradução minha.
9. Maquiavel já o sugeriu com a analogia ao centauro (metade homem, metade fera).
10. Para Craig Murphy (1990:25-46), isso não tem acontecido. Pelo contrário, haveria um bloco histórico conservando a dominância em escala global,
possivelmente composta por uma classe dirigente “atlântica” ou “trilateral”, por
classes subordinadas no interior de Estados industrializados e por classes dirigentes nos países em desenvolvimento. Em outro trabalho, Murphy (1994) explora as repercussões da escolha de uma análise gramsciana sobre o tema da organização e governabilidade internacionais, apontando a influência de idéias e
valores consolidados nas organizações institucionais e internacionais, visando
o bom funcionamento da economia política global.
11. Serve como exemplo a aplicação do neogramscianismo na temática da segurança internacional (Lamazière, 1998).
12. O próprio Habermas (1993) tem dedicado atenção crescente ao universo
das relações internacionais, fazendo-o, porém, a partir de uma perspectiva que
tende a empobrecer e restringir por demais o alcance de suas idéias. A porta de
entrada de Habermas nos domínios da política internacional tem sido a noção da
construção de consensos por meio da firmação de tratados e convenções entre
Estados.
13. Trata-se da divisão doutrinária dentro da chamada teoria normativa em
Relações Internacionais. Ver Hoffman (1994) e Frost (1994).
14. O dilema remete inclusive à noção de “consciência de classe” marxiana.
Como verificar se essa consciência se encontra presente?
15. Há quem afirme que tal hibridismo é compartilhado pelo construtivismo
social. Para um exame aprofundado da matéria e suas implicações para as Relações Internacionais, ver novamente Rocha (2002).
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CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Teoria Crítica em Relações Internacionais
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Resumo
Teoria Crítica em Relações
Internacionais
Este artigo tem por objetivo apresentar a tradição da teoria crítica em Relações Internacionais. Entende-se que haja uma lacuna nos debates teóricos
com a reduzida atenção dedicada a essa tradição no Brasil. O revigoramento dos debates teóricos contribui para o enfraquecimento das tradições teóricas convencionais. O papel da teoria crítica nessa tendência é
primordial. A teoria crítica da Escola de Frankfurt é examinada como precursora filosófica e metateórica da teoria crítica em Relações Internacionais. Em seguida, as bases epistemológicas dos desafios da teoria crítica
às teorias convencionais são apresentadas, com ênfase especial dedicada
ao trabalho de Robert W. Cox. O pensamento neogramsciano é inspecionado à luz da busca pela transformação social nas relações internacionais.
A vertente da teoria crítica internacional é vista como fonte de inspiração
para muitos autores que trabalham com a emancipação. Examina-se a produção de Andrew Linklater por representar a busca por transformação das
comunidades políticas por meio da expansão de suas fronteiras morais.
Em seguida, busca-se uma avaliação crítica dos impactos trazidos pela teoria crítica ao campo de estudos das Relações Internacionais. Conclui-se
que a teoria crítica tem méritos na guinada das discussões teóricas em direção a questionamentos ontológicos e epistemológicos, debate esse que
tem caracterizado esse campo de estudo nas últimas décadas, por meio da
exposição das limitações conseqüentes do domínio das teorias convencio281
Marco Antonio de Meneses Silva
nais. Não obstante, a associação da teoria crítica ao pós-positivismo epistemológico constitui atitude premeditada.
Palavras-chave: Teoria das Relações Internacionais – Teoria Crítica –
Escola de Frankfurt – Gramsci
Abstract
Critical Theory in International
Relations
This article aims to present Critical Theory in International Relations. It is
understood that there has been a lacuna in theoretical debates with little
attention paid to this tradition in Brazil. The current revival in theoretical
discussions contributes to the weakening of conventional theories. The role
of Critical Theory in this trend is fundamental. Frankfurt School Critical
Theory is examined as a philosophical and metatheoretical forerunner to its
International Relations’ counterpart. There follows the epistemological
bases for the challenges Critical Theory poses to conventional approaches,
with particular regard to the work of Robert W. Cox. Neo-Gramscian
thought is thus in the light of concerns for social transformation in
International Relations. The Critical International Theory perspective is
subsequently scrutinized as a source for emancipatory concerns of IR
scholars. The work of Andrew Linklater is presented due to the search for
the transformation of political communities by way of the expansion of
moral boundaries. A critical assessment of the impacts of Critical Theory to
the field of International Relations is thus presented. This article concludes
that Critical Theory is largely accountable for the turn towards the
ontological and epistemological issues that have distinguished this field of
study within the last few decades, by exposing the consequential
shortcomings of the predominant conventional theoretical approaches.
However, Critical Theory is deliberately associated to post-positivist
epistemologies.
Key words: International Relations Theory – Critical Theory – Frankfurt
School – Gramsci
282
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Além do Ocidente,
além do Estado e
muito além da Moral:
Por uma Política
Eticamente
Responsável em
Relação à Diferença –
O Caso Ruandês*
Ana Cristina Araújo Alves**
Introdução
Em 6 de abril de 1994, o avião que trazia os presidentes Juvenal
Habyarimana e Cyprien Ntaryamira, de Ruanda e Burundi respectivamente, foi misteriosamente derrubado. As autoridades voltavam
de um encontro em Dar es Salaam (Tanzânia) sobre a formação do
governo de transição em Ruanda. Os eventos imediatamente posteriores ao desastre foram prontamente classificados pela imprensa internacional, pelas Nações Unidas e pelas próprias partes em conflito
o
como um retorno à guerra civil iniciada em 1 de outubro de 1990. O
*Artigo recebido e aceito para publicação em outubro de 2005.
**Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) e professora do IRI/PUC-Rio.
CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 411-463.
411
Ana Cristina Araújo Alves
episódio também é relatado dessa forma pelas principais narrativas
1
acadêmicas contemporâneas sobre Ruanda . Em retrospecto, sabe-se que simultaneamente à guerra civil, ou como estopim da mesma, um genocídio foi colocado em marcha, resultando em centenas
de milhares de mortes.
O genocídio ruandês de 1994, além de ofender profundamente a
consciência da humanidade pelo caráter, dimensão e velocidade das
atrocidades cometidas, também engendrou uma crise humanitária
regional de escala sem precedentes. Suas conseqüências não se limitaram ao quase um milhão de vítimas diretas. Juntamente com a luta
entre a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) e as Forças Armadas Ruandesas (FAR), a violência genocida forçou a fuga de cerca de 250 mil
ruandeses para a Tanzânia e de quase 2 milhões de ruandeses para
campos de refugiados no Zaire e na zona francesa protegida pela
2
Operação Turquesa (Jones, 1995:244; 2001:136-137) .
O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise da decisão da
Organização das Nações Unidas (ONU) tomada em 21 de abril de
3
1994 sobre o estabelecimento da Unamir como resposta à violência
em Ruanda naquele momento. A ênfase recai sobre a avaliação da
responsabilidade ética da organização, à luz da rearticulação radical
dos conceitos de ética, responsabilidade e subjetividade proposta por
Emmanuel Levinas (1999). Buscaremos as implicações dessa decisão em termos das conseqüências que ela permitiu – a saber, o genocídio ruandês, o prolongamento da violência possibilitado pela Operação Turquesa e a reorganização do movimento genocida nos campos de refugiados. Nesse sentido, a decisão da ONU de retirar a maioria de suas tropas do território ruandês, deixando apenas 270 peacekeepers com um mandato limitado à busca de um cessar-fogo entre o
governo interino ruandês e a Frente Patriótica Ruandesa, mesmo que
embasada e justificada pelos critérios de peacekeeping, não constituiu
uma atitude responsável, tampouco ética.
412
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Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...
Além disso, trataremos de um outro aspecto, mais profundo, que
subjaz as condições permissivas dessas trágicas conseqüências: a dominação do princípio do Estado-territorial-soberano na imaginação
política contemporânea. Nosso argumento é de que as rijas fronteiras
entre dentro/fora, Estado/campo de refugiados, doméstico/internacional derivadas deste princípio impuseram também uma compartimentalização na seara da formulação de políticas para lidar com a
crise humanitária que se seguiu ao genocídio. Essa forma fragmentada de lidar com um problema complexo e multifacetado, por sua vez,
resultou em políticas que distorceram as prioridades, minaram a efetividade dos programas de assistências e alienaram o novo governo
instalado (Khan, 2000:174). Destarte, o fracasso em Ruanda diz respeito não apenas à premência da necessidade da reaproximação entre
ética e relações internacionais, no sentido da formulação de políticas
eticamente responsáveis em relação ao Outro. Esse triste evento também demanda que se repensem as próprias fundações da teorização
em relações internacionais, em termos de suas implicações para a
prática política.
Este artigo se desenvolve em torno de dois grandes temas. O primeiro
diz respeito à compreensão da ONU sobre a situação ruandesa após a
invasão da FPR. Isso pode ser avaliado por meio do status e competência atribuídos à Unamir, como descritos no mandato pelo qual a
missão foi instituída, bem como nas demais resoluções da ONU e relatórios do secretário-geral sobre o assunto. A forma como a ONU
identificou e classificou a situação ruandesa foi determinante para a
escolha das políticas sobre esse conflito. A partir daí, podemos fazer
uma consideração sobre as conseqüências da adoção de um tipo de
suposição em detrimento de outros, inclusive em termos da possibilidade de responsabilidade ética em relação à alteridade.
O segundo tema refere-se às intervenções humanitárias iniciadas
após o genocídio ruandês. Na forma como foram implementadas, estas intervenções: (a) negligenciaram as vítimas do genocídio, (b) não
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Ana Cristina Araújo Alves
distinguiram entre génocidaires e refugiados e (c) com isso permitiram a reorganização política e militar dos perpetradores do genocídio. Nosso argumento é de que essas conseqüências são reflexos do
princípio do Estado-territorial-soberano sobre o qual essas intervenções foram concebidas. Ao associar território e identidade, esse princípio converteu automaticamente todos os indivíduos identificados
como “tutsis” em “vencedores” da guerra civil ruandesa e todos
aqueles identificados como hútus refugiados em países vizinhos em
“perdedores”, “perseguidos” e necessitados de socorro. O princípio
da territorialidade impediu que a ajuda humanitária pudesse ser também dirigida aos tutsis sobreviventes do genocídio, por estarem sob
os auspícios do novo – e falido – governo ruandês.
Para cumprir os objetivos traçados, discutiremos em primeiro lugar o
arcabouço teórico que nos permite lançar esse novo olhar sobre o
conflito e o genocídio ruandês. Em seguida, procederemos à análise
da postura internacional em relação a Ruanda nos meses prévios ao
genocídio. Buscaremos inferir como a visão que a comunidade internacional tinha de Ruanda, somada aos critérios de peacekeeping, resultaram na decisão de 21 de abril, bem como no estabelecimento das
causas permissivas para o genocídio. Finalmente, apresentaremos
nossas conclusões sobre o caso.
Pós-modernismo,
Pós-estruturalismo,
Responsabilidade,
Subjetividade e Ética
Os objetivos acima delineados requerem o manuseio de dois arcabouços teóricos que, à primeira vista, podem parecer incompatíveis:
a abordagem pós-moderna/pós-estruturalista em relações internacionais (RI) e a rearticulação radical entre ética, subjetividade e responsabilidade proposta por Emmanuel Levinas (1999). Por um lado,
o pensamento pós-moderno/pós-estruturalista diz respeito ao questi414
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onamento de qualquer fundação segura e universal como critério
para julgar argumentos de verdade. Por outro, a proposta de Levinas
é marcadamente normativa, trazendo em si, ou constituindo-se ela
mesma, um tipo ideal de relação Eu/Outro. Cabe, portanto, a essa seção apresentar ambos os arcabouços, evidenciando sua utilidade na
busca dos objetivos aqui propostos, além de demonstrar sua compatibilidade e complementaridade.
Dentro da vasta e diversificada literatura pós-moderna/pós-estruturalista, destacam-se duas de suas contribuições correlatas mais relevantes na seara deste artigo: o questionamento das fronteiras disciplinares e o conseqüente desafio ao princípio do Estado-territorialsoberano como definidor das relações internacionais4. Segundo Rob
Walker (1993), o cerceamento da imaginação política contemporânea deriva do estabelecimento do princípio do Estado soberano
como marco e limite espaço-temporal da comunidade política. O
Estado-territorial-soberano, criado como uma resolução espaço-temporal historicamente específica, foi convertido em uma categoria ontológica que informa os lugares possíveis da política e, por
conseguinte, da ética. Nesse sentido, Walker (idem) afirma que as teorias modernas de RI podem (e devem) ser lidas como expressões de
uma compreensão historicamente específica do caráter e da localização da vida política.
Espacialmente, o princípio do Estado soberano fixa uma clara demarcação: a comunidade política só é possível dentro do Estado. As
relações entre os Estados são consideradas necessariamente “apolíticas” e, portanto, “aéticas”. A resolução espacial permite um corolário temporal. Dentro dos Estados, a comunidade política progride
historicamente. Entre eles, a ausência de comunidade implica a impossibilidade de história como uma teleologia progressiva, e assim
há possibilidade de mera recorrência e repetição.
415
Ana Cristina Araújo Alves
Essa compreensão permitiu que emergisse uma falsa dicotomia entre
teoria política e teoria internacional como reinos autônomos do conhecimento. Consoante Steve Smith (1995:9-10), o principal objetivo da disciplina de RI desde sua emergência tem sido o de estabelecer-se como uma área separada de conhecimento, por meio da criação de uma teoria própria de política internacional. Isso significa tratar a arena internacional como se fosse um domínio distinto das teorias política e social, sem falar dos debates filosóficos e/ou morais. O
problema desse tipo de raciocínio é que ele cria uma oposição entre
teoria política e teoria internacional, cuja conseqüência é a “apolitização” das RI. Assim, as RI passam a evitar questões de ordem política, tais como comunidade política, obrigação, liberdade, autonomia,
entre outras. Como discursos sobre limites e perigos, sobre supostas
fronteiras da possibilidade política no espaço e no tempo do Estado
moderno, as teorias de RI expressam e afirmam os horizontes necessários da imaginação política moderna (Walker, 1993:6).
Segundo Walker (idem), as profundas transformações espaço-temporais contemporâneas têm demandado formas alternativas de práticas políticas. Contudo, o autor afirma que alternativas convincentes
são difíceis de ser encontradas devido ao profundo arraigamento do
princípio do Estado soberano no pensamento e na prática moderna.
Ou seja, nossas compreensões das transformações contemporâneas e
das práticas políticas alternativas permanecem presas dentro dos horizontes discursivos que expressam as configurações espaço-temporais de outra era. Nesse sentido, a contenda não é sobre a presença
ou ausência do Estado, mas sobre até que ponto o princípio do Estado
soberano oferece uma explicação plausível das práticas políticas
contemporâneas. Ou seja, o que está em disputa não é o Estado, mas o
complexo Estado-nação-autonomia como uma entidade reificada
fundamental para a vida internacional. Destarte, o caminho apontado
pelos autores pós-modernos para superar essa limitação é restituir o
caráter “político” às RI, considerá-las como um aspecto integral da
teoria e prática política.
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Isso é possível devido à concepção alargada que a abordagem
pós-moderna/pós-estruturalista tem de prática. De acordo com
Ashley (1989:279-280), qualquer e toda prática é uma prática arbitrária de poder e é, portanto, uma prática política. Posto que as relações humanas em todos os níveis envolvem uma pessoa tentando
controlar a conduta da outra, toda prática social se dá no contexto de
uma relação de poder. Assim, o poder não está aqui ou ali, mas em
todo lugar, de maneira que a política também está em todo lugar.
Dessa forma, é possível rechaçar a compreensão de que o Estado-territorial-soberano, convertido em uma categoria ontológica, informa
os lugares possíveis da política e, por conseguinte, da ética. Nossa
compreensão de política vai além do Estado e se estende a todas as
áreas sociais.
Nesse sentido, o pós-estruturalismo é, por definição, uma perspectiva enfaticamente política. No entanto, recusa-se a privilegiar qualquer linha política. Seu discurso reconhece que todos os fundamentos são igualmente arbitrários, igualmente efeitos de tentativas de decidir o indecidível e igualmente sujeitos à incessante disputa política
(idem:278-279). Dessa forma, o pós-estruturalismo não pretende
oferecer uma posição ou perspectiva alternativa porque não existe
fundação alternativa sobre a qual ele possa se estabelecer
(idem:278). É por não privilegiar qualquer linha política que o
pós-estruturalismo oferece emancipação e liberação (Campbell e
5
George, 1990:280-281) .
Assim, o pós-estruturalismo deve assumir sua feição política de forma persistente e aberta em sua teoria. Deve compreender que a prática teórica é tão inescapavelmente política quanto qualquer outra prática. Mesmo que não abertamente politizada, a prática teórica constrói significado, atribui poder e fixa limites a modos socialmente reconhecidos de objetividade, subjetividade e conduta. É ainda uma
prática arbitrária de poder pela qual a proliferação do significado é
disciplinada e a estrutura narrativa é imposta à história (Ashley,
417
Ana Cristina Araújo Alves
1989:282). Portanto, a reivindicação pós-estruturalista por integridade teórica depende de sua prontidão em colocar em questão seu
próprio ponto de vista subjetivo, sua competência para fazer teoria e
não ideologia.
Destarte, se por um lado a restituição do caráter ético às relações internacionais requer que nos orientemos por alguma concepção de ética, por outro lado deve ficar claro que esse critério é apenas um entre
muitos, derivado de um ponto de vista subjetivo, da necessária e inescapável perspectiva da autora deste artigo em um tempo e espaço política e historicamente específicos. Assim, a leitura que será feita do
papel da ONU no genocídio ruandês será balizada por mais um marco: a inter-relação radical entre responsabilidade, subjetividade e ética, inserida em uma condição de “alteridade infra-estrutural” (Levinas apud Campbell, 1994:460). Essa escolha tem duas implicações
no que se refere ao nosso juízo de valor sobre as questões analisadas.
Em primeiro lugar, entendemos que o Eu só existe mediante sua relação de responsabilidade ética com o Outro. Nesse sentido, todas as
relações e formas de subjetividade devem ser pautadas e incessantemente questionadas pela responsabilidade ética. Levinas (1999) entende que a origem do sujeito é sua própria sujeição ao Outro, uma
sujeição que precede consciência, identidade e liberdade. Não compete ao sujeito decidir colocar-se nessa posição. Seu ser é posto em
questão pela existência prévia do Outro. Sujeitos são constituídos
por sua relação com o Outro, uma relação de interdependência radical. Assim, na forma radical de Levinas repensar a ética e a responsabilidade, há uma responsabilidade inescapável que é anterior à própria consciência do Eu e à sua capacidade de comunicação
(idem:103).
Nesse contexto, a ética não é mais independente da subjetividade,
como se fosse um conjunto de regras e regulamentos adotados por
um agente pré-dado, autônomo; ela se torna indispensável ao próprio
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ser do sujeito. Dispensando a subjetividade idealizadora da ontologia, que reduz tudo a si, a subjetividade ética é descentrada e se torna
um efeito da responsabilidade pelo Outro. A ética é então compreendida em termos da responsabilidade primária que firma nosso ser sobre a afirmação de nosso direito de ser em relação ao Outro (Levinas
apud Campbell, 1994:460). O homem não pode ser autonomamente
livre até que assuma sua responsabilidade por outro homem. Paradoxalmente, é qua alienus – estrangeiro e outro – que o homem não é
alienado. Nesse sentido, não é possível que o Eu opte por não fazer
parte de uma relação com o Outro, dizendo “não me diz respeito”. A
responsabilidade pelo Outro é uma “não-escolha” singular.
Em segundo lugar, deve ficar claro que nossa proposta de apreciação
da diferença e da alteridade não implica uma aceitação imediata e
acrítica da diferença simplesmente enquanto diferença. Esta deve
passar pelo crivo da consideração de suas práticas em relação ao Outro vis-à-vis a responsabilidade ética. Assim como é mister combater
o fundamentalismo universalista que nega a alteridade e se dedica a
converter tudo mais em mesmice, opomo-nos abertamente à absolutização da diferença, isto é, à idéia de que todas as diferenças são boas
e dignas de preservação simplesmente por serem diferenças. O respeito pela diferença nada tem a ver com indiferença, com
não-posicionamento, com não-questionamento (Bauman, 2003:74,
96). O respeito pela diferença não deve ser despolitizado, muito pelo
contrário. O conflito e a contestação são aspectos inerentes à atividade política. O que não deve fazer parte dela são as formas violentas de
conflito e contestação. É necessário que a diferença seja abertamente
politizada, para que não incorramos no risco do totalitarismo. Assumir um ethos crítico significa não se deixar levar pela balela de que o
respeito se dá na ausência de relações de poder, inescapáveis a todas
as práticas sociais.
Em face das questões levantadas até então, a pergunta a ser formulada é: como um sujeito pode realizar suas práticas de au419
Ana Cristina Araújo Alves
to-representação sem impor ao Outro uma condição de inferioridade? É a qualidade de inferioridade do Outro inerente à hierarquização logocêntrica6 entre Eu e Outro que permite rotulá-lo, reduzi-lo
ao “outro-como-objeto”, a um status de coisa, constituindo uma relação Eu-Isso em detrimento de uma relação Eu-Tu7 (Levinas, 1999.
Ver também Warner, 1996). Desumanizar o outro é o que sustenta
discursos e práticas de exclusão e aniquilação. E, estritamente relacionada à qualidade da relação Eu/Outro, coloca-se a questão da responsabilidade ética: que tipos de relação entre identidade (Eu) e diferença (Outro) cumprem a promessa radical da responsabilidade ética?
O desafio é, portanto, escolher estratégias políticas que contestem relações Eu-Isso em termos da responsabilidade pré-original que essas
relações diminuem. Segundo Campbell (1994), o modo como a relação pré-original de Levinas pode ser transposta para um contexto de
uma-a-muitos sem perder seu caráter de interdependência radical é
viabilizado pela intervenção da responsabilidade heterônoma nos argumentos sobre liberdade autônoma. Para Campbell, essa possibilidade pode ser pensada por meio de Derrida (apud Campbell,
1994:468): “A desconstrução é, em si, uma resposta positiva a uma
alteridade que necessariamente a chama, coloca em questão ou motiva. A desconstrução é portanto uma vocação – uma resposta a um
chamado”.
Sobre as Modalidades de
Violência e a
Responsabilidade que Elas
Requerem
A resolução de conflitos, em primeiro lugar, depende da classificação do problema, do que se trata aquilo com o que estamos querendo
lidar. Diferentes tipos de violência demandam diferentes respostas e
medidas por parte de diferentes agentes responsáveis. Essa seara evi420
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dencia um dos pontos discutidos acima: a relação entre prática política e teoria – ou melhor, o caráter inerentemente prático da teoria.
Consoante Steve Smith (1996), nossa racionalização do internacional é em si constitutiva da prática internacional. A teoria internacional é a base de edificação da prática internacional, não obstante o
grande hiato entre as questões levantadas pela teoria e a absorção
gradual dessas questões no debate político. Uma vez estabelecidas
como senso comum, as teorias tornam-se incrivelmente poderosas,
posto que delineiam não apenas o que pode ser conhecido, mas também o que pode ser falado e sugerido. Em outras palavras, a teoria
não se limita a definir as possibilidades explicativas. Seu impacto na
prática é muito mais profundo, pois ao delimitar nossos horizontes
éticos e práticos as teorias nos informam sobre as possibilidades de
ação humana (idem:13). Assim, ao divorciar ética de política, a teoria
promove uma compreensão das práticas internacionais pautada em
uma “razão” isenta de preocupações morais e éticas (Smith,
1995:2-3).
Nesse sentido, expor o caráter contestável dos pressupostos ontológicos embutidos nas representações sobre o conflito e o genocídio
ruandês é muito mais do que um mero exercício teórico: é uma reflexão e incursão sobre a prática. Esta seção versa sobre as implicações
práticas da caracterização ou nomenclatura conferida à violência em
Ruanda – isto é, as práticas discursivas de “guerra civil” e/ou “genocídio”. Essa classificação diz respeito não somente à ontologia da violência, mas principalmente ao direcionamento de sua solução. Portanto, essa discussão visa a evidenciar como a compreensão sobre o
conflito ruandês nos termos do princípio do Estado-territorial-soberano delineia não apenas o que pode ser conhecido, mas também o
que pode ser falado e sugerido. Destarte, o fio condutor desta seção é
o argumento de que toda interpretação traz em si imperativos políticos, ou seja, as representações de um dado evento sugerem e delimitam as ações possíveis em resposta a ele.
421
Ana Cristina Araújo Alves
Conflitos – armados ou não – são parcialmente baseados em fundações intelectuais ou mapas mentais da história. Segundo Catharine
Newbury (1998), que escreve sobre a região dos Grandes Lagos, essas fundações ou mapas geram visões distintas e concorrentes do
passado, adotadas pelas partes para legitimar suas demandas. É o que
a autora chama de “política da história” (idem:7). Similarmente, Jean
Vansina (1998) afirma que as versões “históricas” dos conflitos exercem um impacto imediato na situação presente, posto que as partes
envolvidas citam essas versões para sustentar suas posições. Elas
usam porções da historiografia escrita por autores respeitados para
derivar novas interpretações de fatos supostamente
bem-estabelecidos, reforçando mitos políticos ubíquos e justificando assim suas ações (idem:37, 39). Não obstante as intenções de seus
autores, as narrativas históricas podem ser alimentadoras dos conflitos, sendo portanto constitutivas da realidade.
No que concerne à sociedade ruandesa, é ampla a literatura sobre
como as histórias e mitos sobre a cultura e o povo ruandês moldaram
as relações que constituíram as identidades tutsis e hútus, refugiados,
rebeldes e governo, liberais e conservadores em Ruanda (ver Newbury, 1998; Newbury, 1997; Vansina, 1998; Malkki, 1995). No entanto, a forma como a cultura constitui as identidades dos atores é
freqüentemente negligenciada quando se trata da temática da intervenção, especialmente da intervenção humanitária. Via de regra, o
interventor é apresentado como uma presença acabada, uma identidade estável e que, por estes predicados, é habilitado a prescrever e
implementar medidas destinadas a reordenar um conjunto complexo
de relações sociais e políticas. Supõe-se que o interventor possa ser
neutro, apolítico e possuir um conhecimento objetivo da situação.
Contudo, também os interventores têm uma perspectiva, contingente
no tempo e no espaço, que diz respeito ao que existe, ao seu status em
relação ao que existe, e às formas de ação que esse status requer e permite. É esse ponto de vista subjetivo que define como, quando e por
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que atores que se intitulam “externos” podem e/ou devem intervir no
que eles compreendem ser essencialmente “um problema doméstico”. Nesse sentido, o discurso cantado em prosa e verso sobre os
princípios de neutralidade, imparcialidade e consenso não nos deve
deixar a impressão de que interventores descansam sobre um ponto
arquimediano a partir do qual é possível aferir “a” verdade. É preciso
então pensar a relação entre ruandeses e atores externos como sendo,
entre outras, uma relação de poder entre atores que existem independentemente, mas que têm suas identidades reproduzidas no curso de
sua interação.
Portanto, é necessário considerar as histórias sobre Ruanda como
parte do conhecimento socialmente compartilhado entre ruandeses e
interventores e, nesse sentido, como algo que exerce uma influência
sobre as práticas desses atores – em relação ao outro e a eles mesmos.
Assim, os mapas mentais sobre Ruanda que informaram as práticas
de ruandeses e atores externos foram determinantes para o desfecho
do conflito e do genocídio ruandês. As suposições ontológicas a respeito do povo e da política em Ruanda fundamentaram a compreensão intersubjetiva sobre o caráter do conflito, que por sua vez influenciou a compreensão da ONU sobre sua identidade e seu papel em relação aos ruandeses. Esse conjunto de concepções, juntamente com
os critérios da ONU sobre intervenção e peacekeeping, excluiu automaticamente representações alternativas do evento e limitou o leque
de ações cabíveis.
Definir a violência ruandesa como um caso de guerra civil, limpeza
étnica ou genocídio diz respeito não somente às medidas apropriadas
para sua solução, mas envolve também a questão da responsabilidade e da urgência para a ação. Uma das versões correntes sobre o tema
afirma que os Estados Unidos e as Nações Unidas teriam deliberadamente se recusado a admitir que um genocídio estivesse em marcha,
a fim de evitar responsabilidades e custos – humanos e materiais
(Des Forges, 1999; Des Forges e Kuperman, 2000; Uvin,
423
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2001:88-90). Sem negar essa possibilidade, acreditamos que a resolução 912 do Conselho de Segurança da ONU, de 21 de abril de 1994,
vai muito além de um caso em que se teria optado por definir a situação ruandesa da forma mais conveniente. A questão diz respeito também, e principalmente, à estrutura poder-saber dominante (Foucault,
2004) e ao regime de verdade que ela constitui. A questão passa a ser
então até que ponto os tomadores de decisão e oficiais da ONU realmente acreditavam na lisura e legitimidade do que estavam fazendo.
Devemos considerar o quanto as suposições ontológicas atribuídas a
Ruanda estão arraigadas no pensamento das partes envolvidas (externas e domésticas) de forma a inibir outras representações.
A forma como a história do genocídio de 1994 foi reproduzida influenciou grandemente as respostas dadas ao evento pelos atores envolvidos (domésticos e externos). A concepção divulgada pelo governo
interino ruandês, propalada por grande parte da mídia internacional e
aceita pelas Nações Unidas era de que a violência em Ruanda era
8
uma guerra civil decorrente de “ódios étnicos primordiais” . “Por
mais trágico que fosse, havia muito pouco que a comunidade internacional pudesse fazer quando grupos étnicos estavam determinados a
matar um ao outro” (Barnett, 2002:105). Em face desse cenário, e
orientadas pelos “princípios” de neutralidade, imparcialidade e consenso, as autoridades internacionais optaram por reduzir a Unamir
em vez de reforçá-la, e centenas de milhares de vidas foram perdidas.
Durante os três anos que precederam o genocídio, Ruanda foi vista
como um caso de guerra civil de baixíssima intensidade, mitigada e
remediada por esforços significativos (Jones, 2001:2-3). Poucos dias
o
após a invasão da FPR em 1 de outubro de 1990, o governo belga enviou a Ruanda uma missão de paz composta pelo primeiro-ministro,
o ministro das Relações Exteriores e o ministro da Defesa. O trio encontrou-se com o presidente Habyarimana em Nairobi, em 14 de outubro. A comitiva belga fez visitas ao Quênia, Uganda, Tanzânia e
Organização da Unidade Africana (OUA), dando início a um proces424
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so regional para lidar com a crise ruandesa. Em junho de 1992, o governo ruandês concordou em iniciar negociações políticas abrangentes rumo a um acordo de paz. Os acordos de Arusha foram assinados
9
pelo governo ruandês e pela FPR em 4 de agosto de 1993 . Nas palavras de Jones (idem:2):
“A extraordinária ironia é que essa matança escalou a partir de uma
guerra civil tão baixa em intensidade que ela escapou ao radar do monitoramento internacional de conflitos. [...] Aliás, o número de mortes na guerra era tão baixo que o Stockholm International Peace Research Institute categorizava a luta como ‘disputa’”10.
No papel, a Declaração de Arusha resolvia as mais importantes questões subjacentes ao conflito, tais como o direito dos refugiados de retornar a Ruanda e a integração das Forças Armadas. Parte da Declaração era um programa de implementação que previa o desdobra
11
mento da Unamir , o estabelecimento do governo de transição e eleições multipartidárias a se realizarem no máximo até 1995 (Jones,
1995:242-243). Em suma, Ruanda foi apresentada à ONU como uma
operação “fácil”: havia um cessar-fogo estável, um tratado de paz
apoiado pelas partes, acordos que prometiam reconciliação nacional,
democracia e a promessa de fazer dos ódios étnicos um legado do
passado (Barnett, 2002:69; Jones, 2001:109).
A Unamir foi instituída em resposta à demanda das partes contratantes da Declaração de Arusha por uma Força Neutra Internacional
(FNI) que tivesse um papel ativo na implementação e monitoramento
dos acordos. Os proponentes de Arusha esperavam que a FNI garantisse a segurança geral no país, provesse segurança para os civis, detectasse fluxos de armas e neutralizasse grupos armados (Barnett,
2002:62). Por sua vez, a Unamir refletia um mandato extremamente
restrito, dentro do capítulo VI da Carta da ONU, com o uso de armas
autorizado apenas para a autodefesa, mas que ainda assim fazia sentido adiante da expectativa de que “seria uma operação fácil”. A reso425
Ana Cristina Araújo Alves
lução 872 adotada pelo Conselho de Segurança da ONU em 5 de outubro de 1993 estabelecia a Unamir conforme o seguinte mandato
(United Nations, 1993, 3o parágrafo):
“(a)contribuir para a segurança da cidade de Kigali inter alia dentro da zona
livre de armas estabelecida pelas partes em torno da cidade;
(b) monitorar a observação do acordo de cessar-fogo, que demanda o estabelecimento de zonas de aquartelamento e reunião e a demarcação da
nova zona desmilitarizada e outros procedimentos de desmilitarização;
(c) monitorar a situação de segurança durante o período final do mandato
do governo de transição, rumo às eleições;
(d) assistir na limpeza de minas, primariamente mediante programas de capacitação;
(e) investigar, por demanda das partes ou por iniciativa própria, casos de
suposta não-observação das provisões do Acordo de Paz de Arusha relativos à integração das Forças Armadas, verificar quaisquer desses casos com as partes responsáveis e relatá-los como apropriado ao secretário-geral;
(f) monitorar o processo de repatriação dos refugiados ruandeses e o reassentamento de pessoas deslocadas para verificar se o processo está sendo implementado de maneira segura e ordenada;
(g) assistir na coordenação de atividades de ajuda humanitária juntamente
com operações de socorro;
(h) investigar e relatar incidentes concernentes a atividades de gendarmerie e polícia”.
Contrariamente às expectativas internacionais, houve uma contínua
deterioração da situação política e de segurança em Ruanda desde a
assinatura dos acordos de Arusha. Em retrospecto, vários autores salientam a polarização da política ruandesa, a demonização da FPR e
o repúdio a Arusha como sendo as dinâmicas que pavimentaram o
caminho para o genocídio ruandês (Jones, 2001:103, 111-113; Barnett, 2002:74-77; Mamdani, 2001:215-218; Hintjens,
1999:259-267; Lemarchand, 1999:20-21). Em 30 de março de 1994,
o contexto doméstico ruandês era descrito por Boutros Boutros-Ghali da seguinte forma:
426
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“Apesar do fato de o governo ruandês e a Frente Patriótica Ruandesa (FPR)
haverem concordado em Kinihira em 10 de dezembro de 1993 em estabelecer o governo de transição e a Assembléia Nacional de Transição antes de 31
de dezembro, isso não ocorreu como resultado da incapacidade das partes
em questão de concordar sobre modalidades relevantes, incluindo as listas
dos membros do governo de transição e da Assembléia Nacional de Transição. [...] O prolongado atraso em estabelecer as instituições de transição tem
não apenas impedido a Unamir de realizar suas tarefas de acordo com a
agenda de implementação aprovada pelo Conselho de Segurança, como
também contribuído para a deterioração da situação de segurança no país e
colocado uma ameaça ao processo de paz” (United Nations, 1994a, parágrafos 6-9).
Segundo o secretário-geral, o estabelecimento das instituições de
transição agendado para 22 de fevereiro de 1994 não foi realizado
“como resultado de um estouro repentino de violência em Kigali e
em outras regiões do país, começando em 21 de fevereiro” (idem, pa12
rágrafo 13, ênfase no original) . O relatório continua da seguinte
forma:
“Apesar das crescentes tensões e insegurança engendradas pelo impasse político descrito acima, o cessar-fogo, em termos gerais, pareceu vigorar durante o período sob revisão. [...] Devido em parte ao continuado impasse político, o período sob revisão tem visto uma deterioração rápida e dramática
na situação de segurança em Kigali. Em janeiro e fevereiro, foram vistas
crescentes demonstrações de violência, bloqueios rodoviários, assassinatos
de líderes políticos, assaltos e assassinatos de civis [...]. Enquanto a maior
parte dos incidentes pode ser atribuída a roubos e à violência armada, que
têm crescido como um resultado da pronta disponibilidade de armas, crimes
de motivação étnica e política, incluindo assassinatos políticos, também
têm aumentado” (idem, parágrafos 23-36).
As passagens acima retratam a violência como um caso de desordem
civil, sendo sua causa atribuída ao impasse político decorrente do
atraso em estabelecer as instituições de transição. A solução prescrita pelo secretário-geral, e corroborada pelo Conselho de Segurança
na resolução 909 de 5 de abril de 1994, era o retorno às metas de im427
Ana Cristina Araújo Alves
plementação de Arusha, como garantia da permanência da Unamir
em território ruandês.
“Como eu [Boutros Boutros-Ghali] tenho declarado, o apoio contínuo da
Unamir depende da plena e rápida implementação do acordo de paz de
Arusha pelas partes. A presença das Nações Unidas pode ser justificada
apenas se as partes mostrarem a vontade política necessária para se submeterem a seus compromissos e implementarem o acordo” (idem, parágrafo
47).
“[O Conselho de Segurança] decide estender o mandato da Unamir até 29
de julho de 1994 [...] [e] relembra no entanto que o contínuo apoio para a
Unamir, incluindo a provisão de 45 monitores adicionais da polícia civil,
como descrito no parágrafo 38 do relatório do secretário-geral, dependerá
da plena e pronta implementação do Acordo de Paz de Arusha pelas partes”
(United Nations, 1994b, parágrafos 2 e 5).
Em 5 de abril, o Conselho de Segurança contemplava uma Ruanda
que passava por problemas, mas ainda parecia estar comprometida
com o processo de paz, respeitadora do cessar-fogo e fazendo algum
progresso em direção à implementação de um governo de transição.
Em 7 de abril, o retrato de Ruanda havia sido invertido. Sabemos em
retrospecto que concomitantemente à guerra civil ocorria uma carnificina dantesca que mais tarde veio a ser oficialmente chamada de
13
“genocídio” .
O genocídio estava longe de ser a única leitura possível dos eventos
iniciados em meados de abril de 1994; aliás, era a menos cogitada delas. Vários autores insistem que a questão crítica no que concerne a
Ruanda foi o fracasso da comunidade internacional em distinguir entre a guerra civil e o genocídio e que, nesse sentido, o ponto crucial é
se teria sido possível prever o planejamento do genocídio (Khan,
2000:196-197; Hintjens, 1999; Des Forges e Kuperman, 2000; Des
Forges, 1999). Contudo, mesmo que ambíguos, alguns sinais não poderiam ter sido ignorados, tais como os faxes e telefonemas do general Romeo Dallaire (principalmente o controverso fax de 11 de janeiro), a descoberta de depósitos de armas; os relatórios dos informan428
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tes, as transmissões de rádio e os avisos belgas, culminando na retirada das tropas belgas em 12 de abril. Segundo Barnett (2002), mesmo
que o fax de 11 de janeiro deixasse inúmeras dúvidas quanto à probabilidade e a natureza da violência que se seguiria, os dois telefonemas diários de Dallaire ao Departamento de Operações de Peacekeeping (DPKO) proviam uma descrição meticulosa e detalhada da violência. Esses comunicados caracterizavam a violência como limpeza
étnica “em sua forma mais sinistra” (idem:109, 160).
A Bélgica foi o único membro do grupo de contato que decidiu que as
novas informações contidas no fax de 11 de janeiro e a crescente insegurança requeriam uma presença militar mais forte (idem:89). Em
11 de fevereiro, o ministro do Exterior belga avisou ao secretário-geral da ONU que a situação em Ruanda passava por um impasse
e poderia resultar em nova violência (Jones, 2001:114). A Bélgica,
que já vinha pedindo um contingente maior havia alguns meses, reagiu à morte de Habyarimana e às primeiras mortes civis pedindo reforços. Em 8 de abril, um dia depois de saber que havia perdido dez
soldados, o gabinete belga decidiu que retiraria seu contingente se o
mandato da Unamir não fosse aumentado e reforçado por tropas não
belgas. Não sendo atendida, a Bélgica notificou formalmente o secretário-geral sobre a retirada de suas tropas em 12 de abril (Barnett,
2002:104).
Os sinais eram poucos e chegaram tarde, no começo de 1994, mas
ainda assim não deixavam de ser perturbadores. É consenso entre alguns analistas que esses sinais, por si sós, e sem o privilégio da clarividência, não eram indícios contundentes de genocídio (ver Kuperman, 2000:102-103; Uvin, 2001:89; Jones, 2001:114-115; e Barnett,
2002:80-82). Contudo, apesar de não se sustentarem como um aviso
claro de um evento futuro, eles certamente sublinharam um crescente
risco ao acordo de paz bem como à Unamir. A possibilidade de reação contra Arusha, mesmo em uma escala menor do que a ocorrida,
já era razão suficiente para preparar planos de contingência e reforçar
429
Ana Cristina Araújo Alves
a missão (Jones, 2001:114-115). Afinal, não havia cessar-fogo; o
processo de paz estava em frangalhos; dez peacekeepers haviam sido
brutalmente assassinados e todo um contingente se encontrava em
perigo imediato; e políticos e civis estavam sendo mortos em Kigali e
14
redondezas (Barnett, 2002:99) .
A Unamir havia sido estabelecida para supervisionar os acordos de
Arusha e monitorar o cessar-fogo. Posto que não havia cessar-fogo, o
mandato da Unamir estava tecnicamente terminado. Cabia ao Conselho de Segurança considerar qual seria a nova raison d’être da missão, e a resposta a essa questão dependia de como Ruanda seria definida. A forma como os burocratas da ONU interpretaram e descreveram a violência em Ruanda trouxe em si não apenas suposições que
condicionaram a avaliação daquela realidade, indicando “o que”
aquilo era, como também as medidas específicas que derivavam desse entendimento. O diagnóstico da situação ruandesa, por sua vez,
dependeu das concepções prévias da ONU sobre a história, o povo e
o conflito ruandês, e a prescrição para esse caso foi influenciada ainda pelo entendimento da ONU de seu próprio papel.
Era fato que a FPR e o governo haviam retomado a guerra. Mas a tendência em categorizar automática e exclusivamente toda a violência
como guerra civil derivava da uma compreensão anterior sobre a natureza do conflito ruandês e sobre a contribuição da ONU para sua resolução (idem:102-103). Entendia-se que a violência estava relacionada ao impasse no processo de transição, o que poderia causar um
retorno à guerra civil. Os relatórios do secretário-geral descreviam
uma situação em Ruanda em que a dimensão étnica do conflito aparecia subordinada ao processo político, e por isso uma solução política (no sentido de não militar) para o conflito ruandês era supervalorizada. Assim, Ruanda era vista como sendo ao mesmo tempo uma
“guerra civil”, um “conflito étnico” e um “Estado fracassado” (Hillen, 2000:179), o que parecia evocar naturalmente as idéias de “peacekeeping” e “consenso” (Barnett, 2002:102-103). A partir dessa
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compreensão, o secretário-geral ofereceu, em 20 de abril de 1994,
três alternativas quanto ao futuro da missão:
“A primeira alternativa é baseada na conclusão, descrita acima, de que não
existe nenhuma perspectiva realista de que as duas forças opostas concordem com um cessar-fogo efetivo no futuro imediato. Sem um cessar-fogo, o
combate entre elas continuará, assim como a anomia e os massacres de civis. Essa situação só poderia ser mudada por um reforço imediato e em massa da Unamir e uma mudança em seu mandato de forma a equipá-la e autorizá-la a coagir as forças opostas a um cessar-fogo, e a tentar restaurar a lei e a
ordem, colocando um fim às matanças. [...] [N]a segunda alternativa [...] um
pequeno grupo liderado pelo comandante da Força, com a equipe necessária, permaneceria em Kigali para agir como intermediário entre as duas partes na tentativa de trazê-las a um acordo sobre um cessar-fogo, sendo esse
esforço mantido por um período superior a duas semanas, como o Conselho
de Segurança preferir. [...] Essa equipe requereria o apoio de uma companhia de infantaria para prover segurança, bem como um número de observadores militares para monitorar a situação, além de uma equipe civil, sendo o
total estimado em 270 [pessoas]. O restante do pessoal da Unamir seria retirado, mas a Unamir, como uma missão, continuaria a existir. O representante especial, com uma pequena equipe, continuaria seus esforços como intermediário nas negociações políticas, com o objetivo de trazer os dois lados de
volta ao processo de paz de Arusha. [...] A terceira alternativa, à qual eu não
sou favorável, seria a retirada completa da Unamir (United Nations, 1994c,
parágrafos 13-19).
“O inferno discursivo da guerra civil consumia o oxigênio para todas
as outras possibilidades” (Barnett, 2002:103). Uma vez que a equipe
da ONU havia categorizado o conflito em Ruanda como uma guerra
civil, o leque de respostas foi restrito às alternativas baseadas no consenso. O argumento de que os acontecimentos em Ruanda eram uma
guerra civil reforçava a crença de que a única função da ONU sob essas circunstâncias era tentar negociar um cessar-fogo. Assim, em 21
de abril de 1994, o Conselho de Segurança decidiu que:
“Profundamente preocupado com a contínua luta, roubos, criminalidade e a
queda da lei e da ordem, particularmente em Kigali, [...] [o Conselho de Segurança das Nações Unidas] demanda o cessar imediato das hostilidades
entre as forças do governo de Ruanda e a Frente Patriótica Ruandesa e o fim
431
Ana Cristina Araújo Alves
da violência sem sentido e da carnificina que açambarcam Ruanda; [...] [e]
decide à luz da situação atual em Ruanda ajustar o mandato da Unamir da
seguinte forma: para (a) agir como um intermediário entre as partes na tentativa de assegurar um acordo de cessar-fogo; (b) assistir na continuação das
operações de assistência humanitária, na medida do possível; e (c) monitorar e relatar os desenvolvimentos em Ruanda, incluindo a segurança dos civis que buscam refúgio na Unamir” (United Nations, 1994d:2-3).
Esta decisão é motivo de controvérsia no que diz respeito à avaliação
da responsabilidade da ONU em relação ao genocídio ruandês. Por
um lado, existem autores como Alan Kuperman (2000), que afirmam
que os Estados Unidos e a ONU não poderiam ter sabido que um genocídio estava em marcha pelo menos até 20 de abril de 1994. Além
disso, mesmo que a hipótese de genocídio fosse confirmada nessa
data, o envio imediato de reforços militares seria inviável. Segundo o
autor, uma “intervenção máxima” (uma divisão de 13.500 soldados e
27 mil toneladas de equipamentos, veículos, armamentos, provisões)
teria levado pelo menos quarenta dias para ser desdobrada em Ruanda, e teria salvado cerca de 125 mil tutsis. Já uma “intervenção mínima” (uma brigada aérea composta por 2.500 soldados e 4.500 toneladas de equipamentos, veículos, armamentos e provisões) teria levado
quatorze dias para chegar a Ruanda e teria salvado aproximadamente
75 mil tutsis (idem:105-106). Ou seja, uma intervenção militar (máxima ou mínima) não teria evitado o genocídio.
Por outro lado, autores como Des Forges (em Des Forges e Kuperman, 2000) sustentam que a administração Clinton tomou conhecimento do genocídio em 8 (e não 20) de abril, por meio de um relatório
do Departamento de Estado, cujas informações haviam sido obtidas
pelo pessoal da embaixada americana em Ruanda, bem como de
franceses e belgas. Além disso, Des Forges (idem:141) afirma que,
durante as cruciais primeiras semanas, a ONU, sob pressão norte-americana, teria ordenado que os mais de 2 mil peacekeepers em
Ruanda não fizessem nada para deter a matança. Segundo a autora,
432
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os peacekeepers da ONU e a força de evacuação poderiam ter detido
as matanças se tivessem agido prontamente.
De acordo com Barnett (2002), a avaliação da responsabilidade da
ONU em relação ao genocídio só pode ser feita a partir da reconstrução do universo moral que influenciou e legitimou a decisão da Organização naquele momento particular. Para o autor, a centralidade e
distinção desse universo moral são freqüentemente ignoradas, por
uma simples razão: os autores de muitas das mais populares versões
sobre o genocídio permitem que o genocídio governe sua leitura do
passado. Isto é, muitas pesquisas transferem seus próprios parâmetros morais, sensibilidades, compromissos e categorias para um momento histórico radicalmente diferente, resultando em uma leitura
radicalmente a-histórica do passado (idem:5).
A reconstrução desse universo moral requer o reconhecimento da
consangüinidade entre o normativo e o empírico: a responsabilidade
moral depende da responsabilidade causal. É injusto responsabilizar
alguém moralmente por um resultado sobre o qual não se teve controle (idem:17). Assim, Barnett insiste que a avaliação da responsabilidade da ONU depende da compreensão que se tem do envolvimento dela em Ruanda e dos parâmetros morais empregados, ou seja, da
consideração (1) da forma como a ONU interpretou a situação ruandesa, (2) do contexto de responsabilidades múltiplas e concorrentes e
(3) do critério para julgar entre elas.
Dessa forma, Barnett afirma que a decisão do Conselho de Segurança pode ser razoavelmente defendida na medida em que a violência
em Ruanda foi compreendida como uma guerra civil e como “o último e mais sangrento episódio de um ciclo secular de violência étnica” (idem:130). Segundo o autor, a ONU falhou em detectar que a violência em Ruanda era mais do que uma guerra civil por dois motivos: (1) carência de conhecimento específico sobre a cultura e a política ruandesa e (2) a influência da cultura burocrática da ONU sobre a
433
Ana Cristina Araújo Alves
percepção de mundo de seus agentes. Barnett (idem:58-59) afirma
que os formuladores de política da ONU não possuíam uma compreensão antropológica ou um conhecimento histórico sobre Ruanda
(Jones, 2001:116). Aqueles enviados ao campo foram selecionados
por sua disponibilidade, não por seu conhecimento sobre o conflito.
Além disso, o autor argumenta que a escassez de tempo produziu
uma abordagem altamente instrumental da informação:
“Que o conflito ruandês era enraizado em políticas étnicas era importante
saber. Os detalhes concernentes à sua natureza socialmente construída eram
irrelevantes. Era claramente relevante que as partes haviam assinado um tratado de paz para pôr fim a seu conflito. A ‘cultura da violência’ que os analistas têm agora exumado raramente fazia parte da conversação porque não
podia ser traduzida imediatamente em conhecimento usável. Saber algo sobre o terreno político, particularmente como a liberalização e democratização haviam produzido uma competição entre os novos partidos políticos,
era importante. Mas não havia lugar para uma compreensão detalhada dos
atores políticos e das frouxas alianças nos resumos de duas páginas que
eram dados aos oficiais de alto escalão. A presença de partidos radicais que
abominavam a idéia de dividir o poder era relevante, mas não alarmante. Todos os compromissos políticos geram oponentes, inclusive extremistas. Saber exatamente quem eram os extremistas em Ruanda era relevante, mas o
que importava era que o governo e a FPR pareciam estar comprometidos
com o acordo” (Barnett, 2002:59).
Temos de convir que, mesmo que os oficiais do Departamento de
Operações de Peacekeeping (DPKO) não fossem antropólogos e/ou
historiadores, a questão a ser colocada não é “o que eles não sabiam”,
mas o que eles poderiam ter sabido. Essa falha decorre não de suas
formações acadêmicas, mas da falta de sensibilidade dentro das Nações Unidas em relação à cultura política e à história ruandesa e principalmente às falhas de comunicação na transferência de responsabilidade da OUA para a ONU. Por mais que a equipe central do DPKO
não dispusesse de conhecimento regional específico, este certamente
existia. Ao assumirem a direção da pacificação ruandesa, as Nações
Unidas deliberadamente afastaram dois atores de maior envolvimento, conhecimento e análise política sobre Ruanda e Arusha, a saber,
434
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15
OUA e Tanzânia . Não aproveitar essas fontes de conhecimento
contribuiu para piorar a situação em solo ruandês. Certamente, todos
esses problemas, somados ao interesse limitado no conflito ruandês
por parte das grandes potências e à ausência de planos de contingência, reforçaram-se mutuamente.
Além disso, a ONU teria falhado em detectar o aspecto étnico da violência em Ruanda devido à sua cultura organizacional. Barnett
(2002) argumenta que a forma como as organizações categorizam o
mundo tem um impacto profundo sobre como os formuladores de
políticas vêem esse mundo. As categorias burocráticas fazem muito
mais do que simplesmente separar informações relevantes; elas produzem uma perspectiva específica sobre Ruanda e definem parâmetros claros para a ação e julgamento entre responsabilidades concorrentes (idem:59-60). Assim, a cultura organizacional da ONU teria
sido um fator relevante ao prover significado para a violência em Ruanda, para o papel da organização em face dessa violência, e ao servir
como parâmetro de julgamento entre as responsabilidades concorrentes que constituíam o contexto da tomada de decisão. Contrariamente aos filósofos morais que, segundo o autor, estão preocupados
com deveres abstratos e normas ideais de aplicação universal, é a
existência de muitas morais que ajuda a definir as ações da ONU e
que, portanto, demanda nossa atenção (idem:xii). É nesse sentido
que a não-intervenção pode ser considerada como uma atitude ética
para Barnett.
Existe uma tendência instintiva em acreditar que o combate ao genocídio e aos crimes contra a humanidade são mais importantes do que
todas as outras obrigações morais. Barnett argumenta que, antes de
aceitarmos isso que ele chama de fundamentalismo moral, precisamos reconhecer que a ONU, como todas as instituições, assume em
um único momento um enorme número de responsabilidades e obrigações (idem:6). Cumprir um conjunto de responsabilidades pode levar a negligenciar outras, e é dessa forma que o autor vê que a inação
435
Ana Cristina Araújo Alves
pode ter uma base ética. Face às muitíssimas obrigações simultâneas
vis-à-vis uma capacidade de resposta restrita, a ONU apela a uma série de regras e critérios para discernir sobre a viabilidade das operações e assim optar entre elas. Os critérios que determinam quando o
peacekeeping é a ferramenta certa para o trabalho e pode ser, portanto, autorizado são os seguintes:
“[...] se existe uma situação que pode colocar em perigo ou ameaçar a paz e a
segurança internacionais;
se há organizações ou mecanismos regionais ou sub-regionais com capacidade para ajudar a resolver a situação;
se existe um cessar-fogo e se as partes estão comprometidas a iniciar um
processo de paz com o fim de chegar a um acordo político;
se existe um objetivo político claro e que pode ser expresso no mandato;
se é possível formular um mandato preciso para uma operação das Nações
Unidas; e
se é possível garantir razoavelmente a segurança do pessoal das Nações
Unidas e, sobretudo, se é possível obter das principais partes ou facções garantias razoáveis no que diz respeito ao pessoal das Nações Unidas” (United
Nations, 1994e:2).
Além disso, os peacekeepers em campo deveriam seguir os princípios de neutralidade, imparcialidade e consenso (Barnett, 2002:10).
Barnett ainda salienta que a ONU tinha responsabilidades não apenas em relação aos ruandeses, mas também em relação ao seu pessoal
em campo e à integridade da instituição, que poderia ser gravemente
abalada por outro fracasso como o da Somália. Segundo o autor, a
partir das supracitadas regras de peacekeeping, o Conselho de Segurança concluiu que Ruanda era certamente um pesadelo humanitário,
mas não uma ameaça genuína à paz e segurança internacionais
(idem:102). Assim, a cultura da ONU poderia fazer da não-intervenção algo não somente pragmático, mas também legítimo e apropriado – mesmo em face de crimes contra a humanidade. Ainda que confrontado pelas chocantes escala e velocidade das matanças, a conclusão do Conselho foi de que havia pouca coisa que a ONU poderia ou
deveria fazer além de tentar negociar um cessar-fogo entre os comba436
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tentes. Todas as demais alternativas eram inadequadas, tanto pela ausência de tropas disponíveis quanto pela inadequação do peacekeeping para aquelas circunstâncias.
Barnett argumenta que a moralidade da não-intervenção deriva das
regras que balizaram e legitimaram a decisão da ONU. O autor considera os critérios para autorização de operações de peacekeeping
como princípios morais para a ação e afirma que “o voto foi influenciado por razões e regras que estavam conectadas a um propósito
mais alto e assim serviram para dar à decisão uma fundação ética”
(idem:127-128). A partir dessas colocações, pode-se aferir que Barnett entende ética como um conjunto de regras e códigos morais externo a um sujeito autônomo e por ele aplicado na mediação de suas
relações como fonte de legitimidade para a ação. Essa lógica em que
o Eu precede a ética reflete a metafísica da subjetividade, ou seja, a
noção do “Homem” como fundamento essencial, soberano e universal para o conhecimento.
No entanto, o ethos crítico ubíquo neste artigo – expresso na rearticulação radical entre ética, subjetividade e responsabilidade proposta
por Levinas (apud Campbell, 1994) –, que parte da própria afirmação
da vida, impele-nos a rechaçar a argumentação de Barnett. Esse ethos
insta uma figuração diferente da política, para a qual a principal preocupação passa a ser a luta por – ou em nome da – alteridade. É por isso
que a metafísica da subjetividade deve ser rejeitada: porque a violência associada à soberania do Eu – e principalmente o desrespeito ao
Outro que ela requer – faz essa construção insuficientemente humana. Rejeitamos então a concepção do sujeito autônomo e soberano
que fundamenta a proposição de Barnett e abraçamos a compreensão
de que o sujeito só se torna sujeito em uma situação necessariamente
relacional. Essa atitude envolve um duplo reconhecimento: (1) da interdependência radical entre Eu e Outro e (2) de nossa responsabilidade inescapável pelo Outro.
437
Ana Cristina Araújo Alves
Destarte, afastamo-nos dos argumentos de liberdade autônoma – em
que a ontologia de um ser preocupado consigo mesmo pode levar ao
totalitarismo e à supressão da alteridade – a favor da responsabilidade heterônoma, uma responsabilidade inescapável que é anterior à
própria consciência do Eu (Levinas, 1999:103). “Uma responsabilidade anterior à deliberação, para a qual eu fui exposto, dedicado, antes de ser dedicado a mim mesmo” (idem:105), conseqüência da “alteridade infra-estrutural”. Sendo a subjetividade compreendida
como uma derivação da relação de alteridade, ela não tem nenhuma
garantia anterior à responsabilidade inerente à relação com o Outro.
“Toda relação com o Outro é uma relação com um ser para com quem
eu tenho obrigações” (idem:101). De algo independente da subjetividade, isto é, de um conjunto de regras adotadas por um agente autônomo, a ética é transformada em algo inerente e integral à subjetividade. Nesse sentido, não há circunstância em que se possa dizer “não
me diz respeito”. Assim, o argumento de que “Ruanda era certamente um pesadelo humanitário, mas não uma ameaça genuína à paz e segurança internacionais” (idem:102) não exime a ONU de responsabilidade, mesmo em face de obrigações concorrentes. A responsabilidade pré-original pode ser questionada, ofuscada, suprimida, mas
não apagada.
De fato, a responsabilidade pelo Outro é perturbada na relação
um-a-muitos, porque a “terceira parte é simultaneamente outro em
relação ao outro, e me faz um entre outros” (Levinas apud Campbell,
1994:464). A inevitável entrada da terceira parte coloca um dilema:
como comparar Outros – únicos e incomparáveis? Quem está mais
próximo de mim? Quem é o outro? Essas questões podem ser abordadas se considerarmos que a responsabilidade ética não se contenta
só e simplesmente em evitar, conter, combater ou negar as formas
(muitas vezes violentas) de supressão da alteridade. A responsabilidade ética requer uma estratégia utópica. A “indecidibilidade”16 é
um pré-requisito para a responsabilidade. O indecidível, que é o pró438
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prio contexto da decisão, não a impede e tampouco evita sua urgência. Se não houvesse decisões a serem tomadas, se todas as escolhas
fossem erradicadas pela pré-ordenação de um único caminho, a responsabilidade – a habilidade de responder a diferentes critérios e preocupações – seria ausente (Campbell, 1994:471).
Como declara Derrida (apud Campbell, 1994:473, ênfase no original), “a condição de possibilidade dessa coisa chamada responsabilidade é uma certa experiência e experimento da possibilidade do impossível: o teste da aporia do qual se pode inventar a única invenção
17
possível, a invenção impossível” . Trata-se do confronto com a aporia, um espaço político indecidível e sem fundamento, em que nenhum caminho é “claro e dado”, em que “nenhum conhecimento seguro já preparou o caminho”, em que “nenhuma decisão já foi tomada”. Se não houvesse aporia, não haveria política, pois na ausência da
aporia toda decisão seria pré-ordenada, seria a implementação de um
programa. A responsabilidade parece consistir em acenar para dois
imperativos contraditórios – estar pré-obrigado a todo e cada Outro,
em meio a uma multidão de Outros. Deve-se, portanto, tentar inventar novos gestos, discursos, práticas político-institucionais que inscrevam a aliança desses dois imperativos, dessas duas promessas. É
por isso que não podemos falar de um código moral universal para todos os tempos e lugares: não é fácil imaginar em que tais invenções
consistiriam, mas não poderia ser de outra forma, pois “não há responsabilidade que não seja a experiência e o experimento do impossível” (Derrida apud Campbell, 1994:476). Lançada como um empreendimento apolítico ou não político, marcado pelo compromisso
da organização com os princípios de neutralidade, imparcialidade e
consenso, a ONU opera identificando as causas dos problemas e sanando-as. Ao pré-determinarem o curso da decisão e, conseqüentemente, acabarem com a aporia inerente à política, os critérios de autorização de operações de peacekeeping despolitizaram o voto de 21
de abril de 1994.
439
Ana Cristina Araújo Alves
Logo após este voto, os sinais de genocídio tornaram-se inconfundíveis e inegáveis, subvertendo o álibi para inação e rapidamente transformando o que antes poderia ter sido prudência e autocontrole em
complacência e indiferença. À medida que o genocídio se alastrava
pelo país, a comunidade internacional falhava em distinguir entre a
responsabilidade moral de parar um crime deliberado e ficar neutra
em uma guerra civil (Khan, 2000:7). Mesmo que o termo “genocídio” aparecesse com cada vez mais freqüência – e causasse cada vez
mais mal-estar – ao se falar dos eventos em Ruanda, a guerra civil
permanecia no centro e à frente de muitas discussões. Na visão do
Conselho de Segurança, a guerra civil havia sido responsável por criar as condições para o genocídio, e um cessar-fogo era requerido antes que a Unamir II pudesse ser desdobrada (Barnett, 2002:142). Em
seu relatório do dia 13 de maio de 1994, o secretário-geral declarava:
“Será relembrado que a retomada do conflito civil que se seguiu aos eventos
trágicos de 6 de abril de 1994, e a decorrente violência e massacres, criaram
uma situação que colocou em questão a habilidade da Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda (Unamir) de cumprir seu mandato sob a
resolução 872 (1993) do Conselho de Segurança de 5 de outubro de 1993.
[...] A situação em Ruanda permanece altamente instável e insegura, com
violência generalizada. O combate entre as forças do governo ruandês e a
Frente Patriótica Ruandesa (FPR) continua, apesar de tanto as forças do governo quanto a FPR haverem separadamente expressado sua prontidão em
entrar em um cessar-fogo. [...] Milícias armadas e outros elementos desobedientes continuam a operar, não obstante com menos freqüência do que no
começo do conflito, matando e aterrorizando civis inocentes. [...] Obviamente, um acordo de cessar-fogo é o primeiro passo para o estabelecimento
de um ambiente estável e seguro no país, permitindo assim a prestação de
ajuda humanitária organizada, coordenada e segura e a reativação do processo de paz de Arusha. Nas condições prevalecentes, contudo, é essencial
que as Nações Unidas considerem quais medidas podem ser tomadas mesmo antes que um cessar-fogo seja alcançado” (United Nations, 1994f, parágrafos 2-4, ênfase nossa).
E ainda:
440
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Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...
“A solução para a crise em Ruanda deve, em meu julgamento, ser encontrada por meio da implementação do acordo de Arusha, que ambos os lados dizem aceitar. Para que isso seja alcançado, é claramente necessário que um
cessar-fogo seja acordado e colocado em efeito na data mais próxima possível. [...] Enquanto isso, existe uma requisição urgente para que as Nações
Unidas aumentem seus esforços em tratar da desesperadora crise humanitária criada pelo conflito” (idem, parágrafos 27-28).
Esse mesmo relatório faz uma detalhada descrição da situação dos
refugiados e deslocados, mas nenhuma estimativa dos números de
mortos é citada. O aspecto étnico das matanças também é completamente obliterado. Apenas em 17 de maio de 1994 estes aspectos são
mencionados em uma resolução do Conselho de Segurança: “Relembrando nesse contexto que a matança de membros de um grupo étnico com a intenção de destruir tal grupo, no todo ou em parte, constitui
crime punível sob a lei internacional, [o Conselho de Segurança]
urge fortemente todas as partes a cessarem qualquer incitamento, especialmente por meio da mídia de massa, à violência ou ao ódio étnico” (United Nations, 1994g:2). E somente em 31 de maio de 1994
Boutros Boutros-Ghali admite que, “com base na violência que
emergiu, há poucas dúvidas de que [essa violência] constitui genocídio, uma vez que têm havido matanças em larga escala de comunidades e famílias pertencentes a um grupo étnico particular” (United
Nations, 1994h, parágrafo 36). No mesmo documento, o secretário-geral afirma que “é axiomático que qualquer esperança de resolver as tensões históricas em Ruanda devam descansar nas perspectivas de compromisso político” (idem, parágrafo 27, ênfase nossa).
A insistência em priorizar o cessar-fogo e o fim da guerra civil como
solução para a catástrofe humanitária em Ruanda deriva do arraigamento do paradigma do Estado-territorial-soberano na imaginação
política contemporânea. A fixação no Estado soberano convertido
em categoria ontológica e estabelecido como marco e limite espaço-temporal da comunidade política funciona como uma viseira que
permite que se vejam apenas temas correlatos ao Estado territorial –
441
Ana Cristina Araújo Alves
daí o poder sugestivo da guerra civil –, desfocando representações alternativas. A determinação de que a violência provinha tão-somente
(ou majoritariamente) da frente de batalha entre a FAR e a FPR, principalmente na capital Kigali, desviou a atenção dos tomadores de decisão acerca da violência muito maior que acontecia no interior do
país, longe dos exércitos da FPR.
Enquadrar os eventos em Ruanda como guerra civil – supondo que
esta pudesse ser uma categoria estanque e não problemática – significava que os acordos de Arusha haviam soçobrado devido à falha de
ambas as partes em cumprir seus compromissos. Sob tais circunstâncias, a ONU teria a obrigação de tentar negociar um cessar-fogo, mas
o ônus da responsabilidade seria das partes. Por outro lado, categorizar as matanças em Ruanda como limpeza étnica significava que havia uma campanha armada deliberada contra a população civil. Nesse contexto, a ONU teria um dever moral de intervir muito maior
(Barnett, 2002:120). Barnett afirma que, se Boutros-Ghali tivesse
querido uma intervenção, poderia ter retratado as mortes como resultado de uma limpeza étnica e se referido especificamente à população identificada como tutsi como o principal alvo dos assassinatos.
Ao contrário, o secretário-geral e sua equipe retrataram a violência
como “caótica”, projetando uma imagem de que a matança era recíproca e multilateral. Aliás, os relatórios do secretário-geral freqüentemente se referem a “civis”, no sentido mais amplo e genérico (ibidem).
Por um lado, classificar Ruanda como uma “guerra civil” teve a conseqüência de diminuir a “carga” de obrigação moral dos tomadores
de decisão internacionais. Uma vez que a idéia de guerra civil evoca a
noção de que a solução e os resultados dependem quase que absolutamente da vontade das partes, o papel e a responsabilidade dos atores internacionais é diminuído a um status de coadjuvante. Por outro
lado, um foco excessivo no genocídio – utilizado por muitos autores
que discorrem sobre o tema – enfraquece, em vez de fortalecer, o ar442
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...
gumento para a ação internacional. Esse enfoque requer a prova de
algo que é extremamente difícil de se antever, e aceita implicitamente a noção de que apenas em um caso extremo a ação internacional
deve ser contemplada (Uvin, 2001:91).
Pela Humanização das
Intervenções Humanitárias
“Quando as pessoas que recebem assistência humanitária naqueles campos
vierem nos matar, o que a comunidade internacional vai fazer – mandar
mais assistência humanitária?” (Joseph Karemera, ministro da Saúde de
Ruanda, em 1996 apud Gourevitch, 2000:343).
Em 13 de maio de 1994, diante da “violência generalizada” (United
Nations, 1994f, parágrafo 3) em Ruanda e da “desesperadora crise
humanitária criada pelo conflito” (idem, parágrafo 28), Boutros
Boutros-Ghali requereu ao Conselho de Segurança uma extensão do
mandato da Unamir. O objetivo expresso era habilitar a Unamir a
“apoiar e prover condições seguras para pessoas deslocadas e outros
grupos em Ruanda que têm sido afetados pelas hostilidades ou passam por necessidades, e ajudar na prestação de assistência feita por
organizações humanitárias” (idem, parágrafo 11). A missão, que
passou a ser referida como Unamir II, teria seus esforços coordenados àqueles das organizações humanitárias operando em Ruanda
e/ou engajadas na ajuda a refugiados ruandeses em países vizinhos,
“em cooperação com as autoridades locais sempre que possível”.
Em 17 de maio de 1994, o Conselho de Segurança aprovou a extensão do mandato da Unamir “para propósitos humanitários”, como
sugerida pelo secretário-geral no capítulo VII da Carta das Nações
Unidas. Não obstante o caráter de urgência da missão, até 20 de junho o desdobramento da Unamir II não havia sido ainda viabilizado
devido à carência de fundos, tropas e equipamentos necessários para
tanto. Diante de tal paralisia, o Conselho de Segurança endossou a
sugestão do secretário-geral (United Nations, 1994i) e aprovou a ex443
Ana Cristina Araújo Alves
pedição francesa para Ruanda segundo a resolução 929 de 22 de junho de 199418.
Quando a Operação Turquesa foi estabelecida, a maioria dos tutsis já
havia sido morta, o genocídio já havia sido praticamente completado; ainda assim, a operação salvou 10 mil vidas. Não obstante sua
motivação “humanitária” e seu caráter “imparcial” serem altamente
19
questionáveis , Jones (1995) afirma que a expedição francesa teve
uma importante função humanitária ao prover segurança e apoio logístico às operações de socorro humanitário. No entanto, esse mesmo autor (2001:125) afirma que o aspecto mais importante da Operação Turquesa foi seu impacto dentro da zona turquesa – a zona de segurança humanitária – e dos campos de Goma sobre o curso dos
eventos subseqüentes. Embora não exista dúvida de que a prestação
de assistência humanitária salvou vidas e diminuiu o sofrimento de
centenas de milhares de ruandeses, algumas considerações devem
ser feitas.
A versão mais popular divulgada pela mídia era aquela que confundia os dois eventos – o genocídio e a fuga de refugiados –, tratando-os
como um momento único: todos aqueles vindos de Ruanda eram rotulados como refugiados (Barnett, 2002:149). Se tantas pessoas haviam fugido em tão horríveis circunstâncias, deviam estar fugindo de
algo ainda mais horrível. Consoante Jones (2001:123-124), evidências sugerem que o movimento dos refugiados para o Zaire foi apenas em parte uma fuga espontânea da violência em Ruanda. Mais
fundamentalmente, os génocidaires teriam coagido populações internamente deslocadas a fugirem com eles para o Zaire. Ao ceder Ruanda à FPR e conduzir vastas multidões para o exílio, os líderes do
Poder Hútu puderam conservar o controle sobre seus súditos, estabelecer um Estado de “refugiados” em campos mantidos pela ONU e
continuar dizendo que seus piores temores tinham sido justificados
(Gourevitch, 2000:185; Mamdani, 2001:214, 254-455; Barnett,
2002:149). Durante a travessia, os refugiados teriam sido usados
444
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Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...
como um escudo humano entre os génocidaires e a FPR. Ao declarar
uma zona livre e ameaçar responder militarmente a qualquer incursão a essa zona, a Operação Turquesa criou um porto seguro para os
líderes do genocídio e para algumas unidades da FAR. Isso possibilitou que parte dos mentores e organizadores do genocídio saísse intacta de Ruanda, estabelecendo-se no Zaire. Nas palavras de Gourevitch (2000:189), “o feito marcante da Opération Turquoise foi permitir que a matança de Tutsis continuasse por um mês extra, e garantir ao comando genocida uma travessia segura, com grande parte de
suas armas, para o Zaire”.
“Tropas do Zaire haviam alegado estar desarmando os ruandeses à medida
que eles atravessavam a fronteira, e grandes pilhas de facões e revólveres
acumulavam-se de fato ao lado dos barracões de imigração. Mas, sentado
em seu carro, em meio à torrente humana que trafegava por Goma, um oficial militar norte-americano telefonou para Washington e elencou um espantoso arsenal de artilharia, carros blindados e armas leves que a ex-FAR carregava consigo. Sob a égide desse exército amplamente intacto, e da interahamwe, os acampamentos rapidamente se organizaram como réplicas perfeitas do Estado do Poder Hutu – a mesma disposição comunitária, os mesmos líderes, a mesma hierarquia rígida, a mesma propaganda, a mesma violência” (idem:195).
Nenhuma medida foi tomada para evitar que os líderes extremistas se
rearmassem e retivessem o controle sobre a massa de refugiados nos
campos. A FAR, as milícias e o governo interino ruandês puderam se
reagrupar e reafirmar o controle político sobre a população. Ironicamente, os campos, particularmente os do Zaire e da Tanzânia, passaram a ser controlados pelos mesmos prefeitos, burgomestres e líderes
políticos que haviam encabeçado o genocídio em Ruanda. Os mecanismos para tanto incluíam o controle político sobre o processo de
socorro nos campos, a continuação da campanha de retórica e intimidação para evitar que a população retornasse a Ruanda e a forjadura
de alianças com atores locais, que poderiam assisti-los política e militarmente. O controle da população refugiada servia a três propósitos: (1) os refugiados eram uma forma de base política para o regime
445
Ana Cristina Araújo Alves
deposto; (2) os refugiados atraíam grandes fluxos de ajuda financeira, possibilitando a cobrança de taxas; e (3) a prestação de ajuda no
leste do Zaire, que deveria operar com o consentimento das autoridades deste país, criava uma nova aliança de interesses entre o antigo
regime e seus anfitriões, tanto em nível local quanto nacional (Jones,
2001:144-145).
A habilidade do regime deposto de controlar o processo de socorro
no leste do Zaire, e por meio disso estabelecer o controle político e a
cobrança de taxas, deu-se em parte em função dos esforços das agências de ajuda humanitária. Ao intervir de uma maneira formalmente
neutra, as organizações não-governamentais (ONGs) e agências da
ONU contribuíram para reciclar a violência em Ruanda, ao hospedar
e alimentar alguns dos perpetradores do genocídio e permitir que eles
se reagrupassem em um espaço internacionalmente protegido (Jones, 1995:245). As agências humanitárias declaravam que não competia a elas se engajar em análises políticas, mas sim prover socorro
humanitário aos necessitados. Ninguém questionava o controle administrativo e político do antigo regime sobre os campos. Essa questão só foi encarada quando se tornou aparente que uma grande proporção da ajuda humanitária tão generosamente distribuída aos campos de refugiados estava sendo convertida para fins bem menos nobres: treinamento militar, compra de equipamentos militares e preparação para outra rodada de violência por meio do envio de guerrilhas armadas a Ruanda (Jones, 2001:145; Khan, 2000:204).
Um segundo aspecto a ser considerado refere-se ao tratamento generoso dado aos refugiados pelas agências internacionais e comunidade doadora, em contraste com a excessiva parcimônia mostrada às vítimas do genocídio. O posicionamento da comunidade internacional
em relação aos necessitados nos campos de refugiados vis-à-vis
aqueles em território ruandês parecia incongruente. De acordo com
Shaharyar M. Khan (2000:2), representante especial do secretário-geral da ONU em Ruanda e responsável pela Unamir II, a ajuda
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humanitária aos campos de refugiados no Zaire e na Tanzânia chegou a 2 milhões de dólares por dia. “A dispensa dessa ajuda não foi
inserida em nenhum arcabouço político porque ninguém parecia
pensar no fato de que a maioria dos refugiados não estava em perigo
real” (idem:35), mas havia fugido sob o comando de seus líderes. Por
outro lado, parecia não haver nenhuma provisão ou orçamento disponíveis para reviver um país totalmente devastado, reconstruir sua
infra-estrutura e/ou assistir as vítimas do genocídio que permaneciam em Ruanda.
Khan explica que os fundos para as operações de peacekeeping advêm da contribuição proporcional obrigatória dos Estados-membros, e são disponibilizados apenas para sustentar os peacekeepers e seu apoio logístico. Toda a ajuda destinada ao desenvolvimento, humanitarismo ou emergência provém das “contribuições
voluntárias” da comunidade doadora, devendo ser distribuída a todas
as agências especializadas da ONU. Assim, o sistema da ONU mantém um olhar cuidadoso para assegurar que os fundos de peacekeeping não sejam voltados para domínios que deveriam ser mantidos
por contribuições voluntárias. O resultado final dessa rígida compartimentalização foi que, enquanto uma vultosa quantia pôde ser gasta
para manter os peacekeepers, nenhuma parte desse fundo pôde ser
dirigida para reparos de pós-conflito e funções emergenciais
(idem:90).
Em outubro de 1994, já existia um governo em Ruanda, mas ele não
possuía escritórios, transportes, telefones e verbas para pagar salários essenciais. A comunidade internacional esperava que o governo
mostrasse resultados em muitas áreas, incluindo o encorajamento ao
retorno voluntário dos refugiados. No entanto, essa e outras tarefas
não podiam ser viabilizadas, pois os servidores civis não podiam ser
pagos, não havia colheitas e os serviços básicos não estavam funcionando devido à falta de recursos financeiros e materiais. Segundo
Khan (idem:93-94), era frustrante ver milhões de dólares sendo gas447
Ana Cristina Araújo Alves
tos em alimentos, cobertores e remédios e nenhum centavo poder ser
disponibilizado para reparar energia elétrica, água, telecomunicações ou serviços que colocariam o país novamente em funcionamento. Além da intimidação nos campos por parte dos génocidaires e do
medo da vingança por parte do novo governo ruandês, havia uma terceira razão para que os refugiados não desejassem voltar a Ruanda:
eles gozavam de um padrão de vida nos campos que não poderiam
esperar encontrar em sua terra. Nos campos, eles tinham refeições,
leite para as crianças, roupas, medicamentos, água potável, escolas
etc. Os campos no Zaire e na Tanzânia tinham cinemas, clubes noturnos, igrejas e muitos outros recursos que uma família rural normal
não encontraria em casa (idem:146).
Se a comunidade internacional avançou na investigação do genocídio e punição dos culpados, estabelecendo um Tribunal Internacional, ela falhou grandemente ao incorporar as implicações do genocídio no desenho e na implementação dos programas de assistência em
Ruanda. Ela tratou a crise como “apenas mais uma” guerra civil, sendo sua única responsabilidade intervir a fim de amenizar o sofrimento da população. Tal abordagem distorceu as prioridades, minou a
efetividade dos programas de assistências e alienou o novo governo
instalado (idem:174). Como conseqüência, houve a reorganização
política, militar e financeira dos perpetradores do genocídio, renovando assim as fontes de conflito, e também negligência em relação à
população flagelada pela violência dentro das fronteiras ruandesas.
Em relação a tudo aquilo que estava circunscrito ao território ruandês, imperou o discurso da guerra civil e da soberania. Como resultado, nenhuma ajuda por parte da ONU pôde ser dada ao novo governo
ruandês e à sua população para a reconstrução do país. Por outro
lado, atenção e recursos foram abundantemente dispensados aos
campos de refugiados, um domínio (territorial e discursivo) regulado
pela economia discursiva do genocídio, associado ao sofrimento humanitário e fora do alcance da soberania estatal. Ou seja, a noção de
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nação-território-identidade fez com que o sofrimento humanitário
fosse pensado como uma característica exclusiva dos campos de refugiados. Dessa forma, a ONU e a comunidade doadora internacional sentiram-se moralmente obrigadas para com os “refugiados”,
que se supunha carecessem do conforto e segurança providos por um
“Estado”. Por outro lado, esses mesmos atores se sentiram desobrigados – ou apenas ligeiramente obrigados – para com aqueles circunscritos à fronteira territorial do Estado ruandês.
Destarte, a ubiqüidade discursiva da guerra civil não somente permitiu que o genocídio continuasse por mais tempo, como teve conseqüências práticas no pós-genocídio. O pensamento em termos de
Estados territoriais soberanos compartimentou o senso de responsabilidade pelo sofrimento humano em dois reinos, concebidos como
esferas separadas e independentes: “dentro de Ruanda” versus “fora
de Ruanda” ou “refugiados ruandeses” versus “civis ruandeses”.
Nosso argumento é de que essas conseqüências são fruto do princípio do Estado-territorial-soberano, expresso também na dicotomia
guerra civil/genocídio.
Isso se traduz na prática por meio da noção de humanitarianism
(Campbell, 1998), a saber, intervenções humanitárias concebidas
como um bem inquestionável e caracterizadas pela caridade imparcial para com uma humanidade comum. Ou seja, pelo entendimento
de que os celebrados valores de imparcialidade e neutralidade fazem
das intervenções humanitárias algo “apolítico” ou não-político, um
domínio de compaixão, distinto de questões de interesse nacional ou
autodefesa. Assim, esse tipo de humanitarismo fica reduzido à aplicação das regras de imparcialidade, neutralidade e universalidade,
20
que expressam o princípio do Estado-territorial-soberano . Esses
imperativos estão expressos na célebre Agenda para Paz de 1992,
proposta por Boutros Boutros-Ghali, e foram acolhidos e reproduzidos na resolução 929 do Conselho de Segurança que autorizou a
Operação Turquesa:
449
Ana Cristina Araújo Alves
“Nessas situações de crise interna, as Nações Unidas necessitarão respeitar a
soberania do Estado; o contrário não estaria em conformidade com a compreensão dos Estados-membros em aceitar os princípios da Carta. A Organização deve permanecer ciente do equilíbrio cuidadosamente negociado dos
princípios-guias anexados à resolução 46/182 da Assembléia Geral de 19 de
dezembro de 1991. Aquelas orientações enfatizavam, inter alia, que a assistência humanitária deve ser provida de acordo com os princípios de humanidade, neutralidade e imparcialidade; que a soberania, integridade territorial e
unidade nacional dos Estados devem ser plenamente respeitadas de acordo
com a Carta das Nações Unidas; e que, nesse contexto, a assistência humanitária deve ser provida com o consentimento do país afetado e, em princípio,
com base no apelo desse país” (United Nations, 1992, parágrafo 30).
“Enfatizando o caráter estritamente humanitário dessa operação que deve
ser conduzida de uma forma imparcial e neutra, e não deve constituir uma
interposição de forças entre as partes, [...] [o Conselho de Segurança] Acolhe também a oferta pelos Estados Membros (S/1994/734) de cooperar com
o secretário-geral a fim de alcançar os objetivos das Nações Unidas em Ruanda por meio do estabelecimento de uma operação temporária sob comando
e controle nacionais destinada a contribuir, de uma forma imparcial, à segurança e à proteção de pessoas deslocadas, refugiados e civis sob risco em
Ruanda, na compreensão de que os custos de implementação da oferta serão
o
arcados pelos Estados-membros concernidos” (United Nations, 1994j, 2
parágrafo).
Esses dois exemplos deixam clara a tensão entre o dever moral para
com a humanidade e a manutenção, afirmação e reprodução do sistema de Estados soberanos. Nesse sentido, a neutralidade e a imparcialidade refletem o imperativo de “não causar dano” ou de não interferir, não em relação à situação em campo, mas principalmente quanto
ao próprio princípio da soberania. Enquanto a nobreza moral do humanitarismo lhe permite ultrapassar as fronteiras da soberania estatal, esta passagem deve ser mais do que consentida. Ela deve sobremaneira afirmar a primazia do princípio da “soberania, integridade
territorial e unidade nacional dos Estados”.
Não é possível falar do Estado soberano como um ser ontológico –
como uma identidade política – sem tratar da prática política que o
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constitui enquanto tal, e isso requer antes de tudo tratar da prática política de estabilização do significado de “Estado soberano”. Essa estabilização se dá na história por meio das práticas dos teóricos e das
práticas de intervenção política, um instrumento que faz emergir a
própria questão da soberania. Assim, a relação entre a soberania e seu
suposto oposto conceitual – a intervenção – não é de oposição, negação ou exclusão, mas de co-constituição e afirmação, em constante
processo de dissolvimento uma na outra (Walker, 1993:25).
Na prática da intervenção humanitária, intervenção e soberania deixam de funcionar como termos opostos e se transformam em dois
significantes que podem ser mutuamente substituídos: “soberania é
intervenção e intervenção é soberania” (Weber, 1995:127). A intervenção humanitária, por ser soberania, não pode negar a si mesma.
Para evitar que isso aconteça, os princípios de neutralidade, imparcialidade e consenso são invocados. Esses valores permitem ao humanitarismo ser lançado como um empreendimento apolítico e, assim,
como um domínio de compaixão, sem contudo “causar dano” ou interferir nas dinâmicas locais. No entanto, isso incorpora um conjunto
particular de suposições sobre uma ontologia social. O humanitarismo, que tem sua base na primazia da preocupação com os povos oprimidos e devastados, constrói pessoas e povos como vítimas, incapazes de agir sem intervenção. Ele manifesta uma postura que assume
que “nós” somos capazes de nos distanciar dos outros, diagnosticar
um conjunto complexo de relações sociais e políticas, conceber
ações e práticas desenhadas para cumprir certos objetivos e implementá-las como planejado. Acima de tudo, a noção de “não causar
dano” falha em articular um objetivo político afirmativo (Campbell,
1998:500; Walker, 1993:8).
Códigos e princípios são, assim, supostamente associados a resultados predefinidos, se não preditos. A “razão moral” é favorecida sobre
o “conflito político aberto”. A preferência da modernidade por “derivar normas epistemologicamente em vez de decidi-las politicamen451
Ana Cristina Araújo Alves
te” significa que estamos inclinados a acreditar que a construção de
arcabouços normativos pode resolver questões políticas (Campbell,
1998:500-501). Contudo, privilegiar prescrições epistemológicas e
metodológicas que simplesmente tomam as opções ontológicas modernas historicamente específicas como dadas tem o efeito de apagar
a crítica (Walker, 1993:8) e fechar a política ao acabar com a “indecidibilidade”.
Conclusão
A fixação no discurso da guerra civil, juntamente com os critérios de
autorização de operações de peacekeeping, funcionou de forma a excluir representações alternativas dos eventos iniciados em 1994 e,
por conseguinte, limitou o leque de ações cabíveis. Essas conseqüências não se restringiram às condições permissivas para os assassinatos em massa, mas se estenderam negativamente às políticas formuladas pela comunidade internacional para lidar com a crise humanitária decorrente do genocídio. Em primeiro lugar, os princípios de
neutralidade, imparcialidade e consenso que embasaram os discursos e as práticas da guerra civil continuaram a guiar o pensamento
político mesmo diante da conclusão de que um genocídio havia
acontecido. O caso de Ruanda mostra-nos que, ainda que uma catástrofe como aquela clame por uma intervenção humanitária, existe
uma grande tensão entre a responsabilidade pelo ser humano
vis-à-vis a necessidade de manutenção do sistema de Estados soberanos.
Não podendo negar a si mesmo, o princípio do Estado-territorial-so21
berano – cuja prática estabilizadora é a própria intervenção – soluciona temporariamente essa tensão por meio da compartimentalização territorial entre dois discursos: da soberania versus intervenção;
guerra civil versus genocídio. Por um lado, circunscrito pelo território ruandês, existe o lugar da guerra civil, da soberania, do consenso e
do cessar-fogo. Por outro, em qualquer lugar fora das fronteiras ruan452
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desas, existe o lugar do genocídio, da intervenção humanitária, das
operações de socorro. Dessa forma, é possível manter o princípio da
“soberania, integridade territorial e unidade nacional dos Estados”
(United Nations, 1992, parágrafo 30) e ao mesmo tempo cumprir um
dever moral para com uma humanidade comum. Contudo, essa solução falha em incorporar as implicações do genocídio no desenho e na
implementação dos programas de assistência em Ruanda.
Por um lado, o discurso da guerra civil e da soberania requer do Estado responsabilidade irrestrita por seu território e por seus nacionais,
mesmo diante da carência de infra-estrutura e recursos financeiros.
Por outro lado, o tema “intervenção humanitária” evoca a noção de
“vítimas”, de pessoas e/ou grupos incapazes de agir por si sós, necessitados de assistência. Assim, a compartimentalização discursivo-territorial – que alinha de um lado da fronteira (física) guerra civil
e soberania, e do outro lado genocídio e intervenção – permitiu que
os perpetradores do genocídio se reorganizassem política e militarmente nos campos de refugiados e ao mesmo tempo negligenciou as
populações necessitadas dentro das fronteiras ruandesas. Essa irônica contradição é conseqüência da aplicação irreflexiva de princípios
predeterminados em detrimento da decisão tomada em seu próprio
contexto de indecidibilidade, e foi responsável por um resultado desumano.
Essas foram as conclusões a que chegamos na feitura desse artigo, e
acreditamos que trazem duas grandes contribuições.
Em primeiro lugar, chamam a atenção para a premência de se lançar
um novo olhar sobre o Terceiro Mundo. O legado do colonialismo
nessas sociedades não deve ser obliterado, mas é mister que pensemos nesses povos como agentes, como “Eus” e Outros, e não como
meros objetos das políticas ocidentais.
Em segundo lugar, o caso ruandês é relevante porque a imprevisibilidade do genocídio dá ensejo à seguinte questão: até quando esperar?
453
Ana Cristina Araújo Alves
Que tipo de violência pode ser tolerado, e até que ponto? Essas perguntas nos remetem àquela colocada por Daniel Warner (1996):
quando a responsabilidade é ativada?
Responde-se a essa questão com outra: a responsabilidade precisa
ser ativada? De acordo com Emmanuel Levinas (1999), não. A responsabilidade “é anterior à própria consciência do eu e à sua capacidade de comunicação” (idem:103), é inescapável.
Assim, ainda que Ruanda não fosse “uma ameaça genuína à paz e segurança internacionais” (Barnett, 2002:102) e mesmo diante de obrigações concorrentes, a conclusão de que “não lhe dizia respeito” não
isentou a ONU de responsabilidade. Mas como comparar Outros
únicos e incomparáveis e julgar entre eles sem contudo acabar com a
universalidade da responsabilidade ética? Essa questão, aparentemente sem resposta, significa que a responsabilidade ética requer
uma estratégia utópica: o indecidível, a aporia, a necessidade de acenar para dois imperativos contraditórios com o objetivo de inventar
novos gestos, discursos e práticas.
Notas
1. Sobre a imprensa internacional, ver Hintjens (1999:248). Sobre as Nações
Unidas, ver United Nations (1994c), Jones (2001:15-16) e Uvin (2001:75). Sobre as partes em conflito, ver Hintjens (1999:248) e Kuperman (2000:102-103).
Sobre as narrativas acadêmicas, ver Jones (2001), Barnett (2002), Kuperman
(2000), Uvin (2001), Khan (2000), Gourevitch (2000) e Mamdani (2001). Uma
exceção é Hintjens (1999), que comenta os impactos da invasão da Frente
Patriótica Ruandesa (FPR) em 1990, mas praticamente ignora a retomada da
guerra civil em 1994 como conseqüência do início do genocídio. Em uma breve
e implícita menção à guerra civil, a autora diz que “a FAR [Forças Armadas
Ruandesas] e as milícias estavam tão ocupadas em matar civis desarmados que
em junho a FPR foi capaz de tomar o país” (idem:269, tradução nossa).
454
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...
2. A Frente Patriótica Ruandesa foi formada em 1987 por um grupo da segunda geração de refugiados ruandeses que haviam buscado exílio em Uganda em
1959. Grande parte deste grupo havia nascido em Uganda e nunca havia estado
em Ruanda. Inicialmente, a FPR foi concebida em parte para organizar um retorno militar dos refugiados ruandeses em Uganda (Jones, 2001:23).
3. Do inglês, United Nations Assistance Mission for Rwanda (Missão de
Assistência das Nações Unidas para Ruanda).
4. Muito mais do que a rejeição ao positivismo, o caráter antifundacionalista
aproxima grandemente pós-modernos e pós-estruturalistas, tanto que se torna
difícil fixar os limites entre uma e outra perspectiva. David Campbell e Jim George (1990:270, nota 2) afirmam que as duas perspectivas compartilham um reconhecimento da “natureza constitutiva da linguagem” e uma antipatia por sistemas “fechados” de conhecimento “nos quais análise e identidade são reduzíveis a oposições binárias”. Ambas as abordagens colocam em questão a linguagem, os conceitos, os métodos e a história – leia-se os discursos dominantes –
que constituem e governam uma “tradição” ou pensamento. É possível perceber
que não há um consenso sobre o que pós-estruturalismo e pós-modernismo são
– e tampouco parece haver interesse em se chegar a uma definição precisa. Richard Devetak (1996:179) afirma que não é possível encontrar uma definição de
pós-modernismo sobre a qual haja um consenso geral; e, de forma similar, Chris
Brown (1994:223) diz que o pós-estruturalismo é peculiarmente resistente a
frases como “o pós-estruturalismo é...”. A busca por definições precisas, fechadas, de ambos os termos não só é vã como vai de encontro ao cerne da argumentação de ambas as perspectivas. Sendo assim, também eu me eximo da tarefa de
oferecer uma definição acabada de pós-modernismo e pós-estruturalismo. Consideraremos os principais traços e contribuições dessas abordagens, sem nos
preocuparmos em definir os limites entre uma e outra, e muito menos em rotular
autores como se pudessem ser encaixados em categorias hermeticamente fechadas.
5. Dentro desse arcabouço, entende-se a emancipação não por meio do desmascaramento do poder, da opressão e da ideologia, mas pela demonstração de
exemplos concretos – via pesquisa histórica detalhada – de como o poder é empregado em todos os rincões da sociedade.
6. O funcionamento do procedimento logocêntrico pode ser mais claramente
visto em oposições práticas familiares, tais como dentro/fora, literal/figurativo,
centro/periferia, continuidade/mudança, objetivo/subjetivo. Em face dessas e
de outras oposições, o sujeito participante no regime da modernidade é inclinado pelo procedimento logocêntrico a impor uma hierarquia ao identificar sua
voz de interpretação e prática com um ponto de vista subjetivo, um centro interpretativo soberano. A partir desse posicionamento, um dos lados de tais oposi455
Ana Cristina Araújo Alves
ções pode ser concebido como uma realidade maior, pertencente ao domínio do
logos, ou como presença pura e indivisível sem necessidade de explicação. O
outro termo de cada par é então definido somente em relação ao primeiro termo,
com uma denotação de inferioridade ou derivação. Ao privilegiar um dos termos, o procedimento logocêntrico dá efeito a uma hierarquia na qual o outro termo se torna uma negação, uma manifestação, um efeito, uma disfunção
(Ashley, 1989:261).
7. Do inglês, “I-Thou” e “I-It”. O primeiro caso constitui uma relação com o
outro-como-sujeito, enquanto o segundo caso designa uma relação com o outro-como-objeto.
8. O governo interino foi estabelecido em 9 de abril de 1994, mas deixou Kigali em 12 de abril, devido à violência na cidade. Ver Barnett (2002:146).
9. Esses processos são descritos em detalhes por Jones (2001:53-66). As negociações de Arusha também são detalhadas em Jones (idem:69-84).
10. Os textos não disponíveis em língua portuguesa foram traduzidos livremente pela autora deste artigo.
11. O termo “desdobramento de tropas” refere-se ao equivalente do inglês deployment, cujos significados são: “1. O movimento de forças entre áreas de operações; 2. A passagem de forças para a posição de batalha; 3. A realocação de
forças e material para determinadas áreas de operações; 4. Desdobramento inclui todas as atividades da sede ou instalação de origem até o destino [...]; 5. As
atividades necessárias para preparar e mover uma força, seus equipamentos e
suprimentos para a área de operações em resposta a uma crise ou desastre natural” (FM 101-5-1, 1997:1-51 apud Conjuntura Internacional [portal da
PUC-Minas, disponível em <http://www.pucminas.br/conjuntura/index1.
php?tipoãform=glossario&menu=1195&cabecalho=29&lateral=6>, acessado
em 12/3/2005]).
12. Esse trecho refere-se ao episódio do assassinato de Mr. Félicien Gatabazi
(secretário-geral do Partido Social Democrata) e Mr. Martin Buchyana (presidente da Coalizão para Defesa da República).
13. Estima-se que 250 mil tutsis tenham sido brutalmente assassinados até 21
de abril de 1994 – em apenas quatorze dias desde o início do genocídio (Kuperman, 2000:96-98). Em termos comparativos, esse número equivaleria a aproximadamente 2 milhões de pessoas na França, 4 milhões em Bangladesh, 5 milhões no Brasil e 9 milhões nos Estados Unidos (United Nations, 1994h, 5o parágrafo). No período compreendido entre a segunda semana de abril e a terceira
semana de maio, estima-se que 5% a 10% da população ruandesa (que antes do
456
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Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...
genocídio era de 7 milhões de pessoas) tenha sido brutalmente exterminada
(Hintjens, 1999:241).
14. Segundo o relatório especial do secretário-geral apresentado ao Conselho
de Segurança em 20 de abril de 1994 (United Nations, 1994c, 2o parágrafo), esse
“trágico incidente [a queda do avião no aeroporto de Kigali, que matou, entre
outros, os presidentes Juvenal Habyarimana, de Ruanda, e Cyprien Ntayamira,
do Burundi] deu início a uma torrente de matanças generalizadas principalmente em Kigali, mas também em outras partes do país. A violência parece ter dimensões políticas e étnicas. Nenhuma estimativa confiável das mortes foi disponibilizada até agora, mas poderiam ser de dezenas de milhares”.
15. Sobre os papéis desempenhados pela OUA e pela Tanzânia, ver Jones
(2001:74-79).
16. Do inglês, undecidibility.
17. Texto tirado da obra de Derrida, The Other Heading: Reflections on Today’s Europe, de 1992.
18. A chamada “Operação Turquesa” (do francês Opération Turquoise) era
composta por 2.500 homens e recebeu um mandato de dois meses de acordo
com o capítulo VII da Carta das Nações Unidas. No dia seguinte à sua aprovação
pelo Conselho, as primeiras tropas francesas da Operação Turquesa deslocaram-se de Goma para o noroeste de Ruanda (Gourevitch, 2000:183; Jones,
2001:123; e Barnett, 2002:149). Para Jones (2001), está claro que a França pretendia intervir em Ruanda com ou sem a autorização do Conselho de Segurança.
Os planos de intervenção francesa foram trazidos para a apreciação do Conselho em 20 de junho, e no dia seguinte a França já começou a mover suas tropas
de suas bases africanas na República da África Central e no Chade em direção a
Goma, antes da autorização do Conselho em 22 de junho (idem:123-124).
19. Ver Jones (1995:231; 2001:123), Gourevitch (2000:183-185), Barnett
(2002:148), Mamdani (2001:214), Uvin (2001:87) e Hintjens (1999:273). Ver
também François-Xavier Verschave (Complicité de Genocide? La Politique de
la France au Rwanda, de 1994) e Jean-Claude Willame (Diplonatie Internationale et Génocide au Rwanda, de 1994) (apud Uvin, 2001:87).
20. Doravante, o emprego do termo “humanitarismo” neste artigo se refere à
noção de humanitarianism como definida acima.
21. Isso acontece porque a intervenção é a prática política per se que estabiliza
o significado da soberania. Ou seja, intervenção e soberania são as próprias condições de existência uma da outra. Assim, a fronteira entre esses termos é apaga457
Ana Cristina Araújo Alves
da e eles deixam de se excluir mutuamente e passam a ser significantes que trazem à existência o mesmo sentido.
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461
Ana Cristina Araújo Alves
Resumo
Além do Ocidente, além do Estado
e muito além da Moral: Por uma
Política Eticamente Responsável
em Relação à Diferença – O Caso
Ruandês
A partir de uma abordagem pós-moderna/pós-estruturalista em relações internacionais, o presente artigo tem por objetivo fazer uma análise da decisão tomada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 21 de abril de
1994 sobre o estabelecimento da Unamir como resposta à violência em Ruanda naquele momento. A ênfase recai sobre a avaliação da responsabilidade ética da organização, à luz da rearticulação radical dos conceitos de ética, responsabilidade e subjetividade proposta por Emmanuel Levinas. Buscam-se as implicações dessa decisão em termos das conseqüências que ela
permitiu – a saber, o genocídio ruandês, o prolongamento da violência possibilitado pela Operação Turquesa e a reorganização do movimento genocida nos campos de refugiados. Além disso, debruça-se sobre um tema mais
profundo, que subjaz as condições permissivas dessas trágicas conseqüências: a dominação do princípio do Estado-territorial-soberano na imaginação política contemporânea. As rijas fronteiras entre dentro/fora, Estado/campo de refugiados, doméstico/internacional derivadas desse princípio impuseram também uma compartimentalização na seara da formulação
de políticas para lidar com a crise humanitária que se seguiu ao genocídio.
Essa forma fragmentada de lidar com um problema complexo e multifacetado, por sua vez, resultou em políticas que distorceram as prioridades, minaram a efetividade dos programas de assistência e alienaram o novo governo
instalado.
Palavras-chave: Ruanda – Genocídio – Responsabilidade – Ética
462
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...
Abstract
Beyond the West, beyond the
State, and much beyond the
Moral: For an Ethically
Responsible Policy Towards the
Difference – The Rwandan Case
Drawing on a post-modern/post-structuralist approach in International
Relations, this article aims to make an analysis of the UN´s decision taken in
April 21, 1994 about the establishment of Unamir as a response to the
violence in Rwanda. We emphasize the assessment of the ethical
responsibility of the organization, in terms of the radical re-articulation of
the concepts of ethics, responsibility, and subjectivity, as proposed by
Emmanuel Levinas. We look for the implications of that decision in terms
of the consequences it permitted – that is, the Rwandan genocide, the
increasing of the violence over time allowed by Turquoise Operation, and
the reorganization of the genociders in the refugees´ camps. Besides, we
intend to look upon a deeper theme, which underlies the permissive
conditions of those tragic consequences: the sovereign-territorial-state
principle domination in the contemporary political imagination. The hard
boundaries between inside/outside, state/refugee camp,
domestic/international derived from that principle imposed also a
compartmentalization in the arena of formulation of policies to deal with
the humanitarian crisis that followed the genocide. This fragmented way to
deal with such a complex and multifaceted problem, for its turn, resulted in
politics that distorted the priorities and undermined the effectiveness of the
assistance programs, as well as alienated the newly installed government.
Key words: Rwanda – Genocide – Responsibility – Ethics
463
Os Estados Unidos e
as Relações
Internacionais
Contemporâneas*
Luis Fernando Ayerbe**
O fim do mundo bipolar, que concentrou as principais atenções nos
debates sobre a estrutura das relações internacionais da segunda metade do século XX, traz como um de seus desdobramentos intelectuais e políticos mais importantes o ressurgimento do imperialismo
como foco de reflexão sobre a ordem mundial em formação.
Para diversos analistas, tanto conservadores como críticos em relação ao capitalismo, a atual supremacia desse sistema e a emergência
dos Estados Unidos como única superpotência global, apesar de inquestionáveis, trazem como elemento de indagação seu significado
histórico, seja como fase inaugural de um período de paz e prosperidade, seja como estágio final de um modelo civilizatório que teve no
Ocidente seu grande impulsor.
* Artigo recebido em agosto e aceito para publicação em setembro de 2005.
** Professor do Departamento de Economia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e do programa
de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Unesp/Unicamp/PUC-SP.
CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 331-368.
331
Luis Fernando Ayerbe
Evidentemente, não é a primeira vez na história do capitalismo que
essas questões se fazem presentes. O mesmo dilema acompanhou os
debates sobre a longevidade do sistema e as possibilidades estruturais da hegemonia ocidental na transição do século XIX para o XX.
Diante do impasse na II Internacional, decorrente de profundas controvérsias sobre os impactos das mudanças sistêmicas na estratégia
da revolução socialista, as teses de Lênin sobre imperialismo fundamentam o programa político que orientou a vitória bolchevique na
Rússia. Para Lênin, o imperialismo representa a negação, via expansão externa, das contradições internas do modo de produção capitalista nos países centrais. A partilha do mundo entre as grandes potências e a expansão do capitalismo financeiro gera uma nova divisão internacional do trabalho, deslocando os sintomas agudos da gravidade da crise do centro para a periferia do sistema. É aqui que se localizam os elos fracos da cadeia imperialista, junto com as condições objetivas da revolução.
Analistas da evolução mais recente do capitalismo, como Michael
Hardt e Antonio Negri (2001), dão por encerrada a fase imperialista
caracterizada por Lênin. Para eles, a expansão territorial impulsionada pelos Estados-nação deu lugar ao Império, abarcador da totalidade. Já não há lado de fora, instalou-se o reino do mercado mundial,
tornando obsoletas as separações de países com base nas noções tradicionais de hierarquia dos mundos. Na nova ordem mundial, perdeu
sentido a diferenciação entre espaços internos e externos.
Do ponto de vista das abordagens legitimadoras da nova realidade, o
Império representa o fim da história; nesse sentido, os autores reconhecem as bases concretas que alimentam perspectivas como a de
Fukuyama, para quem desapareceram definitivamente as alternativas ao capitalismo, eliminando as bases de conflito originárias de
forças externas ao sistema. Para Hardt e Negri (idem), que se situam
entre os críticos da ordem, o Império representa um avanço em rela332
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
ção ao imperialismo, da mesma forma que o capitalismo expressa
um processo evolutivo sobre os modos de produção que o antecederam.
Diferentemente dos autores de Império, que questionam a relevância
das perspectivas orientadas pela lógica do Estado-nação, Arrighi e
Silver (2001) centralizam sua análise do capitalismo atual no papel
exercido pela sua potência hegemônica, que consideram em estado
de crise sistêmica. Analisando os períodos de transição hegemônica
holandês–britânico e britânico–norte-americano, apontam para a
existência de padrões comparáveis de crise e reorganização marcados por “três processos distintos mas estreitamente relacionados: a
intensificação da concorrência interestatal e interempresarial; escalada dos conflitos sociais; e o surgimento intersticial de novas configurações de poder” (idem:39).
Independentemente das especificidades de cada situação histórica,
as três crises hegemônicas apresentam como elemento comum as expansões financeiras, que permitem ao líder dominante um acesso privilegiado aos recursos financeiros mundiais, contribuindo para adiar
temporariamente o fim da sua liderança.
O atual contexto de expansão financeira, que tem como centro os
Estados Unidos, representa para os autores um sinal de crise hegemônica que, no entanto, apresenta algumas peculiaridades em relação às fases anteriores:
1) A potência em declínio não tem concorrentes no campo militar,
mas tornou-se dependente, na administração do seu poder, de recursos financeiros de outros centros de acumulação de capital, marcadamente Europa ocidental e Japão.
2) Diferentemente do processo de globalização das últimas décadas
do século XIX, em que os Estados-nação eram protagonistas funda333
Luis Fernando Ayerbe
mentais da internacionalização do capital, há uma diminuição do seu
poder em detrimento do setor privado transnacional.
3) Em comparação ao aumento dos conflitos sociais que acompanhou os períodos de transição holandesa e britânica, especialmente
os vinculados à luta antiescravista e ao movimento operário, os autores identificam uma perda conjuntural de poder dos movimentos sociais. No entanto, os efeitos estruturais desagregadores da atual configuração global criam novas fontes de conflito para as quais não
existe capacidade adequada de resposta.
4) Nas transições hegemônicas anteriores, a emergência de uma nova
potência precipitou o desmoronamento do antigo poder: Inglaterra
em relação à Holanda, Estados Unidos em relação à Inglaterra.
Embora os autores coloquem em evidência a crescente expansão
econômica do Leste da Ásia, isto não configura uma ameaça ao poderio militar estadunidense. Esta situação impõe uma marca peculiar
à atual mudança no sistema mundial, cujo desfecho poderá ser mais
ou menos problemático dependendo da atitude dos Estados Unidos:
“[...] essa nação tem uma capacidade ainda maior do que teve a GrãBretanha, cem anos atrás, para converter sua hegemonia decrescente em
uma dominação exploradora. Se o sistema vier a entrar em colapso, será sobretudo pela resistência norte-americana à adaptação e à conciliação. E, inversamente, a adaptação e a conciliação norte-americanas ao crescente poder econômico da região do Leste da Ásia é condição essencial para uma
transição não catastrófica para uma nova ordem mundial” (idem:298).
As respostas do governo dos Estados Unidos aos atentados de 11 de
setembro de 2001 representaram um teste importante para os argumentos da crise de hegemonia. Sem rejeitar completamente as teses
de Arrighi e Silver (idem), Ana Esther Ceceña (2002:181) sustenta
que “a hegemonia estadunidense está em decadência ao mesmo tempo em que se encontra mais forte e consolidada do que nunca antes na
história”.
334
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
Em apoio a essa afirmação, aparentemente contraditória, Ceceña
destaca os fatores que sustentam e comprometem a manutenção da
posição hegemônica. Paralelamente à supremacia militar apontada
por Arrighi e Silver (2001), adquirem relevância as dimensões econômica e cultural.
No plano econômico, verifica-se a
“Superioridade tecnológica em quase todos os campos estratégicos da concorrência [...]; superioridade no controle de fontes naturais de recursos estratégicos; rede produtiva de maior amplitude e densidade do mundo; manejo do mercado de trabalho mais diverso do ponto de vista cultural, geográfico e de níveis e tipos de conhecimento; capacidade de controle dos mecanismos de organização econômica mundial tais como políticas gerais (BM,
OMC e outros), dívida (FMI, FED e outros), protocolos de regulamentação
etc.” (Ceceña, 2002:168-169).
No âmbito cultural, reconhece a
“Capacidade para generalizar, ainda que com contradições, um paradigma
cultural correspondente ao american way of life – e ao que este significa traduzido a outras situações e culturas – que coincide com a homogeneização
de mercados, a estandardização da produção e a uniformização das visões
sobre o mundo” (idem:169).
No interior do governo dos Estados Unidos, consolidam-se as posições favoráveis ao aprofundamento da hegemonia, conduzindo a um
intervencionismo que incorpora no seu discurso as três dimensões
apontadas por Ceceña (idem): as invasões do Afeganistão e do Iraque, anunciadas como resposta militar às novas ameaças terroristas,
em países situados em uma área geográfica estratégica em termos de
acesso a reservas petrolíferas, governados por regimes políticos emblemáticos da oposição ao “modo de vida ocidental”.
Em relação aos fatores limitantes da hegemonia, a autora coincide
com Arrighi e Silver (2001) na caracterização dos impasses sociais
gerados pelo sistema, não deixando aos setores populares outra alternativa fora da sua negação. “Um sistema sem opções, sem saídas,
335
Luis Fernando Ayerbe
sem soluções para as imensas maiorias negadas que não têm maneira
de se sustentar e criam, como dizia Marx, as condições da sua autodestruição” (Ceceña, 2002:182).
Choque de Civilizações:
Uma Ideologia Nacional
O reconhecimento de que a hegemonia dos Estados Unidos se tornou
uma realidade incontestada da Nova Ordem Mundial abre espaço
para um processo de debates no interior do establishment vinculado à
política externa do país sobre a caracterização da nova etapa e a formulação de uma estratégia internacional adequada. A substituição
do paradigma da Guerra Fria requer uma redefinição dos interesses
nacionais, desafios e ameaças a enfrentar.
A partir de uma perspectiva conservadora, Samuel Huntington chama a atenção para as conseqüências negativas do unilateralismo da
política externa norte-americana do pós-Guerra Fria. Diferentemente de Arrighi e Silver (2001), que situam na história do capitalismo as
referências do que consideram uma crise da atual potência hegemônica, Huntington preocupa-se com os fatores que podem corroer a
continuidade da civilização ocidental e, conseqüentemente, dos
Estados Unidos como nação.
Em artigo publicado em 1993 na revista Foreign Affairs, Huntington
(1993) propõe uma nova abordagem sobre a dinâmica das relações
internacionais, desencadeando um amplo debate. Na sua caracterização da Nova Ordem Mundial, quatro aspectos são destacados: 1) a
derrota do socialismo, promotor de um sistema econômico que questionava a propriedade privada dos meios de produção; 2) a disseminação global da lógica do mercado; 3) o controle das instituições
econômicas multilaterais (FMI, Banco Mundial, OMC) pelos países
do capitalismo avançado; 4) a conquista da superioridade militar por
parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
336
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
O autor considera que as principais fontes de conflito na ordem em
configuração não serão políticas, ideológicas ou econômicas, elas virão das linhas que separam as diversas culturas e civilizações: ocidental, confuciana, japonesa, islâmica, hindu, eslava ortodoxa, latino-americana e africana.
Da perspectiva de Huntington (1997), a noção de que a derrota do inimigo soviético elimina o último obstáculo ao avanço triunfal da democracia liberal, do capitalismo de mercado e dos valores da civilização ocidental é questionável. Colocando-se na contramão das posturas ufanistas, explicita sua oposição às teses do fim da história, destacando os genocídios que emergem após a queda do muro de Berlim, de freqüência mais comum do que em qualquer período da Guerra Fria: “O paradigma de um só mundo harmônico está claramente
divorciado demais da realidade para ser um guia útil no mundo
pós-Guerra Fria” (idem:33).
Em uma ordem mundial em que as principais fontes de conflito são
de origem cultural, a afirmação de identidades adquire especial relevância, implicando em desdobramentos específicos na definição do
interesse nacional. Referindo-se aos Estados Unidos, Huntington
destaca a necessidade de se estabelecer um consenso sobre as bases
constitutivas da cultura do país, antes de definir quais são seus interesses. No entanto, como o próprio autor reconhece, “nós só sabemos
quem somos quando sabemos quem não somos e, muitas vezes,
quando sabemos contra quem estamos” (idem:20).
Com o fim da Guerra Fria, desaparece o “outro” que encarnava a negação do modo de vida americano e justificava a necessidade de uma
postura nacional coesa e militante. As transformações demográficas,
com novas ondas migratórias de população de origem predominantemente hispânica, influenciam mudanças raciais, religiosas e étnicas
que podem colocar obstáculos à tradicional capacidade do país de as337
Luis Fernando Ayerbe
similar outras culturas. Nessa perspectiva, a afirmação da identidade
requer uma nova demarcação das fronteiras em relação aos outros.
Essa tarefa tem dimensões internacionais e domésticas. O mundo das
civilizações é um campo de muitas incertezas, em que a ação dos atores responde a diversos tipos de racionalidades, muito mais complexas do que a lógica bipolar da Guerra Fria. Conhecer-se e conhecer os
outros exige cautela. Na política externa, Huntington recomenda
uma postura não intervencionista. Os Estados Unidos devem reconhecer os espaços civilizacionais e os seus respectivos Estados-núcleos, evitando o envolvimento nos conflitos internos das outras civilizações.
Analisando a inserção internacional do país após o fim da Guerra
Fria, Huntington (2000) identifica três etapas: 1ª) um breve momento
unipolar, tipificado na ação unilateral na Guerra do Golfo; 2ª) um sistema unimultipolar em andamento, que prepara a transição para a
terceira etapa; 3ª) etapa multipolar. No contexto atual, o autor percebe uma contradição entre o sistema unimultipolar e a política externa
adotada a partir do governo Clinton, que mantém características típicas da unipolaridade, com uma postura imperialista que provoca a insatisfação dos aliados tradicionais e estimula a solidariedade entre os
adversários. Essa política se expressa em ações bastante evidentes
como
“[...] pressionar outros países a adotar valores e práticas norte-americanas
no que diz respeito aos direitos humanos e à democracia; evitar que outros
países adquiram capacidade militar que possa constituir um desafio à superioridade de seu arsenal de armas convencionais; impor o cumprimento de
suas próprias leis fora de seu território a outras sociedades; atribuir classificações aos países de acordo com seu grau de aceitação aos padrões norte-americanos no que concerne a direitos humanos, drogas, terrorismo, proliferação de armas nucleares e de mísseis ou, mais recentemente, liberdade
de religião; aplicar sanções aos países que não atendam tais padrões; promover os interesses empresariais norte-americanos sob a bandeira do livre
comércio e da abertura de mercados; influenciar as políticas do Banco Mun338
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
dial e do Fundo Monetário Internacional segundo esses mesmos interesses
corporativos; intervir em conflitos locais de pouco interesse direto para o
país; impor a outros países a adoção de políticas econômicas e sociais que
beneficiarão os interesses econômicos norte-americanos; promover a venda de armas para o exterior ao mesmo tempo procurando evitar vendas de
natureza semelhante por parte de outros países” (idem:15).
Referindo-se ao contexto posterior ao 11 de Setembro e ao debate sobre as posições que deverão ser assumidas na defesa dos interesses
nacionais do país, Huntington (2004) sistematiza três abordagens diferentes: 1) cosmopolita, que envolveria a renovação das concepções
favoráveis à abertura ao mundo antes do ataque terrorista; 2) imperial, vinculada aos setores neoconservadores presentes no governo
Bush, que defendem a estruturação do mundo à imagem e semelhança do american way of life; e 3) nacional, próxima da sua própria
perspectiva, que busca preservar e enaltecer os valores, princípios e
qualidades que estariam presentes nas origens da construção da nação. Dessa perspectiva, o “cosmopolitismo e o imperialismo procuram reduzir ou eliminar as diferenças sociais, políticas e culturais entre a América e as outras sociedades. Uma abordagem nacional reconheceria e aceitaria aquilo que distingue a América de outras sociedades” (idem:364).
A grande repercussão das teses de Huntington nos debates sobre a
nova configuração das relações internacionais após o fim da bipolaridade não esteve isenta de controvérsias, com críticas que destacam
desde a ausência de rigor conceitual na caracterização das civilizações existentes até a adoção de um culturalismo com nítidas conotações ideológicas, que enaltece as virtudes da “civilização ocidental”
em detrimento do “resto” e influencia posturas isolacionistas na política externa, animadas por argumentos discriminatórios em relação
às outras civilizações (Ayerbe, 2003).
Sem desconsiderar a validade desses questionamentos, se avaliada à
luz da sua intencionalidade explícita de defesa dos interesses nacio339
Luis Fernando Ayerbe
nais dos Estados Unidos, a análise de Huntington apresenta uma racionalidade estratégica de longo alcance que nos parece relevante.
Para o autor, a derrota da União Soviética colocou o Ocidente em
uma situação de inquestionável supremacia global. Na ausência de
uma superpotência inimiga do sistema, os apoios incondicionais e a
noção de “guardião do mundo livre” perdem significado. Os assuntos mundiais ganham outra dimensão. Perdas e danos na concorrência por mercados, ou situações de desequilíbrio político geradoras de
conflitos regionais, deixam de ser vistos com lentes ideológicas.
Nesse contexto, assumir perspectivas missionárias pode levar a última superpotência a um processo de isolamento. A administração da
hegemonia exige um cuidadoso trabalho de geração de novas alianças e tratamento negociado das divergências, buscando amenizar ou,
no melhor dos casos, eliminar o caráter antagônico das contradições,
o que torna contraproducentes as posturas arrogantes e intervencionistas. Na raiz do seu culturalismo, está a crescente preocupação com
novas fontes de conflito que, embora não coloquem em questão o sistema, podem afetar a governabilidade. Para Huntington, após as vitórias da Guerra Fria, não há nada decisivo a ser conquistado.
Nesse sentido, há uma diferença substancial em relação à análise de
Arrighi e Silver (2001), que situa na história do capitalismo as referências atuais do que consideram uma crise da hegemonia norte-americana. A principal preocupação de Huntington não é com as
ameaças externas. Embora chame a atenção para o crescente poderio
da China, não vê possibilidades de riscos que ponham em questão a
existência do sistema. O principal dilema é a continuidade dos fundamentos culturais que colocaram a civilização ocidental, e os Estados
Unidos, na liderança do mundo. Uma vez atingido o ápice dessa trajetória, como evitar os sinais de declínio presentes em alguns valores
e comportamentos que tendem a minar a identidade nacional?
No âmbito internacional, a crescente ampliação do abismo entre a riqueza e a pobreza, uma das tendências da atual realidade mundial so340
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
bre a qual existe bastante consenso, sinaliza que a prosperidade
anunciada pela vitória do capitalismo liberal é estruturalmente restrita. Deste ponto de vista, qual o sentido de estimular expectativas sobre a inevitável disseminação global do american way of life?
Diferentemente de Hardt e Negri (2001), Huntington não deixa dúvidas sobre o caráter imperialista da ação integrada envolvendo o Estado, o setor privado e os organismos multilaterais. A imposição de
modelos econômicos que, em nome da liberdade de mercado, promovem basicamente a maximização dos lucros das empresas norte-americanas no exterior, pode ter conseqüências danosas nos países e regiões com menor capacidade de adaptação à competição global, acentuando as disparidades entre ricos e pobres e contribuindo
para inflamar sentimentos fundamentalistas.
É com base nesses pressupostos que critica explicitamente a abordagem do “fim da história”, típica da tradição imperial do Ocidente,
que prescreve ao resto do mundo modos universais de convívio humano. Se bem considera essa perspectiva válida em outros contextos,
ajudando a promover sua expansão, deixou de ser aconselhável. No
plano internacional, pelas conseqüências antes mencionadas, internamente, porque estimula um clima intelectual propício à acomodação no desfrute da vitória e à perda de vigilância em relação aos inimigos.
Para Chalmers Johnson (2004), um crítico da política externa de George W. Bush, a atuação internacional dos Estados Unidos aparenta
adotar a tese do Choque de Civilizações, embora em um sentido
oposto do isolacionismo prescrito por Huntington, recriando um
“missionarismo” fundamentalista cristão. Apesar de avaliar negativamente os custos econômicos da dominação militar do mundo, que
desvia recursos da economia privada e contradiz o espírito de livre
iniciativa, Johnson (idem:310) não assume uma posição definitiva
sobre o futuro: “deve-se reconhecer que qualquer estudo sobre o nos341
Luis Fernando Ayerbe
so império é um trabalho em andamento. Mesmo que possamos conhecer seus resultados eventuais, não está totalmente claro o que
vem depois”.
Unilateralismo/Multilateralismo: A “Doutrina Bush”
Na era das armas nucleares, não é possível imaginar a emergência de
novas superpotências como resultado da derrocada militar das antigas. Como mostra a experiência da ex-União Soviética, a implosão
pode resultar da incapacidade do sistema de responder às pressões
originárias de um cenário internacional cuja dinâmica se torna incompatível com a manutenção da ordem vigente.
A Rússia apresenta-se como o elo fraco das crises que inauguraram e
fecharam o curto século XX delimitado por Hobsbawm. A revolução
vitoriosa de 1917 gerou um modelo de desenvolvimento que transformou o país em protagonista central das relações internacionais,
cabendo-lhe papel de destaque na vitória dos aliados na Segunda
Guerra e compartilhando com os Estados Unidos o status de superpotência nas décadas da Guerra Fria. No entanto, sucumbiu perante
os desafios da radicalização de antagonismos promovida pelo governo Reagan. Os crescentes esforços econômicos exigidos pela manutenção do equilíbrio de poder minaram a capacidade de sustentação
do sistema, em um contexto em que os rápidos avanços no campo
tecnológico aprofundam as disparidades entre os países que lideram
o processo de inovação, marcadamente as potências capitalistas, e
aqueles como a antiga URSS, cujo crescimento permanece fortemente dependente da disponibilidade de mão-de-obra e de recursos
naturais.
No caso dos Estados Unidos, é possível caracterizá-lo, na perspectiva de Arrighi e Silver (2001), como o atual elo fraco da cadeia impe342
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
rialista? Como bem mostra Ceceña (2002), a hegemonia do país não
se dá apenas no campo militar, mas também no econômico e cultural.
Do meu ponto de vista, o unilateralismo da política externa de George W. Bush não é uma resposta improvisada aos atentados de 11 de
setembro, é uma marca característica da sua gestão. Desde a posse,
redefine a posição do país frente a importantes tratados internacionais, sinalizando várias diferenças em relação à administração anterior, como as decisões contrárias à ratificação do protocolo de Kyoto,
à criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) e à proposta de revisão do Tratado Anti-mísseis Balísticos (TAB).
Os atentados contribuem para consolidar no interior do establishment as posições favoráveis à entronização dos Estados Unidos
como principais responsáveis pela vigilância e punição dos inimigos
da ordem, já não como guardiões do “mundo livre”, mas como protetores das fronteiras que separam a “civilização” da “barbárie”, dotando a guerra declarada ao terrorismo de contornos bem amplos. A caracterização dos grupos patrocinadores do terrorismo é suficientemente ambígua, como que para justificar a inclusão ou exclusão de
organizações ou movimentos de acordo com os interesses conjunturais do país. Conforme explicitou Colin Powell (2001), secretário de
Estado no primeiro mandato de Bush: “Qualquer organização que
esteja interessada em operações terroristas para subverter os governos legítimos, democraticamente eleitos, ou governos que representam a vontade de seu povo, é uma ameaça”.
A despeito do apoio internacional recebido pelos Estados Unidos no
ataque ao Afeganistão, a rápida vitória militar contribuiu para fortalecer o unilateralismo. O resultado foi a formulação de uma nova
concepção na orientação das relações internacionais do país, que
passou a ser conhecida como “Doutrina Bush”, cujo alvo imediato
foi o regime iraquiano de Saddam Hussein.
343
Luis Fernando Ayerbe
Conforme explicita o documento “A Estratégia de Segurança Nacional dos EUA” (NSC, 2002), dado a conhecer pela Casa Branca em
setembro de 2002, a contenção e a dissuasão, que nortearam a política externa nas décadas da Guerra Fria, perdem centralidade para a
preempção e a prevenção, justificando ataques contra Estados e organizações suspeitos de planejarem atos de hostilidade contra o país e
os seus aliados.
“Na Guerra Fria, especialmente no contexto da crise dos mísseis cubanos,
nós geralmente enfrentamos um status quo, um adversário com aversão ao
risco. A contenção era uma defesa eficaz. Mas a contenção baseada somente
na ameaça da retaliação tem menos probabilidade de funcionar contra líderes de Estados fora-da-lei com maior disposição para assumirem riscos, jogando com as vidas de seus povos e a riqueza de suas nações. Para prevenir
ou impedir tais atos hostis por parte dos nossos adversários, os Estados Unidos, se necessário, atuarão preventivamente” (idem:15).
A nova postura está animada pela exaltação das virtudes do capitalismo e da democracia liberal, pilares de um modo de vida que se pretende universal: “Os grandes conflitos do século XX, travados entre a
liberdade e o totalitarismo, terminaram com a vitória decisiva das
forças da liberdade – e com um único modelo sustentável para o êxito
de uma nação: liberdade, democracia e livre iniciativa” (idem:1).
A opção pelo unilateralismo, apresentado como custo inevitável do
combate às novas formas de terrorismo, recebe críticas de funcionários da administração anterior, que se posicionam em favor de uma
concepção multilateral das relações internacionais. De acordo com
Joseph Nye Jr. (2004), secretário adjunto da Defesa no governo Clinton, o unilateralismo estaria solapando as bases do poder brando (soft
power) do país, pautado pela atração exercida por seus valores, instituições e ideologia, levando a uma exacerbação pouco inteligente do
poder duro (hard power), associado à capacidade de induzir a determinados comportamentos.
344
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
Na era informacional, a distribuição global do poder entre as nações
não pode ser reduzida ao plano militar. Nye Jr. identifica três dimensões. No topo, o militar, que é nitidamente unipolar; no meio, uma
economia em que vários pólos disputam o jogo e os Estados Unidos
vêem limitada sua hegemonia diante de atores do porte da União Européia; e na base, relações de caráter transnacional: “o poder está
disperso de forma caótica e não tem sentido utilizar termos tradicionais como ‘unipolaridade’, ‘hegemonia’, ou ‘império americano’”
(idem:137). Se o governo dos Estados Unidos concentrar sua estratégia em um jogo unilateral basicamente direcionado à dimensão militar, descuidará das duas dimensões em que o poder tende a diluir-se
em uma gama ampla de atores. De uma perspectiva de amplitude global, essa postura pode redundar em perda crescente de influência.
Para Nye Jr. (idem:146-147),
“A administração de Bush identificou corretamente a natureza dos novos
desafios que enfrenta a nação e reorientou conseqüentemente a estratégia
americana. Mas tanto a administração, como o Congresso e a população, dividiram-se entre diversas abordagens sobre a posta em prática da nova estratégia. O resultado tem sido uma mistura de êxitos e falhas. Estamos tendo
mais sucesso no domínio do poder duro, em que investimos mais, treinamos
mais, e temos uma idéia clara do que estamos fazendo. Temos acertado menos nas áreas do poder brando, em que a nossa diplomacia pública tem sido
preocupantemente inadequada e a nossa negligência com os aliados e instituições têm criado um sentimento de ilegitimidade que desgasta nosso poder de atração”.
A lógica do governo Bush foi bem sintetizada por Paul Wolfowitz
(apud Gardels, 2002), secretário adjunto da Defesa no primeiro mandato, para quem os Estados Unidos estariam exercendo um papel de
liderança no resguardo de interesses que envolvem a comunidade internacional, combatendo os países hostis que fomentam o terrorismo.
“Para nós, poder militar é muito mais um meio de defesa. A grande força dos
EUA não é seu poderio militar, mas seu poder econômico. E mais potente
345
Luis Fernando Ayerbe
ainda é nossa força política – aquilo que significamos. No mundo todo, mesmo em países cujos regimes nos odeiam, o povo admira o nosso sistema [...].
Claro que há diferença de interesses entre países, mas por causa do modo
como definimos nossos interesses existe uma compatibilidade natural de interesses entre os EUA e os outros países” (idem:A25).
De acordo com Wolfowitz, não há unilateralismo, mas exercício legítimo do poder por parte de um Estado que utiliza sua força em
nome do interesse geral. Para ele, o poderio militar norte-americano
é “uma espécie de cerca protetora em torno da liberdade. Permite-nos
fixar certas fronteiras; não admite que exércitos numerosos atravessem fronteiras” (ibidem).
O (Novo) Imperialismo
Norte-americano
Ivo Daaler e James Lindsay (2003), ex-funcionários do Conselho de
Segurança Nacional no governo Clinton e pesquisadores da Broo1
kings Institution , atribuem à política externa de George W. Bush um
caráter revolucionário, não tanto por causa das metas, que não diferem no essencial das administrações anteriores, mas pelos meios
adotados. Para os autores, duas crenças orientam a atuação internacional dos Estados Unidos:
“A primeira é que, em um mundo perigoso, a melhor – senão a única – maneira de proteger a segurança da América passa pela rejeição dos constrangimentos impostos por amigos, aliados e instituições internacionais. Maximizar a liberdade de ação da América é essencial pela posição única ocupada pelos Estados Unidos, que os transformou no alvo mais provável de todo
país ou grupo hostil ao Ocidente. Os americanos não poderiam contar com
outros para protegê-los; inevitavelmente, os países ignoram as ameaças que
não os envolvem [...]. A segunda crença é que essa América desprovida de
amarras deve usar sua força para mudar o status quo no mundo” (idem:13).
A partir do reconhecimento da incontestável superioridade militar, a
contribuição “revolucionária” de Bush seria sua vontade e decisão de
utilizá-la, enfrentando a resistência dos aliados e forçando definições
346
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
em relação às prioridades da agenda internacional. No entanto, a
aposta do presidente trouxe um resultado inesperado, com a rápida
percepção dos limites que cercam o exercício do poder, enfrentando
grandes dificuldades para conquistar e manter apoios para a segunda
Guerra do Golfo.
A partir da invasão ao Iraque, tornam-se mais explícitas as controvérsias entre os que vêem na intervenção uma exacerbação contraproducente do poderio militar, os que vislumbram mais um sintoma de crise de hegemonia e os que defendem o papel dos Estados Unidos
como nação indispensável, única disposta a adotar medidas extremas
de acordo com a natureza dos desafios.
Entre os primeiros, a principal linha de questionamento passa pelas
bases conceituais e argumentos políticos que fundamentam a preempção e a prevenção. Para Zbigniew Brzezinski (2004), assessor de
Segurança Nacional na presidência de James Carter, as ações unilaterais do governo Bush pautam-se por uma visão do mundo em preto
e branco que não admite matizes, cujo sustentáculo é uma doutrina
de eficiência estratégica questionável.
“A preempção pode se justificar na base do supremo interesse nacional na
presença de uma ameaça iminente, e assim, quase que por definição, é plausível que seja unilateral [...]. A prevenção, ao contrário, deve ser precedida,
se possível, pela mobilização da pressão política (incluindo o apoio internacional) a fim de prevenir que ocorra o indesejável, e deve envolver o recurso
da força somente quando outros remédios foram esgotados e a contenção
não é mais uma alternativa digna de crédito” (idem:37).
Caso a superpotência cometa erros de avaliação na caracterização do
tipo de ameaça a enfrentar, pode terminar iniciando uma guerra preventiva unilateral travestida de preempção. Embora reconheça a importância dos Estados Unidos como a única nação capaz de manter a
ordem em um mundo em constante turbulência, Brzezinski aposta na
sua capacidade para liderar um esforço multilateral em favor da criação de uma comunidade global de interesses compartilhados. No en347
Luis Fernando Ayerbe
tanto, a nova doutrina, com sua decorrência imediata de invasão ao
Iraque, tem levado a um isolamento crescente, configurando um curioso paradoxo: “A credibilidade militar global americana nunca foi
tão alta, no entanto, sua credibilidade política global nunca foi tão baixa” (idem:214).
O viés militar da política externa dos Estados Unidos é enfatizado
por Michael Mann (2004) na caracterização do que denomina “império incoerente”. Apesar dos argumentos universais invocados pela
administração Bush em favor da democracia, a liberdade e a prosperidade econômica, o autor chama a atenção para uma prática pautada
basicamente na promoção dos interesses das elites dominantes, tanto
daquelas mais próximas do Estado, como das que representam o poder dos chamados mercados, defensoras da disseminação global do
neoliberalismo. A incoerência entre o discurso e a realidade estaria
comprometendo cada vez mais a credibilidade internacional do país,
sendo que a resposta das autoridades governamentais tende a pautar-se pela exacerbação do poderio militar, marca do novo imperialismo em construção.
Para Mann (idem:25-26), a superação do impasse ao qual o país está
sendo levado pela administração Bush deverá vir fundamentalmente
da mudança na correlação de forças na política nacional que se seguirá ao fracasso da atual política externa: “Com um pouco de sorte, a
isso seguirá o abandono voluntário do projeto imperial por parte dos
estadunidenses, o que, por sua vez, preservará em grande medida a
hegemonia norte-americana”.
Respondendo à pergunta sobre o que seria uma visão realista da atual
configuração mundial do poder, em entrevista a Harry Kreisler
(2003), do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade da
Califórnia, Kenneth Waltz resgata a atualidade das políticas de contenção e dissuasão:
348
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
“Não importa o quão freqüentemente as pessoas da administração Bush digam que a ‘contenção e a dissuasão não funcionam’, funcionam da mesma
forma que sempre em relação às finalidades para as quais sempre pensamos
que estavam projetadas. Isto é, deter outros países de usar suas armas de forma que coloquem em perigo interesses manifestamente vitais dos Estados
Unidos ou daqueles a quem dão apoio”.
No caso da invasão ao Iraque, Waltz considera inadequada a aplicação dos argumentos em favor da preempção e da prevenção. O regime de Saddam Hussein não representava uma ameaça iminente de
ataque aos seus vizinhos ou aos Estados Unidos, mantendo-se em
uma posição defensiva. Por outro lado, sua capacidade potencial de
transformar um país com um produto bruto de 15 bilhões de dólares,
sob constante vigilância e controle por parte da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos Estados Unidos, em uma futura potência
nuclear estava fora de cogitação.
Para Waltz, o ex-dirigente do Iraque, assim como os demais líderes
dos chamados Estados fora-da-lei, são sobreviventes de situações
adversas que se estendem por longos períodos. “As pessoas insanas
não se mantêm no poder contra um grande número de inimigos, seja
internamente como externamente” (idem). Como sujeitos racionais
que buscam permanecer no poder, são suscetíveis à contenção e à
dissuasão.
O mesmo se aplica às redes terroristas como Al Qaeda, na eventualidade de chegarem a governar algum país, mesmo um que tenha armas nucleares, como o Paquistão. Para Waltz, as redes terroristas seriam socializadas pela lógica do poder estatal, amenizando seu radicalismo ideológico, principalmente o que justifica e estimula ataques
suicidas. Nesse sentido, defende a contenção nuclear como estratégia de eficácia comprovada, independentemente da inimizade radical de certos regimes em relação aos Estados Unidos, citando como
exemplo a trajetória da China de Mao Tse-Tung, que transitou da tur349
Luis Fernando Ayerbe
bulência esquerdista dos anos da Revolução Cultural aos acordos
com Nixon na década de 1970.
Em relação à situação de supremacia estadunidense que marca o período pós-Guerra Fria, Waltz descrê da capacidade de autocontrole
da superpotência. “A característica-chave de um mundo unipolar é
que não há nenhuma restrição e contrapeso a esse poder, então ele
está livre para seguir sua fantasia, está livre para agir por seus caprichos” (idem).
Reafirmando a atualidade do realismo, Waltz (2002) vê a unipolaridade como um momento transitório por definição. O futuro surgimento de grandes potências a partir da projeção internacional da
União Européia, Japão, China e Rússia acabará restaurando o equilíbrio de poder, tendência predominante das relações interestatais desde a segunda metade do século XVII.
Essa certeza é questionada por Ikenberry (2002a), que vê no ordenamento pós-Guerra Fria uma peculiaridade que considera persistente
e estável: a cooperação entre as democracias do capitalismo avançado convivendo com a ausência de equilíbrio de poder. A permanência
desta situação deve muito ao caráter liberal da hegemonia dos Estados Unidos, que Ikenberry considera inédito comparativamente às
potências anteriormente predominantes no mundo ocidental. As
marcas distintivas seriam a relutância em assumir explicitamente a
primazia dos EUA, seu caráter penetrante, que gera transparência e
se abre a Estados secundários, e sua alta institucionalidade, que permite o estabelecimento de mecanismos de interação pautados por regras consensuais.
As características apontadas outorgariam ao país a credibilidade necessária para consolidar uma liderança benigna e, conseqüentemente, aceitável para outros Estados, na promoção de uma ordem “construída em torno de interesses e valores comuns entre os países industriais avançados e ancorada no capitalismo e na democracia. Mas
350
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Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
também uma ordem politicamente projetada, construída com base
no poder americano, relações institucionais, e negociações políticas,
particularmente com Europa e Japão” (idem:216).
A continuidade da tendência inaugurada pelo fim da bipolaridade depende da capacidade dos governos dos Estados Unidos de perceberem os ganhos estratégicos da autolimitação do uso do poder, apostando no fortalecimento das instituições, que Ikenberry considera
um investimento hegemônico em uma ordem mais previsível e permanente “que proteja seus interesses no futuro” (idem:221).
Ikenberry situa suas posições em um campo distante do realismo e da
hegemonia, abordagens estado-centristas que considera inadequadas para explicar a dinâmica dominante de uma ordem ocidental baseada em instituições, cuja salvaguarda não se assenta no equilíbrio,
mas na liderança de uma potência essencialmente liberal, que poderá
ter uma continuidade indeterminada, estreitamente vinculada à sabedoria com que exerça seu poder.
Em relação a esse último aspecto, o autor manifesta preocupações
com as tendências unilaterais que marcam desde o início a administração Bush, acentuando-se após o 11 de Setembro, com a nova doutrina de segurança, que classifica como neo-imperial, ameaçadora
das conquistas obtidas pelo país na construção da sua liderança. A
persistência no unilateralismo seria altamente custosa, principalmente em quatro aspectos: 1) ao explicitar a decisão de agir preventivamente, poderia estimular respostas defensivas de outros países,
que buscariam no desenvolvimento de programas de armas nucleares uma forma de dissuasão a eventuais ataques estadunidenses; 2) as
intervenções militares trazem como conseqüência a implementação
de ações de manutenção da paz e construção de nações que, dependendo do número e extensão das guerras movidas pelo país, gerarão
uma carga econômica capaz de configurar o fenômeno da expansão
excessiva; 3) a postura imperial dificulta as alianças, justamente em
351
Luis Fernando Ayerbe
um contexto de luta contra o terrorismo que torna cada vez mais necessária a divisão de responsabilidades com sócios confiáveis; 4) ao
superestimar seu próprio poder, o país pode cair na armadilha em que
caíram no passado outros Estados imperiais, o autofechamento, levando os demais países a buscar alternativas que descartem uma dominação estadunidense.
Para Ikenberry (2002b:60), “mais do que inventar uma nova grande
estratégia, os Estados Unidos deveriam revigorar as antigas, que se
baseavam na idéia de que seus sócios em matéria de segurança não
são meras ferramentas, mas elementos-chave de uma ordem política
mundial a preservar dirigida pelos Estados Unidos”.
A idéia de que o unilateralismo poderia representar o prenúncio de
uma futura perda de hegemonia é compartilhada por diversos analistas, que apresentam um conjunto de fatos econômicos e políticos que
fortaleceriam essa hipótese.
No âmbito da economia, a percepção de crise torna-se mais visível a
partir da administração Bush, com a diminuição do ritmo de crescimento que caracterizou o período de Clinton, paralelamente ao aumento do desemprego e à forte expansão dos gastos com defesa, cujo
orçamento teve, em 2003, um incremento de 37 bilhões de dólares
em relação ao ano anterior, chegando a 355 bilhões e 400 milhões de
dólares, ou quase 17% do orçamento nacional total do país, de 2 trilhões e 100 bilhões de dólares (Montoya, 2003). Para o ano fiscal de
2006, o secretário da Defesa solicitou 419,3 bilhões de dólares, o que
representa, segundo os cálculos do próprio Departamento, uma elevação de 5% em relação ao ano anterior e de 41% em relação a 2001
(Department of Defense, 2005). De acordo com Chalmers Johnson
(2004:288), “93% das alocações para assuntos internacionais estão
indo para a área militar e apenas 7% para o Departamento de Estado”.
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CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
Para além do aumento de gastos do governo Bush, alguns autores
chamam a atenção para indicadores que expressam uma tendência de
deterioração econômica que vêm de períodos anteriores: crescente
déficit comercial, que passa de 100 bilhões de dólares em 1990 para
450 bilhões em 2000, necessitando de entradas financeiras de 1 bilhão por dia para cobri-lo; concentração da renda, que para os 5%
mais ricos passa de 15,5% em 1980 para 21,9% em 2000 e para os
80% menos ricos cai de 56,9% para 50,6% (Todd, 2003); dependência energética, dado que o país conta com apenas 5% da população
mundial, 2% das reservas globais de petróleo e 11% da produção petroleira mundial, mas consome quase 26% do total extraído no mundo, sendo que, para os próximos vinte anos, calcula-se um incremento no seu consumo de 6 milhões de barris diários (Rifkin, 2002).
A dimensão petroleira é um dos aspectos destacados por David Harvey (2004) na sua caracterização das motivações do militarismo de
Bush no Oriente Médio. Situando-se no campo do marxismo, sua
abordagem toma como referência a interação entre as estratégias do
Estado e do capital, como atores centrais da variedade capitalista do
imperialismo. Dessa perspectiva, a ação no Iraque articula interesses
que vão além do conjuntural em termos de garantir a presença de um
governo confiável em um país que detém as segundas maiores reservas de petróleo, favorecendo um aumento da produção capaz de diminuir o mais rapidamente possível os preços do barril. Considerando que grandes competidores internacionais dos Estados Unidos nos
campos da produção e das finanças, como Europa, Japão e o Leste da
Ásia, incluindo a China, são fortemente dependentes do petróleo da
região do Golfo Pérsico, Harvey (idem:30) formula duas questões
importantes sobre as motivações do intervencionismo de Bush:
“Que melhor forma de os Estados Unidos evitarem essa competição e garantirem sua posição hegemônica do que controlar o preço, as condições e a
distribuição do recurso econômico decisivo de que dependem esses competidores? E que modo melhor de fazê-lo do que usar a linha de força em que
os Estados Unidos ainda permanecem todo-poderosos – o poder militar?”.
353
Luis Fernando Ayerbe
Essa postura, embora expresse uma racionalidade estratégica, é reveladora da ausência de outras opções capazes de reverter um quadro
de crescente deterioração da competitividade internacional da economia dos Estados Unidos. Neste aspecto, Harvey partilha das posições de Arrighi e Silver (2001) de que está em andamento um processo de transição hegemônica, em que o declínio busca ser compensado com políticas explícitas de dominação.
No campo dos argumentos políticos, alguns autores europeus começam a questionar a relevância mundial que os Estados Unidos se atribuem. Para Emmanuel Todd (2003), os fatores econômicos acima
apontados geram uma crescente necessidade de inflacionar ameaças,
alimentando o ativismo internacional do país. Isto levaria seu governo a assumir um “militarismo teatral” composto por três características principais:
“– Nunca resolver definitivamente um problema, para justificar a ação militar indefinida da ‘única superpotência’ em escala planetária.
– Fixar-se em micropotências – Iraque, Irã, Coréia do Norte, Cuba, etc. A
única maneira de continuar politicamente no centro do mundo e ‘enfrentar’
atores menores.
– Desenvolver novas armas que supostamente poriam os Estados Unidos
‘muito à frente’, numa corrida armamentista que não pode mais cessar”
(idem:32).
Todd (idem:98) aposta na insustentabilidade do império americano,
cuja desaparição ocorreria antes de 2050, por duas razões básicas:
“Seu poder de coerção militar e econômica é insuficiente para manter o nível atual de exploração do planeta; seu universalismo ideológico está em declínio e não lhe permite mais tratar os homens e os povos de maneira igualitária, para garantir-lhes a paz e a prosperidade tanto quanto para explorá-los”.
Na mesma direção de Todd, Alain Joxe (2003) critica a fragilidade
das premissas em que se apóia o atual poderio americano, que caracteriza como império do caos, ao assumir uma ação de combate aos
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Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
sintomas e não às causas dos conflitos que se disseminam pelo mundo, construindo um “sistema que apenas se consagra a regular a desordem por meio de normas financeiras e expedições militares, sem
um projeto de permanência no terreno conquistado” (idem:21). Caso
continue predominando essa postura na política externa dos Estados
Unidos, o autor vê como tendência a emergência de um regime antidemocrático mundial, diante do qual propõe a recuperação da tradição republicana européia, que considera menos maniqueísta na abordagem dos conflitos, pautando suas relações exteriores pelo respeito
à pluralidade, pela tolerância, a não-intervenção e a busca de uma
maior eqüidade econômica e social. Nessa tradição, a tirania
“[...] não é considerada como não humana senão como um modo de governo
antidemocrático; a luta de classes não é um crime senão um estado normal
das sociedades desenvolvidas que deve pacificar-se na democracia, mas não
‘desaparecer’. A redistribuição da renda mediante um procedimento voluntário de partilha eqüitativa é o abc da ciência política desde Aristóteles, e
não o pensamento delirante de um subversivo louco. A visão européia em
relação ao Outro, concebida como oposição política, é portanto essencialmente diferente da dos estadunidenses, que a constroem como exclusão”
(idem:239-240).
Para Ulrich Beck (2004), a União Européia exemplifica as possibilidades de construção de um sistema estatal transnacional e cosmopolita, resposta necessária a uma dinâmica global que já não pode ser
interpretada por meio de leituras nacionais. O conceito adequado é o
de “metajogo” da política mundial, cenário no qual interatuam seus
três grandes protagonistas, os Estados, o capital e a sociedade civil
global, configurando um equilíbrio de poderes em que nenhum ator
tem condições de impor seus interesses.
“Todos necessitam coligar-se para tornar realidade seus objetivos respectivos, o que põe em funcionamento uma dinâmica de entrelaçamento, [...] um
regime de inimigos sem inimigos, ou seja, um regime que integra os oponentes mediante a reprodução inclusiva, com o que está perfeitamente em
situação de gerar e renovar o dissenso-consenso que assegura seu próprio
espaço de poder” (idem:377; 379).
355
Luis Fernando Ayerbe
Em termos estratégicos, o desenvolvimento desse processo de transnacionalização da economia e da política conduziria à conformação
de um Estado cosmopolita, capaz de reconhecer e defender a igualdade e a diversidade nas dimensões étnicas e nacionais. Para Beck, a
política externa dos Estados Unidos pós-11de setembro caminha em
direção contrária a essa tendência, na medida em que atribui ao Estado nacional um papel vigilante e interventor com autonomia para sacrificar a legalidade dentro e fora do país em nome do combate ao terrorismo, ao mesmo tempo em que promove de forma sistemática a
universalização dos valores do seu modo de vida, edificando um
“despotismo cosmopolita”.
Entre os europeus, existem vozes discordantes sobre o questionamento do unilateralismo de George W. Bush e os anúncios de uma
Europa “essencialmente diferente”. Para Jean-François Revel
(2003), há uma obsessão antiamericana que, além do envolvimento
dos atores mais óbvios à esquerda, traz para o primeiro plano governos aliados dos Estados Unidos, cujas manifestações contra a sua política externa tendem muitas vezes a superar as dos partidários e simpatizantes do comunismo dos anos da Guerra Fria.
Sem desconhecer os méritos nacionais da atual preponderância norte-americana, Revel (idem:46) chama a atenção para os fatores que se
originam do vazio de poder provocado por situações criadas externamente: “a falência do comunismo, o naufrágio da África, as divisões
européias e os atrasos democráticos da América Latina e da Ásia”.
Por outro lado, questiona a atribuição da principal responsabilidade
pelos conflitos e calamidades econômicas e sociais que assolam o
mundo à vocação imperial da superpotência. Afinal, muitos desses
problemas carregam o peso de um passado recente em que a Europa
foi um protagonista essencial.
“À situação criada pelas tentativas européias de suicídio, constituídas pelas
duas guerras mundiais e a propensão dos europeus para engendrar os regimes totalitários, estes também intrinsecamente suicidas, veio juntar-se, a
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partir de 1990, a obrigação de absorver o campo de ruínas deixado pelo comunismo, após seu colapso” (idem:47).
A decadência européia tem seqüelas nos conflitos presentes em regiões que eram parte dos seus impérios coloniais, cuja desagregação
deixou marcas permanentes no chamado “terceiro mundo”. O reconhecimento do peso das suas ações e omissões como um dos fatores
responsáveis pela preponderância dos Estados Unidos e a adoção de
uma posição que, além de cooperativa, exerça um papel vigilante
contra os eventuais abusos da superpotência, são as principais recomendações de Revel para a recuperação de um maior protagonismo
europeu. A continuidade do antiamericanismo obsessivo só fortalecerá o unilateralismo, na medida em que o governo dos Estados Unidos, contando de antemão com o posicionamento crítico dos aliados
ocidentais, tenderá a agir cada vez mais por conta própria, sendo que,
ao menos por um bom tempo, conta com os recursos de poder necessários para isso.
No âmbito dos conservadores norte-americanos, as posições defendidas por Revel têm uma presença muito mais expressiva. Entre os
nomes de destaque está Robert Kagan (2003), um dos fundadores,
junto com William Kristol, do Project for the New American Cen2
tury . Para ele, a existência de visões divergentes entre os Estados
Unidos e a Europa é incontestável, especialmente “na importantíssima questão do poder, da eficácia do poder, da moralidade do poder,
da vontade de poder” (idem:7).
“A Europa está afastando-se do poder, ou, em outras palavras, está caminhando para além do poder, rumo a um mundo isolado repleto de leis, normas, negociações e cooperação internacional. Está entrando num paraíso
pós-histórico de paz e relativa prosperidade, a concretização da ‘paz perpétua de Immanuel Kant. Os Estados Unidos, entretanto, continuam chafurdando na história, exercendo o poder num mundo hobbesiano anárquico,
onde as leis e as diretrizes internacionais não são dignas de confiança, a verdadeira segurança, a defesa e a promoção da ordem liberal ainda dependem
da posse e do uso do poderio militar” (ibidem).
357
Luis Fernando Ayerbe
A despeito do reconhecimento da diversidade de percepções e posições, os contrastes não expressariam a oposição entre uma Europa
essencialmente pacifista e democrática e uns Estados Unidos com
vocação natural ao exercício realista do poder, mas capacidades diferenciadas, embora ao mesmo tempo complementares, de uso da força. Para Kagan, mais que uma escolha baseada em princípios, a atual
postura da Europa não difere daquela adotada pelos Estados Unidos
no século XIX, então militarmente pouco expressivos, cujo cálculo
estratégico de acúmulo de poder recomendava uma política de afastamento das disputas hegemônicas entre as potências européias, cuja
visão do mundo refletia o momento de auge do seu poder econômico,
militar e colonial. Nos dias atuais, as posições invertem-se, e Estados
Unidos e Europa assumem posições equivalentes ao seu peso nas relações internacionais. No entanto, há um paradoxo na posição européia, cuja
“[...] passagem à pós-história dependeu do fato de os Estados Unidos não fazerem tal passagem. Por não ter disposição nem capacidade de proteger seu
próprio paraíso e impedir que seja invadido, tanto espiritual quanto fisicamente, por um mundo que ainda não adotou a lei da ‘consciência moral’, a
Europa tornou-se dependente da disposição americana de usar seu poderio
militar para conter e derrotar aqueles que, ao redor do mundo, ainda são partidários da política do poder” (idem:75).
As expedições armadas que atacam os sintomas e não as causas das
crises, que Joxe (2003) associa a um Império do Caos, são funcionais
à indisposição da Europa para assumir um maior envolvimento, especialmente quando se desencadeiam em seu próprio território,
como aconteceu com os conflitos nos Bálcãs nos anos 1990.
Para Kagan (2003), tanto a posição adotada pela Europa quanto a dos
Estados Unidos não vão sofrer alterações substanciais. A não ser que
aconteça uma catástrofe militar ou econômica cujas proporções abalem a continuidade do poder estadunidense, “é razoável presumir
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Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
que acabamos de ingressar numa longa era de hegemonia americana” (idem:90).
Alguns indicadores tendem a reforçar essa avaliação, especialmente
os que se referem aos custos de manutenção da atual política para a
economia nacional, que não seriam insuperáveis. Em relação aos déficits externos, o financiamento do consumo americano seria funcional à estabilidade da economia mundial, garantindo superávits comerciais para diversos países e regiões, como mostram os dados do
Quadro 1.
Quadro 1
Balança Comercial dos Estados Unidos com Países e Regiões Selecionados
– 2003 e 2004
País/Região
Déficit Comercial dos Estados Unidos
2003
2004
China
–124,068.2
–161,938.0
Japão
–66,032.4
– 75,562.1
–100,320.3
–113,378.8
México
–40,648.2
–45,066.5
América do Sul e Central
–26,882.8
–37,183.3
Coréia do Sul
Europa Ocidental
–13,156.8
–19,755.5
Israel
–5,876.5
–5,382.4
Rússia
–6,170.7
–8,930.3
Fonte: Elaborado com base no U.S. Census Bureau, Department of Commerce: Country Data
(http://www.census.gov/foreign-trade).
No âmbito dos gastos dos EUA com despesas militares como porcentagem do Produto Nacional Bruto (PNB), conforme assinala o
próprio Todd (2003), houve uma queda considerável, passando de
7% no fim dos anos 1980 para 5,2% em 1995 e 3% em 1999. No auge
da hegemonia inglesa, entre 1815 e a década de 1870, os gastos estadunidenses com as forças armadas variava entre 2% e 3% do PNB
(Kennedy, 1989).
359
Luis Fernando Ayerbe
Niall Ferguson (2004), um defensor explícito da necessidade do império estadunidense como fator de estabilidade e progresso mundial,
relativiza o impacto dos gastos militares na economia do país. Há um
problema de déficits crônicos das finanças nacionais que não se originam dos compromissos externos assumidos pelas forças armadas.
Para sustentar seu argumento, compara o volume dos gastos militares dos Estados Unidos, que excedem o conjunto dos orçamentos de
defesa da União Européia, China e Rússia, com a parcela que consome do PNB, correspondente a uma média de 3,5% na primeira metade da década de 2000, bem menor do que os 10% dos anos 1950. Desta forma, conclui: “Assim como o império liberal britânico um século
atrás, o nascente império liberal americano é surpreendentemente
barato para funcionar” (idem:262).
Para Ferguson, o mundo necessita mais do que nunca de um império
benigno, liderado pelos Estados Unidos, mas que busque trazer para
seu lado a União Européia, cujo caráter liberal não apenas
“[...] subscreve a troca internacional livre dos produtos, do trabalho e do capital, mas também cria e sustenta as condições sem as quais os mercados
não podem funcionar – a paz e a ordem, o império da lei, uma administração
não corrupta, políticas fiscais e monetárias estáveis, assim como fornece
bens públicos, tais como infra-estrutura para o transporte, hospitais e escolas, que não existiriam de outra maneira” (idem:2).
Embora Ferguson considere o império uma condição inerente à história dos Estados Unidos, nem sempre se assumiu enquanto tal, o que
estaria mudando a partir da administração Bush e do 11 de Setembro.
O Desafio Conservador
Sistematizando as posições dos autores que vinculam o unilateralismo com a perda de capacidade dos Estados Unidos para gerar consensos na administração do sistema internacional, destacam-se três
argumentos: 1) a exacerbação do poder duro, apesar de eventuais ganhos conjunturais, tende a comprometer a posição de supremacia a
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CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
médio e longo prazo; 2) a manutenção do status de única superpotência global torna-se cada vez mais dependente de respaldo financeiro
externo, em um contexto de crise da economia e fortalecimento crescente do setor privado transnacional; 3) o aprofundamento das desigualdades promovido pelo modelo econômico vigente, incapaz de
responder às demandas da maioria dos excluídos do sistema, está
cristalizando um impasse social.
No contexto atual, o impasse social assume formas diversas: fundamentalismo antiocidental, com desdobramentos na perpetração de
atentados terroristas como os de 1998 nas embaixadas de Quênia e
Tanzânia, ganhando maior fôlego a partir do 11 de Setembro; as crises financeiras inauguradas pela desvalorização do peso mexicano
em dezembro de 1994, atingindo posteriormente a Coréia do Sul, a
Rússia, o Brasil e a Argentina; movimentos sociais contra a agenda
de liberalização dos mercados, que assumem maior visibilidade a
partir das manifestações de rua paralelas à reunião da OMC em Seattle, em novembro de 1999; fortalecimento de partidos críticos da ordem nos eleitorados do “terceiro mundo”, com possibilidades concretas de alcançar o poder governamental, tendo-se Venezuela, Brasil e Uruguai como exemplos mais emblemáticos na América Latina.
Diante desse cenário, a percepção do caráter irremediável e irreversível da polarização entre países e setores sociais – pelo menos a curto
e médio prazo – conduz o governo dos Estados Unidos a optar pela
explicitação dos limites que demarcam a segurança do sistema, deflagrando uma campanha de amplo espectro destinada a diminuir níveis de incerteza, combatendo os “novos bárbaros” que se disseminam pelos territórios do império.
A radicalização de posições por parte do governo Bush não está associada ao abandono do consenso hegemônico, decorrente da aceleração de uma crise de caráter estrutural que impõe a dominação aberta
como única alternativa. O que se verifica é uma sinalização em favor
361
Luis Fernando Ayerbe
do endurecimento, como ação preventiva contra os fatores de instabilidade associados a uma conjuntura de transição entre o mundo bipolar e a nova ordem em configuração.
O antecedente mais próximo dessa postura na política externa é a administração de Ronald Reagan, que enfrentou um contexto mais delicado, envolvendo diversas frentes: no aspecto econômico, o segundo choque do petróleo, a recessão mundial e a perda de posições do
país em relação ao Japão e à então Alemanha Ocidental; no âmbito
político, as seqüelas da derrota no Vietnã e do escândalo Watergate,
paralelamente à expansão da esfera de influência da União Soviética
e às revoluções no Irã e na Nicarágua.
O unilateralismo daquele momento, com a diplomacia do dólar forte
e o combate ao “império do mal”, foi a opção de uma equipe oriunda
3
de círculos neoconservadores , cuja influência se estende às administrações de Bush pai e filho. A convicção desses modernos adeptos
do big stick de que a derrota soviética e a retomada da hegemonia dos
Estados Unidos decorrem fundamentalmente do sucesso das políticas adotadas nos anos 1980 fortalece o favoritismo em prol da deflagração de uma nova cruzada.
Diferentemente daquele contexto, não se visualizam no horizonte
novos inimigos do sistema. As organizações que defendem programas anticapitalistas, além de pouco expressivas, não contam com o
respaldo de potências nucleares com ambições internacionais hegemônicas. Nos países governados por partidos originários da esquerda, predomina uma postura internacional pautada pela negociação
das diferenças e respeito da legalidade. Na América Latina, isto inclui regimes políticos de partido único, como Cuba, e regimes de democracia representativa, como o Brasil. Os movimentos sociais antiglobalização questionam, basicamente, seus desajustes, especialmente a exclusão, diferentemente da esquerda comunista, que colocava o acento da crítica na propriedade privada dos meios de produ362
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
ção e na extração de excedente no processo de trabalho, buscando
atingir os fundamentos do capitalismo.
Expandir o acesso e a inclusão torna-se um dos desafios estratégicos
da ordem proclamada pelos Estados Unidos. No entanto, enquanto
não se verificam ganhos significativos nesse campo, a opção pelo endurecimento busca tornar mais explícitos os limites estruturais da
mudança possível, colocando a economia de mercado e a democracia liberal como fundamentos inegociáveis de um modo de vida a
preservar. Tendo essa perspectiva estratégica como referência central, o governo Bush entra em campo na disputa pelo apoio político
dos “ganhadores” da globalização, deixando claro que, se o momento é de guerra, a defesa das hierarquias conquistadas antepõe-se a
perdas conjunturais e localizadas de liberdade e bem-estar material,
exigindo o fechamento de fileiras contra o crescente ativismo dos
“perdedores”, que estaria contaminado por uma irracionalidade com
fortes componentes de ressentimento e destruição. A partir do momento em que se configure um desenlace favorável no combate aos
novos inimigos, será possível restabelecer a normalidade. Enquanto
isso, caberá aos “falcões” cuidar da governabilidade sistêmica, assumindo os custos políticos do Estado de exceção.
Da minha perspectiva, a atuação internacional dos Estados Unidos
tem uma dimensão essencialmente estrutural. As diferenças entre o
“unilateralismo” republicano e o “multilateralismo” democrata, os
defensores dos poderes brando ou duro, as abordagens cosmopolitas,
imperiais ou nacionais, realistas ou liberais, referem-se mais aos
meios do que aos fins da política externa. Neste contexto, não se vislumbram ameaças à continuidade da ordem mundial cuja defesa anima o espírito da Doutrina Bush.
Ao longo de sua história, e de acordo com os desafios de cada época e
de cada país, o capitalismo conviveu com regimes monárquicos, de
363
Luis Fernando Ayerbe
democracia representativa, totalitarismos nazifascistas, ditaduras militares, nacionalismos populistas. Por que desta vez seria diferente?
Da mesma forma ocorrida na transição do século XIX para o XX, o
exercício da hegemonia do imperialismo atual busca respaldo em
parcela significativa das audiências nacionais e dos governos dos países do capitalismo avançado e atrasado, construindo um poder que
se pretende incontestável nas dimensões econômica, militar, política
e cultural.
Notas
1. A Brookings Institution é considerada o mais antigo Think Tank dos Estados Unidos. Fundada em 1916, atua nas áreas de educação, economia, política
externa e governança. Em termos políticos, assume uma opção explícita pelas
posições moderadas, acima de definições partidárias, embora seja considerada
tradicionalmente próxima ao Partido Democrata. William Cohen, secretário da
Defesa, Lawrence Summer, secretário do Tesouro, e Joan Edelman Spero, subsecretária do Departamento de Estado para Economia, Negócios e Agricultura
do governo Clinton, pertenceram à instituição.
2. O Project for the New American Century, criado em 1997, tem entre os
membros fundadores intelectuais conservadores, como Norman Podhoretz e
Francis Fukuyama, e figuras que têm forte protagonismo na administração de
George W. Bush, como Elliott Abrams, Jeb Bush, Dick Cheney, Paula Dobriansky, Zalmay Khalilzad, Lewis Libby, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz.
3. O neoconservadorismo tem uma forte presença intelectual nos Estados Unidos, que envolve principalmente a participação em Think Tanks como o American Enterprise Institute e The Project for the New American Century, e a veiculação de idéias por meio de publicações periódicas, em que se destacam Commentary, The Public Interest e The Weeckly Standard. Em termos de influência
política, adquiriu grande visibilidade durante o governo Reagan, que se ampliou
na administração de George W. Bush, especialmente após o 11 de Setembro de
2001, quando os neoconservadores assumiram a liderança na formulação das
novas diretrizes da política externa.
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Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
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WALTZ, Kenneth. (2002), “Structural Realism after the Cold War”, in J. Iken-
berry (ed.), America Unrivaled. The Future of Balance of Power. Ithaca, Cornell
University Press.
Resumo
Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas
O artigo analisa a posição dos Estados Unidos nas relações internacionais
pós-Guerra Fria, tomando como referência as controvérsias sobre os alcances e limites da sua postura hegemônica, que adquirem maior impulso a partir da formulação da chamada “doutrina Bush”, sistematizada no documento “A Estratégia de Segurança Nacional dos EUA”.
No tratamento da temática proposta, enfatizam-se os seguintes aspectos:
estabelecimento de um paralelo entre a transição dos séculos XIX-XX e
XX-XXI, situando as características do imperialismo de cada época; uma
análise da atual política externa dos Estados Unidos, enfocando o debate
entre unilateralismo e multilateralismo, com destaque para as reações geradas pela intervenção no Iraque; uma discussão crítica das abordagens que
visualizam na agenda de segurança da administração Bush um indicador de
perda de hegemonia, que imporia a substituição da busca do consenso pela
dominação aberta.
Palavras-chave: Bush – Unilateralismo – Multilateralismo – Hegemonia
367
Luis Fernando Ayerbe
Abstract
The United States in the Present
International Relations
This article analyzes the position of the United States in the post-Cold War
world, considering as a reference the controversies on the extension and
limits of its hegemonic posture, which acquires greater relevance after the
formulation of the “Bush Doctrine”, systematized in the document “The
National Security Strategy of the United States of America”.
Our approach will lay emphasis on the following aspects: establishment of a
parallel between the transition of the XIX-XX and XX-XXI centuries, from
studies that point out the characteristics of imperialism at different times;
an analysis of the current foreign policy of the United States, focusing on
the debate between unilateralism and multilateralism, emphasizing the
reactions caused by the intervention in Iraq; a critical argument of the
approaches that visualize in the security agenda of the Bush administration
an indicator of a loss of hegemony, which would impose open domination
over the search of consensus.
Key words: Bush Doctrine – Unilateralism – Multilateralism –
Hegemony
368
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e
Relevância dos
Regimes*
Gustavo Seignemartin de Carvalho**
Introdução
Segundo teorias institucionalistas na disciplina de relações internacionais (RI), regimes – definidos genericamente como um conjunto
de normas e regras formais ou informais que permitem a convergência de expectativas ou a padronização do comportamento de seus
participantes em uma determinada área de interesse – são criados
com o objetivo de resolver problemas de coordenação que tendem a
resultados não pareto-eficientes. Para Robert Keohane (1993), por
exemplo, a constatação de que, em algumas situações, decisões ne-
*Artigo recebido em abril e aceito para publicação em setembro de 2005. Este artigo foi desenvolvido a
partir de um trabalho final preparado para a disciplina de Economia Política, ministrada pelo professor
Luis Manoel Rabello Fernandes. O autor gostaria de agradecer ao professor Luis Fernandes pelo incentivo e apoio recebidos na preparação deste artigo.
** Mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).
CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 283-329.
283
Gustavo Seignemartin de Carvalho
gociadas e tomadas de forma coletiva seriam mais eficientes do que
quando tomadas de forma unilateral e individual explicaria a demanda por regimes internacionais por parte dos Estados: “os regimes facilitam a cooperação, propiciando regras, normas, princípios
e procedimentos que auxiliam os agentes a superar barreiras à cooperação identificadas pelas teorias econômicas como falha de mercado” (idem:182)1.
No entanto, uma definição meramente funcionalista de regimes, baseada em sua “eficiência”, não parece suficiente para explicar sua
efetividade. Desta forma, o presente artigo propõe uma definição diferente de regimes: a de arranjos políticos que permitem a redistribuição dos ganhos da cooperação pelos participantes em uma determinada área de interesses em um contexto de interdependência. Eles
possuiriam efetividade em virtude de sua autonomia e relevância, ou
seja, por possuírem existência objetiva autônoma com relação a seus
participantes e influenciarem o comportamento e as expectativas
destes de maneiras que não podem ser reduzidas à ação individual de
qualquer um deles.
Este artigo se inicia com uma breve discussão sobre as dificuldades
terminológicas associadas ao estudo de regimes e a definição dos
conceitos de autonomia e relevância. Em seqüência, classifica os diversos autores participantes do debate em duas perspectivas distintas, uma negando (não-autonomistas) e a outra atribuindo (autonomistas) aos regimes autonomia e relevância, e faz uma breve análise
dos autores e tradições mais significativos para o debate, aprofundando-se nos autonomistas e nos argumentos que reforçam a hipótese aqui apresentada. Ao final, o artigo propõe uma decomposição
analítica dos regimes em quatro elementos principais: normatividade, atores, especificidade da área de interesses e interdependência
complexa como contexto, que em conjunto possibilitam a autonomia
e relevância apresentada pelos regimes.
284
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
Regimes
Desde sua primeira formulação no artigo pioneiro de John Ruggie
(apud Keohane, 1984:57), a definição de regimes tem sido alvo de
acirradas disputas. Para Susan Strange (1982:484), por exemplo, a
imprecisão terminológica do conceito é um dos problemas que colocam em dúvida o estudo de regimes: “‘Regime’ é mais um conceito
vago que se torna uma fonte fértil de discussões simplesmente porque as pessoas querem dizer coisas diferentes quando o empregam”.
Outro problema identificado por Strange (idem:486), associado à
imprecisão terminológica, é o viés normativo embutido no conceito:
“o termo regime é carregado de valoração; ele traz implícitas algumas coisas que não deveriam ser pressupostas sem discussão”. O perigo seria duplo: a palavra “regime” evocaria não apenas a idéia de
algo necessário à melhoria da “saúde” do sistema internacional anárquico, mas também, por sua associação com a política interna dos
Estados, a idéia de governo político ou de ordenação do sistema: “em
suma, governo, domínio e autoridade formam a essência da palavra,
e não consenso, justiça ou eficiência na administração” (ibidem). Em
conseqüência, “ela [a palavra regime] assume que o que todos desejam é mais e melhores regimes, que mais ordem e interdependência
administrada devem ser o objetivo coletivo” (Strange, 1982:487).
A crítica de Strange é repetida por outros autores. Para John Mearsheimer (1995), a definição de regimes é tão vaga que permite o enquadramento no conceito de qualquer padrão regularizado de comportamento na esfera internacional. Para ele,
“[...] definir instituições como ‘padrões reconhecíveis de comportamento
ou práticas em função dos quais as expectativas convergem’ permite que o
conceito compreenda praticamente qualquer padrão regular de atividade
entre os Estados, desde a guerra até a redução de tarifas negociadas sob o
Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), o que o torna em grande
medida desprovido de sentido” (idem:8).
285
Gustavo Seignemartin de Carvalho
Fazendo uma crítica à epistemologia racionalista no estudo de regimes, Friedrich Kratochwil e John Ruggie (1986:763) defendem que
a literatura sobre o tema sofre de grande imprecisão quanto ao objeto
de estudo e aos limites da teoria: “não há consenso na literatura sequer sobre questões básicas, tais como os limites de utilização do
conceito: onde um regime termina e outro começa? O que diferencia
um regime de um ‘não-regime’?”. Em sua opinião, a refinação do
conceito de regimes, apesar de necessária, seria possível apenas até
certo ponto. Como regimes não teriam existência objetiva e constituiriam o que os autores chamam de “construções conceituais”, uma
certa indeterminação seria inerente a seu estudo em virtude do caráter subjetivo e normativo do conceito, o que seria reforçado pela impossibilidade de separação efetiva entre sujeito e objeto. Nas palavras dos próprios autores:
“[...] as definições podem ser refinadas, mas apenas até certo ponto [...] não
existe um ponto ‘arquimediano’ externo a partir do qual os regimes possam
ser vistos como ‘verdadeiramente’são, porque regimes são criações conceituais e não entidades concretas. Como ocorre com qualquer construção analítica nas ciências humanas, o conceito de regimes reflete o senso-comum,
as preferências dos atores e os objetivos particulares para os quais a pesquisa está sendo conduzida. Portanto, o conceito de regimes, da mesma maneira que os de ‘poder’, de ‘Estado’ e de ‘revolução’, permanecerá um ‘conceito discutível’” (ibidem).
Além disso, ao enfatizar normas, princípios e convergência de expectativas, as definições de regimes propostas pelas tradições mainstream acabariam impondo a uma ontologia melhor estudada com
base em uma epistemologia não-fundacionalista as limitações inerentes a uma epistemologia racionalista. O resultado para os autores
seria “ontologia contra epistemologia” (Kratochwil e Ruggie,
1986:764).
Refletindo sobre tais críticas, Oran Young (1999) sugere que essa
tensão entre ontologia e epistemologia se faria sentir em diversos níveis, levantando dúvidas quanto à validade epistemológica da sepa286
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
ração entre sujeito e objeto e, sobretudo, quanto à premissa “racionalista” que assume que os interesses dos atores nos regimes são exogenamente constituídos: “as instituições podem ter um papel importante na constituição das identidades de seus membros e, mais especificamente, podem influenciar a maneira pela qual estes atores definem
seus interesses” (idem:204). Como princípios, normas e regras seriam construídos intersubjetivamente, influenciariam não apenas sua
interpretação como também sua aplicação pelos atores. A conclusão
“não-fundacionalista” seria que “estes padrões prescritivos não possuem existência exterior às mentes dos sujeitos a eles submetidos”
(idem:206). Regimes seriam melhor estudados como uma prática social ou como formas discursivas internalizadas pelos atores:
“Na verdade, os regimes tornam-se partes integrantes de complexos comportamentais e não arranjos exógenos criados e mantidos por atores que
procuram evitar ou diminuir problemas de ação coletiva associados a vários
complexos comportamentais” (idem:208).
Outros autores diretamente ligados ao estudo de regimes mostram-se
preocupados com a indeterminação das definições normalmente fornecidas. Para Arthur Stein (1990:26), por exemplo, “muitos estudiosos definem ‘regimes internacionais’ de maneira tão vaga que é possível abranger na definição todas as relações internacionais ou todas
as interações internacionais em uma determinada área de interesse”.
Quando não-especificados, “‘regimes’ não possuem status de conceito; eles não delimitam os padrões normais de comportamento internacional” (ibidem).
Contudo, ainda que os obstáculos ao estudo de regimes apontados
pelos críticos sejam relevantes, não são intransponíveis. Um certo
grau de indeterminação é inerente a qualquer discussão sobre conceitos e terminologia dentro das ciências sociais. O fato de os regimes
serem “construções conceituais” não impede que possuam elementos objetivos que tenham efeitos verificáveis sobre os comportamentos de seus participantes. Como bem nota Young (1999:208), “[regi287
Gustavo Seignemartin de Carvalho
mes] devem afetar o curso da política mundial por meio da influência
sobre o comportamento de seus membros e o de outros que estejam
sujeitos às suas determinações”. Para ele, regimes possuiriam existência objetiva e poderiam ser estudados empiricamente a partir da
análise das convenções sociais que os compõem e das percepções
que os atores delas possuem. Não obstante as dificuldades inerentes a
este tipo de estudo, “os atores normalmente possuem percepções relativamente precisas quanto à existência de convenções sociais. Portanto, há espaço considerável para a utilização de métodos diretos de
pesquisa (por exemplo, pesquisas de opinião)” (Young, 1982:734).
Uma discussão metodológica mais aprofundada encontra-se fora do
escopo deste artigo. No entanto, a defesa do estudo de regimes a partir de uma perspectiva epistemológica racionalista é viável, assumindo-se a possibilidade de separação entre sujeito e objeto. Naturalmente, isso não significa dizer que perspectivas não-racionalistas sejam desprovidas de importância ou coerência; diferentes perspectivas e métodos podem possuir validade quando aplicadas a diferentes
aspectos do problema. Como ressalta Young (1999:208),
[...] tanto o modelo de comportamento da escolha racional quanto o modelo
construtivista são capazes de capturar aspectos importantes do papel protagonizado por instituições na sociedade internacional; nenhum deles [...] dá
conta de todas as suas variações”.
Quanto à normatividade do conceito de regimes, condenada de forma tão contundente por Strange (1982), há muito a epistemologia
nas ciências sociais admite que as teorias são indissociáveis de valores ou de elementos normativos, que inevitavelmente as informam.
Max Weber (s/d a:16) entendia como inevitável o papel dos valores e
da ética na investigação científica: “o método científico dos juízos de
valor não se limitará a compreender e reviver os fins propostos e os
ideais em que se baseiam, como também se propõe ensinar a ‘ajuizar’
de modo crítico”. Para ele, desde que o método científico fosse objetivo, poderia ser utilizado na avaliação das conseqüências decorren288
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
tes dos valores e das teorias, permitindo desta forma sua comparação
e a escolha entre umas e outras.
Para Karl Popper (s/d:32), o processo de formulação de teorias científicas tem por base elementos ou impulsos “irracionais” ou valorativos: “não existe um método lógico de conceber idéias novas [...] minha maneira de ver pode ser expressa na afirmativa de que toda descoberta encerra um ‘elemento irracional’ ou uma ‘intuição criadora’”. Devido à carga valorativa que as teorias possuem, Popper constrói sua epistemologia a partir da idéia da incomensurabilidade do
marco teórico em que elas estão inseridas.
Assim, o que os autores dedicados ao estudo de regimes possuem em
comum é a visão destes como instituições sociais relevantes e autônomas, que produzem efeitos sobre os atores que delas participam (e
que podem mesmo ser influenciadas pelo comportamento coletivo
dos atores). Logicamente, o conceito de regimes é uma construção
que nos permite estudar analiticamente fenômenos ou instituições
sociais desprovidos de existência física, principalmente quando não
formalizados. Mas este fato não impede que os fenômenos que consubstanciam um regime produzam efeitos objetivos e verificáveis de
maneira independente dos atores que dele participam. O estudo de
relações sociais e seus efeitos não está restrito à perspectivas
pós-modernas ou não-fundacionalistas.
Vale notar que aceitar um certo grau de imprecisão no conceito de regimes não é o mesmo que negligenciar sua definição. Por ocasião de
uma conferência sobre o tema realizada em 19822, estudiosos de
perspectivas diversas procuraram diminuir a confusão conceitual
existente por meio da formulação de uma definição “consensual”.
Segundo Krasner (1982:186), que reproduz esta definição, regimes
são “princípios, normas, regras e procedimentos para a tomada de
decisões, implícitos ou explícitos, em função dos quais as expectati289
Gustavo Seignemartin de Carvalho
vas dos atores convergem em uma determinada área das relações internacionais”.
Apesar da importância que a definição consensual adquiriu na disciplina de RI, a conceituação de regimes ainda é fruto de divergências.
Conforme dito na Introdução, o presente artigo procura classificar
diversos autores que participaram deste debate em duas perspectivas
distintas, de acordo com a relevância e autonomia por eles atribuída
aos regimes.
Com o conceito de relevância, procura-se expressar o grau de influência que os regimes possuem sobre o comportamento dos atores.
Não se trata aqui de analisar a relevância dos regimes no caso concreto, ou seja, se um determinado regime é forte ou fraco, mas sim quanta influência as diferentes perspectivas atribuem aos regimes em teoria.
Por meio do conceito de autonomia, procura-se expressar a dissociação entre o regime e os atores que o compõem, mesmo no caso de regimes não formalizados. Depois de constituídos por um grupo de
atores, os regimes produzem efeitos sobre todos, independente da
vontade individual dos participantes.
Relevância e autonomia não se confundem, apesar de estarem intrinsecamente ligadas. Para algumas formulações da teoria da estabilidade hegemônica, por exemplo, regimes podem ter relevância sem
serem autônomos, na medida em que legitimam ou intermedeiam a
atuação direta da potência hegemônica. Por outro lado, podem ser
vistos como possuindo autonomia, mas, por diversas razões, tendo
influência reduzida no comportamento dos participantes.
Na perspectiva que, para efeito de simplificação, é aqui chamada de
“não-autonomista”, temos os autores que não atribuem relevância
nem autonomia aos regimes internacionais, mas no máximo uma
função meramente instrumental ao conceito. Em contraposição a es290
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
tes autores, temos, em uma segunda perspectiva, autores que, mesmo
em graus diversos e partindo de concepções ou epistemologias diferentes, atribuem relevância e autonomia aos regimes – esta perspectiva será chamada de “autonomista”.
O estudo de cada perspectiva será iniciado com uma breve análise de
algumas teorias, tradições e autores não-autonomistas representativos, após o que os autores autonomistas, que interessam mais diretamente ao tema do presente artigo, serão analisados em mais detalhes.
Perspectiva
Não-Autonomista
Muitos dos autores não-autonomistas podem ser identificados com a
tradição realista na disciplina de RI.
Realismo
Como já mostrado anteriormente, Strange (1982) parte de uma perspectiva realista associada à economia política internacional (EPI)
para questionar o conceito de regime. Para a autora, deve-se “considerar o Estado e os governos nacionais como os verdadeiros determinantes dos resultados” (idem:480). Em sua visão, regimes, assim
como as organizações internacionais, servem a três propósitos específicos diretamente relacionados aos agentes estatais:
“Estes [propósitos] podem ser definidos de maneira ampla como estratégicos (ou seja, servem como instrumentos da estratégia estrutural e da política
externa do Estado ou dos Estados dominantes); adaptativos (ou seja, fornecem a concordância multilateral a quaisquer arranjos que sejam necessários
para permitir que os Estados gozem de autonomia política sem o sacrifício
dos dividendos econômicos derivados dos mercados mundiais e de estruturas mundiais de produção); e simbólicos (ou seja, permitem que todos se declarem a favor da verdade, da beleza, da bondade e de uma comunhão mundial, enquanto os governos permanecem livres para perseguir os interesses
nacionais e para fazer o que desejarem)” (idem:484, ênfase no original).
291
Gustavo Seignemartin de Carvalho
Na visão de Strange (idem), regimes são claramente destituídos de
relevância e autonomia. Quando muito, serviriam apenas como um
instrumento do poder estatal.
Mearsheimer (1995) analisa o impacto dos regimes na área de segurança e conclui que possuem influência apenas marginal sobre o
comportamento dos Estados: “as instituições não exercem quase nenhuma influência sobre o comportamento estatal” (idem:7). Ele mesmo resume sua posição da seguinte maneira: “eles [os regimes] se baseiam no cálculo dos interesses próprios das grandes potências e não
exercem efeito independente sobre o comportamento estatal” (ibidem).
Os Estados seriam assim atores racionais e egoístas que, por interagirem em um sistema internacional anárquico, teriam preocupação em
primeiro lugar com sua segurança, procurando ativamente atingir
uma posição de proeminência perante os demais: “a vida diária é essencialmente uma luta pelo poder, na qual cada Estado procura não
apenas ser o ator mais poderoso do sistema como também assegurar
que nenhum outro Estado alcance a mesma posição de proeminência” (Mearsheimer, 1995:9). Dentro desta lógica, a preocupação com
ganhos relativos torna-se relevante, uma vez que “os Estados procuram maximizar suas posições relativas de poder no sistema internacional com relação aos demais” (idem:11). Já as possibilidades de cooperação e de formação de regimes seriam limitadas: “a cooperação
entre os Estados é limitada principalmente porque é constrangida
pela lógica da competição por segurança” (idem:9).
De maneira um pouco diferente de Strange e Mearsheimer, mas ainda dentro da tradição realista, a crítica de Joseph Grieco (1993) direciona-se aos efeitos atribuídos pelo institucionalismo liberal aos regimes. Segundo este autor, a tradição realista demonstraria que, apesar de os Estados terem conseguido cooperar “por meio de instituições internacionais até mesmo nos duros anos 70” (idem:121, ênfase
292
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
no original), regimes e organizações internacionais não possuiriam
relevância pois “são incapazes de mitigar os efeitos restritivos exercidos pela anarquia sobre a cooperação interestatal” (idem:116). Ao
contrário do que entenderiam autores institucionalistas liberais, os
Estados, por serem posicionalistas, estariam preocupados não apenas com ganhos absolutos, mas também com os ganhos dos demais
Estados com a cooperação: “para os realistas, um Estado se preocupa
tanto com os ganhos absolutos quanto com os ganhos relativos da cooperação” (idem:118). Assim como Mearsheimer, Grieco entende
que a preocupação dos Estados com a segurança em um ambiente internacional anárquico os levaria a enxergar os ganhos dos demais
“competidores” como o fortalecimento de eventuais inimigos no futuro: “como resultado, os Estados precisam dar muita atenção aos
ganhos obtidos pelos parceiros” (ibidem).
Teorias da Estabilidade
Hegemônica
3
A formulação clássica da teoria da estabilidade hegemônica dentro
da EPI foi apresentada por Charles Kindleberger (s/d) em seu estudo
da Grande Depressão e da instabilidade política e econômica que
atingiu o sistema capitalista na década de 1930. Para o autor
(idem:28),
“[...] o sistema econômico e monetário internacional necessita de liderança,
de um país que esteja preparado, consciente ou inconscientemente, sob um
sistema de regras que tenha internalizado, a determinar padrões de conduta
para outros países, a tentar fazer com que outros o sigam, a arcar com uma
carga desproporcional dos custos do sistema e, em particular, sustentá-lo na
adversidade, recebendo o excesso de matérias-primas nele produzido, mantendo um fluxo de capitais para investimento e descontando seus títulos”.
A estabilidade de uma determinada “ordem” no sistema internacional dependeria da liderança de um Estado disposto a arcar com os
custos da estabilização do sistema. Diante desta necessidade, a ca293
Gustavo Seignemartin de Carvalho
racterística mais importante para determinar a estabilidade do sistema internacional seria a assimetria de poder e de capacidades entre a
potência hegemônica e os demais participantes: “a simetria não é a
característica do mundo em todas as épocas e lugares” (idem:292).
Para o autor, a longa duração da crise, de 1929 a 1939, teria suas raízes em parte na ausência desta liderança:
“[...] parte da razão para a duração e grande parte da explicação para a profundidade da depressão mundial são a inabilidade dos britânicos em continuar atuando como garantidores do sistema e na relutância dos Estados Unidos em assumir este papel antes de 1936” (idem:28).
Apesar de não tratar diretamente de regimes, a teoria da estabilidade
hegemônica, como formulada por Kindleberger (idem), traz conclusões interessantes para seu estudo na medida em que a coordenação
do sistema pelo líder hegemônico passa pela formação de arranjos e
regras para orientar e até mesmo determinar a conduta dos demais
participantes.
A despeito de sua inspiração realista, algumas características desta
formulação a diferenciam dos realistas clássicos. Logicamente, se o
sistema necessita da atuação direta de um líder para sua estabilização
e ordenação, então os regimes não possuem autonomia, não se dissociam do ator que os estabeleceu. Além disso, a atuação direta e constante desse líder é necessária para que os regimes por ele estabelecidos tenham relevância ou efetividade.
Todavia, ao contrário de outros autores realistas, a visão de Kindleberger da hegemonia e de sua atuação na manutenção de regimes
possui uma conotação menos conflituosa. Apesar da assimetria de
poder e do elemento de dominação inerente à idéia de hegemonia,
Kindleberger (idem:292) enxerga a estabilização do sistema como
um “bem público”: “quando todos os países passaram a proteger seus
interesses nacionais particulares, o interesse público do mundo foi
para o buraco e com ele se foram os interesses privados de todos”.
294
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
Além disso, apesar de a estabilidade ser um bem público e interessar
a todos os atores, isso não seria suficiente para promover a convergência dos interesses divergentes do líder hegemônico e de cada um
dos demais participantes. Na visão do autor, para que haja estabilidade, é necessária acima de tudo a atuação e liderança de uma potência
hegemônica consciente da necessidade de sacrificar seus interesses
de curto prazo em prol dos interesses de estabilização a longo prazo,
por intermédio da assunção dos custos necessários à “cooptação” dos
demais.
É curioso que apesar de se apoiar claramente no poder para sua eficácia, a hegemonia, como entendida por Kindleberger (idem), não é
exercida explicitamente para a promoção dos interesses do líder hegemônico. Sem dúvida, seus interesses seriam melhor atingidos por
meio da estabilidade, mesmo que isto venha em detrimento de seus
interesses de curto prazo: “os economistas têm argumentado que [...]
é mais provável que um ator exerça tal liderança quando se vê como
um dos grandes consumidores dos benefícios de longo prazo produzidos pelo regime” (Keohane e Nye, 1989:44). Mas para Kindleberger (s/d), o exercício da liderança pelo líder hegemônico parte de
uma concepção internalizada da ordem dentro do sistema ou do regime, algo que transcende o simples cálculo racional dos interesses dos
participantes e possui uma conotação adicional que evoca a idéia de
responsabilidade: “se a liderança é entendida como o fornecimento
do bem público da responsabilidade e não como a exploração do próximo ou a busca do bem privado do prestígio, ela permanece uma
idéia positiva” (idem:307).
Outro ponto interessante da aplicação da teoria da estabilidade hegemônica de Kindleberger ao estudo de regimes está na visão que os
participantes possuem dos ganhos relativos. Ao contrário de realistas
como Mearsheimer e Grieco, a teoria de Kindleberger sugere que os
ganhos relativos não são tão importantes para os participantes de um
regime, até porque a assimetria de poder é da própria natureza do ar295
Gustavo Seignemartin de Carvalho
ranjo político entre todos os participantes e é fundamental para sua
estabilidade.
Robert Gilpin (1981) apresenta uma versão diferente da teoria da estabilidade hegemônica e do papel das potências na manutenção do
sistema e dos regimes:
“[...] os atores entram em relações sociais e criam estruturas sociais para
promover conjuntos específicos de interesses políticos, econômicos ou de
outros tipos [...]. [O]s interesses mais favorecidos por estes arranjos sociais
tendem a refletir os poderes relativos dos atores neles envolvidos [...].
[A]pesar dos sistemas sociais imporem restrições ao comportamento de todos os atores, os comportamentos recompensados ou punidos pelo sistema
coincidirão, ao menos inicialmente, com os interesses dos membros mais
poderosos do sistema social” (idem:9).
Regimes, como meios de ordenação do sistema, seriam para Gilpin
(idem) criações dos Estados para promover seus próprios interesses,
principalmente os dos Estados em posição de liderança. Como bem
lembram Keohane e Nye (1989:44), a concepção de “liderança” para
os realistas implicaria que “quando um Estado é suficientemente poderoso para manter as regras essenciais governando as relações interestatais [...] pode ab-rogar as regras existentes, impedir a adoção de
regras às quais se oponha ou exercer o papel dominante na construção de novas regras”. Mas Gilpin (1981) qualifica o argumento realista ao reconhecer que os Estados não controlam totalmente estes arranjos políticos, os quais adquirem certo grau de influência sobre o
comportamento dos próprios Estados:
“[...] obviamente, eles [os Estados] não possuem controle absoluto sobre
este processo. Uma vez que esteja em funcionamento, o próprio sistema internacional tem uma influência recíproca no comportamento estatal; ele
afeta as maneiras pelas quais indivíduos, grupos e Estados procuram alcançar seus objetivos. O sistema internacional oferece um conjunto de constrangimentos e oportunidades sob os quais grupos e Estados procuram promover seus interesses” (idem:25).
296
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
Teorias Autonomistas
Ainda que partilhem de algumas premissas, existem diferenças marcantes entre autores institucionalistas liberais e realistas. Partindo de
perspectivas liberais ou institucionalistas liberais, o estudo de regimes acabou concentrando autores de tradições diversas em torno da
relevância e da autonomia dos regimes internacionais.
Alguns desses autores, como Arthur Stein (1990), expressam a relevância (em maior grau) e a autonomia (em menor grau) dos regimes
ao identificá-los como variáveis intervenientes que se situam, nas palavras de Krasner (1982:189), “entre as variáveis causais básicas
(sendo as mais importantes poder e interesses) e resultados e comportamento”. Nesta formulação (que podemos chamar de “causal”),
regimes, criados a partir dessas variáveis independentes e por elas informados, teriam uma relação de causalidade com o comportamento
dos atores, o que demonstraria sua relevância, e não se resumiriam a
um mero conjunto de interesses ou a um mero reflexo do poder dos
atores, o que demonstraria sua autonomia. Segundo Krasner
(idem:190), para esses autores, “o impacto independente dos regimes é uma questão analítica crucial”. Ele finaliza sua análise desta
primeira vertente apresentando o esquema da Figura 1.
Figura 1
Representação Gráfica da Vertente “Causal”
Variáveis Causais Básicas
Regimes
Comportamentos e Resultados
Fonte: Krasner (1982:189).
Para outros autores dentro da perspectiva autonomista, como Young,
os regimes se desenvolveriam a partir de padrões ou da repetição do
comportamento dos agentes. De acordo com Krasner (idem:192),
“padrões de comportamento que persistem ao longo de extensos períodos são impregnados de significância normativa” e “isto leva a um
comportamento convencional no qual existe alguma expectativa de
repreensão em caso de desvio”.
297
Gustavo Seignemartin de Carvalho
Regimes adquirem para estes autores uma conotação mais próxima do
que Hasenclever et alii (1997:2) chamaram de “escola de pensamento
cognitivista”, na medida em que o aspecto intersubjetivo inerente aos
regimes é enfatizado. Regimes, apesar de autônomos com relação a
seus autores, influenciam ao mesmo tempo em que são influenciados
pelo comportamento dos participantes. Krasner (1982) apresenta o seguinte esquema gráfico para resumir a visão destes autores:
Figura 2
Representação Gráfica da Vertente “Cognitivista”
Regimes
Variáveis Causais
Básicas
Comportamentos e Resultados
Fonte: Krasner (1982:193).
Outros autores possuem uma visão “estrutural” da formação dos regimes. Keohane e Nye (1989:8) conceituam regimes como instituições da ordem internacional que afetam as inter-relações dos atores
em um contexto representado pela “interdependência complexa”, ou
seja, por dependências mútuas entre os diversos atores marcadas pela
complexidade e diversidade dos laços e canais de dependência e comunicação (idem:24). Assim, regimes internacionais são “conjuntos
de arranjos de governação que causam efeitos em relações de interdependência” (idem:19) e, quando presentes as condições estruturais
de interdependência, desenvolvem-se a ponto de possuírem relevância e autonomia frente aos atores.
Para Keohane e Nye (idem), a estrutura do sistema internacional é
dada pela distribuição de capacidades (não apenas militares) entre
unidades similares e não se confunde com os processos políticos por
meio dos quais essas capacidades são redistribuídas dentro do siste298
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
ma. Regimes possuem autonomia e relevância quando a lógica dos
processos de redistribuição passa a ser constrangida pelas formas de
interdependência complexa, ou seja, quando a lógica do sistema
muda da anarquia defendida pelos realistas para uma anarquia condicionada pela interdependência complexa, e os processos e capacidades econômicas assumem importância perante as questões militares
e de segurança. Assim, regimes adquirem importância fundamental
por servirem de arcabouço para os processos de redistribuição de capacidades: “regimes internacionais ajudam a fornecer o arcabouço
político dentro do qual ocorrem os processos econômicos internacionais” (idem:38).
É interessante notar que, nesta formulação, a estrutura não aparece
de forma clara como a variável independente, já que ela é também influenciada pelos regimes, e estes não podem ser definidos como variáveis intervenientes, uma vez que as unidades possuem papel importante na criação e alteração de regimes:
“[...] a interdependência afeta a política mundial e o comportamento dos
Estados; mas as ações dos governos também influenciam os padrões de interdependência. Ao criar ou aceitar procedimentos, regras ou instituições
para certos tipos de atividades, os governos regulam e controlam as relações
transnacionais e interestatais” (idem:5).
Para Keohane e Martin (1995:46), “a teoria institucionalista conceitua
instituições tanto como variáveis independentes quanto como variáveis
dependentes”. É possível estabelecer o seguinte diagrama para representar graficamente a vertente “estrutural” de Keohane e Nye:
Figura 3
Representação da Vertente “Estrutural”
Interdependência
(estrutura)
Regimes
Comportamento estatal
299
Gustavo Seignemartin de Carvalho
Internacionalistas Liberais
(Vertente Estrutural)
Os autores que se definem como internacionalistas liberais ou simplesmente liberais constituem a maioria dos autores associados à
perspectiva autonomista. Pode mesmo ser atribuída ao liberalismo,
desde os autores clássicos, como Adam Smith (1983) e David Ricardo (1987) na EPI e Norman Angell (2002) em RI, a primazia no estudo do fenômeno da cooperação entre os Estados. Este foco foi estendido ao estudo das formas pelas quais o sistema internacional é ordenado e, principalmente no pós-guerra, ao fenômeno das organizações internacionais. Segundo Kratochwil e Ruggie (1986:754), “o
campo de estudos das organizações internacionais sempre se preocupou com o mesmo fenômeno: nas palavras de um texto de 1931, é
uma tentativa de descrever e explicar ‘como a moderna Sociedade de
Nações se governa’”. Gradualmente, conforme a distância entre a situação política internacional e as organizações formais “começou a
aumentar de uma maneira que era difícil de ser conciliada” (Martin e
Simmons, 1998:736), o objeto de estudo da tradição liberal ampliou-se para compreender outros aspectos da ordem no sistema internacional, como os regimes internacionais. Para Kratochwil e Ruggie
(1986:753), “estudiosos das organizações internacionais mudaram
sistematicamente seu foco das instituições internacionais para formas mais amplas de comportamento internacional institucionalizado”. Martin e Simmons (1998:729) entendem da mesma maneira:
“[...] um dos avanços mais importantes para nosso entendimento das instituições internacionais veio no começo dos anos 1970, quando uma nova geração de estudiosos desenvolveu idéias que originaram pesquisas para além
das organizações formais e criaram postos avançados para o estudo mais
amplo das instituições”.
Assim, em função de sua própria herança intelectual, o institucionalismo liberal pode ser considerado como a principal tradição na dis300
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
ciplina de RI a estudar regimes e atribuir a eles relevância e autonomia, a despeito de adotar algumas premissas comuns ao realismo.
As definições de regimes fornecidas pelo institucionalismo liberal
partem da definição original apresentada por Ruggie em seu artigo,
“International Responses to Technology: Concepts and Trends”, de
1975. Para o autor (apud Keohane, 1984:57), regimes são um conjunto de instrumentos que, quando aceitos pelos Estados, pautam
suas relações no campo internacional: “um conjunto de expectativas
mútuas, de regras e regulações, de planos, energias organizacionais e
compromissos financeiros, os quais foram aceitos por um grupo de
Estados”.
Na mesma linha de Ruggie, Keohane e Nye (1989:19) definem regimes como “redes de regras, normas e procedimentos que regularizam o comportamento e controlam seus efeitos”. Há uma diferença,
contudo, no papel atribuído por estes autores aos regimes na organização dos processos de redistribuição de capacidades dentro da estrutura do sistema. Como visto, para o institucionalismo liberal, instituições e regimes possuem autonomia e relevância mediante a
ocorrência de algumas condições específicas. Na visão de Keohane e
Nye (idem), regimes atuam dentro de condições de interdependência
complexa, as quais Axelrod e Keohane (1985:238) apontam posteriormente para o “contexto da interação” (context of interaction).
Os autores divergem quanto ao que compõe o contexto de interação.
Para Ruggie (apud Axelrod e Keohane, 1985), por exemplo, ele é representado pelos valores e princípios internalizados pelos participantes do sistema, que comporiam sua “estrutura profunda” (deep
structure). Axelrod e Keohane (1985:238) definem o contexto de interação como “o contexto de normas que são partilhadas, muitas vezes implicitamente, pelos participantes”, e que se expressariam, em
uma perspectiva influenciada pela teoria dos jogos, em “questões
vinculadas (issue-linkage), conexões doméstico-internacionais e in301
Gustavo Seignemartin de Carvalho
compatibilidades entre jogos de diferentes grupos de atores”
(idem:239).
Como para os institucionalistas liberais a interação ocorre dentro do
contexto da interdependência complexa, a preocupação dos Estados
com ganhos relativos, privilegiada pela tradição realista, deve ser
qualificada. Uma vez que a interdependência complexa representa
4
uma mudança na “lógica” do sistema anárquico , pode-se esperar
uma mudança semelhante na importância atribuída pelos Estados
aos ganhos relativos. Keohane e Martin (1995:44) sugerem, assim,
que “duas questões possuem maior relevância: 1) as condições sob as
quais os ganhos relativos se tornam significantes; e 2) o papel das instituições quando problemas de distribuição se tornam significantes”.
É importante notar que, para os institucionalistas liberais, o estudo e
as definições de regime não podem estar dissociados do contexto em
que ocorrem as interações: “uma vez que os regimes internacionais
refletem padrões de cooperação e conflito ao longo do tempo, o foco
em seu estudo nos leva a examinar padrões de comportamento de
longo prazo em vez de tratar atos de cooperação como eventos isolados” (Keohane, 1984:63).
Aplicações da Teoria dos
Jogos (Vertente Causal)
Aplicando a teoria dos jogos à teoria de RI, Stein (1990) procura demonstrar as condições em que a cooperação se dá na esfera internacional e o papel dos regimes em sua facilitação. Fazendo uma breve
análise do debate entre realistas e liberais, o autor (idem:4) conclui
que tanto cooperação quanto conflito são características do sistema
internacional: “as premissas subjacentes ao modelo conflituoso da
política internacional admitem uma grande dose de cooperação e as
premissas do modelo cooperativo também admitem o conflito”. Para
Stein (idem:24), o caráter competitivo das relações internacionais
302
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
pode inclusive levar a um comportamento verdadeiramente cooperativo, “que não pode ser totalmente explicado apenas com base no interesse nacional individualista”. Regimes, “arranjos mais ou menos
institucionalizados que estruturam relações internacionais em vários
campos” (idem:25) constituiriam um desafio para ambas as tradições
mainstream, realista e liberal, que não conseguiriam explicar o surgimento de ordem na anarquia.
O autor possui uma preocupação particular com a especificidade
teórica do conceito de regimes. Em sua opinião, definições muito
amplas permitiriam a caracterização de quaisquer padrões de comportamento encontrados na esfera internacional como regimes, em
detrimento da precisão teórica do conceito. Por isso, ele procura especificar as condições sob as quais os regimes ocorrem: “existe um
regime quando a interação entre as partes é constrangida ou baseada
em decisões tomadas em conjunto” (idem:28). Quando os Estados,
entendidos como atores racionais maximizadores de utilidade, obtêm o melhor resultado preferível unilateralmente, não há a necessidade de regimes. De igual forma, se um Estado obtém o melhor resultado preferível, mas os demais obtêm o pior resultado possível, não
há cooperação – os Estados em desvantagem não possuem qualquer
incentivo à cooperação. Para Stein, portanto, somente há cooperação
quando ambos os Estados necessitam cooperar sob pena de terminarem com resultados não desejados ou sub-ótimos. Estas situações
são classificadas pelo autor (idem:32) como “dilemas de interesses
comuns” e dilemas de “aversões comuns” (“dilemmas of common interests and dilemmas of common aversions”).
Dilemas de interesses comuns seriam caracterizados por situações
em que ambos os participantes preferem um resultado cuja situação
de equilíbrio não é pareto-eficiente. O exemplo típico utilizado para
demonstrar situações de dilema de interesses é o chamado “Dilema
do Prisioneiro”. Neste “jogo”, dois bandidos possuem interesses em
uma ordem de preferência, sendo o resultado preferido (4, também
303
Gustavo Seignemartin de Carvalho
chamado de “estratégia dominante”) denunciarem o comparsa sem
que o outro faça o mesmo; o segundo mais preferido é não entregarem o comparsa, mas também não serem denunciados por ele (3); o
terceiro é serem incriminados pelo comparsa, mas entregá-lo também (2); e o último é serem denunciados sem que entreguem o comparsa (1). Na tentativa de evitar o resultado menos preferido, ambos
procuram antecipar-se à reação do outro, acabando por se entregar
mutuamente, gerando um resultado (2, também chamado de “resultado de equilíbrio”) que, apesar de não ser o pior na lista de preferências, não é pareto-eficiente. O Dilema do Prisioneiro segue a escala
de preferências (4,1; 3,3; 2,2; 1,4) para ambos os prisioneiros e pode
ser representado graficamente conforme ilustrado abaixo:
Figura 4
Representação Gráfica do “Dilema do Prisioneiro”
Prisioneiro B
B1
B2
A1
3,3
1,4*
A2
4,1*
2,2**
Prisioneiro A
* Estratégia dominante de cada prisioneiro
** Resultado de Equilíbrio
Fonte: Stein (1990:33).
Dilemas de aversões comuns, ao contrário, ocorrem quando os participantes possuem preferência (1) não por um resultado, mas em evitar pelos menos um resultado específico. Desta forma, dilemas de
aversão podem ter equilíbrios múltiplos, desde que evitem o resultado menos preferido (0). O dilema de aversão comum mais simples
304
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
segue a escala de preferências (1,1; 0,0) para ambos os participantes
e pode ser representado graficamente da seguinte forma:
Figura 5
Representação Gráfica do Dilema de Aversão Comum Simplificado
Participante B
B1
B2
A1
1,1**
0,0
A2
0,0
1,1**
Participante A
** Resultado de Equilíbrio
Fonte: Stein (1990:37).
Contudo, nem sempre dilemas de aversão comum seguem o modelo
simplificado. Em muitos casos, apesar de possuírem o mesmo interesse em evitar o resultado não desejado, os participantes discordam
quanto à estratégia a ser adotada, possuindo preferências diferentes
por equilíbrios diferentes. Neste jogo, ambos desejam evitar o mesmo resultado (1), mas possuem preferências diferentes por três outros resultados (2, 3 e 4). O jogo segue a escala de preferências (4,3;
3,4; 2,2; 1;1) para ambos os participantes e pode ser representado
graficamente conforme a Figura 6.
Para Stein (idem), regimes são importantes por possibilitarem que os
Estados lidem com dilemas de interesses e aversões comuns, ao abrirem mão da possibilidade de tomarem decisões unilateralmente e de
forma independente em favor da criação de procedimentos que constranjam seu comportamento futuro e permitam que haja uma conver305
Gustavo Seignemartin de Carvalho
Figura 6
Representação Gráfica do Dilema de Aversão Comum
Participante B
B1
B2
A1
2,2
3,4**
A2
4,3**
1,1
Participante A
** Resultado de Equilíbrio
Fonte: Stein (1990:38).
gência das expectativas dos participantes. Apesar de limitados em
sua autonomia – sendo criados pelos Estados “no seu interesse próprio” (idem:39) –, regimes possuem relevância e não são meramente
instrumentais, já que, após estabelecidos, incluem-se no cálculo racional dos demais participantes, tornando-se auto-executáveis: “uma
vez criado, o regime em função do qual as expectativas convergem e
que permite que os atores coordenem suas ações é auto-executável;
qualquer ator que o desrespeite causa prejuízos apenas a si mesmo”
(idem:42). Ainda segundo o autor, regimes são auto-executáveis
quando “os custos do descumprimento arcados por um ator não são
potenciais, mas sim imediatos e causados por seus próprios atos e
não pela resposta dos demais a seu descumprimento” (ibidem5).
Outro aspecto reforçaria a autonomia dos regimes: o que Stein chamou de “tomada de decisões em conjunto” (“joint decision making”). Padrões de comportamento na esfera internacional apenas
podem ser considerados como regimes quando os participantes
abandonam a possibilidade de tomarem decisões unilaterais em uma
306
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
área específica e procuram tomar decisões conjuntamente com os
demais participantes: “pode-se dizer que decisões são tomadas em
conjunto quando todos os atores participam na determinação das de6
cisões de cada ator” (Stein, 1990:45 ).
“Cognitivistas”
Oran Young defende uma visão alinhada com vertentes identificadas
por Hasenclever et alii (1997) como “cognitivistas”, para os quais o
foco do estudo no comportamento percebido dos atores não seria suficiente para explicar o surgimento de regimes. Em conseqüência,
esta vertente seria caracterizada por “uma mudança de ênfase, não
mais no comportamento observado, mas no significado intersubjetivo e em entendimentos compartilhados” (idem:16).
Segundo a definição de Young (1982:732), regimes são “instituições
sociais que governam as ações dos interessados em atividades específicas (ou em conjuntos aceitos de atividades)”. Como instituições
sociais, regimes seriam uma resposta social a problemas de coordenação em situações em que decisões negociadas e tomadas de forma
coletiva tenderiam a levar a resultados mais eficientes do que quando
feitas individualmente.
Apesar de enfatizarem aspectos diferentes, Young acredita que sua
definição não é incompatível com a de Krasner (1982), já que “como
qualquer instituição social, eles [os regimes] são padrões reconhecidos de comportamento ou prática em função dos quais as expectativas convergem” (Young, 1982:732). Uma das características dos regimes seria justamente esse caráter intersubjetivo, ou seja, uma conjunção entre as expectativas dos participantes e padrões de comportamento e prática na esfera internacional.
Apesar de necessária, para Young, a simples existência desta conjunção entre expectativas e comportamento não é uma circunstância su307
Gustavo Seignemartin de Carvalho
ficiente para a formação de um regime, uma vez que pode informar a
ação dos atores na esfera internacional sem contudo eliminar o caráter casuístico ad hoc das relações e acordos efetuados entre eles.
Apenas quando o cálculo dos custos e benefícios deixa de ser necessário caso a caso é que se tem instituições sociais e regimes: “estes
são guias para ações ou para padrões comportamentais que os atores
consideram eficazes sem fazer cálculos detalhados para cada situação” (idem:733).
O conceito de regimes fornecido por Young permite que ele seja incluído entre os autores da perspectiva autonomista. Apesar de não
possuírem existência “física”, pode-se dizer que para Young os regimes possuem existência objetiva, ou melhor, autonomia e relevância.
O autor ressalta que regimes são construções sociais, mas isso não
quer dizer que possam ser reduzidos a seus participantes individualmente considerados, nem que possuam relevância ou que possam ser
alterados ou criados por simples ato de vontade:
“Regimes internacionais, como outras instituições sociais, são de um modo
geral produtos do comportamento de um grande número de indivíduos ou
grupos. Apesar de qualquer regime refletir o comportamento de todos aqueles que dele participam, individualmente os atores têm pouca influência sobre o caráter do regime” (idem:734).
Decompondo Regimes
Observando o alerta de Stein (1990) e dos autores incluídos na perspectiva não-autonomista, é necessário especificar o conceito de regimes para que tenha precisão e aplicabilidade. Definições muito amplas permitiriam que fosse compreendido dentro do conceito de regimes todo e qualquer padrão de comportamento entre Estados (ou outros atores), incluindo a balança de poder ou a guerra, como bem
aponta Mearsheimer (1995).
308
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
Apesar de os regimes ocorrerem em contextos de conflito, este deve
ser qualificado pela mudança na “lógica” da anarquia apontada por
Keohane e Nye (1989). Em um contexto de interdependência complexa, os regimes possuem autonomia e relevância quando a natureza dos conflitos tem sua ênfase mudada de questões puramente relacionadas à segurança e à sobrevivência para considerações econômicas e de redistribuição política dos ganhos da cooperação.
Mesmo quando assumem como ponto de partida a definição “consensual” de Krasner (1982), muitos autores autonomistas divergem
quanto aos elementos que diferenciam os regimes de padrões de
comportamento não compreendidos em regimes. Uma definição meramente funcionalista de regimes, baseada em sua “eficiência”, não
parece suficiente para esta diferenciação e para explicar sua efetividade. Assim, na tentativa de determinar os elementos que conferem
aos regimes autonomia e relevância, o presente artigo apresenta uma
“decomposição” analítica do conceito de regimes em elementos básicos: normatividade, atores, especificidade da área de interesses e
interdependência complexa como contexto.
Normatividade
De acordo com a definição “consensual” de Krasner (idem:186), regimes são “conjuntos de princípios, normas, regras e procedimentos
para a tomada de decisões, implícitos ou explícitos, em função dos
quais as expectativas dos atores convergem em uma área determinada das relações internacionais”.
Temos assim o primeiro elemento básico: regimes são padrões de ordenação do comportamento dos atores na esfera internacional. Segundo Young (1982:733), “isso é o que as pessoas normalmente têm
em mente quando dizem que instituições sociais incluem conjuntos
de normas reconhecidas ou exibem um elemento normativo”. Para
que padrões de comportamento se configurem como regimes e pos309
Gustavo Seignemartin de Carvalho
suam autonomia e relevância, devem estar revestidos de normatividade.
A normatividade de um comportamento é o elemento (formal e explícito ou informal e implícito) que promove sua internalização pelos
atores e sua valoração, seja positiva ou negativa. Regimes influenciam o comportamento de seus participantes, não são um conjunto de
atos automáticos ou reflexos. No entanto, a normatividade não exclui
a “racionalidade” dos atores, sejam estes indivíduos, companhias
transnacionais, sindicatos, governos ou Estados. O grau de internalização do regime pelo participante pode condicionar ou promover de
maneiras diferentes seu comportamento, mas como é capaz de fazer
juízos de valor, cada ator pode racionalmente optar por seguir ou não
os padrões de comportamento estabelecidos pelo regime, assumindo
desta forma os custos respectivamente associados ao cumprimento
ou ao desvio de comportamento.
Logicamente, os conceitos de “ordem” e “normatividade” possuem
fortes conotações ideológicas. No entanto, podemos interpretar “ordem” como um processo de ordenação da vida na esfera internacional, sem que tenhamos que considerar seus elementos valorativos
neste primeiro momento. Isto não quer dizer que pretendamos formular teorias neutras ou “estudar a realidade” do ponto de vista do
“observador neutro”, como ressalta Robert Cox (1986:207): “a teoria não existe por si mesma, dissociada de sua situação no tempo e no
espaço”. Por outro lado, o estudo de regimes é possível sem que se
caia na armadilha que Cox atribuiu às teorias de solução de problemas (problem solving theories) (idem:208). Quando nos referimos à
ordem como conceito analítico, desinteressado de juízos de valor,
não pretendemos reificar o conceito de ordem, mas apenas indicar,
parafraseando Hedley Bull (2002), que em um regime os princípios,
normas e regras estão estabelecidos e relacionados entre si mediante
um padrão discernível. Naturalmente, todo padrão de ordenação
possui um objetivo, como entende Bull (idem:8): “ordem [...] [é] uma
310
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
estrutura de conduta que leve a um resultado particular, um arranjo
da vida social que promove determinadas metas ou valores”. Mas é
possível identificar estes arranjos sem a necessidade de um juízo de
valor a priori.
Outra característica da normatividade dos regimes é seu caráter exterior aos Estados; ou seja, regimes, ao menos à luz da disciplina de RI,
não são elementos subestatais, mas fenômenos que se desenvolvem
na esfera “internacional”. Este é um dos motivos pelos quais os autores autonomistas em geral se referem a “regimes internacionais” e
Keohane (1993:112) os define como “modelos regularizados de
comportamento cooperativo na política mundial”.
Naturalmente, os regimes são necessariamente internacionais quando formados a partir dos Estados. Mas há outra razão. Se regimes são
normativos e visam à ordenação do comportamento de seus participantes, regimes “subestatais” atuariam como “competidores” inter7
nos dos Estados no “fornecimento” de ordem ou no provimento do
bem público da “estabilidade”, o que seria incompatível com a conceituação do Estado como titular do “monopólio do uso legítimo da
violência física” (Weber, s/d b:56). Porém, dentro da esfera estatal,
os problemas de cooperação e de fornecimento de “estabilidade” e
“ordem” são resolvidos pelos próprios Estados.
Reconhecer o caráter “internacional” dos regimes não significa, no
entanto, negar suas ramificações nacionais. Regimes não apenas influenciam o comportamento de atores subestatais como muitas vezes
incorporam elementos e regras específicas de um Estado ou arranjo
subestatal. Segundo Keohane e Nye (1989:19),
“[...] na política mundial, regras e procedimentos não são tão completos ou
efetivos quanto em sistemas políticos domésticos bem ordenados, e tampouco as instituições são tão poderosas ou autônomas. As regras do jogo incluem algumas regras nacionais, algumas regras internacionais, algumas
regras privadas – e grandes áreas sem regra alguma”.
311
Gustavo Seignemartin de Carvalho
Contudo, mesmo quando incorporam atores subestatais, os regimes
não estão adstritos à ordem estatal e a transcendem, adquirindo desta
8
forma um caráter “transnacional” , mais do que meramente “internacional”.
A transnacionalidade dos regimes, sua normatividade e exterioridade com relação aos Estados questionam ainda de forma direta o que
9
se convencionou chamar de “soberania” estatal dentro do modelo
westphaliano difundido na disciplina de RI, entendida por Krasner
(1995:119) como sendo “um arranjo institucional para a organização
da vida política baseado na territorialidade e na autonomia”. Não é
objetivo deste artigo aprofundar esta discussão. No entanto, seu registro é fundamental; regimes, quando autônomos e influentes no
comportamento dos Estados, podem apresentar restrições à autonomia da ação estatal.
Passemos então ao próximo elemento da análise dos regimes: a definição de seus atores.
Atores
Na literatura sobre regimes, os Estados são considerados como os
principais (quando não os únicos) atores na esfera internacional e,
portanto, na formação dos próprios regimes.
Esta visão “estadocêntrica”, inclusive entre institucionalistas liberais,
remonta aos primórdios da disciplina de RI e, sobretudo, ao predomínio da tradição realista no pós-guerra. Mas as premissas do realismo
não foram o único fator a contribuir para esta visão. Como apontado
por Kratochwil e Ruggie (1986), o estudo de regimes evoluiu a partir
do estudo das organizações internacionais após a Segunda Guerra
Mundial. Como demonstram Martin e Simmons (1998), pela própria
característica do sistema internacional na época, os primeiros autores “institucionalistas” voltaram suas atenções para as organizações
312
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
interestatais, como a ONU, e os processos de decisão dos Estados no
foro destas organizações: “a atenção estava concentrada na eficiência com que estas novas instituições proviam soluções para os problemas que haviam motivado sua criação” (idem:730).
O “estadocentrismo” da teoria de regimes também decorre da opção
epistemológica adotada por diversos autores. A proposta de alguns
institucionalistas ao iniciar o estudo de regimes não era romper com
o realismo ou com abordagens mais clássicas, mas, ao contrário, seguir uma via média entre perspectivas que Keohane e Nye (1989:9)
chamaram, de um lado, de “modernistas” (que enfatizariam o caráter
transnacional das relações de interdependência e a relativização do
Estado) e, de outro, “tradicionalistas” (mais identificados com o realismo e que enfatizariam a continuação do Estado e sua predominância em questões de política internacional): “tentamos utilizar o conceito de interdependência de forma a integrar e não dividir ainda
mais as perspectivas modernistas e tradicionais”.
A busca pela via média também levou à adoção pelo institucionalismo de algumas das premissas realistas, descritas por Hasenclever et
alii (1997:23) como a visão dos Estados como atores “unitários”,
“egoístas” e maximizadores de utilidade atuando em um ambiente
anárquico:
“[...] Estados como atores que buscam resultados em seu próprio interesse e
cujo comportamento pode ser explicado pela maximização da utilidade individual [...]. [T]anto a política externa dos Estados quanto as instituições
internacionais devem ser reconstruídas como sendo o resultado do cálculo
de benefícios feito pelos Estados. Por sua vez, estes cálculos são informados, embora não determinados, pelas preferências (função de utilidade) dos
atores”.
A ênfase dada pelas teorias de regimes ao papel do Estado atraiu a
crítica de diversos autores, para os quais ele não apenas empobreceria o debate como também negligenciaria o estudo dos efeitos decorrentes da atuação na esfera “internacional” de atores não-estatais e
313
Gustavo Seignemartin de Carvalho
do fenômeno da transnacionalidade. Além disso, acabaria por condicionar o estudo de regimes às preferências estatais, que ditariam desta forma a agenda de tal estudo. Como ressalta Strange (1982:491),
“[...] a atenção dada a estas questões sobre regimes deixa o estudo da economia política internacional excessivamente constrangido pelos limites impostos pelo paradigma estadocêntrico [...] portanto, a atenção dada aos regimes confere em demasia aos governos o direito de definir a agenda da pesquisa acadêmica e direciona a atenção dos pesquisadores principalmente
para aqueles assuntos considerados importantes pelos membros do governo”.
Mas, apesar da ênfase dada pelo institucionalismo liberal e por muitos autores autonomistas ao papel do Estado na formação de regimes,
o conceito não exclui a presença e a influência de atores não-estatais
e até mesmo subestatais tanto na sua criação quanto na sua “manutenção”.
Em primeiro lugar, as teorias de regimes são influenciadas de maneira explícita por teorias econômicas. As questões relativas a dilemas
de cooperação levantadas por estas teorias não se restringem ao comportamento dos Estados, mas, ao contrário, foram adaptadas aos estudos de RI a partir do estudo do comportamento no mercado de firmas, consumidores e outros atores não-estatais.
Desta forma, as definições apresentadas pelos diversos autores institucionalistas ou não definem “atores” ou, apesar de explicitamente
direcionadas aos atores estatais, podem ser claramente adaptadas a
atores não estatais. Keohane e Nye (1989) sugerem o mesmo quando
tratam das características da interdependência complexa e descrevem o que chamam de “múltiplos canais” (multiple channels):
“Múltiplos canais conectam as sociedades, compreendendo laços informais
entre as elites governamentais, assim como arranjos diplomáticos formais,
laços informais entre as elites não-governamentais (pessoalmente ou por
meio de telecomunicações) e organizações transnacionais (como bancos
multinacionais ou corporações). Estes canais podem ser classificados como
314
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
relações interestatais, transgovernamentais e transnacionais. Relações interestatais são os canais normais considerados pelos realistas. O termo transgovernamental aplica-se quando se flexibiliza a premissa realista de que
Estados atuam como uma unidade coerente; o termo transnacional aplica-se quando se flexibiliza a premissa de que os Estados são as únicas unidades [de análise]” (idem:24, ênfase no original).
Como a formação de regimes depende, segundo Keohane e Nye
(idem), do contexto da interdependência complexa e esta, por sua
vez, atribui espaço e relevância à atuação de atores não-estatais, a
conclusão lógica é que regimes, em contextos de interdependência
complexa, podem em teoria ser formados e mantidos por atores estatais, não-estatais e até mesmo subestatais.
Naturalmente, isto não significa dizer que o poder e a política perdem
significância para o estudo de regimes. A política não apenas está
presente como é responsável pela dinâmica dos processos de redistribuição dos ganhos da cooperação organizados pelos regimes. Ademais, a política, entendida neste artigo como “o conjunto de esforços
feitos com vistas a participar do poder ou a influenciar a divisão do
poder” (Weber, s/d b:56), é inerente a toda instituição social.
No entanto, em um contexto de interdependência complexa, o poder
deixa de ser utilizado das mesmas formas em que em um contexto
anárquico “puro” e passa a ser qualificado pelas próprias características da interdependência; a preocupação com ganhos relativos ganha
uma conotação diferente. E se o exercício do poder se torna condicionado aos efeitos da interdependência complexa, os Estados passam a
sofrer restrições no uso desse poder, em detrimento de outras formas
de exercício de poder por atores não-estatais. Pode-se mesmo dizer
que a soberania estatal sofre restrições dentro deste contexto. Keohane e Nye (1989) identificam este fenômeno como uma segunda característica da interdependência, “o papel diminuído da força militar” (minor role of military force):
315
Gustavo Seignemartin de Carvalho
“Especialmente entre países industrializados e pluralistas, a margem de segurança percebida aumentou: o medo de ataques em geral diminuiu e o
medo de ataques entre si é praticamente inexistente [...]. [I]ntensas relações
de influência mútua existem entre estes países, mas na maioria deles a força
como instrumento de política é irrelevante ou deixou de ser importante”
(idem:27).
Os Estados continuam mantendo sua importância, mas a presença de
atores não-estatais se faz sentir de forma cada vez mais forte nos regimes internacionais. Hasenclever et alii (2000:5) resumem a questão
da seguinte forma:
“[...] em resposta à acusação de estadocentrismo [...] tentou-se considerar de forma mais sistemática o papel de atores não-estatais na criação, implementação e desenvolvimento de regimes internacionais
[...]. [E]studiosos começaram a se questionar sobre a possibilidade
teórica e a realidade empírica de regimes transnacionais, ou seja, instituições normativas com abrangência transnacional criadas e mantidas por atores privados. Exemplos de tais regimes internacionais privados incluem a cooperação baseada em regras entre grandes companhias transnacionais em setores como o de seguros, bancário e de
armação e navegação”.
Especificidade da Área de
Interesses
Outro elemento por meio do qual podemos caracterizar os regimes é
a especificidade da área em que se formam. Apesar de se constituírem em uma forma de ordenação da esfera “internacional” (ou
“transnacional”), regimes aplicam-se a áreas específicas de inter-relação entre os atores, também chamadas de issue-areas. Young
(1982) chama a atenção para essa característica. Regimes governariam assim “as ações dos interessados em atividades específicas (ou
em conjuntos aceitos de atividades)” (idem:732). Mas a formulação
clássica de tal característica coube à definição “consensual” de Kras316
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
ner (1982:186) – regimes são estabelecidos “em uma área determinada das relações internacionais” – e levou à observação de Hasenclever et alii (2000:3) de que regimes “são criados para remover áreas específicas da política internacional da esfera da auto-assistência”.
Para Keohane (1984), regimes formam-se em áreas de interesse delimitadas pela afinidade de temas e pela conveniência de tratá-los dentro de um mesmo arranjo político e segundo as mesmas regras: “entendemos que o escopo dos regimes internacionais corresponde, em
geral, aos limites de áreas de interesses, uma vez que os governos criam regimes para lidar com problemas que consideram tão ligados
que precisam ser tratados em conjunto” (idem:61).
A especificação da área de “atuação” de um regime é um de seus elementos fundamentais, mas ao mesmo tempo um dos pontos de questionamento dos críticos, principalmente por meio do que os estudiosos convencionaram chamar de “governança global”. Dentro dessa
vertente, os regimes são criticados pela sua rigidez conceitual e por
sua limitação, em contraposição à dinâmica apresentada pelo sistema ou pela ordem mundial. Para James Rosenau (2000:21),
“[...] a definição das características dos regimes, que enunciamos anteriormente, e que é amplamente aceita, tem uma frase adicional [...] princípios,
normas, regras e procedimentos de qualquer regime convergem, por definição, ‘para uma área determinada das relações internacionais’, ou o que tem
sido denominado de issue-area, ou seja, ‘área temática’[...] em suma, como
dissemos, a governança inerente à ordem mundial é o conceito mais amplo”.
Apesar das críticas, a caracterização de regimes como arranjos políticos delimitados, circunscritos a uma área temática específica, é
também necessária para que o conceito tenha especificidade e aplicabilidade. As críticas de Stein (1990) e Mearsheimer (1995) são procedentes, uma vez que para muitos autores o conceito de regime é tão
317
Gustavo Seignemartin de Carvalho
amplo que compreende quaisquer comportamentos por parte dos
atores estatais ou não-estatais.
Nunca é demais enfatizar, no entanto, que regimes não se formam
isoladamente no sistema. Como corretamente apontado por Young
(1999:197), “apesar de alguns comentadores considerarem alguns
regimes específicos como auto-suficientes, a maioria dos regimes interage extensamente com outras instituições”.
Além disso, uma das funções atribuídas por Axelrod e Keohane
(1985:239) aos regimes é possibilitar o que chamaram de “issue-linkage”, ou seja, o entrelaçamento e condicionamento de decisões dos autores em uma área de temas a decisões em outras áreas:
“neste sentido, a vinculação de questões envolve tentativas de se obter um maior poder de barganha por meio do condicionamento do
comportamento de um participante em uma questão ao comportamento de outro em outra questão”. O que o conceito de issue-linkage
sugere é que os regimes, por adquirirem autonomia e relevância em
um contexto de interdependência complexa, permitem a seus participantes a barganha política em torno de temas relativos a outros regimes e áreas temáticas diversas.
Interdependência Complexa
como Contexto
Como visto anteriormente, para os institucionalistas liberais, os regimes ganham autonomia e relevância quando o contexto em que ocorre a interação é influenciado pela interdependência complexa.
Desenvolvido por Keohane e Nye (1989:8), o conceito de interdependência complexa significa, basicamente, situações de dependência mútua entre um ou mais atores: “a interdependência na política
mundial refere-se a situações caracterizadas por efeitos recíprocos
entre países ou entre atores em diferentes países”. Stein (1990:45)
318
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
complementa o conceito da seguinte forma: “os ganhos obtidos por
um ator são uma função tanto das suas escolhas quanto das do outro.
Se os atores fossem independentes, no sentido de que suas escolhas
afetassem apenas seus ganhos, os regimes internacionais não teriam
fundamento”.
Apesar de identificado com o institucionalismo liberal, o conceito de
interdependência possui uma longa história dentro da disciplina de
RI, remontando a trabalhos clássicos de autores internacionalistas liberais, como Norman Angell (2002), e autores liberais clássicos em
EPI.
Adam Smith (1983) foi um dos primeiros autores em EPI a tratar da
questão da interdependência, ressaltando os aspectos positivos que o
comércio internacional e a divisão do trabalho possui para os Estados
envolvidos:
“[...] quaisquer que sejam os países ou regiões com os quais se comercializa, todos eles obtêm dois benefícios do comércio exterior.
Este faz sair do país aquele excedente da produção da terra e do trabalho para o qual não existe demanda no país, trazendo de volta, em troca, alguma outra mercadoria da qual há necessidade [...]. [O] comércio externo presta continuamente esses grandes e relevantes serviços
a todos os países entre os quais ele é praticado. Todos eles auferem
grandes benefícios dele” (idem:372).
Mas a interdependência é mais do que o intercâmbio ou o comércio
internacional entre os Estados. Para Keohane e Nye (1989:9), “interconexão não é o mesmo que interdependência”. Para haver interdependência, deve haver influências e efeitos recíprocos sobre os diversos participantes: “onde as transações acarretam custos recíprocos
(apesar de não necessariamente simétricos), há interdependência.
Onde as interações não acarretam custos significativos, há apenas interconexão” (ibidem). Estes efeitos da interdependência podem se
319
Gustavo Seignemartin de Carvalho
reforçar, ou seja, os efeitos e custos aos quais um dos atores está sujeito
podem reforçar os efeitos nos demais.
Os aspectos positivos da interdependência estão claramente presentes na defesa que Smith (1983) faz da liberdade de comércio. Mas sua
natureza pode ser diversa em situações de crise e de guerra. A interdependência não se mostra intrinsecamente positiva ou negativa.
Para Eichengreen (1996), os efeitos da interdependência, os quais
chama de “network externalities”, podem atuar também como um
entrave ao desenvolvimento de soluções necessárias à ordem internacional:
“[...] entretanto, descrever a evolução dos arranjos monetários internacionais como a resposta individual de vários países a um mesmo conjunto de
circunstâncias seria enganoso. Na verdade, cada decisão nacional não se
deu independente das demais. A fonte desta interdependência está nas externalidades sistêmicas que caracterizam os arranjos monetários internacionais [...] o arranjo preferido por um país será influenciado pelos arranjos
nos demais [...] o sistema monetário internacional apresentará path dependence” (idem:5, ênfase no original).
Da mesma forma, David Ricardo (1987:175) sugere que não apenas
os efeitos positivos da interdependência são recíprocos e reforçados,
mas também os negativos:
“[...] em todos estes casos, aqueles que atuam na manufatura de tais produtos sofrerão consideravelmente e, sem dúvida, terão perdas. [...] O sofrimento não se limitará àquele país onde tais dificuldades se originaram, mas
será sentido nos países para os quais seus produtos eram anteriormente exportados. Nenhum país pode continuar importando a não ser que também
exporte, ou pode continuar exportando a não ser que também importe”.
Dentro da disciplina de RI, Norman Angell (2002) retoma a discussão dos ganhos absolutos e relativos e procura demonstrar que a riqueza das nações não deriva necessariamente de seu poderio militar
ou político, mas está sujeita ao contexto da interdependência. Segundo ele, a guerra seria economicamente desastrosa, principalmente
320
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
para os países europeus, ligados por laços de dependência econômica mútua:
“Dizem-me que a dependência recíproca das nações é coisa antiga, que todos esses fatores existem desde tempos imemoriais e que ela não contribuiu
para despojar a força militar das suas prerrogativas ou para modificar a conduta dos Estados entre si. [...] A dependência recíproca das nações foi invocada como argumento, pela primeira vez com uma certa seriedade, por
Hume, em 1752, e trinta anos depois por Adam Smith [...] no entanto, no fim
do século XVIII, seus argumentos evidentemente ainda não tinham influenciado a política geral [...]. Na realidade, a dependência vital dos Estados entre si era praticamente muito limitada, como se pode ver pelos resultados do
sistema continental de Napoleão. [...] A Inglaterra ainda não tinha uma
grande indústria vinculada à prosperidade dos seus vizinhos [...] mas aí pela
terceira ou quarta década daquele século, fez-se sentir plenamente a divisão
de trabalho” (idem:120).
Angell aprofunda os argumentos apresentados por Smith e Ricardo
acrescentando um aspecto interessante da interdependência, sua intersubjetividade:
“[...] uma autoridade financeira que já citei observa que essa dependência
mútua e complexa do mundo moderno se produziu a despeito de nós mesmos [...]. No fundo, os homens continuam prontos, hoje como em qualquer
época precedente, a apoderar-se de bens que não lhes pertencem e que não
adquiriram legitimamente [...]. Mas, quando a riqueza depende principalmente do crédito e do prestígio que têm no mercado os documentos que o registram, a má-fé revela-se tão improdutiva e arriscada quanto o trabalho
honrado em épocas anteriores” (idem:57).
A ênfase na intersubjetividade é reforçada na análise de Young
(1999). Para ele, regimes devem ser situados no contexto de regras e
princípios mais amplos, que comporiam o que ele chama de “sociedade internacional”:
“[...] cada regime atua dentro de um contexto mais amplo proporcionado
pela sociedade internacional, o que traz amplas conseqüências tanto para a
efetividade dos regimes em solucionar problemas quanto para as conseqüências mais gerais advindas das atividades exercidas em relação a cada
regime em particular” (idem:198).
321
Gustavo Seignemartin de Carvalho
Assim, regimes não podem ser analisados fora do contexto da interdependência complexa. Sem dúvida, a preocupação com ganhos relativos não desaparece quando os atores constituem regimes. Mas em
um contexto no qual a preocupação com a segurança deixa de ser absoluta, a preocupação com ganhos relativos deve ser qualificada.
Isso não quer dizer que regimes ocorram em situações de harmonia
de interesses. Ao contrário, eles possuem funções específicas relacionadas à coordenação de resolução de conflitos de interesses. Não há
regimes em que não haja conflitos, mas os conflitos podem ser resolvidos sem a utilização necessária do recurso da força, como preconizado pela tradição realista em RI e, como Angell (2002) sugere, o
contexto da interdependência não apenas torna a utilização da força
militar menos premente, como também mais custosa e prejudicial.
Conclusão
Conforme visto, regimes apresentam um problema analítico para a
perspectiva não-autonomista. Como eles poderiam ter relevância se
o comportamento estatal na esfera internacional é pautado por preocupações relacionadas ao poder e a ganhos relativos, como preconizam os realistas clássicos, ou dependem e estão intimamente ligados
à hegemonia de uma potência capaz ou disposta a assumir os custos
de seu estabelecimento? Dentro da “lógica da anarquia” e do princípio de auto-ajuda apresentados por Mearsheimer, Grieco, Gilpin e
outros realistas como sendo a característica do sistema internacional,
a idéia de regimes como instituições sociais autônomas e relevantes,
dotadas de normatividade, constituídas por atores estatais e
não-estatais, dentro de um contexto de interdependência complexa, é
incongruente com a premissa realista que considera os Estados como
atores racionais. Afinal, atores racionais, soberanos, atuando em um
sistema anárquico baseado no princípio da “auto-ajuda”, poderiam
submeter sua segurança e sobrevivência a “arranjos políticos” sobre
os quais não exercem controle direto? Como ficariam as preocupa322
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
ções com os ganhos relativos? O que aconteceria quando a potência
hegemônica deixasse de arcar com os custos da cooptação dos demais
Estados? E como fica o modelo de soberania westphaliano tão difundido na disciplina de RI?
A solução apresentada pelos autores não-autonomistas é eliminar o
problema, simplesmente negando a possibilidade de autonomia aos
regimes e condicionando sua influência à ação direta das potências
dominantes. No entanto, eliminar o problema do ponto de vista teórico não o elimina da vida social; por isso, as teorias de orientação
não-autonomista passaram a enfrentar dificuldades ao procurar fornecer explicações para situações e fenômenos intensificados durante
os anos 1970, como por exemplo “constatações sobre a crescente interdependência entre as sociedades e sobre a sobrevivência das instituições criadas no pós-Segunda Guerra, mesmo em face das crises
daquele período” (Herz e Hoffmann, 2004:52). Como notam Herz e
Hoffmann (idem:53), “a percepção de que as instituições internacionais podem mudar as relações entre Estados é o grande divisor de
águas que separa liberais e realistas no debate”.
Ao contrário do que entendem os autores não-autonomistas, regimes
podem ser efetivos por possuírem autonomia, ou seja, uma existência
objetiva autônoma com relação a seus participantes, e por possuírem
relevância ao influenciarem o comportamento e as expectativas dos
participantes de maneiras que não podem ser reduzidas à atividade
individual de qualquer um deles.
Logicamente, o estudo de regimes não se encontra imune a críticas,
principalmente de cunho epistemológico. No entanto, como já defendido, o estudo de instituições sociais, como os regimes, não é privativo de perspectivas não-fundacionalistas. Tanto as perspectivas
racionalistas quanto as não-fundacionalistas permitem a análise da
questão da ordem na “esfera internacional” em seus diferentes aspectos. Esperamos que o presente artigo possa contribuir para este deba323
Gustavo Seignemartin de Carvalho
te e que o estudo dos regimes e do tipo de ordem no qual se inserem
possa se desenvolver sem que seja legado ao esquecimento como
mais uma “moda passageira”.
Notas
1. Os textos não disponíveis em língua portuguesa foram traduzidos livremente por mim.
2. A conferência foi especialmente convocada para a preparação de um número especial da International Organization dedicado ao estudo de regimes (ver
Keohane, 1984:57; Hasenclever et alii, 1997:8), o qual se tornou uma referência
sobre o tema (ver International Organization, vol. 36, no 2).
3. Segundo Gilpin (2002:86, nota 2), o termo foi cunhado por Keohane.
4. Para uma discussão da “lógica da anarquia” a partir de uma visão construtivista, ver Wendt (1992).
5. Cf. nota 34.
6. Cf. nota 44.
7. Para uma ampla discussão sobre este processo, ver Tilly (1996).
8. Para uma discussão mais aprofundada sobre o conceito de transnacionalidade e outros aspectos da globalização, ver Mann (1999).
9. Como referência à discussão da soberania, ver Krasner (1995).
324
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
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Resumo
Autonomia e Relevância dos
Regimes
Teorias institucionalistas na disciplina de relações internacionais usualmente definem regimes como um conjunto de normas e regras formais ou informais que permitem a convergência de expectativas ou a padronização do
comportamento de seus participantes em uma determinada área de interesses com o objetivo de resolver problemas de coordenação que tenderiam a
resultados não pareto-eficientes. Como estas definições baseadas meramente na “eficiência” dos regimes não parecem suficientes para explicar
sua efetividade, o presente artigo propõe uma definição diferente para regimes: a de arranjos políticos que permitem a redistribuição dos ganhos da
327
Gustavo Seignemartin de Carvalho
cooperação pelos participantes em uma determinada área de interesses em
um contexto de interdependência. Regimes possuiriam efetividade pela sua
autonomia e relevância, ou seja, por possuírem existência objetiva autônoma da de seus participantes e por influenciarem seu comportamento e expectativas de maneiras que não podem ser reduzidas à ação individual de
nenhum deles. O artigo inicia-se com uma breve discussão sobre as dificuldades terminológicas associadas ao estudo de regimes e a definição dos
conceitos de autonomia e relevância. Em seguida, classifica os diversos autores participantes do debate em duas perspectivas distintas, uma que nega
(não-autonomistas) e outra que atribui (autonomistas) aos regimes autonomia e relevância, e faz uma breve análise dos autores e tradições mais significativos para o debate, aprofundando-se nos autonomistas e nos argumentos que reforçam a hipótese aqui apresentada. Ao final, o artigo propõe uma
decomposição analítica dos regimes nos quatro elementos principais que
lhes propiciam autonomia e relevância: normatividade, atores, especificidade da área de interesses e interdependência complexa como contexto.
Palavras-chave: Regime – Definição de Regime – Efetividade dos Regimes – Autonomia e Relevância dos Regimes – Elementos dos Regimes
Abstract
The Autonomy and Relevance of
Regimes
Regimes are defined by institutionalist theories in the discipline of
International Relations as formal or informal sets of norms and rules that
create patterns of behavior and allow the convergence of the expectations of
their participants in specific issue areas, in order to solve coordination
problems that could lead to non-pareto-efficient outcomes. Considering
that such definitions based merely on the “efficiency” of regimes do not
seem to be sufficient to explain their effectiveness, the present article
proposes a different definition for regimes: political arrangements that
allow a redistribution of the gains of cooperation among the participants in
certain issue areas, within an interdependence context. Regimes would
thus be effective due to their autonomy and relevance – that is, due to their
objective existence autonomously from their participants and their
influence on the participants’ behavior and expectations in ways that
cannot be reduced to the individual action of any of them. This article
begins with a brief discussion about terminological problems related to
regime studies and with a definition of the concepts of autonomy and
328
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Autonomia e Relevância dos Regimes
relevance. Then it classifies the authors that take part in this debate
according to two distinct perspectives, one that denies (non-autonomists)
and the other that attributes (autonomists) autonomy and relevance to
regimes, briefly analyzing the authors and traditions that are more
significant for this debate, focusing on autonomist authors and on
arguments that back the hypothesis here presented. Finally, the article
proposes an analytic decomposition of regimes into four main elements that
give them autonomy and relevance: normativity, actors, specificity of the
issue area and complex interdependence as context.
Key words: Regime – Regime’s Definition – Regimes’ Effectivity –
Regimes’ Autonomy and Relevance – Regimes’ Elements
329
Parlamentos
Supranacionais na
Europa e na América
Latina: Entre o
Fortalecimento e a
Irrelevância*
Andrés Malamud** e Luís de Sousa***
Introdução
A moderna instituição parlamentar nasceu na Inglaterra do século
XVII, como instrumento de controle dos poderes monárquicos por
parte de uma burguesia ascendente. Não foi um acontecimento singular e isolado na história política européia, mas o resultado de um
* Agradecemos a Daniel Bach, Helena Carreiras, Anne-Sophie Claeys-Nivet, Olivier Costa, Helge Hveem e Laurence Whitehead pelos comentários a versões prévias deste artigo. Luís de Sousa também agradece à Fundação Calouste Gulbenkian por ter financiado parte deste projeto no âmbito do Programa Gulbenkian de Estímulo à Investigação 2003. Versões anteriores foram apresentadas no Fifth Pan-European
International Relations Conference (SGIR-ECPR), em Aia, Holanda, 9-11 de setembro de 2004; no
XXV Latin American Studies Association Congress (LASA 2004), Las Vegas, Nevada, 7-9 de outubro
de 2004; e no First Global International Studies Conference, World International Studies Committee
(WISC), Estambul, 24-27 de agosto de 2005. Artigo recebido em dezembro de 2004 e aceito para publicação em agosto de 2005.
** Investigador auxiliar no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE) de Lisboa e
professor auxiliar de Ciência Política na Universidade de Buenos Aires.
*** Investigador auxiliar no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE) de Lisboa.
CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 369-409.
369
Andrés Malamud e Luís de Sousa
processo gradual de desenvolvimento institucional para o qual contribuíram experiências da Antiguidade, tais como a assembléia geral
de archons e o areopagus da antiga Grécia, o senado da República
de Roma e os conselhos dos povos escandinavos. O Parlamento viria
reclamar para si três competências ou poderes fundamentais, nos
processos de governança: 1) a supremacia legislativa; 2) o poder último de decisão e de fiscalização sobre as políticas de tributação e de
despesa pública; e 3) a possibilidade de intervir indiretamente no
processo de decisão, quer por meio da impugnação da escolha de um
ministro da coroa, quer pelo poder de votar a incapacitação do soberano. Este modelo de assembléia representativa seria, posteriormente, exportado para o continente americano, onde se consolidaria
como órgão de soberania autônomo. Regressaria à Europa continental com a Revolução Francesa e seria, novamente, exportado para o
resto do mundo, afirmando-se, finalmente, como a instituição emblemática dos processos de deliberação política e legislativos na
maioria dos Estados modernos.
Assembléias legislativas análogas tiveram também a sua difusão ao
nível subnacional, em Estados (con)federados ou províncias autônomas que, posteriormente, constituíram-se em Estados federais. Se os
Parlamentos subnacionais datam, pelo menos, do século XVIII, pois
já se encontravam presentes em algumas colônias americanas quando foi proclamada a independência e jurada a Constituição, os Parlamentos supranacionais são criações recentes.
O primeiro Parlamento supranacional relevante foi o Parlamento Europeu. Na definição dada pelo Tratado de Roma de 1957, o Parlamento Europeu é “composto por representantes dos povos dos Estados reunidos na Comunidade”. A legitimidade do Parlamento Europeu baseia-se no sufrágio direto e universal dos seus membros – desde 1979 – e a sua investidura tem uma duração de cinco anos. Outros
1
processos de integração regional tentaram replicar este modelo de
assembléia legislativa supranacional, sendo a América Latina a re370
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
gião onde a experimentação ou mimetismo institucional teve maior
repercussão. Em junho de 2004, a International Parlamentary Union,
organização internacional que reúne de um modo associativo os vários Parlamentos nacionais a nível mundial, era composta por 140
membros nacionais e cinco associados, estes últimos de carácter regional/internacional: o Parlamento Andino, o Parlamento Centro-Americano, o Parlamento Europeu, o Parlamento Latino-Americano e a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa.
Para além destes, a Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul representa também o embrião de uma instituição representativa supranacional e merece, por isso, um escrutínio mais atento.
Este desenvolvimento político e institucional levanta várias questões. A primeira é saber por que razão os líderes políticos optaram
por estabelecer um Parlamento regional (Rittberger, 2003) quando o
processo de integração era, substancialmente, uma iniciativa de cariz
econômico. A segunda é estabelecer se os órgãos parlamentares regionais constituem Parlamentos propriamente ditos ou algo diferente.
Finalmente, inquere-se por que razão os Parlamentos regionais se desenvolveram apenas em duas regiões do mundo, nomeadamente Europa e América Latina, e quais as diferenças observáveis entre os
processos de integração regional nestas regiões. O artigo discute estas questões por meio da análise comparativa de cinco Parlamentos
regionais, ditos supranacionais: todos aqueles anteriormente mencionados, menos a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa,
porque se trata apenas de um órgão de deliberação coletiva e não de
decisão, para o qual não se antevê nenhum novo desenvolvimento
institucional que aponte em outra direção.
O artigo está dividido em cinco partes iniciais que incidem sobre
cada um dos cinco Parlamentos regionais. Trata-se de uma breve
análise da evolução histórica e política destes organismos, examinados na sua estrutura, competências e modo de funcionamento à luz de
quatro funções parlamentares clássicas: representação (legitimiza371
Andrés Malamud e Luís de Sousa
ção), legislação (processo de decisão), controle do Executivo e do
aparelho do Estado (fiscalização) e formação de elites e liderança política (recrutamento e treino). A parte final do artigo apresenta um
conjunto de conclusões comparativas.
O Parlamento Europeu (PE)
Quem olhar pela primeira vez o tecido institucional da Europa ficará
surpreendido com a existência de vários arranjos institucionais que
se sobrepõem, interagem e se articulam de modo a tornar a União Européia (UE) um modelo único de integração regional. Tendo em conta o nível de integração conseguido entre os vários membros e a extensão e intensidade das suas competências políticas, a UE é a estrutura organizacional central da Europa. Existe, contudo, uma série de
organizações anteriores aos Tratados de Roma de 1957 que deram,
cumulativamente, um contributo significativo para a singularidade
do processo de integração europeu – ainda que limitado, menos
abrangente e sem poder de decisão. Algumas delas sobreviveram ao
processo de integração europeu proporcionado pelas comunidades
dos Tratados de Roma, mas ficaram reduzidas a um papel deliberativo secundário e simbólico – como, por exemplo, o Conselho da Europa – ou foram, ultimamente, incorporadas pelas sucessivas revisões dos tratados – tal como aconteceu com a União da Europa Ocidental, incorporada na política européia de defesa mediante o Trata2
do de Maastricht . Algumas destas organizações mantiveram a sua
filiação e caráter europeu; outras, tais como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), expandiram suas
atividades para outros países e regiões além da Europa. Todavia, um
dos elementos comuns mais salientes a estas organizações continua
sendo a existência de Parlamentos ou assembléias de cariz regional
(Quadro 1).
Poderiam ainda ser mencionadas outras iniciativas de carácter interparlamentar ou fóruns regionais, tais como: o Conselho Nórdico, que
372
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Tratado fundador
Tratado de Paris, 23 de
Tratado de Bruxelas, 5 de
maio de 1949.
Conselho da Europa
(CoE)
1948). Estatuto de 1955.
Bruxelas de 17 de março de
completa o Tratado de
Ocidental (UEO/WEU) outubro de 1954 (que
União da Europa
Organização
Ambiente.
Organização territorial.
Ciência e tecnologia.
Cultura e educação.
minorias, migração, gênero).
Direitos Humanos (refugiados,
Questões sociais.
Desenvolvimento.
Democracia.
Culturais.
Sociais.
Econômicos.
Diplomáticos.
Militares (de defesa).
Objetivos
Instituição parlamentar
Conselho da Europa.
Assembléia Parlamentar do
União da Europa Ocidental.
Assembléia Parlamentar da
Quadro 1
Breve Análise Comparativa das Assembléias Regionais Européias
Principais características
Estados).
(continua)
Representação proporcional (hierarquia de
nomeados pelos Parlamentos nacionais.
Membros eleitos indiretamente ou
assegura continuidade de trabalho.
de duração cada. Comissão Permanente
sessões plenárias anuais de uma semana
Funcionamento semipermanente: quatro
Fracos poderes de decisão e de controle.
Papel consultivo e deliberação coletiva.
temáticas e fatos da Europa.
Debate sobre os grandes problemas,
Estados).
Representação proporcional (hierarquia de
nacionais.
Membros nomeados pelos Parlamentos
duas semanas cada.
sessões plenárias anuais de duração de
Funcionamento não permanente: duas
Sem poderes de decisão.
Papel consultivo e deliberação coletiva.
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
373
374
transatlântico sobre políticas
norueguês aprovou uma
Resolução que visava a
Fonte: Nuttens e Sicard (2000).
Consolidação da democracia.
Europa (OSCE)
mecanismos de prevenção e
resolução de conflitos.
de 1991.
Segurança e
Desenvolvimento de
Cooperação na
Declaração de Madri, abril
Organização para a
em 1955.
Parlamentares teve lugar
Conferência de
criação de uma Assembléia da OTAN).
na OTAN. A primeira
Forças Armadas, diálogo
1953, o Parlamento
Norte (OTAN/NATO)
Objetivos
Instituição parlamentar
OSCE.
Assembléia Parlamentar da
Militares (defesa e segurança, Assembléia Parlamentar da
controle democrático das
OTAN.
Tratado do Atlântico
Tratado fundador
Sem natureza jurídica. Em
Organização do
Organização
(continuação)
Principais características
Estados).
Representação proporcional (hierarquia de
nacionais.
Membros nomeados pelos Parlamentos
sessão plenária anual.
Funcionamento não-permanente: uma
Sem poder de decisão.
Papel consultivo e deliberação coletiva.
Estados).
Representação proporcional (hierarquia de
nacionais.
Membros designados pelos Parlamentos
sessões plenárias anuais.
Funcionamento não-permanente: duas
nacionais. Sem poder de decisão.
Conselho da OTAN e os Parlamentos
Papel consultivo e interface entre o
Andrés Malamud e Luís de Sousa
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
reúne os parlamentares dos países escandinavos; o Conselho de Consulta Interparlamentar dos países que constituem o Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo); a assembléia dos países do Báltico; a Assembléia Parlamentar de Cooperação Econômica dos países
do Mar Negro; ou mesmo a Conferência Parlamentar dos países da
Europa Central. Nenhuma destas iniciativas parlamentares regionais/internacionais participa do processo de integração europeu de
forma tão relevante quanto o Parlamento Europeu. Contudo, tais iniciativas não podem deixar de ser mencionadas, porque a sobreposição de afiliação institucional dos vários países europeus e das próprias competências destas instituições se destaca como um elemento
fundamental do modelo de integração política regional conseguido
pelos Estados-nação na Europa do pós-1945. A evolução do processo de integração europeu seduz qualquer acadêmico que se debruce
sobre as razões que conduzem ao sucesso e fracasso de opções e modelos institucionais. A integração européia construiu-se a partir de
vários projetos institucionais, que, embora apontassem para o mesmo objetivo último, isto é, a criação de uma unidade política regional, apresentavam métodos bastante diferentes e, conseqüentemente, resultados díspares. Não só estes projetos coexistiram, como também competiram entre si. Enquanto alguns obtiveram sucesso na implantação e consolidação das suas instituições, outros foram relegados a um papel secundário.
De todas as iniciativas parlamentares regionais acima mencionadas,
o Parlamento Europeu foi a única que desenvolveu poderes reais de
decisão, tornando-se, assim, um elemento central da estrutura complexa de governança da UE. Para que melhor possamos compreender
a evolução do Parlamento Europeu, passando de uma entre várias
iniciativas parlamentares regionais ao primeiro Parlamento supranacional, será conveniente rever brevemente a estrutura e processo da
Comunidade Européia (CE).
375
Andrés Malamud e Luís de Sousa
Evolução e competências do
Parlamento Europeu
Os fundadores dos Tratados de Roma de 1957 pretendiam uma ruptura com o passado. O fracasso do Conselho da Europa como resposta institucional à idéia de uma Europa unida era apontado por alguns
ex-dirigentes do Conselho, como Paul-Henri Spaak, como um exemplo daquilo que o novo projeto deveria evitar a todo o custo. O novo
projeto institucional seria baseado em um equilíbrio sustentável, entre intergovernamentalismo e supranacionalismo, e em um modelo
constitucional liberal tripartido: um Poder Executivo que tomasse e
implementasse as decisões; uma assembléia onde os vários assuntos
e problemas seriam debatidos e deliberados; e um corpo judicial independente, com capacidade de rever decisões e de resolver conflitos
que suscitassem problemas de legalidade.
A originalidade deste novo regime internacional reside no fato de
adaptar a clássica divisão tripartida dos Poderes – Executivo, Legislativo e Judicial – aos novos arranjos institucionais que resultaram do
equilíbrio entre o caráter intergovernamental e supranacional dos
processos de decisão. Contudo, as competências dos três corpos políticos – Comissão, Conselho de Ministros e Parlamento Europeu –
encontram-se entrelaçadas a ponto de tornar difícil estabelecer uma
divisão clara dos Poderes Executivo e Legislativo.
A função executiva é partilhada pela Comissão Européia e o Conselho de Ministros. A Comissão é um corpo político supranacional nomeado de mútuo acordo entre os Estados-membros, mas os seus
membros exercem as suas prerrogativas independentemente das
vontades e interesses dos seus respectivos governos. A Comissão representa os interesses da comunidade, atua como “guardiã dos Tratados” – no sentido de garantir a observância dos tratados e do Direito
Comunitário, mesmo que isto implique em infligir sanções a um
Estado-membro ou levá-lo a responder diante do Tribunal Europeu –
376
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
e continua sendo a interface central do sistema de decisão (Mény,
1998:24). O Conselho de Ministros é um modelo clássico de corpo
político intergovernamental composto por representantes dos Estados-membros que defendem os interesses dos seus próprios governos.
Embora estas duas instituições sejam denominadas de órgãos executivos, também desempenham funções legislativas. A Comissão detém um quase-monopólio do direito de iniciativa legislativa, além de
ser responsável pela gestão e execução das políticas comuns, fiscalização da aplicação do Direito Comunitário (conjuntamente com o
Tribunal de Justiça) e representação da UE em âmbito internacional.
Também pode tomar decisões, autonomamente ou mediante delegação do Conselho, emitir pareceres e elaborar recomendações. O
Conselho, por sua vez, possui amplos poderes de decisão: pode adotar regulamentos e diretivas, concluir acordos e tratados (que, no entanto, terão que ser negociados com a Comissão), retificar lacunas ou
clarificar disposições nos tratados e partilhar competências orçamentais com o Parlamento.
O Parlamento Europeu, à semelhança dos Parlamentos nacionais, é
eleito por sufrágio universal desde 1979, mas, ao contrário da maioria de regimes parlamentares europeus, o “governo europeu” não
emana da maioria ou coligação representada no Parlamento. Em outras palavras, as eleições para o Parlamento Europeu não visam punir
ou gratificar o “Poder Executivo europeu”, ainda que o Parlamento
Europeu tenha o direito de dissolver a Comissão por meio de um voto
de censura com maioria de dois terços. O Parlamento Europeu tem
também o poder de influenciar a adoção de legislação comunitária
por intermédio do procedimento de cooperação e de fiscalização.
Pode também iniciar ou instalar comissões de inquérito, questionar
os Comissários sobre matérias relativas às várias políticas comuns,
adotar resoluções e solicitar audiências com a Comissão, mas continua sem possuir competências legislativas gerais próprias. Exceto a
377
Andrés Malamud e Luís de Sousa
adoção do orçamento, competência que partilha com o Conselho e
que incide apenas sobre 3% da despesa comunitária global, o Parlamento não dispõe de capacidade legislativa própria, nem proporciona aos eleitores a faculdade de escolherem diretamente o Executivo
nas urnas. Este déficit institucional e democrático explica, de certo
modo, a baixa participação nas eleições européias e a tendência de os
partidos nacionais utilizarem este escrutínio para testar a governabilidade do partido ou coligação no poder.
Em adição a este “triângulo institucional” complexo, como é denominado no jargão comunitário, não deverá permanecer esquecido o
“poder” vinculativo das decisões do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. Este “gigante adormecido” constitui um dos maiores motores do processo de integração europeu:
“O Tribunal de Justiça das Comunidades Européias é o órgão comunitário
mais discreto e menos conhecido pelo público, mas também o maior responsável pela inesperada transformação da Comunidade (inicialmente com
objetivos bastante limitados) em uma espécie de quase-federação. Se o ‘governo dos juízes’existe em algum lugar, é em Luxemburgo! Mesmo quando
o desenvolvimento político da Comunidade abrandou, ou mesmo paralisou,
durante os finais da década de 1960 até o início da década de 1980, o Tribunal nunca desistiu de aplicar assertivamente a sua jurisprudência ‘federativa’, a qual viria a compensar a inércia dos governos nacionais e a incapacidade da Comissão de impulsionar eficazmente o processo de integração”
3
(idem:25) .
Este sumário pretende dar uma idéia geral da complexidade do aparelho de decisão da UE e uma breve indicação das várias tensões e batalhas de poder travadas entre as três principais instituições políticas
da comunidade quando da revisão dos tratados. Não será inoportuno
recordar que este aparelho de decisão se baseia em um equilíbrio, em
constante evolução e ajuste, entre três fontes de legitimação e de interesses: os interesses e demandas do(s) povo(s) europeu(s), representado(s) pelos deputados e partidos que integram o Parlamento Europeu; os interesses e exigências dos Estados-membros representados
378
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
no Conselho; e a missão e interesses comunitários – com expressão
nos tratados, no Direito Comunitário e na jurisprudência do Tribunal
Europeu – representados na Comissão.
O Fortalecimento do
Parlamento Europeu
Na sua gênese, o Parlamento Europeu não se diferenciava substancialmente da assembléia do Conselho da Europa no que se refere ao seu
desenho institucional e à amplitude das suas competências. O Parla4
mento Europeu, denominado “a Assembléia” até 1962 , era essencialmente um fórum composto por delegações nomeadas pelos Parlamentos nacionais. Detinha uma função consultiva limitada a um número reduzido de temáticas e de propostas legislativas antes de virem
a ser submetidas à aprovação do Conselho.
No início dos anos 1970, a então Comunidade Econômica Européia
atravessava um período turbulento causado quer por condicionalismos externos, como as sucessivas crises do petróleo, quer por disputas internas, como a posição intransigente do general de Gaulle adiante da futura adesão do Reino Unido, e pelo enfraquecimento do
equilíbrio interno de poder entre as três principais instituições políticas da Comunidade. O poder pendia a favor do Conselho, que então
detinha quase um monopólio sobre a adoção de legislação comunitária. Por outro lado, os interesses e preocupações dos cidadãos continuavam deficitariamente representados e permaneciam à margem
das discussões e opções políticas tomadas pelos seus ministros no
Conselho.
Em resposta a este déficit democrático e institucional que caracterizava o sistema político europeu, o Conselho decidiu adotar a introdução de eleições diretas dos membros do Parlamento Europeu. As primeiras eleições transnacionais européias ocorreram nos dias 7 e 10
de junho de 1979. Esta decisão revolucionária se tornaria crucial para
379
Andrés Malamud** e Luís de Sousa***
a consolidação do equilíbrio interno, na medida em que daria ao Parlamento Europeu a capacidade institucional necessária para lutar, em
pé de igualdade, por competências legislativas mais amplas e assumir um papel de relevo no triângulo institucional. Ao mesmo tempo,
iniciava-se uma nova experiência de representação supranacional
(Corbett, 1998).
Desde 1979, portanto, o Parlamento Europeu é eleito diretamente
pelo voto dos cidadãos europeus para um período de cinco anos e é
constituído de acordo com uma distribuição das cadeiras parlamentares que reflete, grosso modo, a dimensão geográfica dos vários
Estados-membros, embora se possa argumentar que favorece os
mais pequenos. O sistema de representação proporcional, que já era
aplicado na maioria dos círculos nacionais desde 1979, foi finalmente adotado pela totalidade de Estados-membros durante as eleições
européias de 1999. Os Quadros 2 e 3 mostram a evolução da distribuição de mandatos parlamentares em relação aos Estados-membros e
formações partidárias.
O Tratado de Roma de 1957 também atribuiu ao Parlamento Europeu
o poder de dissolver a Comissão por meio de um voto de censura com
maioria de dois terços. Embora este instrumento ainda não tenha sido
aplicado, a magnitude do seu efeito de dissuasão é considerável: em
1999, a simples ameaça de ser colocado em prática levou à demissão
da Comissão Santer. Contudo, os fundadores dos tratados não atribuíram competências próprias nem poder de veto para que o Parlamento pudesse vir a assumir, a posteriori, um lugar central e um papel
preponderante no processo de integração europeu. Como observou
Olivier Costa (2001:19),
“Importa salientar que a existência do Parlamento Europeu não se deve tanto à vontade expressa dos fundadores de criar uma estrutura democrática supranacional, mas sim à busca de maior eficácia e legitimidade e a um fenômeno de mimetismo institucional”.
380
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
Quadro 2
Parlamento Europeu: Cadeiras por Estado-membro e País Candidato*
1999-2004
2004-2007
2007-2009**
Bélgica
25
24
24
Bulgária
–
Chipre
–
6
6
República Checa
–
24
24
Dinamarca
16
14
14
Alemanha
99
99
99
Grécia
25
24
24
Espanha
64
54
54
Estônia
–
6
6
França
87
78
78
Hungria
–
24
24
Irlanda
15
13
13
Itália
18
87
78
78
Letônia
–
9
9
Lituânia
–
13
13
Luxemburgo
6
6
6
Malta
–
5
5
Países Baixos
31
27
27
Áustria
21
18
18
Polônia
–
54
54
Portugal
25
24
Romênia
–
Eslováquia
–
14
Eslovênia
–
7
7
Finlândia
16
14
14
Suécia
22
19
19
Reino Unido
87
78
78
626
732
786
Total
24
36
14
Fonte: <http://www.europa.eu.int/institutions/parliament/indexãen.htm> (Acessado em 26 de
agosto de 2004).
* Os países estão aqui listados em ordem alfabética de acordo com os nomes de cada país em
sua própria língua.
** Para 2007, prevê-se a adesão de dois países candidatos, Romênia e Bulgária, modificando o
número total de deputados.
381
382
EdN
Europa das Nações (desde 1999,
União para Europa das Nações)
(UEN)
ARE
Aliança Radical Européia
Direita Européia
RDE
V/EFA
GUE/NLG
Aliança dos Democratas
Europeus
Grupo Arco-íris
Verdes / Aliança Livre Européia
Comunistas e Aliados
Esquerda Unitária
Esquerda Unitária Européia /
Esquerda Nórdica Verde
–
–
–
22
–
–
44
–
–
40
ELDR
(ALDE)
Partido Europeu dos Liberais,
Democratas e Reformistas
(desde 2004, Aliança dos Liberais
e Democratas pela Europa)
–
113
PSE
16
29
20
41
31
130
50 (ED)
64 (ED)
UPE
110 (EPP)
(1984-1989)
107 (EPP)
(1979-1984)
Partido dos Socialistas Europeus
PPE-DE
Partido Popular Europeu
(Democrata-Cristão) e
Democratas Europeus
Segunda legislatura
Primeira legislatura
União pela Europa
Abreviaturas (em
inglês)
Grupo Político
17
–
–
20
13
30
–
28
(GUE)
14
49
180
–
34 (DE)
121 (PPE)
(1989-1994)
Terceira legislatura
–
19
19
26
–
23
–
28
43
198
(34)*
157
(1994-1999)
23
–
–
45
–
49
52
175
–
232
(1999-2004)
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
(continua)
–
27
–
42
–
41
89
201
267
(2004-2009)
Quarta legis- Quinta legis- Sexta legislalatura
latura
tura
Quadro 3
Composição Política do Parlamento Europeu. Número de Mandatos por Grupo Político
Andrés Malamud e Luís de Sousa
410
7
434
518
12
–
–
–
(1989-1994)
Terceira legislatura
567
27
–
27
(1994-1999)
626
32
–
18
–
(1999-2004)
732**
29
–
36
–
(2004-2009)
Quarta legis- Quinta legis- Sexta legislalatura
latura
tura
Fontes: <http://www.elections2004.eu.int/ep-election/sites/pt/yourparliament/outgoingparl/members/global.html> (acessado em 18 de novembro de 2005),
<http://www.europarl.eu.int/election/> (acessado em 18 de novembro de 2005) e Bardi (1996).
* A União para a Europa (UPE) resultou da fusão parcial do FE e do RDE e só existiu durante um período da Quarta Legislatura (1994-1999). Os 34 mandatos
resultam de alterações na composição parlamentar entre grupos políticos e do seu redimensionamento. Portanto, não foram adicionados ao total dessa
legislatura, porque já estavam contabilizados nos grupos políticos iniciais.
** No início da sexta legislatura, o PE é composto por 732 mandatos, aos quais serão acrescidos 54 referentes à Bulgária e à Romênia (após a sua adesão).
Até o final desta legislatura (2009), o PE contará com 786 mandatos, que serão posteriormente reajustados por país e reduzidos para 736.
NI
9
Total
Não-inscritos
–
–
–
(1984-1989)
(1979-1984)
–
Segunda legislatura
Primeira legislatura
11
IND/ DEM
EDD
FE
Abreviaturas (em
inglês)
Grupo de Coordenação Técnica
Independência e Democracia
(criado em 2004)
Europa das Democracias e das
Diferenças
Força Europa
Grupo Político
(continuação)
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
383
Andrés Malamud e Luís de Sousa
A criação e estruturação do Parlamento Europeu enquadra-se no padrão de desenho institucional comum às demais organizações ocidentais de caráter regional e/ou internacional que tiveram origem no
pós-1945. A maioria destas organizações dispunha de um aparelho
de decisão semelhante: um conselho responsável pela tomada de decisões e uma assembléia consultiva de natureza representativa mais
ou menos permanente, como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas (ONU), a União da Europa Ocidental, o Conselho da
Europa e a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN/NATO). A dimensão simbólica associada a estas assembléias foi fundamental na conjuntura da reconstrução pós-guerra: não só
serviram como interface entre o interesse coletivo das organizações
regionais e os interesses particulares dos membros nacionais, como
também facilitaram a socialização das elites políticas de países que
se tinham defrontado no palco de guerra, reforçando, conseqüentemente, os níveis de confiança mútua e de cooperação internacional.
Havia, contudo, algo de maior envergadura e de inovador no projeto
europeu visualizado por seus fundadores, Robert Schuman e Jean
Monnet: a partilha de soberania. A idéia de construir um projeto político comum além do Estado-nação questionava o conceito tradicional de soberania territorial e levantava problemas de legitimidade, de
poder e de accountability. O caráter supranacional deste novo projeto
político seria desde o início confrontado com a adoção de uma assembléia plenária onde pudessem ser representadas e expressas posições e idéias diferentes entre as partes contratantes e onde as decisões
aplicáveis à totalidade dos seus membros, que seriam tomadas em
um nível muito mais restrito, pudessem ser objeto de escrutínio coletivo e sujeitas à deliberação da maioria. Era ainda prematuro falar de
um “Parlamento do(s) povo(s) europeu(s)” como parte integrante de
uma versão de democracia decalcada das experiências nacionais e
transposta para o nível regional, uma idéia demasiado inovadora que
não suscitaria o apoio ou aval de alguns países europeus, tais como o
384
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
Reino Unido. Em vez disso, fundadores procuraram apenas uma resposta pragmática para um problema específico: a criação de uma instituição parlamentar que controlasse e assegurasse a legitimidade
das atividades e decisões de caráter supranacional atribuídas à Alta
Autoridade da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA).
É, por isso, legítimo questionarmo-nos sobre os fatores que contribuíram para a metamorfose do Parlamento Europeu, que de uma assembléia parlamentar internacional comum passou a ser um Parlamento supranacional único, com poderes de decisão concretos e um
papel central no processo de integração europeu. Não existe uma explicação simples e direta. Talvez o fortalecimento do Parlamento Europeu se destaque como um processo de institucionalização singular,
porque os membros das demais organizações internacionais nunca
ambicionaram desenvolver uma estrutura política supranacional. De
qualquer forma, é lícito comparar a sua transformação e o seu papel
no processo de integração europeu com outras assembléias parlamentares regionais, cujos atores exprimiram uma intenção semelhante, isto é, a de criar um tipo de Parlamento supranacional. Sem
pretender formular um modelo explicativo deste processo institucional, talvez possamos enumerar, com a ponderação devida, alguns
desses fatores:
l
Enquanto a institucionalização da CE tem como gênese uma
organização edificada em torno de um problema transnacional
específico para o qual foi ambicionado um modelo de gestão
supranacional – a Comunidade Européia do Carvão e do Aço
–, as demais organizações internacionais européias – designadamente o Conselho da Europa – tiveram desde o início um enfoque difuso sobre uma série de objetivos de carácter econômico, social, militar e institucional, sem vocação ou força suficiente para desencadear a criação de um aparelho de decisão supranacional. A regulamentação supranacional da produção do
carvão e do aço – matérias-primas fundamentais quer para a in385
Andrés Malamud e Luís de Sousa
dustrialização, quer para a produção de materiais bélicos – representava apenas um pequeno passo para nações que se tinham defrontado recentemente no campo de batalha pelo acesso e controle dos mesmos, mas provaria ser um salto gigantesco para o processo de integração europeu;
l
l
386
Os atores, individuais e coletivos, por detrás deste empreendimento foram também co-responsáveis pela singularidade do
percurso institucional da CE. Monnet, Schuman e Spaak exerceram cargos de prestígio no Conselho da Europa, mas abandonaram posteriormente este projeto institucional como reação ao “euroceticismo” e relutância do Reino Unido em avançar para novas formas de governo supranacionais. As posições
inovadoras dos três seriam apoiadas por um número restrito de
Estados – os Seis (Bélgica, França, Alemanha, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) – empenhados na expansão do “método
comunitário” a novas áreas de política econômica e social.
Cada um destes países tinha razões fortes para acreditar no processo de integração econômica europeu: os países que constituem o Benelux tinham já implementado, com sucesso, uma
união alfandegária; a gestão e funcionamento eficaz da Alta
Autoridade da CECA conseguira promover um clima de confiança mútua e cooperação franco-alemã; e a Itália era berço de
importantes líderes e movimentos federalistas;
A eleição direta do Parlamento Europeu em 1979, e a subseqüente emergência de formações partidárias européias (os “europartidos”), seria o ponto de viragem no papel que esta instituição viria a desempenhar, quer no complexo triângulo institucional da CE, quer no processo de integração europeu. O fortalecimento do Parlamento Europeu transformou-o na única
assembléia parlamentar supranacional do mundo a gozar, simultaneamente, de legitimidade democrática, capacidade de
decisão legislativa e poder de censura do governo. Trata-se, por
isso, de um fórum político singular, em que os parlamentares
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
europeus têm a possibilidade única de treinar as suas competências políticas em um ambiente genuinamente influente e supranacional. Contudo, pesa o fato de os parlamentares europeus serem freqüentemente recrutados entre políticos em fim
de carreira ou dissidentes partidários. O mandato europeu continua a ser interpretado, pelas formações políticas nacionais,
como um pára-quedas dourado para a reforma ou um esquema
de compensação para oponentes internos incômodos às direções partidárias nacionais (Bardi, 1996; Scarrow, 1997).
A evolução do Parlamento Europeu nos últimos cinqüenta anos foi
sintetizada de um modo elegante por Hix et alii (2003:191-192):
“Desde o seu modesto começo, o Parlamento Europeu […] permaneceu marginal ao desenvolvimento da integração européia e às políticas da União Européia. Inicialmente, esta instituição era apenas uma
assembléia consultiva composta por delegados enviados pelos Parlamentos nacionais. Cinqüenta anos depois, o Parlamento agora eleito
por sufrágio direto possui competências legislativas e de investidura
(ou remoção) do Executivo importantes, assim como todas as características e componentes de um Parlamento democrático resultantes
do exercício desses poderes: organizações partidárias poderosas; comissões de trabalho bem organizadas; uma burocracia de apoio própria; e o constante lobbying de grupos de interesses privados”.
Se, do ponto de vista interno, a institucionalização e fortalecimento
do Parlamento Europeu é um processo contínuo e não necessariamente linear e progressivo, do ponto de vista externo, esta entidade
política é o arquétipo ao qual será comparado e medido o desempenho de todo e qualquer projeto de Parlamento supranacional, em
anos vindouros. O Parlamento Europeu tornou-se um modelo para
aqueles que, em outras regiões, aspiram a institucionalizar os processos de integração em curso. Até a presente data, a América Latina é a
região onde a sua influência se fez sentir com maior intensidade.
387
Andrés Malamud e Luís de Sousa
O Parlamento
Latino-Americano
(Parlatino)
O Parlamento Latino-Americano (Parlatino) é a assembléia regional
unicameral composta pelos membros de 22 Parlamentos nacionais
5
da América Latina e Caraíbas . Fundado em Lima, Peru, em dezembro de 1964, foi posteriormente institucionalizado por um tratado internacional celebrado em Lima, em novembro de 1987. Desde 1992,
a sua sede se encontra permanentemente localizada na cidade de São
Paulo, Brasil. De acordo com os seus próprios Estatutos, os objetivos
fundamentais desta entidade representativa regional são a defesa da
democracia, a promoção da integração regional e o fortalecimento da
cooperação entre parlamentares e Parlamentos em toda a América
Latina. Possui personalidade jurídica e um orçamento que lhe é atribuído por todas as partes que participam do tratado. As línguas oficiais de trabalho são o espanhol e o português.
O Parlatino é integrado por delegações nacionais enviadas pelos Parlamentos-membros, à luz da experiência européia anterior a 1979.
Cada delegação nacional pode nomear no máximo doze representantes, em uma proporção que reflete o peso dos grupos parlamentares
nacionais. Se a delegação for inferior a doze membros, cada um dos
representantes poderá acumular no máximo quatro votos (proxy voting), sem exceder o limite total de doze votos por delegação. Esta
disposição atribui a todos os países o mesmo peso dentro do sistema
de deliberação, independentemente da sua dimensão real. O quorum
é obtido quando mais da metade das delegações nacionais estão representadas, desde que os seus membros respectivos representem
pelo menos um terço do total de votos. O Parlatino reúne-se em sessão plenária uma vez por ano, na sua sede em São Paulo. Não tem poder de decisão, limitando-se apenas a aprovar acordos e a emitir recomendações e resoluções sem qualquer efeito vinculativo para terceiros.
388
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
Estranhamente, no Parlatino não está representado nenhum dos territórios de expressão francesa da região: nem o Haiti, único Estado independente de expressão francesa, nem os departamentos ultramarinos franceses (Guiana Francesa, Guadalupe e Martinica). Contudo, e
apesar do termo “latino” que figura na sua designação, o Parlatino inclui três membros de expressão holandesa: o Estado do Suriname e
duas colônias ainda dependentes da Holanda – Aruba e Antilhas Holandesas.
No que diz respeito à sua representação territorial aberta, maleável e
alargada, o Parlatino está mais próximo do modelo da assembléia
parlamentar do Conselho da Europa que do Parlamento Europeu. A
sua natureza intergovernamental e as escassas competências que lhe
foram atribuídas, similares também à mencionada asssembléia européia, são comuns às demais assembléias regionais na América Latina
– como será mostrado adiante. Contudo, importa notar que, ao contrário das três assembléias regionais que iremos analisar, o Parlatino
não constitui o corpo representativo de uma organização regional
qualquer. Desde a sua fundação, possui um estatuto próprio e independente.
O Parlatino ganhou algum reconhecimento internacional apesar das
suas limitadas influência e competências. Em 1972, assinou um
acordo com o Parlamento Europeu – que na época também era eleito
indiretamente pelos Parlamentos nacionais – no sentido de estabelecer contatos permanentes e instituir uma Conferência Interparlamentar com periodicidade regular. A primeira ocorreu em Bogotá, em
1974, e a partir do ano seguinte seria repetida a cada dois anos com
sede rotativa: no primeiro ano, teria lugar em um país latino-americano, no seguinte, em um Estado-membro da União Européia. Até a presente data, foram organizados dezesseis encontros,
tornando-se assim o fórum bilateral com maior durabilidade. Os debates e resoluções produzidos são testemunho dos assuntos que dominaram a agenda transatlântica, das suas deficiências e da sua evo389
Andrés Malamud e Luís de Sousa
lução. A relevância deste fórum diminuiu à medida que a democracia
se consolidou e se estendeu à quase totalidade dos países da América
Latina e os Parlamentos nacionais viram a sua existência e continuidade salvaguardadas. No momento em que a longa batalha da Conferência Interparlamentar em prol das instituições representativas e da
defesa dos Direitos Humanos obteve sucesso, a incapacidade do fórum em encontrar uma missão de igual capacidade mobilizadora
conduziu a uma redução gradual da sua importância. Embora os novos enfoques na qualidade das instituições e na reforma da administração pública estejam longe de suscitar o mesmo interesse das temáticas anteriores, a causa da integração regional encontrou novos defensores nos blocos sub-regionais que (re)emergiram no início dos
anos 1990.
Apesar de existir um consenso generalizado em relação às matérias
sobre a agenda comum, algumas questões, em particular as que dizem respeito ao comércio internacional ou à dívida externa, revelam
uma assimetria persistente entre as duas regiões. A cooperação para
o desenvolvimento constitui uma área sensível, na medida em que
evidencia os desequilíbrios estruturais entre as duas regiões, mas
nunca suscitou controvérsia entre as partes, porque a sua gestão depende, tão-somente, da vontade unilateral do “parceiro rico”: a
União Européia.
Em resumo, o Parlatino é mais uma instituição simbólica do que efetiva, capaz de acolher a deliberação de assuntos regionais e inter-regionais, mas sem qualquer perspectiva real de evolução para
um órgão de decisão; de fato, carece de significado político e de enraizamento social. O seu mérito histórico foi o de constituir um reservatório de aspirações democráticas e procedimentos parlamentares
durante a idade negra das ditaduras latino-americanas. As suas principais deficiências resultam, provavelmente, do fato de a sua existência, missão e funcionamento não estarem enquadradas em uma organização regional.
390
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
O Parlamento
Centro-Americano
(Parlacen)
O Parlamento Centro-Americano (Parlacen) constitui o órgão deliberativo do Sistema de Integração Centro-Americano (SICA). O
SICA foi estabelecido em 1991 como uma organização complexa
que reúne os países da América Central por um processo seletivo de
geometria variável e se encontra edificado sobre o Mercado Comum
Centro-Americano, fundado em 1960. Enquanto o SICA acolhe sete
países da América Central – Belize, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Panamá –, o Parlacen exclui dois destes, Costa Rica e Belize, mas inclui um Estado das Caraíbas de expressão espanhola: a República Dominicana. À semelhança da UE, o
SICA também possui uma entidade judicial de caráter supranacional, a Corte de Justiça Centro-Americana, e uma alta autoridade intergovernamental, a Cimeira Presidencial Centro-Americana. Introduz também a figura do secretário-geral, responsável pela coordenação de todo o sistema institucional. Embora o Parlacen tenda a ser
visto como órgão parlamentar do SICA, na realidade não desenvolve
nenhuma função legislativa.
A criação do Parlacen foi idealizada, pela primeira vez, na Declaração de Esquipulas I, assinada pelos vários presidentes dos países da
América Central, com o intuito de pôr termo às rivalidades tradicionais e de promover a democracia e a paz na região. A cimeira presi6
dencial, apoiada pelo Grupo Contadora, o Grupo de Apoio e a então
Comunidade Européia, teve lugar em maio de 1986. Em uma Declaração posterior, que seria conhecida por Esquipulas II, produzida em
1987, os presidentes contratantes acordaram que a criação de um
Parlamento centro-americano deveria ser um bastião da liberdade,
independência e reconciliação em uma região devastada por anos a
fio de chacina e instabilidade política. Entre o final de 1987 e início
de 1989, Guatemala, El Salvador, Costa Rica, Nicarágua e Honduras
391
Andrés Malamud e Luís de Sousa
assinaram e ratificaram, sucessivamente, o Tratado Constitutivo do
Parlacen. Três protocolos adicionais foram assinados posteriormente, de modo a permitir algum tempo útil para o atraso gerado na eleição dos representantes nacionais e facilitar a adesão do Panamá ao
tratado, embora a sua incorporação tivesse lugar apenas em 1999. O
Parlamento foi, finalmente, estabelecido em outubro de 1991, quando ocorreu a sua primeira sessão plenária na Cidade de Guatemala,
que passaria a ser a sua sede permanente. A Costa Rica viria a retirar
a sua participação, enquanto a República Dominicana passaria a fazer parte do processo em 1999.
Desde 28 de outubro de 1991, o número de deputados do Parlacen
passou de um total de 65, representando quatro países e treze partidos
políticos, para os atuais 132 deputados, representando seis países e
42 partidos políticos. Os deputados são eleitos diretamente por um
período de cinco anos pelos cidadãos eleitores de cada Estado-membro, podendo cada país preencher uma quota máxima de
vinte representantes. Cada Estado-membro tem o direito de enviar
dois deputados adicionais: o presidente e vice-presidente em fim de
mandato. O Parlamento está também aberto à participação de representantes, com o status de observadores, dos demais Parlamentos regionais, tais como o Parlatino, o Parlamento Andino e o Parlamento
Europeu, ou de Estados não signatários da região, como Porto Rico e
México. Os primeiros assistiram aos trabalhos do Parlacen desde a
sua criação, ao passo que os últimos se associaram pouco tempo mais
tarde. Os representantes nacionais dividem-se em três grupos parlamentares: o maior grupo representa o centro do espectro político, os
outros dois cobrem as alas ideológicas, esquerda e direita respectivamente.
Tal como prevê o primeiro artigo do tratado fundador, as competências legislativas do Parlacen resumem-se à capacidade de proposta,
análise e recomendação. Contudo, o tratado também confere ao Parlamento o poder de eleger, nomear e dissolver o mais alto executivo
392
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
de todas as instituições pertencentes ao SICA. Por mais estranho que
pareça, todavia, este órgão parlamentar não foi provido de capacidade legislativa, mas foi capacitado para nomear e fiscalizar uma série
de técnicos e funcionários. Também compete a ele requerer informação sobre qualquer atividade da organização e emitir recomendações
sobre os relatórios de atividade dos demais órgãos do SICA que lhe
são submetidos para apreciação, sem, contudo, interferir no seu funcionamento. No que diz respeito aos procedimentos de votação, o
Parlacen decide por maioria absoluta, exceto no que se refere à revisão dos seus estatutos internos: neste caso, é necessária uma maioria
qualificada. Quanto ao orçamento do Parlamento, todos os Estados-membros contribuem equitativamente.
Depois de mais de uma década de existência, o histórico do Parlacen
é misto: embora demonstre resultados positivos no que diz respeito à
ampliação da sua composição, não apresenta qualquer progresso significativo no que se refere ao aprofundamento das suas competências. Se, por um lado, contribuiu para a pacificação e crescente interdependência entre as sociedades que representa, por outro lado, não
evoluiu suficientemente para se tornar um ator crucial no, já por si
frágil, processo de integração da região centro-americana.
O Parlamento Andino
(Parlandino)
O Parlamento Andino (Parlandino) é o órgão deliberativo do Sistema
7
Andino de Integração (AIS). O Pacto Andino , antecessor do AIS,
foi fundado em 1969 com o objetivo de colmatar as lacunas e deficiências da Associação Latino-Americana de Livre Comércio
(ALALC), um projeto regional mais vasto cujo insucesso se deve,
sobretudo, à reprodução interna da divisão entre países mais e menos
desenvolvidos – precisamente, o que em tempos, fora criticado em
relação ao funcionamento do sistema político internacional. Os fundadores do Pacto Andino inspiraram-se no projeto europeu, que co393
Andrés Malamud e Luís de Sousa
meçava a consolidar-se nesse período, e decidiram formalizar o processo de integração por meio da criação de um conjunto de instituições que combinassem, simultaneamente, um sistema de votação
majoritário e autoridades com poder vinculativo supranacional. No
final dos anos 1980, após vários anos de turbulência e de paralisia
institucional causados por razões domésticas e pelo fracasso na criação da tão desejada interdependência econômica na região, os presidentes nacionais decidiram relançar o processo de integração com
aspirações mais modestas e um desenho institucional sóbrio. Contudo, a estrutura institucional da região continua, de um modo geral,
semelhante à da UE: o complexo institucional compreende uma Comissão, um Parlamento, um Tribunal de Justiça, um Conselho de Ministros e um Conselho Presidencial, além de um conjunto de instituições de caráter técnico, tais como agências financeiras, fóruns de
consulta junto da sociedade civil e, até mesmo, uma universidade.
Com o mérito que lhe é devido, na prática, as competências reais e
desempenho destas instituições regionais ficam aquém das do modelo europeu.
Das várias instituições mencionadas, o Parlandino é o órgão de representação dos povos da Comunidade Andina e possui caráter supranacional. O seu tratado fundador foi assinado em 1979 e entrou em vigor
em 1984. A sua sede foi estabelecida em Bogotá, Colômbia, e em 1997
foi introduzida a eleição direta dos seus representantes. O processo
eleitoral devia ter início durante os cinco anos seguintes; todavia, até a
presente data, só Venezuela e Equador colocaram o pressuposto em
prática. Nos restantes países, a eleição direta ou está agendada para os
próximos anos, como é o caso da Colômbia e do Peru, ou está sujeita a
uma revisão constitucional prévia, no caso da Bolívia.
O Parlandino é composto por 25 deputados, cinco por cada Estado-membro. Há cinco comissões permanentes, integradas por cinco
elementos, um de cada nacionalidade. O Parlandino pode aprovar
quatro tipos de atos – decisões, acordos, declarações e recomenda394
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
ções – mediante maioria absoluta, mas carece de qualquer poder de
decisão. As suas competências estão limitadas ao enquadramento e
fomento do processo de integração, por meio da promoção de legislação entre os Estados-membros, da cooperação e coordenação de
iniciativas com os Parlamentos nacionais, países terceiros ou outras
organizações de integração regional que formulem recomendações
relativamente ao orçamento da Comunidade Andina.
Em 2004, o Parlandino celebrou o seu 25º aniversário, metade da idade do modelo em que sempre se inspirou, o Parlamento Europeu. As
diferenças entre as duas assembléias regionais são evidentes: a começar pela prolongada e atrasada eleição direta dos seus representantes, seguida pela composição que não respeita as proporções demográficas dos Estados-membros, e terminando na ausência de poderes de decisão. Embora o Parlandino já tenha trilhado bastante caminho, tendo em conta a sua jovem existência, não deixa de ser uma
realidade que evoluiu pouco ao longo dos anos, tal como o bloco regional em que se insere (Bonilla, 2001; Malamud, 2004). Os interesses nacionais contraditórios, a instabilidade institucional, a turbulência econômica e os conflitos políticos entre os Estados-membros
transformaram a Comunidade Andina em um exemplo a não ser seguido. Precisamente, os primeiros passos do Mercosul seriam baseados na tentativa de evitar a repetição dos fracassos andinos (Caputo,
1999; Pereira, 2000).
A Comissão Parlamentar
Conjunta do Mercosul
(CPCM)
O Mercosul, designação abreviada de Mercado Comum do Sul, é o
mais recente bloco regional da América Latina e integra dois velhos
rivais, Argentina e Brasil, e dois “Estados-tampão”, Paraguai e Uruguai. Fundado em 1991 pelo Tratado de Assunção e consolidado em
1994 no Protocolo de Ouro Preto, o Mercosul visava criar, primaria395
Andrés Malamud e Luís de Sousa
mente, um mercado comum no Cone Sul por meio da eliminação de
obstáculos intra-regionais à circulação de bens, capital e serviços –
embora algumas medidas também tenham sido tomadas em relação à
livre circulação de pessoas. Os fundadores deste novo projeto de integração regional tinham presente duas realidades históricas: a experiência de sucesso da União Européia e a experiência negativa da integração na América Latina. Os riscos de insucesso seriam reduzidos, por um lado, evitando uma institucionalização prematura e, por
outro, depositando o controle do processo nas mãos dos presidentes
nacionais (Malamud, 2003). Desde então, o Mercosul desenvolveu-se como uma organização estritamente intergovernamental: não
obstante a sua personalidade jurídica lhe permita tomar parte em negociações internacionais representando os seus membros, é sempre
necessária a unanimidade para adotar uma decisão coletiva. A soberania nacional não foi nem delegada nem partilhada e todos os órgãos
de decisão do Mercosul são compostos exclusivamente por altos representantes governamentais dos Estados contratantes (Peña, 1998).
Existem, porém, algumas instituições que, embora desprovidas de
poderes de decisão, convém serem analisadas, tais como a Comissão
Parlamentar Conjunta do Mercosul (CPCM).
A CPCM é o órgão do Mercosul que reúne as delegações dos quatro
Congressos Nacionais. Entre os cinco Parlamentos regionais analisados neste artigo, a CPCM é a única que ainda não adquiriu o status
de Parlamento, pelo menos na sua designação oficial. O Tratado de
Assunção, celebrado em março de 1991, de fato indicava este órgão
como o mecanismo que proporcionaria a criação de um mercado comum. Contudo, ainda não era claro o modo como a CPCM contribuiria para a realização do objetivo último de integração, pois o tratado
não lhe endossara qualquer tipo de atribuições específicas; em alternativa, o mesmo tratado mencionara a obrigação dos Executivos nacionais manterem os respectivos Congressos Nacionais informados
dos progressos conseguidos no projeto de integração em curso.
396
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
Somente por meio do Protocolo de Ouro Preto, celebrado em dezembro de 1994, é que foram definidos a estrutura institucional do Mercosul e o formato atual da CPCM. Esta passou a constituir um órgão
representativo dos Parlamentos nacionais, responsável pela transposição acelerada dos procedimentos do Mercosul para a ordem jurídica dos Estados-membros. Adicionalmente, foi incumbida de desempenhar um papel subsidiário nas iniciativas de harmonização de políticas e um papel consultivo em relação ao Conselho do Mercado Comum, o órgão regional supremo composto pelos ministros das Relações Exteriores e da Economia dos países signatários. Compete à
CPCM exercer as suas funções e competências mediante a elaboração de recomendações, disposições e declarações (Caetano e Perina,
2000; 2003). Contudo, nenhum destes atos possui qualquer efeito
vinculativo. Neste contexto de reduzidos poderes de decisão, recebeu ainda a missão, pouco clara, de estudar e criar as condições necessárias para a eventual criação de um Parlamento regional para o
projeto Mercosul.
O Protocolo de Ouro Preto estabeleceu que a CPCM seria constituída
por um total de 64 membros. A cada país competia eleger, no máximo, dezesseis representantes entre prestigiados advogados, incluindo membros das duas Câmaras nacionais – notando-se que os quatro
Estados-membros do Mercosul possuem um sistema parlamentar bicameral. Os representantes nacionais da CPCM são agrupados em
seções nacionais compostas por deputados e senadores. O Protocolo
recomendou a eleição por um termo de dois anos, de modo a possibilitar alguma continuidade de trabalho, mas deixou ao critério dos
Parlamentos dos Estados-membros a decisão final sobre a duração
do mandato e a definição da data e mecanismo de eleição.
O Protocolo também estabeleceu que a CPCM se reunisse, no mínimo, duas vezes por ano, com a ressalva de que a validade do encontro
dependeria da participação dos representantes de todos os Estados-membros. Mais ainda, todas as decisões da CPCM teriam que
397
Andrés Malamud e Luís de Sousa
ser tomadas por consenso entre as partes, a regra de ouro aplicável a
todos os órgãos constitutivos do Mercosul. O caráter extremamente
intergovernamental destas disposições neutraliza uma das principais
funções exercidas no seio de qualquer instituição parlamentar: a votação. Nem mesmo a presidência da CPCM é eleita pelo plenário,
não obstante um sistema de rotação, por um período de seis meses,
tenha sido adotado, à semelhança do estabelecido para a presidência
do Mercosul como um todo. Os vários órgãos de decisão que compõem o Mercosul são coadjuvados por um Secretariado Administrativo Permanente. O secretário, que não pode exercer funções de deputado a nível nacional, é também nomeado, rotativamente, pelos
quatro Estados-membros, mas, ao contrário das presidências, a sua
comissão de serviço dura dois anos em vez de seis meses.
O Estatuto Interno da CPCM contempla a possibilidade de criar comissões de trabalho, desde que não tenham um caráter estatutário
permanente e funcionem apenas como instrumentos ad hoc. Esta
provisão não permite a especialização dos parlamentares, nem lhes
proporciona uma carreira estável ou uma formação progressiva das
suas aptidões. Como regra, a CPCM reúne-se no Estado-membro
que detém, temporariamente, a presidência. O seu orçamento é atribuído em iguais proporções pelos Estados-membros do Mercosul.
Desde, pelo menos, meados da década de 1990, um número crescente de políticos, acadêmicos e líderes de opinião têm se mobilizado em
favor da criação e fortalecimento de um Parlamento do Mercosul
(Caetano e Antón, 2003; CEFIR, 1998; SM, 2004; Vazquez, 2001).
Até a data, permanecem apenas boas intenções.
Conclusões Comparativas
De todas as instituições internacionais designadas como Parlamentos, apenas o Parlamento Europeu desenvolveu um caráter verdadeiramente supranacional e poderes efetivos próprios. Os restantes estão ainda aquém desta realidade (ver também Vieira Posada, 2000).
398
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
A história, estrutura, competências e funções destas instituições são
bastante variáveis, tal como o grau de legitimidade de que gozam. A
análise dos Parlamentos regionais apresentada neste artigo teve
como objetivo, por um lado, a homogeneização dos conceitos utilizados nesta área de estudos e, por outro, a apresentação de uma imagem comparativa de cinco instituições que reclamam a mesma designação.
Depois de examinados os cinco Parlamentos regionais das duas regiões consideradas, as diferenças encontradas entre o Parlamento
Europeu e os quatro proto-Parlamentos da América Latina são significativas, qualquer que seja a dimensão considerada. O Quadro 4 oferece uma comparação das principais diferenças (e semelhanças) entre os cinco casos de estudo.
No que diz respeito à dimensão representativa, apenas o Parlacen designa os seus membros por eleições diretas, à semelhança do Parlamento Europeu. Todavia, não são levadas em conta as diferenças demográficas entre os vários círculos eleitorais, isto é, os Estados-membros. Em relação aos processos de decisão, a nenhum Parlamento regional da América Latina foram atribuídos quaisquer poderes legislativos. O Parlacen, novamente, destaca-se como o único que
possui competências de fiscalização sobre os restantes órgãos da organização. Contudo, tem tido resultados menos brilhantes do que o
Parlatino e o Parlandino no que se refere à institucionalização de comissões estatutárias permanentes e especializadas. Em contraste, o
Parlamento Europeu figura, cada vez mais, com capacidades nas
quatro dimensões consideradas. Vários fatores confluem para a explicação desta diferença. A seguir, mencionamos cinco que consideramos fundamentais e sugerimos algumas pistas para uma investigação mais aprofundada sobre o assunto.
O primeiro fator que distingue a evolução dos Parlamentos regionais
nas duas regiões em análise é o tempo: existe uma diferença de duas a
399
400
Legislação
Representação
Permanentes,
fortes
Representação
nacional
Grupos políticos
Mecanismo de
decisão
Diferentes
maiorias
Sim
Co-decisão,
consulta
Competências
legislativas
Direito de
iniciativa
Sim
Aprovação do
orçamento
regional
Accountability dos Aos eleitores dos
deputados
círculos nacionais
Sim
Proporcional
Eleição direta
Parlamento
Europeu
Pluralidade
-
Não
Não
Aos Parlamentos
nacionais
Não
Igualitária para
todos os países
Não
Diferentes maiorias
Não
Não
Não
Aos eleitores dos
círculos nacionais
Sim, mas vagos
Igualitária para
todos os países
Sim
Parlamento
Parlamento
Latino-Americano Centro-Americano
Quadro 4
Diferenças e Semelhanças entre os Cinco Parlamentos Regionais*
Não
Igualitária para
todos os países
Não
CPC do Mercosul
Maioria absoluta
Não
Não
Não
(continua)
Consenso
Não
Não
Não
Em transição: dos Aos Parlamentos
nacionais
Parlamentos para
os círculos
nacionais
Não
Igualitária para
todos os países
Em transição
Parlamento
Andino
Andrés Malamud e Luís de Sousa
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Sim
Fiscalização
Sim
Sim
Forte
Audições
parlamentares
Salário e
imunidade
Socialização
Comissões
Permanentes e
especializadas
Sim
Censura do
governo
da burocracia
Sim
Escolha do
governo
Parlamento
Europeu
Fraca
Já possuem (por
serem representantes nacionais)
Não
Permanentes
Não
Não
Não
Média
Sim
Sim
Média
Não
Permanentes
Não
Não
Não
Parlamento
Andino
Não
Ad hoc
Parcial
Parcial
Parcial
Parlamento
Parlamento
Latino-Americano Centro-Americano
* Elaboração própria com base nos tratados internacionais e nos websites dos órgãos parlamentares.
Formação de
elites
Controle e
fiscalização
(continuação)
Fraca
Já possuem (por
serem representantes nacionais)
Não
Ad hoc
Não
Não
Não
CPC do Mercosul
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
401
Andrés Malamud e Luís de Sousa
quatro décadas entre o início do processo de integração europeu e os
processos em curso na América Latina; portanto, algumas das diferenças de desenvolvimento institucional assinaladas poderão resumir-se a uma questão de maturidade.
O segundo fator é a seqüência: a atual estrutura da UE foi construída
a partir do tão falado “método Monnet”, isto é, a função precede a
forma e o “incrementalismo” é preferido à institucionalização prematura. Em contraste, algumas das experiências da América Latina
tentaram, sem sucesso, emular o resultado do processo de integração
europeu, mas descuidando do seu método.
Em terceiro lugar, existe uma grande disparidade no nível de integração conseguido: enquanto a UE é já um mercado comum e continua a
consolidar a sua união econômica, nenhum dos projetos latino-americanos alcançaram sequer o nível de união aduaneira. Por
conseguinte, a estrutura institucional necessária para um tipo de organização poderá ser inadequada aos requisitos das outras.
Em quarto lugar, o grau de sucesso na criação de instituições regionais não pode estar desassociado do modo efetivo como essas instituições funcionam em nível nacional. Em outras palavras, o caráter
precário e de instabilidade das instituições nacionais não pode servir
de base estável para a construção de instituições que visam a integração política regional.
Em último lugar, a maioria dos países europeus constituem regimes
parlamentares ou semiparlamentares, enquanto todos os países da
América Latina são democracias presidencialistas. Uma conseqüência desta variação institucional é que o papel dos Parlamentos nacionais em todo o processo de integração é inevitavelmente diferente em
uma e outra região: se, na Europa, os Parlamentos nacionais são entendidos como instituições supremas, em que os governos são constituídos e dissolvidos, na América Latina, as eleições, autoridade e sobrevivência dos governos são independentes da vontade parlamen402
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
tar. Portanto, é razoável esperar que os chefes de governo de regimes
presidencialistas tencionem replicar, em nível regional, um esquema
que lhes tem proporcionado dividendos em nível nacional (Malamud, 2005).
O princípio que baseia este último argumento é o de que, mesmo nos
processos de integração regional, a natureza presidencialista ou parlamentar dos regimes dos Estados-membros importa e tem implicações diretas, especialmente no que diz respeito à criação e desempenho de Parlamentos regionais. Conseqüentemente, também os partidos políticos cumprem um papel diferente em um ou outro contexto
institucional regional. Não seria inoportuno que os reformadores
destes processos levassem em consideração estas conclusões, pois,
como já foi referido por alguns autores, um sistema parlamentar poderá não ser a solução mais adequada para governar uma democracia
multiestatal (Fabbrini, 2004; McKay, 2001). Nota-se ainda que as
implicações desta hipótese dizem respeito não apenas ao futuro dos
Parlamentos regionais na América Latina, mas a qualquer processo
de integração política, incluindo o europeu. Fóruns birregionais, tais
8
como a Conferência Interparlamentar Europa-América Latina , poderiam desempenhar um papel mais significativo e de mútuo interesse, ajudando os Parlamentos nacionais a prevenir possíveis insucessos geralmente associados à criação de expectativas quiméricas.
Os Parlamentos regionais podem contribuir para a criação, a longo
prazo, de alicerces complementares da integração, tais como: a construção de uma identidade regional entre as elites políticas; o fortalecimento da presença simbólica da organização regional no seio da
opinião pública e a sua promoção em países terceiros; e a intensificação da comunicação intra-regional. Contudo, estas funções não são
nem exclusivas, nem características fundamentais de uma instituição
parlamentar. Se a reforma dos Parlamentos regionais é para ser tomada seriamente, a distinção entre funções constitutivas e complementares não pode ser negligenciada. Como ensina a história, embarcar
403
Andrés Malamud e Luís de Sousa
em propostas pouco realistas, sejam elas baseadas na emulação acrítica, sejam resultantes de uma compreensão insuficiente do contexto, condenará qualquer empresa ao fracasso ou, na melhor das hipóteses, à irrelevância.
Notas
1. Por regional, entenda-se a dimensão internacional e/ou os processos de decisão de natureza intergovernamental ou supranacional em um espaço contíguo
que afeta várias jurisdições territoriais nacionais. Não se refere ao nível intermédio de governo entre o local e o nacional dentro de uma jurisdição estatal.
2. A Declaração de Roma de 27 de outubro de 1984 sublinhou a importância
de a União da Europa Ocidental vir a fazer parte do complexo da política de defesa européia. Esta intenção política seria, posteriormente, posta em prática
pelo Tratado de Maastricht de 1991.
3. Esta e as demais citações de textos em língua estrangeira foram livremente
traduzidas por nós.
4. O Ato Único Europeu de 1986 tornaria, finalmente, oficial a designação de
Parlamento Europeu.
5. Os países signatários são: Argentina, Aruba, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Antilhas Holandesas, Nicarágua, Panamá, Paraguai,
Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.
6. O Grupo Contadora foi fundado em 1983 com a participação do México,
Colômbia, Venezuela e Panamá. O Grupo de Apoio foi estabelecido, posteriormente, em 1985 e era composto pela Argentina, Uruguai, Brasil e Peru. A missão de ambos os grupos era a de contribuir para uma solução negociada dos conflitos na América Central e os seus princípios diretores eram, fundamentalmente, quatro: autodeterminação, não-intervenção, desmilitarização e democratização. Em 1986, os dois grupos fundiram-se em um só, que viria a ser conhecido
como Grupo do Rio.
7. O Pacto Andino foi assinado pela Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e
Peru. Em meados dos anos 1970, a Venezuela integrou-se ao processo, ao passo
que o Chile o abandonou.
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Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
8. Este fórum, cujo terceiro encontro teve lugar em Puebla entre 17 e 19 de
março de 2004, inclui a participação de delegados dos cinco Parlamentos regionais analisados neste artigo.
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Parlamento Centro-Americano:
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Parlamento Europeu: <http://www.europarl.eu.int>.
Parlamento Latino-Americano: <http://www.parlatino.org.br>.
União Parlamentar Internacional:
<http://www.ipu.org/english/home.htm>.
407
Andrés Malamud e Luís de Sousa
Resumo
Parlamentos Supranacionais na
Europa e na América Latina:
Entre o Fortalecimento e a
Irrelevância
Nenhum processo de integração regional está isento de críticas sobre o seu
alegado déficit democrático e/ou institucional. A razão destes déficits é,
freqüentemente, apontada como uma conseqüência da escassa accountability e da falta de transparência dos sistemas de decisão em nível regional. Os
diferentes blocos regionais têm tentado responder a um ou ambos dos déficits em causa, mediante uma variedade de métodos e opções institucionais.
A mais visível das fórmulas aplicadas é a criação e fortalecimento de um
Parlamento regional – ou seja, supranacional. Este artigo pretende analisar,
comparativamente, cinco Parlamentos regionais na Europa e na América
Latina – o Parlamento Europeu, o Parlamento Latino-Americano, o Parlamento Centro-Americano, o Parlamento Andino e a Comissão Parlamentar
Conjunta do Mercosul – com o objetivo de compreender o impacto que estas
instituições têm tido no âmbito da representação regional, dos processos de
decisão e do fortalecimento da accountability. As conclusões sugerem cinco fatores que os autores consideram pertinentes para a explicação das diferenças verificadas entre as duas regiões transatlânticas.
Palavras-chave: Parlamentos Supranacionais – Integração Regional –
Integração Latino-Americana – Integração Européia
Abstract
Regional Parliaments in Europe
and Latin America: Between
Empowerment and Irrelevance
Virtually no process of regional integration has been safe from the criticism
of allegedly suffering from either democratic deficit, institutional deficit or
both. These deficits, the argument goes, are the consequence of scarce
accountability and the lack of transparency in regional decision-making.
Different regional blocs have attempted in a variety of ways to confront one
or both of these deficits, the most visible of which is the creation and
408
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...
empowerment of a regional parliament. This paper presents a comparative
analysis of five of these institutions in Europe and Latin America – i.e. the
European Parliament, the Latin American Parliament, the Central
American Parliament, the Andean Parliament, and the Joint Parliamentary
Commission of Mercosur – with the aim of understanding their impact on
regional representation, decision-making and accountability. The
conclusions pinpoint five plausible factors in accounting for the differences
found across the Atlantic divide.
Key words: Supranational Parliaments – Regional Integration – Latin
American Integration – European Integration
409
Resenha
Taming the Sovereigns*
Kalevi J. Holsti. Cambridge, Cambridge University Press, 2005, 349 páginas.
Marcelo Valença**
Kalevi Holsti aborda em seu livro a questão das mudanças e transformações ocorridas na relação entre os Estados ao longo da história
e como estas são percebidas pelos estudiosos das relações internacionais (RI). Por meio de uma análise empírica bem elaborada, a obra
aborda aspectos de um dos debates centrais da disciplina, que é a
questão da mudança nas RI. Para o autor, pontos de ruptura e marcos
históricos – que supostamente delimitariam o início de “novas eras”
e práticas – são aclamados a todo instante, quando, na verdade, tais
eventos não teriam a integralidade dos efeitos alegados. Esta abordagem sugere que a idéia de mudança envolve um processo contínuo
na política internacional, mesmo que não implique em alterações
decisivas na forma como o mundo é visto e entendido: o sistema internacional seria dotado de dinamicidade e esta não se mostraria
apenas quando dos grandes eventos; ao contrário, seria percebida
*Resenha recebida em agosto e aprovada para publicação em outubro de 2005.
**Mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).
CONTEXTO INTERNACIONAL
Rio de Janeiro, vol. 27, no 1, janeiro/junho 2005, pp. 465-478.
465
Resenha
freqüentemente. O ataque de 11 de setembro, as grandes guerras e
Westphalia seriam pontos marcantes para as RI, mas as mudanças
não ocorreriam somente em momentos como estes: a alteração da
ordem faz parte de um processo contínuo.
A proposta de Holsti é fazer um estudo da estrutura institucional da
política internacional por meio da análise contextualizada das instituições e dos arranjos dispostos que conduzem às relações mútuas
entre os Estados. Para o autor, as bases da sociedade internacional de
Estados começaram a se constituir no século XVII com o surgimento
das instituições internacionais, mas foi apenas no período posterior
às guerras napoleônicas que a sociedade foi formada, firmando-se
definitivamente com o surgimento da Liga das Nações.
Para atingir seus objetivos, Holsti vai buscar padrões de mudança nas
instituições internacionais – o Estado, o território, a soberania, o direito internacional, a diplomacia, o comércio internacional, o colonialismo e a guerra –, seja na direção da institucionalização, seja na sua
erosão, comparando a sua relevância na política ao longo dos séculos. A opção por utilizar estes referenciais – que ajudam a compor a
sociedade internacional de Hedley Bull (2002) – tem como finalidade estabelecer parâmetros “isentos” de comparação, pois as instituições internacionais estariam diretamente ligadas ao contexto histórico analisado, assumindo postura crítica perante a política internacional, fugindo assim de explicações determinísticas. Ademais, estas
resistiriam a grandes eventos, como guerras e crises, tendo mais impacto na vida social do que muitas das inovações tecnológicas observadas, e assumindo papel central na vida social. Os critérios para perceber as mudanças e transformações seriam baseados nas práticas,
idéias, crenças e normas empreendidas em cada uma destas instituições internacionais, que são analisadas e comparadas historicamente
em um capítulo exclusivamente dedicado ao estudo das mudanças
por elas sofridas.
466
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
É importante expor, inicialmente, que Kalevi Holsti vê como mudança a alteração dos componentes das instituições, por meio do acréscimo ou retirada de seus elementos, levando ao aumento ou redução de
sua complexidade. Tais alterações implicariam na obsolescência ou
renovação destas instituições. Poderia implicar também na sua transformação, isto é, alterações profundas nas estruturas da instituição
internacional, fazendo com que as novas estruturas constituam verdadeiras antíteses daquelas anteriormente observadas. Haveria, assim, seis tipos de mudança: renovação ou substituição; acréscimo ou
subtração; aumento ou diminuição de complexidade.
O livro pode ser dividido em duas partes. A primeira (do capítulo 2 ao
5) consiste na análise das instituições fundacionais – o território, a
soberania e o direito internacional –, que permitiriam a qualquer estudioso perceber a existência de um sistema organizacional formado
por Estados e distinto de outras formas de organização política, como
impérios ou sistemas suseranos; as instituições são os componentes
que formam o sistema internacional moderno. De acordo com o autor, elas não teriam passado por transformações, a não ser o esvaziamento do direito de conquista como atributo da soberania e como
norma do direito internacional, perdendo, assim, legitimidade. O Es1
tado, visto como ator e instituição, justamente por este caráter duplo, representaria o maior desafio na exposição de Holsti, mas é classificado por ele, ao menos a priori, como instituição fundacional.
A segunda parte (do capítulo 6 ao 9) é formada pela análise das instituições procedimentais – diplomacia, comércio internacional, colonialismo e guerra – que constituiriam as práticas, normas e crenças
repetidas ao longo do tempo e que são decorrentes da interação entre
os diferentes atores internacionais em função dos princípios propostos pelas instituições fundacionais. As instituições procedimentais
são importantes para se perceber as características essenciais do sistema internacional, mas possuem importância secundária se comparadas às instituições fundacionais. As instituições procedimentais
467
Resenha
também não teriam passado por transformações, exceto o colonialismo, que mais tarde se tornaria obsoleto. O conjunto de mudanças pelas quais as demais instituições deste tipo passaram levou o colonialismo a se tornar algo ultrapassado, mesmo que a sua estrutura não tenha sofrido modificações: foram os efeitos combinados e decorrentes, por exemplo, de fatores econômicos associados a questões de soberania, como o princípio da autodeterminação dos povos, que o teriam levado a ser visto como ultrapassado. Assim, ainda que nenhuma
alteração estrutural profunda – isto é, uma transformação – tenha
acontecido, houve diversas mudanças que trouxeram às instituições
internacionais novos elementos e/ou alterações em sua complexidade que afetaram a capacidade operacional do colonialismo. Tais efeitos, se por um lado não se mostraram capazes de decretar a sua extinção, por outro tornaram tal instituto demasiadamente oneroso, em
custos políticos e econômicos, desencorajando a sua manutenção e
instituindo seu desuso. Isto mostraria como os diversos mecanismos
que compõem a ordem internacional estão inter-relacionados e como
variações em um ou mais deles poderiam afetar os demais, ainda que
tais mudanças não estejam diretamente ligadas.
O que podemos apreender de Taming the Sovereigns é a tentativa de
promover uma releitura dos postulados da Escola Inglesa, especialmente do papel central ocupado pelas instituições constituintes da
sociedade internacional de Estados, perante os desafios propostos à
organização estatal neste início do século XXI, principalmente diante dos processos de globalização, questionando, a todo instante, conceitos centrais do Estado, como territorialidade e soberania.
Dentre as instituições fundacionais estudadas, o Estado é aquela que
apresenta mais nuances, o que torna sua análise mais delicada: ao
mesmo tempo que demonstra ter todas as características necessárias
para que se configure uma instituição internacional, ele se mostraria
como ator central da sociedade internacional criando, inclusive, as
instituições. Enquanto estas seriam “estruturas de normas, regras e
468
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
2
idéias que influenciariam o comportamento dos agentes” (:27) , os
Estados seriam entidades soberanas que apresentariam continuidade
temporal, delimitação territorial, governo centralizado e limites de
separação entre as idéias de público e privado, em uma forma natural
de organização política.
As mudanças que o Estado sofreu desde Westphalia implicaram no
aumento de sua complexidade – como na ampliação de suas funções,
antes restritas à taxação e ao exército para uma lista mais abrangente
de funções, ampliando também o seu aparelho burocrático.
Holsti critica aqueles que pregam a obsolescência do Estado. A insistência na idéia de erosão de soberania ou permeabilidade das fronteiras constituiria um wishful thinkink dos acadêmicos que gostariam de
ver o mundo se reduzindo, formando uma vila global: fora do exemplo europeu, haveria poucos sinais de que isto realmente estivesse
ocorrendo. Como aponta Krasner (2001), algumas atividades ilícitas
desafiariam o Estado, mas ainda assim teríamos a preponderância
desta organização política.
Quanto às fronteiras, sua importância variou bastante ao longo do
tempo, especialmente até o século XVI, quando os monarcas começaram a notar que a efetivação de seu poder dependia de uma área onde este pudesse ser exercido, principalmente após a Guerra dos Trinta Anos: “Parte do jogo da soberania era definir precisamente onde a
lei ‘nacional’ prevaleceria sobre a estrangeira e sobre regras locais e
jurisdições” (:79). O território estava sujeito a alterações de tamanho
em função de, mas não se limitando a, conquistas, partições e casamento dos regentes. A partir do século XVIII, o espaço tornou-se institucionalizado, com as normas de jurisdição territorial exclusiva sobrepondo-se às antigas, sustentando as mudanças rumo às práticas
contemporâneas. Estas se referem não apenas à revisão do espaço,
mas também à sua administração, com os Estados detendo os recursos para o controle dos fluxos através de suas fronteiras.
469
Resenha
As fronteiras assumiram a função de demarcar a legitimidade de uma
autoridade e da aplicação das suas leis, além de proteção contra a entrada de indivíduos e bens indesejados. Suas normas e regras desenvolveram-se conforme a capacidade dos Estados de controlar seus
territórios e identificar a sua população. Diversos dispositivos acordados entre os Estados a partir de 1960 reforçavam a idéia de que o
3
princípio do rebus sic stantibus não mais valeria. Com isso, o território estatal entraria em um processo de mutação, passando a ser visto
como congelado e com as fronteiras assumindo valores sociais mais
amplos do que aqueles vislumbrados séculos antes: o território teria
passado por mudanças, mas ainda teria importância.
Holsti vê a soberania como uma instituição internacional construída
socialmente cuja prática é fundamentada pelo consenso dos Estados;
seria, pois, o ponto no qual repousa a idéia da sociedade internacional
de Estados, pois as demais instituições estariam relacionadas a ela de
maneira inseparável. A soberania é dividida em dois componentes:
normas e regras que constituem o Estado, definindo os atores do jogo
político, e aquelas que regulam as relações entre os Estados, isto é, as
regras do jogo. A preocupação de Holsti é trabalhar com as regras
constituintes da soberania, ajudando a criar e manter os Estados, definindo e apontando os atores aptos a participar do debate político.
Ser considerado soberano consistiria em adquirir um status jurídico
atribuído pelos seus pares e que faz com que o Estado pertença ao
“clube”. Diferentemente do que é defendido por Krasner (2001), o
Estado depende deste status para ser soberano, não podendo ser declarado como tal apenas por possuir determinados atributos: sem o
reconhecimento dos demais, o Estado seria apenas um ente político,
como uma ONG, por exemplo.
Todas as tentativas de romper a idéia de soberania – e, conseqüentemente, a de Estado moderno e territorialidade – foram malsucedidas,
contando com pronta reação da sociedade internacional. O que co470
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
meçou como uma maneira de reforçar o Estado perante o poder papal
acabou se tornando uma forma naturalizada de organização política,
mais completa que as já conhecidas, mesmo diante de constantes críticas (Osiander, 2001). Os processos de globalização acabaram por
levá-la a um anacronismo: com o rompimento jurídico e prático desta idéia, a autoridade estatal distanciou-se do poder e da influência
outrora exercidos. Mas a decisão final de participar do jogo político
ainda pertence ao Estado. Este é, portanto, um conceito idealizado
que não corresponde ao processo observado na prática, o que não significa que tenha perdido a sua importância na política internacional
contemporânea. Muitas de suas características originais foram-se
com o tempo – como o direito de conquista –, mas o seu núcleo duro
continua o mesmo, ainda que se percebam anomalias em seu corpo.
A última instituição fundacional analisada é o direito internacional.
Este se mostraria fundamental para a ordem vigente, com diversos
princípios mantendo-se, via de regra, intactos ao longo do tempo,
com exceção dos direitos humanos, da organização dos Estados, das
organizações internacionais, que ganharam complexidade, e do direito de conquista, abolido. Outros, como a soberania e a igualdade
jurídica permanecem não apenas intactos, mas sustentando a sociedade internacional. Todas as leis são alteradas ao longo do tempo e
com as normas internacionais não é diferente: há uma síntese que
promove a renovação das regras, com princípios antigos se mesclando a novos para promover a transformação da regra e torná-la mais
adequada às demandas. Não houve transformação do direito internacional, mas mudanças inerentes ao decurso, incluindo a obsolescência de parte dele.
Holsti expõe que certas normas são aplicáveis em relação a grupos
distintos em diversos momentos históricos. Estas regras, essenciais,
constituem um regime de coexistência dos Estados na sociedade. A
aceitação delas, e sua transformação em princípios, foi o primeiro
passo rumo à institucionalização do direito internacional, juntamen471
Resenha
te com o consenso na forma de interpretá-las e o interesse dos Estados de mantê-las durante certo período de tempo. As normas e práticas internacionais reforçavam a idéia original de soberania como
uma proteção dos Estados: atualmente, o conceito dirige-se às idéias
de autodeterminação dos povos e de igualdade jurídica. O caráter
constitutivo da soberania, como ressaltado anteriormente, acaba limitando aqueles que tentam negá-la, pois para se ter certos direitos
seria preciso garantir os mesmos a outrem.
O entendimento da diplomacia como uma instituição internacional
remonta ao século XIV, prolongando-se até Westphalia. Sua origem
estaria ligada com o surgimento de embaixadas permanentes nas cidades-Estados italianas e evoluiu até a exclusividade dos soberanos
4
de enviar representantes diplomáticos . No final do século XVII, a
diplomacia já era entendida como um conjunto de práticas consentidas, constantes e regularizadas; a capacidade de manter embaixadas
permanentes no estrangeiro era vista como atributo de soberania,
pois indicava que o Estado que autorizava a abertura destas representações via o requerente como ator soberano. As normas preocupavam-se com a pessoa do embaixador, isto é, com quem poderia ocupar tal papel e quais direitos e garantias este teria. Um outro sinal de
institucionalização da diplomacia foi a burocratização do processo
diplomático, visando à sua padronização.
Durante o século XIX, não houve aumento na representação diplomática, mas houve na sua profissionalização. A ascensão e escolha
dos diplomatas pelo seu mérito passaram a ser a regra na maioria dos
Estados. Apesar disso, pouco mudou nas funções tradicionais da diplomacia. Uma das mudanças foi a preocupação de se esgotar todos
os métodos diplomáticos antes de se apelar à força. A entrada de novos agentes, como organizações não-governamentais (ONGs) e negociadores privados, tornou a prática diplomática mais complexa,
mas não consistiu em nenhuma transformação: os princípios cultivados desde o século XIV continuam em vigor, adequados ao período
472
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
histórico vigente. Questionamentos e rupturas como aquelas propostas pela Revolução Chinesa desafiaram as normas tradicionais, mas
tiveram de ser revistas para que ocorressem os relacionamentos de
Estados como a China com os demais da sociedade internacional.
Como apontam os críticos, o uso de comissões de representação que
não são compostas por agentes do corpo diplomático estatal seria um
indicador de que a institucionalização deste instrumento estaria diminuindo: “[...] há diversas organizações políticas que não são Estados soberanos que atuam em atividade diplomática” (:202). Outras
críticas vêm da violação sistemática das normas de condução da diplomacia, além do surgimento de novas tecnologias, juntamente com
o rápido crescimento das relações transnacionais, que superariam o
uso das vias de comunicação diplomática. Holsti defende não a
transformação das relações diplomáticas, mas o aumento da complexidade de tais relações diante da sua democratização. A atuação ad
hoc dos mediadores não-oficiais não provoca transformação do instituto, mas complementa a atuação dos Estados, aumentando a sua efetividade.
No comércio internacional, especialmente durante o período das
grandes navegações, existia um sistema anárquico, quase hobbesiano, fugindo do domínio da sociedade. Os Estados atuavam conforme
seus próprios interesses, sem considerar vantagens comparativas ou
princípios regulatórios, ainda que houvesse tratados de cooperação.
A preocupação maior era de adquirir colônias para poder se aferir lucros com a sua exploração: “[...] a idéia de que o comércio poderia ser
desenvolvido por vias pacíficas existia, mas a possibilidade de este
trazer benefícios mútuos estava além do pensamento mercantilista”
(:217).
O desenvolvimento do pensamento liberal de Adam Smith e David
Ricardo levou à mudança no pensamento econômico. Houve assim
uma adequação destes novos princípios às práticas outrora existen473
Resenha
tes, especialmente durante o século XIX. A grande depressão econômica de 1929 promoveu um novo conjunto de mudanças. Hodiernamente, o surgimento de instituições como a Organização Mundial do
Comércio garantiu um nível considerável de institucionalização, por
meio de práticas e normas que romperam com o estado de natureza
outrora existente. Ainda que estas normas não cubram todas as possibilidades, deixam claras as intenções de regulamentação. As idéias
tiveram papel importante nestas transformações, mas não podem ser
vistas como únicas responsáveis: houve mudança de práticas na área,
permitindo a maior recepção destas, especialmente porque a possibilidade de ganhos mútuos passou a ser considerada pelos agentes envolvidos. As condições criadas permitiram a institucionalização,
mas não há indicadores de que estas mudanças se mantenham diante
das adversidades, como aquelas experimentadas com as guerras do
século XX e a crise de 1929. A institucionalização existe e é maior do
que a percebida em outras épocas, mas não provocou transformações
no campo econômico.
O colonialismo é uma exceção entre todas as instituições analisadas,
fundacionais ou procedimentais: apenas este se tornou obsoleto. A
formação de colônias ajudou no estabelecimento econômico e territorial dos Estados modernos, estabelecendo padrões de segurança e
garantindo os recursos para a centralização do poder. Cada potência
impunha seu próprio modelo de colonização de acordo com os seus
interesses e os domínios coloniais eram mais ou menos respeitados
conforme se dava a relação entre os europeus. As colônias eram reforços para todas as outras instituições internacionais; mas, uma vez
consolidadas estas instituições, o colonialismo perdeu sua força. E
isto não ocorreu no pós-Segunda Guerra Mundial, como é corrente
afirmar: as bases que sustentaram esta prática se iniciaram no século
XIX, com as colônias americanas, mas a grande onda de descolonização ocorreu a partir da segunda metade da década de 1940.
474
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
A Organização das Nações Unidas (ONU) trouxe sistemas de administração das ex-colônias para que estas pudessem passar pelo período de transição até se tornarem Estados livres. A distribuição de seus
territórios deixou de ser um espólio para os vencedores dos conflitos,
além de não fazer mais parte do conjunto de identidade das grandes
potências: as suas independências eram apenas questão de tempo. A
obsolescência das colônias, portanto, não foi algo que simplesmente
ocorreu, mas parte de um processo cultivado ao longo dos últimos séculos, com as guerras do século XX atuando como um catalisador
destas mudanças. O colonialismo tornou-se obsoleto não apenas pela
questão da soberania, mas também pelos seus custos econômicos, inviáveis e insustentáveis.
A guerra, finalmente, é a forma primária de interação entre atores políticos independentes ao longo da história. Ela era travada entre as entidades políticas e não entre seus cidadãos: com a derrota de um dos
lados, os enfrentamentos encerravam-se e as baixas entre os soldados
também, impedindo que a violência se alastrasse. As idéias de Clausewitz lastreavam tal postura, com a diplomacia complementando o
uso da força. A guerra era institucionalizada na medida em que as
práticas e comportamentos eram padronizados pelos diferentes exércitos, seja na organização hierárquica, seja no tratamento dado, por
exemplo, a prisioneiros de guerra, formando uma etiqueta da mesma.
Estas idéias possibilitaram a formação de distinções entre combatentes e não-combatentes, combatentes e neutros, governo e exército e
entre guerra e paz.
Durante o século XX, houve mudanças no formato que os confrontos
assumiram, deixando de ser uma prerrogativa de entidades soberanas
para se tornar um instrumento utilizado também por grupos privados; a proliferação de milícias privadas é um sinal deste novo tempo,
remontando aos mercenários da Guerra dos Cem Anos. Não mais
importava reduzir as forças inimigas, mas causar o máximo de destruição possível. As condições socioeconômicas dos novos Estados
475
Resenha
ajudaram a explicar em parte esta quebra de institucionalização: por
se tratar de confronto entre grupos políticos dentro do mesmo espaço
territorial, uma das táticas adotadas era a de caracterizar o inimigo
como um ser inferior, provocando medo e aumentando o número de
baixas adversárias. Mas o sinal mais flagrante da quebra da institucionalização da guerra foi o fim da separação entre paz e guerra: se antes esta era declarada, demarcando claramente seu começo, tal prática não mais existe, sendo um processo que culmina no confronto entre as partes.
Por outro lado, a utilização de novas tecnologias pareceu levar a
guerra novamente em direção à sua institucionalização: a idéia de
guerras cirúrgicas, com o alvo milimetricamente definido ajudaria a
reduzir a destruição causada, levando, novamente, aos ideais clausewitzianos. A Guerra do Golfo, em 1991, e do Kosovo, em 1999, seriam exemplos desta mudança. Mas, em outras regiões do globo, os
novos conflitos continuam a existir, levando ao massacre de populações inteiras. Assim, ocorre um paradoxo no que diz respeito à percepção da guerra como uma instituição, pois, dependendo da região
observada, teríamos diferentes mudanças. Poderíamos identificar
três tendências para a guerra: a sua obsolescência, tal como pregada
pela carta da ONU; a sua “re-institucionalização”, com a utilização
das armas “inteligentes”; e a quebra da institucionalização, nas formas assumidas pelas novas guerras.
Com a análise das instituições trabalhadas no livro, Holsti conclui
que a única mudança mais profunda ocorreu com o colonialismo,
que se tornou obsoleto. Isto levou ao esvaziamento da idéia de conquista, tanto como um pressuposto da soberania estatal, quanto na
sua forma de norma internacional. As demais instituições internacionais passaram por mudanças, mas por meio de processos que as tornaram mais complexas e adequadas às necessidades exigidas pelo
sistema, sejam em função do surgimento de novos atores internacionais, sejam pelos desafios propostos pelos fluxos de globalização.
476
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
Holsti procura mostrar que a sociedade internacional é dinâmica e a
mudança é uma realidade que não se limita apenas a eventos marcantes e que, na visão de muitos, marcariam o início de uma nova era. A
formatação das instituições internacionais às exigências impostas
pela sociedade internacional implica, além da inter-relação entre os
institutos, o aumento da complexidade de suas formas, tornando-as
mais adequadas à vida social e política.
Notas
1. O Estado é visto como ator porque seria ele quem criaria e manteria as instituições existentes, enquanto seria uma instituição fundacional porque é parte integrante e formadora do sistema internacional.
2. Todas as citações foram traduzidas livremente pelo autor deste artigo.
3. O princípio do rebus sic stantibus, segundo Holsti (:151), indica que o acon-
tecimento de eventos ou o surgimento de novas condições que proporcionem alterações na forma como o sistema é organizado não pode ser alegado para reivindicar revisão arbitrária e sem o consentimento dos afetados no que diz respeito
às fronteiras já consolidadas. Toda e qualquer modificação nas fronteiras dos
Estados devem incluir, necessariamente, a aceitação dos envolvidos.
4. Esta inovação caracterizaria a continuidade das relações diplomáticas, algo
que não existia anteriormente, como pode ser percebido nas relações existentes,
por exemplo, entre as sociedades clássicas (Tucídides, 1987), que enviavam representantes apenas quando havia conflito de interesses.
477
Resenha
Referências
Bibliográficas
BULL, Hedley. (2002), A Sociedade Anárquica. São Paulo/Brasília,
IPRI/Imprensa Oficial de São Paulo/Editora da UnB.
KRASNER, Stephen. (2001), “Abiding Sovereignty”. International Political
Review, vol. 22, nº 3, pp. 229-251.
OSIANDER, Andreas. (2001), “Sovereignty, International Relations, and the
Westphalian Myth”. International Organization, vol. 55, nº 2, pp. 251-287.
TUCÍDIDES. (1987), História da Guerra do Peloponeso. São Paulo/Brasília,
IPRI/Imprensa Oficial de São Paulo/Editora da UnB.
478
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
Genocídio – A Retórica
Americana em Questão*
Samantha Power. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, 693 páginas.
Maurício Santoro**
Genocídio – A Retórica Americana em Questão (má tradução para A
Problem from Hell: America in the Age of Genocide), excelente livro
de Samantha Power, é um estudo sobre a reação dos Estados Unidos
aos genocídios ocorridos no século XX. A autora examina o massacre dos armênios pelos turcos, o Holocausto, o Khmer Vermelho no
Camboja, o extermínio dos curdos no Iraque e as guerras étnicas na
ex-Iugoslávia e em Ruanda. Embora o título mencione apenas os
Estados Unidos, o resultado é um painel mais amplo, abrangendo os
papéis desempenhados por governos, imprensa, organizações internacionais, políticos e organizações não-governamentais (ONGs) nas
crises internacionais que envolvem esse tipo de crime.
Power é irlandesa, formada em Direito por Harvard, onde leciona
Ciência Política. Seu interesse pelo tema do genocídio começou
* Resenha recebida em março e aceita para publicação em agosto de 2005.
** Doutorando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj),
pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e professor da
pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Candido Mendes.
CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 493-501.
493
Resenha
quando, com apenas 23 anos, cobriu como jornalista a guerra da Bósnia. Como outros personagens do livro, seu forte envolvimento emocional com o assunto veio da experiência direta.
A autora constata que a norma é a não-intervenção da comunidade
internacional em casos de genocídio, pelo menos até que a força da
opinião pública leve os Estados mais poderosos a reagir. Outra observação é a recusa dos políticos e diplomatas em reconhecer a natureza
da catástrofe em andamento: “Representam a carnificina como algo
bilateral e inevitável, e não como um genocídio” (:19). Muito contribui para essa posição o exame abstrato da noção de “interesse nacional”, realizado por pessoas que consideram os crimes em discussão
apenas como imagens distantes do cotidiano e que ainda por cima
atrapalham a agenda política do momento.
Um Crime com Nome
A palavra genocídio foi inventada no fim da Segunda Guerra Mundial pelo jurista polonês Raphael Lemkin, um refugiado judeu que conseguiu asilo nos EUA. Power narra com simpatia o esforço de Lemkin para criar um termo que desse conta do que ocorria na Europa
ocupada pelos nazistas, algo que descrevesse “ataques a todos os aspectos da nacionalidade – físicos, biológicos, políticos, sociais, culturais, econômicos e religiosos” (:66). A palavra foi cunhada por
Lemkin em um livro sobre a legislação racial promulgada nos territórios conquistados por Hitler, livro que teve repercussão imediata na
imprensa e nos meios diplomáticos.
Após a guerra, Lemkin tornou-se um lobista incansável para que a
Organização das Nações Unidas (ONU) elaborasse uma convenção
contra o genocídio, que formasse a base legal para futuras intervenções militares. O jurista era especialmente preocupado em impedir
que a soberania pudesse ser utilizada por um Estado como pretexto
para perpetrar genocídio contra suas minorias populacionais: “Pare494
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
ce incoerente com nossos princípios de civilização que vender uma
droga a um indivíduo seja considerado um problema de interesse
mundial, enquanto envenenar com gás milhões de seres humanos
possa ser um problema de interesse interno” (:73).
A convenção foi aprovada em 1948, mas os EUA não a assinaram –
além de evitar o compromisso de se envolver em guerras, havia o temor de que a convenção pudesse aplicar-se aos próprios atos do governo norte-americano contra índios e negros.
O tratado, além de definir genocídio, estipula que a ONU é obrigada
a agir para impedi-lo. Embora a intenção fosse louvável, o resultado
prático foi a relutância dos governos em reconhecer uma determina1
da situação como “a palavra g” , preferindo eufemismos como “atrocidades” ou “crimes”. Ao contrário do que normalmente se imagina,
o genocídio não é definido a partir da aniquilação de toda uma população, como no nazismo. Sua marca característica é a tentativa de eliminar as características de uma nacionalidade, não necessariamente
pelo assassinato, mas também pela ação cultural.
O fracasso da convenção tornou Lemkin um homem amargurado e
solitário. Apesar de ter sido indicado várias vezes para o Nobel da
Paz, ele nunca ganhou o prêmio e ao morrer era uma figura algo folclórica entre os jornalistas que cobriam a ONU – um tipo curioso e
excêntrico, que deveria ser evitado.
Passividade: Camboja e
Iraque
Apesar de os detalhes do Holocausto terem se tornado conhecidos
nas décadas do pós-guerra, o mundo assistiu passivamente a um novo
genocídio, executado pelo Khmer Vermelho no Camboja. Power
examina os diversos fatores envolvidos na crise cambojana: o modo
como o país foi arrastado para o conflito vizinho entre o Vietnã e os
495
Resenha
EUA, sofrendo pesados bombardeios, a guerra civil que se seguiu e a
invasão vietnamita que pôs fim aos massacres do Khmer Vermelho –
apenas para que as potências ocidentais patrocinassem um refúgio
para o grupo na fronteira tailandesa, com o objetivo de apoiar adversários do Vietnã.
Como era de se esperar, os cálculos da realpolitik – que levam em
conta apenas interesses econômicos e políticos, sem considerar valores éticos, direitos humanos etc. – muitas vezes ignoram o genocídio
para favorecer um aliado que é estrategicamente importante. Isto
ocorreu no caso do Camboja e do Iraque, mas, de modo geral, trazer
temas humanitários à tona é considerado na burocracia governamental algo típico de encrenqueiros. A autora cita um dirigente do Departamento de Estado dos EUA que pergunta a um indignado subalterno: “Você conhece algum funcionário que tenha subido na carreira
porque falou em defesa dos direitos humanos?” (:111).
Power afirma que os argumentos utilizados para a não-intervenção
seguem o esquema observado por Albert Hirschman em seu livro A
Retórica da Intransigência, ou seja, enquadram-se em três categorias: futilidade (não vai adiantar), perversidade (o efeito será o contrário do pretendido) e perigo (trará mais problemas).
Às vezes, incidentes circunstanciais podem levar a reformulações na
política externa. No caso dos EUA, o país só assinou a Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio após uma crise criada quando o presidente Reagan visitou o cemitério de Bitburg, na
Alemanha Ocidental, onde estavam enterrados soldados da SS. O furor das entidades judaicas fez com que o governo norte-americano
precisasse dar uma resposta mostrando seu compromisso com a memória do Holocausto e a determinação de impedir que algo semelhante voltasse a ocorrer.
A gafe de Reagan é irônica, pois já existia uma campanha de dezenove anos do senador William Proxmire, que discursou 3.211 vezes no
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CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
Congresso – uma por dia –, defendendo a assinatura da convenção.
Mas o resultado de os EUA a terem assinado foi decepcionante:
“Longe de aumentar a probabilidade de os Estados Unidos fazerem
mais para impedir o genocídio, a ratificação pareceu apenas tornar as
autoridades mais cautelosas no uso do termo.” (:203). Além disso, os
EUA impuseram diversas restrições à convenção, tornando sua assinatura praticamente um gesto simbólico.
A resistência em agir ocorreu novamente quando o Iraque massacrou
sua população curda, mas então Saddam Hussein era um aliado ocidental contra o Irã – medidas contra Saddam só foram tomadas após
sua derrota na invasão do Kuwait, quando a ONU estabeleceu um enclave curdo no norte do Iraque.
Contudo, os meios de comunicação documentaram fartamente o ataque químico à cidade curda de Halabja. E as ONGs de direitos humanos fundadas nos anos 1970, como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional, atuaram pela primeira vez no combate ao genocídio, levantando informações, chamando a atenção da opinião pública
e até mesmo conduzindo sua própria investigação, recolhendo dados
que nem mesmo os governos tinham disponíveis.
As Crises nos Bálcãs
As guerras civis na Iugoslávia foram um caso à parte de genocídio – a
falta de ação inicial da União Européia e dos EUA acabou se transformando em uma intervenção militar, após pressão da imprensa e de
grupos políticos. Em casos como este, às vezes a motivação é pessoal: o senador republicano Bob Dole teve a vida salva na juventude por
um médico armênio, sobrevivente do genocídio cometido pelos turcos, e tornou-se um importante defensor da atuação norte-americana
na Bósnia. Seu principal assessor diplomático, Mira Baratta, resumiu bem a influência da experiência em primeira mão: “Uma coisa é
ter uma inclinação natural para preocupar-se com os direitos huma497
Resenha
nos, mas outra bem diferente é ver pessoas que só desejam acenar
para americanos serem espancadas diante dos nossos olhos. Depois
de ver isso, não se pode virar as costas.” (:297).
As crises nos Bálcãs também provocaram reações dentro do Departamento de Estado, com diplomatas se demitindo em protesto perante a passividade norte-americana, no que foi provavelmente a tensão
institucional mais séria desde o Vietnã. Houve ainda o fator CNN,
como admitiu um funcionário: “Nossa intenção era avançar um passo, mas os noticiários avançaram dois” (:317).
Nada disso, evidentemente, foi feito sem inúmeras tensões, hesitações e erros trágicos. O maior deles foi o fracasso em defender as áreas de segurança criadas pela ONU para os bósnios, freqüentemente
invadidas pelos sérvios. No caso mais sangrento, em Srebrenica,
mais de 7 mil pessoas foram assassinadas, o pior massacre na Europa
desde a Segunda Guerra Mundial. O paralelo com o Holocausto chocou o Velho Mundo: cinqüenta anos depois de Auschwitz, os campos
de concentração estavam de volta.
A dificuldade da comunidade internacional em reagir provocou declarações exaltadas de muitos políticos norte-americanos. Além do
republicano Bob Dole, o democrata Joseph Biden questionou a retórica do seu correligionário Bill Clinton: “Conforme definida por essa
geração de líderes, segurança coletiva significa dar um jeito de culpar
uns aos outros pela inação, de maneira que todos tenham uma desculpa. Não significa enfrentarem juntos; significa esconderem-se juntos.” (:349).
A Bósnia ensinou aos EUA as dificuldades de se operar na região e
enfrentar o governo sérvio. Quando o presidente iugoslavo Milosevic começou a perseguir sua minoria albanesa em Kosovo, Clinton
reagiu com a decisão inédita de atuar para prevenir o genocídio (e o
alastramento do conflito para países vizinhos, como Grécia, Albânia
498
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
e Macedônia), levando ao bombardeio da Sérvia pela Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A Tragédia de Ruanda
Todavia, a Iugoslávia, com todas as suas tragédias, ficava na Europa –
foco principal da atenção internacional. Em Ruanda, perdida na África
Central, o interesse da imprensa foi pequeno e o genocídio que lá ocorreu em 1994 pode ter matado até 800 mil pessoas, em menos de um
ano. Os crimes executados pelos governantes hútus contra a minoria
tutsi aconteceram em um país sem recursos naturais importantes,
abandonado à própria sorte. A missão de paz da ONU presente em Ruanda chegou a ser quase completamente evacuada, para desespero de
seu comandante, o general canadense Roméo Dallaire, que ao pedir
reforços ouviu de um funcionário das Nações Unidas que aquela organização “não era a OTAN” e se encontrava incapaz de ajudá-lo.
Dallaire reconheceu a importância de mobilizar a opinião pública,
afirmando que “um repórter comunicando-se com o Ocidente valia
um batalhão em campo” (:406). De fato, na Bósnia, até mesmo uma
foto – como a imagem de uma jovem de 20 anos enforcada em uma
árvore, após se suicidar – podia fazer a diferença. Em Ruanda, nada
disso existia. O genocídio só foi detido pela ação de um grupo militar
rebelde, a Frente Patriótica Ruandesa.
O general voltou de sua missão com sérios problemas psicológicos;
hoje, vive à base de tranqüilizantes e foi dispensado do Exército canadense: “Minha alma está em Ruanda. Nunca voltou, e não sei se algum dia voltará” (:443).
Ironicamente, o caso de Ruanda voltou a ser debatido recentemente,
por causa de um filme baseado na história verídica de um gerente de
hotel em Kigali que salvou diversas pessoas de serem assassinadas.
Se Ruanda não conseguiu ganhar as manchetes da seção internacional, talvez consiga melhor sorte nas páginas de cinema.
499
Resenha
No Banco dos Réus
A trágica experiência dos anos 1990 resultou na criação de tribunais
para lidar com os crimes de genocídio em diversos países. Power analisa o andamento das investigações, ressaltando o retorno do interesse
pelo trabalho do pioneiro Raphael Lemkin e o destaque obtido pelo
Tribunal de Haia, encarregado dos julgamentos nos Bálcãs. O réu mais
conhecido é o próprio ex-presidente Milosevic, entregue pela Sérvia
após ser derrubado do poder por uma insurreição popular.
Contudo, os tribunais ainda estão longe de se consolidar. Em muitos
casos, enfrentam problemas de infra-estrutura, pouca transparência
democrática, dificuldades de comunicação com os países que supostamente protegem e assim por diante.
A autora observa, por exemplo, a resistência de países como EUA e
China em aderir ao recém-criado Tribunal Penal Internacional, cuja
atuação poderia ser um freio, ou ao menos um sinal de alerta, avisando a possíveis genocidas que seus atos seriam julgados pela comunidade internacional.
O livro de Samantha Power tornou-se uma das principais referências
sobre o tema do genocídio, rendendo à autora o prêmio Pulitzer de
2003 e o título de uma das cem pessoas mais influentes do mundo,
concedido pela revista Time. Seu estudo mostra que, embora os Estados sejam relutantes em agir durante crises humanitárias, podem ser
levados a isso em decorrência da pressão da opinião pública, incluindo aí imprensa e ONGs capazes de tornar os massacres parte da agenda política doméstica.
Power mantém-se um tanto cética quanto à idéia de estarmos em uma
era menos propensa aos genocídios, ressaltando que na década de
1990 já existia uma série de fatores que supostamente poderiam impedir esse crime, como a atuação de ONGs internacionais de direitos
humanos, a difusão de meios de comunicação em massa em escala
500
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
global e mesmo a expansão da democracia para regiões anteriormente marcadas por governos autoritários.
Aos leitores brasileiros, fica a frustração pela ausência de uma análise sobre a questão do Timor Leste, onde a população de fala portuguesa e religião católica sofreu genocídio durante a ocupação indonésia. A falta é ainda mais sentida por Power estar escrevendo uma
biografia de Sérgio Vieira de Mello, cuja carreira como funcionário
na ONU o levou diversas vezes a atuar em cenários de genocídio ou
reconstrução pós-conflito – como no Camboja, em Kosovo e como
administrador do Timor Leste.
Também seria interessante um exame mais detalhado do papel que as
organizações regionais podem desempenhar na prevenção e no combate ao genocídio. Todos os casos analisados no livro foram crises
que tiveram impacto direto nos países vizinhos, em geral pelo êxodo
de refugiados. É de se esperar que articulações regionais fossem capazes de agir de modo mais decisivo do que as Nações Unidas.
Infelizmente, no início do século XXI permanecem as mesmas tendências assustadoras do conflito étnico e do genocídio, como se evidencia em Darfur, no Sudão – um crime que ocorre longe dos olhos
ocidentais, focados nas crises do Oriente Médio. Como afirma a autora, cada ato de agressão não punido é um incentivo a futuros criminosos. O próprio Hitler, ao planejar o Holocausto, perguntou a seus
generais: “Quem hoje em dia fala dos armênios?”.
Notas
1. O termo “palavra g” é usado como uma maneira de se referir ao genocídio.
A expressão ironiza o medo que os governos têm de reconhecer que há um genocídio em curso.
501
Resenha
Le Conseil de Sécurité dans
l’après 11 Septembre*
Serge Sur. Paris, LGDJ, 2004, 162 páginas.
Tarcisio Corrêa de Brito**
Principal órgão de uma organização quase sexagenária, o Conselho
de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU), ao
longo de décadas, sobreviveu às contradições e às tensões decorrentes de sua atuação, entre ambigüidades, fragilidade e sucesso. De um
ponto de vista mais amplo, inserida sua ação na perspectiva do sistema de segurança coletiva, temas como o direito natural de legítima
defesa (artigo 51 da Carta da ONU), a responsabilidade principal do
CS em matéria de paz e segurança internacionais (artigo 24, capítulo
VII) e os limites e condições de controle de determinadas “situações” internacionais encontram-se, hoje, política, militar e midiaticamente na ordem do dia da diplomacia multilateral. A eficácia desse sistema que repousa tanto sobre a fragmentação (sistemas de
* Resenha recebida em julho e aceita para publicação em setembro de 2005.
** Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; mestre em Relações Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade Panthéon-Assas, Paris; doutorando em Direito Público, com especialidade em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade Panthéon-Assas; e juiz do Trabalho substituto do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região, Minas
Gerais.
CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 479-491.
479
Resenha
equilíbrio) quanto sobre a aglomeração (sistemas de dominação) somente será atingida a partir da realização de duas séries de objetivos
complementares: preventivo ou dissuasivo, de um lado, e corretivo
ou coercitivo do outro.
Conhecido pesquisador das questões relativas à paz e à segurança internacionais, o professor Serge Sur transita, com maestria, entre os
temas contemporâneos do direito internacional público e das relações internacionais, sendo hoje, reconhecidamente, um dos maiores
especialistas na área, em língua francesa. Sua mais recente obra, “Le
Conseil de Sécurité dans l’après 11 Septembre”, inserida no contexto
de continuidade de suas reflexões no domínio das relações internacionais, oferece uma abordagem dinâmica do CS, convidando à reflexão e ao diálogo, em três perspectivas complementares: visão de longe (problemas permanentes em síntese), visão de perto (problemas
existenciais, considerando suas principais crises no pós-11 de Setembro e as reações subseqüentes) e visão em movimento (dinâmica
e perspectivas da evolução e reforma do CS).
Sur considera que, visto de longe, o CS pode ser apreendido tanto a
1
partir da análise da ação dos membros permanentes (P5) , os “mestres do sistema”, quanto da perspectiva do alcance e dos limites do
exercício do direito natural de legítima defesa previsto no artigo 51
da Carta da ONU. Na primeira perspectiva, torna-se evidente que as
deficiências estruturais do órgão se encontram calcadas na existência
do direito de veto de ordem constitucional. Do ponto de vista material, este direito, ainda que considerado em sua “lógica de fusível”,
funciona como um instrumento de discriminação legal entre os Estados-membros, contraditoriamente reconhecido no seio de uma organização fundada sobre o princípio da igualdade soberana de seus
membros (artigo segundo, parágrafo primeiro da Carta). Do ponto de
vista procedimental, a atuação dos membros do P5 acaba por criar
um “efeito de meio” imposto a cada membro do CS, uma lógica de
diplomacia multilateral, mesclando igualmente individualismo e co480
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
legiado, igualdade e hierarquia. Assim, no que diz respeito à composição do CS, prevalece a lógica de eficácia sobre a lógica de representação: a primeira identifica-se com o poder efetivo de contribuição político-militar de cada membro permanente (capacidade efetiva
de decisão e de ação); a segunda, com os membros não-permanentes
e o papel significativo a eles atribuído na composição de interesses
no caso de divergências no plano de decisão entre os membros do P5,
desde que não exercido, de maneira afirmativa, o direito de veto.
Superando essa aparente contradição inicial que privilegia a ação hegemônica do P5 em detrimento da igualdade formal entre os Estados-membros da ONU, Sur afirma, na segunda perspectiva, que a
discricionariedade e a arbitrariedade da atuação do Conselho é reconhecida no capítulo VII da Carta (que trata da ação em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e atos de agressão), além de sua lógica política e hegemonia coletiva, baseadas mais nos interesses vitais do que
em uma consideração objetiva da paz e da segurança internacionais.
É, pois, esse aspecto que permite ao CS adaptar-se de maneira flexível à evolução dos problemas de segurança internacional, tais como
os conflitos regionais de caráter internacional, o hiperterrorismo e a
proliferação de armas de destruição massiva, o que explica por que se
preferiu criar um órgão político em vez de dotá-lo de uma natureza
judiciária ou de submeter suas decisões a tal controle.
Quanto à possibilidade desse controle, a resistência de Sur é infundada, por algumas razões. Primeiramente, é importante observar que a
Corte Internacional de Justiça (CIJ) é um elemento do sistema para a
manutenção da paz estabelecido pela Carta da ONU, constituindo o
órgão judiciário principal do sistema onusiano. É inegável, ainda,
que a própria Carta distingue as competências conferidas ao CS e à
Corte no que diz respeito às questões relativas ao uso da força nas relações internacionais e da legítima defesa, explicitadas pela CIJ em
vários casos por ela julgados: Companhia de Petróleo
Anglo-Iraniana (1952); Plataforma Continental do Mar Egeu
481
Resenha
(1978); pessoal diplomático e consular dos Estados Unidos em Teerã
(1980); atividades militares e paramilitares em Nicarágua (1984) ; e
questões de interpretação e de aplicação da Convenção de Montreal
de 1971 resultantes do incidente aéreo de Lockerbie (1992). Argumentativamente, a Corte estabeleceu que, embora as questões sejam
submetidas ao CS, nada impede que a CIJ tome conhecimento delas,
podendo os dois procedimentos – político e judicial – serem conduzidos paralelamente, situação, por certo, diferente daquela prevista no
artigo 12 da Carta.
Em segundo lugar, contrariamente à interpretação de Sur, a responsabilidade principal reconhecida pela Carta ao CS nos moldes de seu
artigo 24 não significa exclusividade quanto ao sujeito da manutenção da paz e da segurança internacionais, consagrando-se a idéia do
“paralelismo funcional” (artigo 36, parágrafo terceiro da Carta). Isso
demonstra, ainda, que o argumento da importância política do conflito, avatar moderno dos interesses de poder, não tem conseqüência jurídica e não constitui obstáculo ao exercício de jurisdição da Corte.
Afinal, a política judiciária desta é inspirada nas exigências de manutenção da paz. Inegavelmente, contudo, a utilização desse meio continuará sendo da livre escolha que emana da política jurídica exterior
dos Estados envolvidos. O que está em jogo não é uma análise de legitimidade, mas de ilicitude com relação ao descumprimento das
obrigações oriundas da própria Carta, por eventual decisão do Conselho.
Isso não significa que se defenda a possibilidade de revisão de decisões do CS, visto que a posição da Corte, nesse tema, já é conhecida
desde a decisão no Aviso Consultivo “Conseqüências jurídicas para
2
os Estados da presença contínua da África do Sul na Namíbia” . Por
certo, e reproduzindo a argumentação dessa sentença, se inexiste previsão na Carta e no estatuto da CIJ autorizando a revisão judicial, a
mesma não é possível, não podendo valer-se o intérprete, para tanto,
da “teoria das competências implícitas”, distinguindo-se, pois, a na482
CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005
Resenha
tureza política do Conselho e judicial da Corte. Contudo, com base
em suas funções, a Corte pode não se intimidar a se pronunciar pela
conformidade dos atos do Conselho com a Carta, tanto no caso da jurisdição contenciosa quanto dos avisos consultivos, o controle político sendo exercido pelos próprios Estados-membros a partir de uma
técnica de contra-poderes.
Visto de perto, Sur analisa o CS na linha de continuidade e/ou de ruptura da lógica de sua ação em quatro momentos paradigmáticos: a) da
crise de Cuba de 1962 ao fracasso das operações de paz na África, no
início dos anos 1990; b) a questão do Kosovo em 1999; c) o pós-11 de
Setembro de 2001; d) a segunda guerra dos Estados Unidos contra o
Iraque em 2003.
Se o período que vai de 1960 ao início de 1990 é marcado, grosso
modo, pelo confronto ideológico leste-oeste, dissuasão nuclear,
arms control, primeira guerra do Iraque e relativo fracasso de algumas operações de paz na África (Somália, Serra Leoa, Libéria, Ruanda, República Democrática do Congo e Costa do Marfim), a solução
encontrada no âmbito do Conselho para “resolver” os conflitos no
Kosovo marcará uma antecipação das vicissitudes vivenciadas pelo
CS nos anos posteriores. Isso fica claro com a aprovação da Resolução 1.244 da ONU (1999) e com a atuação das forças da Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da União Européia como
concorrentes do Conselho na questão da paz e da segurança internacionais no Kosovo.
Já o tema do terrorismo internacional, embora não fosse inédito no
seio do CS, ganhará novo enquadramento após os atentados de 11 de
Setembro em Nova Iorque, com a aprovação das resoluções 1.368
(2001) e 1. 373 (2001), tema central da obra de Sur. A primeira resolução considera o caso como questão de segurança internacional,
qualificando-o, com base no artigo 39 da Carta, como uma agressão
armada (mesmo que não se identificasse a ação direta ou indireta de
483
Resenha
um Estado) e reconhecendo aos Estados Unidos o exercício do direito natural de legítima defesa, sem limitar, quanto à sua natureza e sua
intensidade, a reação militar americana. Mas é Sur quem observa
que, na condução da intervenção coercitiva propriamente dita, a ação
é realizada sob “autorização” do CS e não sob sua “autoridade”, o
que evidencia a sua efetiva “perda de responsabilidade” nessa gestão
da crise internacional.
Por outro lado, com a resolução 1.373 (2001), estabeleceu-se um verdadeiro programa de prevenção e de luta contra o terrorismo internacional, com um inegável poder normativo de natureza não legislativa. Seu texto comporta um programa amplo e obrigatório de cooperação para os Estados-membros e organizações internacionais, de
caráter civil, penal, policial e financeiro. Assim, seguindo-se uma lógica contínua de enquadramento jurídico, a resolução 1.368 (que situa a ação americana nos moldes da Carta) fundamenta a 1.373 (que
situa o Conselho no centro da ação jurídica), ainda que elas sejam
dissociadas em seus meios e técnicas de aplicação. Nesse caso, o que
se evidencia é que o artigo 51 da Carta acaba por exceder a competência do CS prevista no capítulo VII da mesma, constituindo a legítima
defesa uma modalidade particular de segurança coletiva, superior às
demais disposições da Carta.
Nessa linha de argumentação, o autor considera, ainda que de maneira não explícita, que esse “enquadramento” condicionou todas as
ações internacionais subseqüentes quanto ao tema da paz e segurança (coletiva) internacionais, podendo-se citar, por exemplo, as resoluções 1.526 (2004), 1.530 (2004), 1.535 (2004) e 1.566 (2004). Pode-se dizer, contudo, que, com a resolução 1.530 (2004), o CS, condenando os atentados terroristas perpetrados em Madri no dia 11 de
março de 2004, de maneira apressada e equivocada, mas na mesma
lógica das resoluções que identificaram o Talibã e a Al Qaeda como
grupos terroristas, errou ao apontar o grupo radical basco ETA como
o principal responsável pelos atentados, constatação que se provou
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falsa a posteriori. Nota-se, portanto, os riscos dessa interpretação do
artigo 51 e da possibilidade política de generalizar, flexibilizando ao
máximo e descontroladamente, a identificação de determinados grupos terroristas. Em outra perspectiva, o reconhecimento pela Espanha da competência universal de sua jurisdição para crimes contra a
humanidade e o início do julgamento de alguns dos implicados no
atentado demonstraram a importância reconhecida por esse país europeu a esse modo pacífico de solução de controvérsias.
Por outro lado, a administração da crise iraquiana pelo CS, entre os
conflitos de 1991 e 2003, demonstrou a evolução dessa “situação” regional que, segundo Serge Sur, não se fundamenta exclusivamente
na continuidade das resoluções motivadas pelos atentados de 11 de
setembro de 2001, a não ser pela inclusão do Iraque no denominado
“eixo do mal”. Relembre-se, por exemplo, a resolução 1.441 (2002),
que organizou um novo processo de inspeções coercitivas com o objetivo de realizar o desarmamento iraquiano e assegurar a eficácia
dos mecanismos de verificação do sistema onusiano. O debate público internacional decorrente disso se dividiu entre a posição americana (sistema de verificação negativa), com apoio britânico e de outros
países europeus, que pretendia o emprego imediato da força armada,
e a posição franco-germânica, que não recusava totalmente o recurso
à guerra, mas subordinava-o, como ultima ratio, a uma decisão do
Conselho se comprovada “flagrante” a violação pelo Iraque de suas
obrigações internacionais (sistema de verificação positiva).
Apesar de a ação unilateral americana, que se seguiu, parecer desprezar a responsabilidade principal do Conselho em matéria de paz e segurança internacionais, Sur afirma que não se contestou o fato de
esse órgão agir (otimização restritiva) na “organização” da luta internacional contra o terrorismo. O novo dado que surge nesse contexto é
o da “guerra preventiva” ou “guerra por escolha ou por necessidade”,
que modifica, de certa maneira, a amplitude do recurso pretendido à
força. Se for apreendida institucionalmente, a resolução 1.483
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Resenha
3
(2003) consagrará a criação de uma autoridade de ocupação – principal responsável pela promoção do bem-estar da população iraquiana, assegurando uma administração eficaz do território e contribuindo ainda para restabelecer a segurança e a estabilidade, além de criar
condições de reconstrução futura do Iraque – e de um representante
especial do secretário-geral da ONU. Isso evidencia que, no conjunto
dos processos de reconstrução e de reconstituição de uma autoridade
política iraquiana, a atuação do CS não é nem residual, nem subalterna, ainda que permaneça, também em matéria de desarmamento, virtual.
Para além da análise de Sur, no que diz respeito à situação precária do
Iraque, passadas as eleições gerais do início de 2005, permanece evidente a dificuldade de administração da crise interna iraquiana pela
coalizão internacional e pela própria ONU, não se podendo esquecer
ainda do atentado que vitimou, em 2004, o primeiro representante especial no Iraque, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Esse
contexto de instabilidade interna (atentados e seqüestros de estrangeiros) desafia uma nova reflexão sobre os limites e conseqüências
do exercício do direito natural de legítima defesa (sua extensão “política” a conflitos em outras regiões, como, por exemplo, no caso da
Rússia, Palestina, Afeganistão e da ação contra os “rogue states” –
Coréia do Norte, Síria e Irã –, integrantes do “eixo do mal”) e da prevalência da defesa de “interesses vitais” (realismo estratégico) contra a implementação das obrigações convencionais internacionais
em vigor.
Vista em movimento, quanto às dinâmicas e perspectivas futuras do
CS, segundo Serge Sur, a discussão organiza-se em quatro itens: (I) a
continuação das ações ordinárias desse órgão no que diz respeito à
renovação e à ampliação das operações de paz; (II) os vínculos entre
as instituições internacionais nos domínios da segurança, entre a cooperação e a concorrência; (III) a pretendida reforma do Conselho; e
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(IV) a conservação, pelo CS, e para o futuro, de suas capacidades e
virtualidades.
Se é possível mencionar a existência de “gerações” de operações de
manutenção da paz fundadas nos capítulos VI e VII da Carta, por outro lado, na perspectiva de uma cooperação/concorrência na ação do
Conselho com outros órgãos da ONU ou organizações internacionais, o especialista francês aponta o precedente histórico da Resolução
Acheson de 1950 perante a Assembléia Geral da ONU; a exclusão do
exercício do direito de veto nos limites propostos no Relatório
Evans-Sahnoun de 2001; a possibilidade discutível de controle jurisdicional dos atos do Conselho pela Corte Internacional de Justiça e
mesmo a influência das organizações não-governamentais (ONGs)
no estabelecimento da Corte Penal Internacional. Como alternativas
a essa concorrência, discute-se o papel da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN) como novo instrumento institucional de segurança internacional; o G7/8 como instância de “concertação internacional”; e a Organização para Segurança e Cooperação na Europa
(OSCE) como idéia de uma “segurança cooperativa” herdada da
Conferência de Segurança e Cooperação na Europa (CSCE). Importa ainda relembrar a competência do Conselho em criar, como órgãos
de cooperação na manutenção e/ou restabelecimento (prevenção/coerção) da paz internacional, os tribunais penais ad hoc e especiais no
caso de violações ao direito humanitário internacional, verdadeiro
princípio/regra de jus cogens (ordem penal internacional e competência penal universal).
Em princípio, é inegável a flexibilidade do Conselho em criar tribunais internacionais ad hoc, baseando-se em uma lógica não de paz
pelo direito, mas de considerações de ordem política, segundo a
apreciação e discricionariedade que são próprias ao Conselho. Serge
Sur poderia, pois, completar sua análise acrescentando que a criação
desses tribunais representa o fracasso do sistema de segurança coletiva, o que significa que tanto o mecanismo dissuasivo não funcionou
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Resenha
quanto, no mais, o próprio Conselho não conseguiu impedir ou prevenir os comportamentos individuais ou coletivos “tipificados”
como (1) crime contra a paz, (2) de genocídio, (3) contra a humanidade ou (4) crime de guerra. Revitaliza-se, assim, a teoria da responsabilidade individual originária dos tribunais militares de Tokyo e de
Nuremberg de 1945 e 1946.
Contudo, nota-se que o próprio CS não tem conseguido, embora sua
natureza assim o impusesse, a cooperação dos Estados no caso dos
tribunais penais internacionais ad hoc, o que tem retardado os trabalhos, da fase de inquérito e de entrega dos acusados a essas jurisdições internacionais (impossibilidade de julgamento por contumácia)
à finalização do procedimento e decisão final, após recurso. As sucessivas resoluções sobre esse tema demonstram que um compromisso internacional efetivo ainda não foi encontrado. A própria evolução e desenvolvimento desses tribunais penais ad hoc para a
ex-Iugoslávia e para Ruanda, quando analisados de perto, demonstram a sua precariedade institucional, que representará um desafio,
inclusive, para a Corte Penal Internacional, diante da posição americana, respaldada pelo próprio Conselho, e da possibilidade de criação de outros tribunais ad hoc concorrentes para situações especiais,
a critério do mesmo.
No que diz respeito à reforma do Conselho, o que se encontra em
jogo, segundo Sur, é o “espírito” mesmo da instituição, por ser inexeqüível o concerto político que prevalece apenas em um contexto de
paz estrutural. Para o autor, uma reforma calcada no estabelecimento
de um “regionalismo de descentralização” incluiria: fazer o exercício do veto preceder de um “concerto regional” ou de outro processo
de decisão formal; substituí-lo pela técnica do consenso, relativizando o exercício desse direito em decorrência da ampliação do número
de membros permanentes. Na verdade, tais proposições contornam a
“lógica de eqüidade” que emana dessa reforma, contrária e incompatível com a natureza desse órgão. Outra proposta a ser considerada é:
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a criação de conselhos de segurança regionais ou de outro(s) órgão(s)
ad hoc de natureza consultiva, mantendo-se, porém, a competência
de decisão do CS. Esse procedimento poderia, pois, atualizar de maneira menos radical a composição do Conselho, sem representar, na
base, um processo de fragmentação ou de desmembramento do órgão.
Atualmente, a discussão da reforma do Conselho com a inclusão do
G4 (Brasil, Alemanha, Japão e Índia) sofre resistências regionais por
parte da Argentina, Colômbia, Nicarágua, México, Venezuela, Itália,
China e Paquistão, com base na acusação de que os países do G4 não
representam legitimamente as correspondentes regiões (América,
Europa e Ásia). Os países do G4 enfrentam ainda a falta de apoio do
continente africano, que procura apresentar candidatos próprios entre Egito, Nigéria, África do Sul, Argélia, Quênia e Senegal. Recentemente, ainda em junho de 2005, a ação diplomática do G4 incluiu
até mesmo a tentativa de submeter uma proposta ao Conselho de Segurança de renúncia por quinze anos do exercício do direito de veto,
propondo a ampliação do número de membros permanentes do CS
de cinco para onze.
Nesse contexto, por exemplo, o Brasil mobilizou-se quando do comando da Força criada no âmbito da Missão das Nações Unidas para
a Estabilização no Haiti (Minustah), instituída pela resolução
S/RES/1542/2004 (que substituiu a Força Multinacional Interina estabelecida pela resolução S/RES/1529/2004), prorrogada até junho
de 2005. Recentemente, a decisão de enviar militares norte-americanos para a estabilização do Haiti reforçou a acusação de
falta de profissionalismo e de coesão do comando do general brasileiro Augusto Heleno Ribeiro Pereira (substituído pelo General Urano Bacellar), o que compromete a “publicidade eleitoral” em torno
dessa operação, que representa o maior contingente enviado ao exterior pelo Brasil desde a Segunda Guerra Mundial.
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Sur afirma que o CS não pretende ser um espaço de representação,
mas de eficácia. Com isso, a contestável atuação da força internacional comandada pelo Brasil no Haiti, dentro, ainda, do contexto de
fracasso generalizado das operações de paz onusianas no continente
africano, torna discutível a reforma apressada e não refletida sobre a
composição dos membros permanentes do CS. Ainda que os Estados
que integram o P5 representem a lógica do pós-Segunda Guerra
Mundial, dificilmente se encontrará, para o respeito à eficácia de
suas decisões, uma “nova” composição que faça coabitar a legitimidade decorrente de maior representação e a eficácia decorrente do
poder de mobilização para as situações que violem a paz e a segurança internacionais. O livro de Sur, por outro lado, tem o mérito de demonstrar que, mesmo a hiperpotência norte-americana, contra a qual
parece inexistir recurso, não prescinde das instâncias multilaterais e
do Conselho de Segurança enquanto instrumentos de legitimação,
pois esta não se fundamenta única e exclusivamente no seu exercício
individual de poder.
Por esse motivo, e conclusivamente, Serge Sur constata que o CS se
torna um instrumento complexo e sutil de cooperação entre as grandes potências e uma “câmara de eco” para os pequenos países. É um
catalisador, fonte de legitimidade internacional e não um mero instrumento de hegemonia de um único Estado. Por outro lado, esse órgão da ONU tem a necessidade de ser alimentado por fontes exteriores, principalmente pelos Estados. Criado em um momento de urgência, alterna hoje, instrumentalmente, a necessidade de correção de
(novas) situações e a adoção de medidas repressivas, ainda que precárias do ponto de vista de sua atuação operacional, baseada, sobretudo, em uma lógica de eficácia.
A obra de Serge Sur representa, pois, de maneira inegável, um instrumento de consulta e de reflexão fundamental na apreensão do tema
central da paz e da segurança nas relações internacionais contemporâneas.
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Notas
1. República da China, França, Rússia, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e Estados Unidos da América.
2. CIJ – Corte Internacional de Justiça. (1971), Aviso Consultivo, 21 de junho.
Recueil, pp. 16 e ss.
3. Representantes permanentes do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do
Norte e dos Estados Unidos da América enquanto potências ocupantes agindo
sob comando unificado, em virtude do direito internacional aplicado.
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Autores
Ana Cristina Araújo Alves mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações
Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio,2005) e
professora da graduação em Relações Internacionais do IRI/PUC-Rio.
Andrés Malamud PhD em Ciência Política e Ciências Sociais pelo European University Institute,
em Florence. Atualmente, ocupa o cargo de pesquisador-assistente no Centro de Investigação e
Estudos de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa. É
também professor assistente de Ciência Política na Universidade de Buenos Aires. Suas áreas de
interesse são política latino-americana e européia, integração regional, partidos políticos e
comparação das instituições democráticas.
Gustavo Seignemartin de Carvalho mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de
Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).
Luis Fernando Ayerbe doutor em História pela Universidade de São Paulo(USP)e livre docente pela
Universidade Estadual Paulista(Unesp).Atualmente, é professor do Departamento de Economia da
Unesp, campus de Araraquara,e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da
Unesp,Unicamp e PUC-SP.
Luís de Sousa PhD em Ciência Política e Ciências Sociais pelo European University Institute,
Florence. Atualmente, ocupa o cargos de pesquisador no Programa de Ciência Política no Research
School of Social Sciences of the Australian National University e de pesquisador assistente no
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa, em Lisboa.Suas áreas de interesse são política européia, parlamentos regionais, partidos
políticos,corrupção partidária e regulação política.
Marcelo Valença mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).
Marco Antonio de Meneses Silva mestre em Relações Internacionais pela University of Kent at
Canterbury. Atualmente, é professor no Centro Universitário de Brasília e coordenador do curso de
Relações Internacionais.
Maurício Santoro doutorando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro (Iuperj), pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (I B A S
E) e professor da pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Candido Mendes.
Tarcisio Corrêa de Brito mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas
Gerais;mestre em Relações Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade Panthé onAssas, Paris; doutorando em Direito Público, com especialidade em Direito Internacional na
Faculdade de Direito da Universidade Panthé on-Assas; e juiz substituto do Trabalho do Tribunal
Regional do Trabalho da Terceira Região desde outubro de 1998.
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Teoria Crítica em Relações Internacionais*