Ouvir, cantar e falar: algumas questões em torno da comunicação na zona
da mata pernambucana
Simone Silva1
RESUMO
Esta comunicação visa a apresentar as questões acerca do processo de
construção da sociabilidade na mesorregião da mata pernambucana. A
partir do lugar das pessoas no contexto poético da cantoria de pé-de-parede,
trabalhamos com a concepção e questões nativas de casa, buscando
assinalar as especificidades quanto às formas de construção e de
manutenção de relações sociais e, por conseguinte, da alteridade doméstica.
De forma complementar, procuramos compreender e explicar o lugar da
poesia na vida das pessoas, por meio de uma análise acerca da função
poética na comunicação verbal da região. Refletindo sobre a importância da
forma versificada para comunicar, expressar, convencer, etc., na arte verbal
nativa, levantamos questões sobre a proeminência da audição no processo
de construção e significação do espaço. Identificamos a partir da ideia de
função emotiva da linguagem, que os versos poéticos, devido a
ambiguidade de seus recursos estruturantes, em muitas situações, podem
neutralizar o conflito, sem coibir a emissão da mensagem ou o debate.
Palavras-chaves: sociabilidades, função poética, comunicação.
1
Professora Adjunta no departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense.
[email protected]
1
1. POESIA E SOCIABILIDADE NO CONTEXTO RITUAL
O que o canavial sim ensina ao mar:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos
(João Cabral de Melo Neto,1999)
Desde o início da pesquisa, a minha abordagem sobre a cantoria de viola na zona
da mata pernambucana tem recaído preferencialmente sobre a análise de seu ritual: o
pé-de-parede2. Tenho buscado refletir sobre os sentidos produzidos nesse espaço, a sua
relação com a dinâmica social da região e na compreensão desse evento enquanto um
espaço constituído por dinâmicas de sociabilidades de naturezas distintas (política,
familiar, religiosa, econômica, etc.). Desse modo, do conjunto de elementos envolvidos
na comunicação verbal, quais sejam (JAKOBSON, 2001: 179):
2
A cantoria de pé-de-parede, na zona da mata de Pernambuco, é uma reunião organizada em
casa ou em um bar por um chefe de família ou pelo dono do estabelecimento comercial para
ouvir versos poéticos, improvisados por uma dupla de cantadores. O pé-de-parede, assim
chamado pelo fato de a dupla cantar rente à parede, é realizado aos sábados à noite e aos
domingos à tarde, reunindo amigos, parentes e vizinhos, que são convidados pelo organizador
e/ou pelo cantador responsável pelo evento. A sua realização está atrelada ao calendário agrícola
da região, é dizer, é de agosto a dezembro – época da safra da cana-de-açúcar - que há uma
maior ocorrência de cantoria na região. Hoje em dia, em Pernambuco, a cantoria é propagada
em eventos como o pé-de-parede, em festas da cidade, em eventos privados organizados em
período eleitoral, em programas de rádio e em competição de duplas de cantadores por meio dos
festivais regionais ou estaduais, realizados em grandes palcos em todo o estado. Além disso, a
cantoria se faz presente na vida das pessoas mesmo quando o ambiente não é o da brincadeira
ou da apresentação de cantadores, por exemplo, através dos versos cantados ao longo da jornada
no corte da cana ou no processo do preparo da farinha, nas tarefas de casa através dos
programas de cantoria do rádio, em comemorações de aniversário, nos eventos organizados pelo
sindicato para a reivindicação salarial dos trabalhadores rurais.
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CONTEXTO
REMETENTE
MENSAGEM
DESTINATÁRIO
CONTATO
CÓDIGO
tenho privilegiado o contexto e o contato, em detrimento dos demais fatores. Essa
escolha analítica deveu-se a dois principais motivos: a minha aproximação teórica com
a tradição inglesa de estudos sobre rituais e devido à escassez de trabalhos
antropológicos sobre o tema.
Ao abordar a cantoria de viola por meio de seu ritual, acredito ter contribuído
para a compreensão de algumas questões inerentes às relações sociais desse universo.
Destaco aqui, de forma breve, a problemática à qual tenho dedicado mais atenção e que
tem me parecido mais rentável teoricamente: a análise acerca das dinâmicas de
sociabilidades. O estudo sobre o ritual, ou melhor, acerca das dimensões ritualísticas do
pé-de-parede foi conduzido por meio da discussão teórica sobre sociabilidade. Inspirada
na concepção de Marylin Strathern (2006), em O gênero da dádiva, entendo por
sociabilidade a constituição social e moral do “estar relacionado” (relatedness). A partir
disso, ao examinar a reunião de amigos e familiares para escutar poesia improvisada na
zona da mata de Pernambuco, interessou-me particularmente os seus elementos
distintivos nessa dada forma de construir e manter as relações sociais. Resumindo o
problema em uma breve questão, circunscrevi-o da seguinte forma: o que o “ambiente”
do pé-de-parede me revelaria de forma singular sobre a dinâmica social dessa região?
Qual seria a natureza dessa singularidade em comparação, por exemplo, com os estudos
sobre as relações políticas e econômicas?
Para recuperar as questões acerca da sociabilidade no universo da poesia de
viola, tratarei aqui, a partir dos dados etnográficos, sobre a concepção e as questões
nativas em torno da ideia de casa e, por sua vez, sobre a alteridade doméstica. O pé-deparede é um evento realizado preferencialmente no quintal de uma casa, que na região
em questão, pode ser descrita historicamente a partir de traços como, por exemplo,
3
família, intimidade, subordinação, independência. A partir dela, em primeiro lugar, as
pessoas da região demarcam o que é interno e o que é externo. Na ordem do interno,
agrupam-se todos os elementos em torno do traço de intimidade e da categoria nativa
“trato” (negociação e/ou troca feita entre amigos ou pessoas conhecidas). É a partir da
casa que as pessoas, por exemplo, negociam parcerias de trabalho para a realização de
cantorias, no caso dos poetas, para a formação de mutirões para atividades profissionais
temporárias (confecção de lingeries para o comércio de atacado de Caruaru),
estabelecem trocas em atividades domésticas, no caso das mulheres, negocia-se voto, no
caso de políticos. A casa, na área rural da mata pernambucana, conforme ilustrado
abaixo, é composta por uma sala, uma cozinha que, em muitos casos, é o maior
cômodo, dois quartos, um banheiro (podendo estar dentro ou fora da casa), algumas
vezes uma casa de farinha3 e/ou um bar4, um quintal e uma pequena varanda na parte
dianteira. Os poetas, por exemplo, ao chegarem à casa onde realizarão um pé-de-parede,
são recebidos na cozinha com um jantar, caso o dia em questão seja sábado. Aos
domingos, como o evento é realizado à tarde, a recepção se dá no bar ou na sala.
1.
Planta de uma casa na área rural da mesorregião da mata pernambucana. Dia de cantoria.
3
Local de produção da farinha de mandioca – o produto referência da cesta básica local.
O bar, na zona da mata, é um estabelecimento comercial onde é possível comprar, além de bebidas,
alguns produtos alimentícios, por exemplo, arroz, café, biscoito, bombons, doces, ou ainda, produtos de
limpeza. Há bares menores, ou mesmo desativados, que só funcionam nos finais de semana ou em dia de
brincadeira, que vendem exclusivamente cerveja, refrigerante, aguardente e doces. Na região estudada, a
maioria dos bares está acoplada à estrutura arquitetônica da própria casa do dono do estabelecimento.
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4
Como podemos visualizar, a partir da planta acima, os convidados reúnem-se no
quintal, em dia de cantoria, e lá permanecem ao longo de todo o evento. Não há uma
circulação pelo interior da casa. Em dia comum, as visitas, quando se trata de um
conhecido, são recebidas na sala, ou na cozinha, no caso dos muito íntimos. Ainda que o
bar seja parte da casa, os seus clientes (vizinhos) em dia de pé-de-parede ou em dia
comum, não ultrapassam os seus limites, que em muitas vezes é o espaço da varandinha
dianteira. O bar, desse modo, como parte da casa, é o espaço híbrido e de transição entre
o interior e o exterior. Ele será o elemento, por exemplo, que vai operar para a nãoessencialização das atribuições daquilo que pertence aos domínios de dentro e fora.
Dentro da dimensão interior, por exemplo, pode haver circunstâncias de exteriorização.
Pensando nesses cômodos a partir de modalidades sensoriais, diria que a intimidade
construída nesse espaço da casa está atrelada à audição, pois é na cozinha de conversas
infindáveis e no quintal do pé-de-parede que a rede de sociabilidade se constrói, se
mantém e se reproduz. Então, a casa da zona da mata é o espaço onde, primeiramente,
se ouve. Além disso, é na cozinha onde fica o rádio usado para ouvir notícias e, em
especial, os tão apreciados programas de cantadores. É bem verdade que, nesse ponto,
há uma diferença importante em relação aos homens e as mulheres. A visita, na zona da
mata, pertence ao domínio feminino. Os homens se encontram em bar, ainda que este
seja acoplado à casa do visitado e que ele seja considerado amigo íntimo.
De uma perspectiva relacional, a casa constitui uma unidade distintiva. É ela, por
exemplo, quem marca a diferença entre “trato” e o “contrato”- negociação entre pessoas
com pouca intimidade realizada, em sua maioria, no contexto fora da casa. No caso
específico da casa em dia de cantoria, diria que, antes de comer, é imprescindível ouvir
para afirmar, refazer ou produzir a relação. O alimento, quase sempre essencial nas
dinâmicas de sociabilidades (MACCALLUM, 1998), quando comparado à poesia, nesse
contexto, fica em segundo plano.
Organizar e/ou convidar para uma “brincadeira”5 ocupa uma posição importante no
processo de fabricação da sociabilidade. A população da mesorregião da mata
5
Desde os trabalhos dos folcloristas, a categoria nativa brincadeira vem sendo amplamente resgatada e
proliferada na literatura historiográfica, sociológica e antropológica, entretanto carece ainda de um
minucioso exame para sua melhor compreensão e, sobretudo, das relações que a mesma reifica.
Analisando-a brevemente pelas características circunstanciais da cantoria, diria que o objetivo de sua ação
ritual - refere-se ao ato de reunir amigos e família em uma ação ritual marcada pela improvisação - em
5
pernambucana participa desde criança das várias brincadeiras locais, o que implica no
amplo domínio dos compromissos e expectativas que as engendram. Ainda jovem, por
exemplo, aprende-se que honrar o convite de uma brincadeira é de suma importância.
No entanto, quem, por sua vez, convida, sabe que esse cumprimento está diretamente
condicionado à situação financeira da pessoa no momento em que foi convidada. Todos
sabem também que “sem dinheiro”, tal como me foi dito inúmeras vezes, não tem como
participar bem da cantoria.
O participar bem demanda dinheiro para a compra de cerveja, aguardente,
refrigerantes, às vezes petiscos, pagamento do meio de transporte que, em sua maioria,
ou é um carro fretado ou o serviço de moto-táxi, além do dinheiro ofertado aos
cantadores. Todas essas demandas, com exceção daquelas que têm um preço
previamente estabelecido, como é o caso do frete ou do moto-táxi, tornam-se um meio
de exposição do convidado. Na região, o valor da generosidade está na base da
sociabilidade. Toda essa linguagem em torno da expressão dos valores é facilmente
evidenciada num contexto de cantoria. Ser generoso: “pessoa muito distinta”, “pessoa
excelente”, por exemplo, o que implica em compartilhar, sobretudo, cerveja ou ofertar
cachaça, com os demais de sua mesa, é visto como uma qualidade positiva. Já o
mesquinho, aquele que “bebe, mas não contribui”, ou que não valoriza o cantador, é
altamente reprovado. Dessa maneira, quando o convite é feito, subjacente a ele, tem
uma série de questões em jogo. Por isso, é muito importante avaliar as reais condições
de participação e se, por acaso, a conclusão final for a impossibilidade de honrá-lo,
deve-se dizer o motivo à pessoa que convidou.
Convidado: Oh eu não fui pela situação de dinheiro
Baixinha: Ah mas podia ter ido, não tem problema não. Devia ter ido. Não tinha problema por causa do
dinheiro não.
Convidado: Na próxima eu vou. (Feira Nova, fevereiro de 2007)
muito se assemelha ao dos Mianmin, descrito por Gardener (1983, apud Strathern, 2006): “...os Mianmin
agem num contexto de incerteza quanto ao resultado, o que faz de cada performance também uma
improvisação. Um resultado bem-sucedido pode ser julgado na própria apresentação, mas esta última só
deve ser julgada pelos efeitos subsequentes, nas questões de longo prazo da comunidade.” (Strathern,
2006:265). A alusão à interpretação do ritual melanésio deve-se, sobretudo, pelas características que
marcam essa performance: improvisação e incerteza, que, de forma semelhante, estão na base da
concepção de brincadeira. Não estou pretendendo, com isso, resolver a questão. Ao contrário, estou
sinalizando que, talvez, o caminho para uma teoria geral da brincadeira seja a análise da concepção
nativa de improvisação, que marca as relações, o tempo e o espaço nesse universo.
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Uma vez apresentada a justificativa, todos da vizinhança saberão o motivo da
ausência do convidado. Vale lembrar que nesse contexto é importante estar sob os olhos
dos outros, já que parte dos elementos constituintes de prestígio e de honra emerge
dessa sociabilidade. Em relação ao cantador, ele não deve se mostrar excessivamente
preocupado com a questão do “apurado” (o dinheiro ofertado pelos convidados e pela
família organizadora), porque senão os convidados podem achar que “ele está só pelo
dinheiro”, ou seja, que ele é um “mercenário/interesseiro”. Além disso, ele deve
obedecer ao tempo de desenvolvimento da cantoria, o que implica diretamente no
cumprimento de suas etapas: abertura, elogio e pedidos. Esse tempo não é determinado
por uma cronometragem determinada, mas um tempo sentido no desenrolar da
brincadeira e negociado com aqueles presentes. O cumprimento desses preceitos
implica na relação de confiabilidade que os convidados e o dono da casa terão com o
cantador dono do trato, sem a qual a cantoria é inviabilizada.
Na região, os convites de visita feitos a amigos possuem diferentes sentidos.
Vejamos dois deles: um convite direto ou um recado enviado “para fulano ir a sua
casa”, tratando-se de visita comum, ou “para ir lá, porque vai ter brincadeira”. Em geral,
quando convidam ou mandam recado para alguém fazer a visita, sempre usam o
complemento “quando der ou se puder”. No caso da cantoria, o mesmo não ocorre.
Certa vez, em um pé-de-parede, em Lagoa do Carro, vi a dona da casa dizer para uma
determinada convidada que não convidaria nunca mais uma dada vizinha porque ela
tinha faltado à cantoria. Entretanto, muitas vezes, perguntei por vizinhos ou mesmo
parentes afins, todos considerados íntimos, e eles sempre diziam sem nenhum sinal de
raiva ou animosidade: “Rapaz, fulana faz tempo que não vem aqui! Ela está bem”. O
convite para ir a uma cantoria apresenta mais força do que uma visita corriqueira no
processo de construção da alteridade doméstica.
O empenho empregado para honrar o convite para participar de uma brincadeira
de um familiar ou de um amigo mantém uma rede de relações. Estar nesse espaço, do
ponto de vista do convidado, é a demonstração de que a família organizadora do evento
lhe quer bem. Do ponto de vista dos organizadores, é, em parte, o reconhecimento de
seu prestígio e influência social. Além disso, há um conjunto de deduções implicado na
organização de um pé-de-parede no quintal da casa: a primeira delas tem a ver com um
dado êxito econômico da família organizadora, já que ela é a maior responsável pela
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contribuição dada aos cantadores e pela disponibilização de bebidas e petiscos para
venda; por outro lado, há um reconhecimento dessa família como apreciadora e
conhecedora da linguagem poética. Se o pé-de-parede dessa família é considerado como
“ambiente bom para cantar”, ou seja, se o quintal fica cheio de convidados apreciadores
de poesia, ela também é reverenciada pela sua extensa rede de amigos e familiares. O
contrário, quando a cantoria é classificada como “fraca” tanto pelos cantadores quanto
pelos convidados, configura-se um fator que denota pouco prestígio, pois a sua rede de
amigos é frágil e restrita e pouco interessada em poesia – um traço de distinção na
região.
Essa esfera íntima e interior estabelecida pelo e no ritual poético fica clara quando
abordamos um dos objetos mais importantes da brincadeira: o prato do dinheiro do
cantador. Podendo ser substituído somente por uma bandeja, o prato deve ser forrado
com um pano de prato ou toalha de mesa, receber exclusivamente cédulas e deve
sempre ser colocado sobre um apoio (banqueta, banco, cadeira, etc.), ficando, assim,
longe do chão. Ele só deve ser trazido pela família organizadora, em geral pelo chefe da
casa, próximo do início do ritual. O prato forrado faz com que o dinheiro nele colocado
assuma uma dimensão particular, distanciando-o do ponto de vista da troca puramente.
Podemos dizer que o prato trava uma relação metonímica com a casa, que por um
processo de contiguidade de sentidos entre eles, o dinheiro se revela pessoal. Assim, o
prato forrado, aquele objeto simples e aparentemente utilitário, localizado à frente da
plateia, configura o que há de mais complexo na relação: o fato de que dinheiro e laços
de intimidade operam simultaneamente na construção das relações sociais desse
universo.
2. O OUVIR E O CANTAR: A FUNÇÃO POÉTICA NO PROCESSO DE
COMUNICAÇÃO
“Em poesia, onde a similaridade se superpõe à contiguidade, toda metonímia é
ligeiramente metafórica, e toda metáfora tem uma matriz metonímica.” (Jakobson,
2001)
Propondo um exercício distinto do anterior, porém complementar, pretendo
tratar aqui dos aspectos preponderantes da função poética no processo de comunicação
verbal da zona da mata. A poesia, na área estudada, pode ser entendida como forma de
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conversa coletiva, tendo necessariamente como mediador uma dupla de poetas. Ela é
uma forma de falar de um determinado fato/indivíduo e de seu estado. A habilidade de
improvisar e de jogar com formas linguísticas, além de serem altamente admiráveis,
concedem aos poetas uma legitimidade para tratar de assuntos de natureza diversa,
sendo muitos deles, às vezes, embaraçosos. A abstração nos versos do repente
pernambucano é pouco apreciada; a sua matriz referencial é o contexto. A poesia
tampouco é um meio de intermediação direta de relação amorosa. Em sua função
poética, ao contrário, ela exerce uma função emotiva e expressiva, sobre a qual tenho
interesse de aqui trabalhar.
Certa vez no campo, presenciei uma cena em que risos se sobrepuseram à
tradicional atenção silenciadora do pé-de-parede. O motivo pela excitação deveu-se ao
fato de um dos cantadores ter improvisado jocosamente sobre um dos convidados
presentes: um vizinho do organizador da casa. O senhor em questão, na ocasião com 80
anos, tinha acabado de se casar com uma mulher de 27. Pela reação e comentários das
pessoas da mesa na qual eu estava, ficou explícito que o fato vinha sendo motivo de
comentários, fofocas e boatos. Vejamos abaixo alguns dos versos que, ao final de sua
recitação, suscitaram infinitas gargalhadas.
Inácio Caqueira é um homem muito educado
A esposa foi embora
Ele está separado
Mas para ele como falta
Uma mulher do seu lado
Senhor Inácio é convidado
Para nessa festa ajudar
Se a mulher foi embora
Já tem outra no lugar
Que sabe dá mais carinho
abraçar e mais beijar
Inácio veio namorar
E a sua vontade é tanta
Sua esposa foi embora
ele a ama ...
Que carinho de mulher nova
Qualquer velho levanta
Inácio no meio do povo
Meu amigo está presente
Eu considero Inácio
Um senhor bem competente
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Com uma garota nova
Eita que macho tão quente!
Ela é assanhadinha
E ele não está cansado
Se ontem estava sozinho
Hoje estava acompanhado
A nega tem muito fogo
E já deu um beijo colado
Inácio apaixonado
Eu acho que ele está certo
Ela é liberta de tudo
E ele também é liberto
Que o viagra de Inácio
Hoje está muito perto
(Heleno e Severino Soares)
Percebi que ao cantar o fato, o poeta tinha dado a possibilidade de todos comentarem
publicamente sobre aquele episódio. O gozo estava não só na possibilidade de comentar
livremente, a partir dos versos, mas de expressar a reprovação social sem censura e
conflito. Diferentemente do ginnãwa (little song), descrito por Lila Abu-Lughod (1999),
que é um gênero poético egípcio usado majoritariamente para desopilar o sofrimento, ou
seja, as pessoas cantam quando estão tristes, tornam-se poetas na tristeza, a poesia do
repente não está condicionada a nenhum estado emotivo específico. A sua forma é tão
amplamente disseminada nas dinâmicas sociais locais que vou trata-la aqui por função
poética, tentando avançar na compreensão não mais do referente poesia, mas de seu
lugar na relação entre signo e objeto.
Na zona da mata, a versificação é um recurso utilizado por empresas e outros
estabelecimentos privados, por sindicatos de trabalhadores rurais, em escolas, na
jornada de trabalho para se contar história, no trabalho de casa, pelo governo para se
divulgar alguma campanha ou mesmo lei ou decreto, etc. Certa vez, escutei o relato de
uma pessoa que acompanhou uma enorme reunião, que anos mais tarde, foi considerada
a maior assembleia dos trabalhadores da cana, nos idos dos anos 1960, com base na qual
afirmou que, em meio a burburinhos, vozes e gritos, o silencio culminou do anúncio de
que iam ler um folheto sobre as propostas para a greve. A partir de sua leitura, conforme
me foi descrito, nem o canto dos passarinhos se ouvia mais. Silêncio estarrecedor. No
período de constituição dos sindicatos dos trabalhadores rurais da região, os convites
convocatórios para a participação de trabalhadores, anunciados pela rádio, eram feitos a
partir da métrica poética. Tendo a achar que alguns dos recursos poéticos empregados
10
no repente, por exemplo, a paronomásia e a aliteração, implicam numa aproximação
entre som e sentido, condicionando o discurso a um âmbito mais familiar, mais
palpável. Talvez também seja por isso que essa função poética seja estruturante das
falas privilegiadas e narrativas desse universo.
Recuperando os versos sobre o senhor Inácio, apesar de sua literalidade, a
supremacia da função poética, através da qual a sonoridade ganha bastante destaque
quanto ao sentido do que está sendo exposto, torna-os um tanto quanto ambíguos. É
nesse ponto sobre a ambiguidade dessa função que acredito residir o equilíbrio social,
sobretudo, em relações, cuja eminência de conflito é latente. Em outras palavras, o
desequilíbrio imanente de temas conflituosos é neutralizado pela função poética.
O rádio, em áreas rurais, até os anos 1990 foi um dos poucos recursos de
comunicação de longo alcance. Na região da mata, até os dias atuais, ele tem um lugar
de destaca no cotidiano das pessoas. No caso específico dos poetas, é através desse
veículo que ele se legitima como profissional e mantém parceiros de organização de péde-parede. As pessoas que “colocam cantoria em casa” ou que são simplesmente fãs do
repente ficam altamente envaidecidas ao ouvir o poeta falar o seu nome no ar. Em nome
dessa vaidade, os poetas dedicam a maior parte de seu pouco tempo no ar, às vezes, não
mais que 10 minutos, para agradecer e enviar saudação a amigos e parceiros de cantoria.
O repente cotidiano, num sentido próximo ao ghinnãwa, foi muitas vezes
descrito com uma forma de driblar o estado de desânimo desencadeado pelo cansaço
físico em decorrência do trabalho na corte da cana ou do processo de descasque da
mandioca para o preparo da farinha. Uma maneira de distrair o limite de seu próprio
corpo. A poesia materializada no pedido de um mote (o verso tema do improviso) pode
também ser lida como expressão de saudade, de indignação, de sarcasmo, como
resposta a um conflito, etc. Enquanto função ela é a expressão do modo de sentir o
mundo, que no caso do contexto pernambucano, apresenta uma proeminência da
audição em relação aos demais sentidos. Essa afirmação nada tem a ver com uma
tentativa de associação entre audição e oralidade, texto oral, literatura oral, ou qualquer
um de seus correlativos. Essa correlação, que melhor se traduz como uma metáforaradical ou auto explicativa, não se sustenta pela complexidade de seu traço
generalizante. Quando recorro à audição, estou tomando as modalidades sensoriais
como objetos a serem pensados a partir da perspectiva local em lidar e constituir o seu
espaço. Toda economia simbólica constitutiva de um grupo é vivenciada por ele por
11
meio da proeminência de uma das modalidades sensoriais, já que, como Jakobson, estou
concebendo aqui a poesia enquanto uma linguagem.
Nesse sentido, para concluir, retomo a pergunta básica da etnografia: o que se
canta? Desde já, digo que qualquer tentativa de hierarquizar ou de elencar possíveis
temas recorrentes do repente é, em si, uma tarefa inútil. Estamos lidando aqui com a
função e não com a poesia. Diante disso, diria que um ensaio de resposta razoável seria
aquele que vai na direção de pensar o que é cantado no repente por meio da relação
social intrínseca a ele e, por conseguinte, os sentimentos expressos e veiculados nos
versos.
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Ouvir, cantar e falar: algumas questões em torno da comunicação