VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9
A EDUCAÇÃO MONÁSTICA NO SÉCULO X
SILVA, Simone Cristina de Lima (PIBIC-FAFIPA)
BOVOLIM, Zenaide Zago Campos Polido (FAFIPA)
Este trabalho é dedicado à análise dos mosteiros, os quais, no século X,
apresentavam-se como locais próprios para o ensinamento dos princípios religiosos
cristãos, o desenvolvimento do saber e a preservação da cultura antiga greco-romana.
Durante toda a Idade Média, eles foram os únicos locais de preservação dos
conhecimentos produzidos pelos pensadores pagãos da Antigüidade clássica.
Desde o século VI, até a invenção da imprensa, nestes espaços de reprodução
dos manuscritos, denominado scriptorium, os monges copiaram e reproduziram grande
parte do acervo bibliográfico dos mosteiros, criando a oportunidade para que
pensadores, como Bento de Núrsia, Alcuíno e Rosvita, tivessem acesso às obras da
Antigüidade greco-romano. Nas bibliotecas dos mosteiros, esses pensadores traduziam
para o latim, adaptavam e reinterpretavam, à luz do cristianismo, os escritos clássicos
pagãos e transmitiam seu conteúdo para a maioria da população que não sabia ler e
escrever.
Pode-se afirmar, nesse sentido que a ação desses pensadores e dos monges
escribas foi de fato importante para a educação e a formação dos homens. Se hoje temos
acesso ao conhecimento produzido pela humanidade, foi graças ao trabalho conjugado
dos monges copistas e dos pensadores cristãos. Por isso, é importante destacar o papel
que as escolas monásticas exerceram, ao preservar e transmitir o saber, os valores
morais e os princípios da fé cristã para a sociedade do século X.
Para entender melhor porque os mosteiros se tornaram os principais espaços de
transmissão do saber e locais responsáveis pela formação dos homens, é fundamental
investigar qual era o contexto histórico da sociedade em que isso ocorreu, ou seja,
pensá-los como parte de uma sociedade com base em relações feudais.
O início do século X foi um período turbulento para as instituições monásticas.
As incursões dos Normandos (povos do norte), Húngaros (povos do leste) e Sarracenos
(povos do sul) realizaram-se de forma bruta e arrasadora, uma vez que, por onde
passaram, independentemente da origem do invasor, destruíram plantações, queimaram
mosteiros e saquearam todos os pertences valiosos que encontravam.
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As pilhagens e as devastações ocasionadas com as diversas incursões ao
ocidente provocaram um ambiente de lutas entres invasores e guerreiros, no qual, ao se
destruírem, também deixavam o ocidente devastado e sem condições para desenvolver
atividades intelectuais.
Os homens ficaram parecidos com os lobos, que lutam contra outros
lobos; eles se devoram como os peixes no mar... Toda a documentação
da época confirma-nos a veracidade da narração dos poetas. Aos
escudos quebrados, cotas de malha de ferro cortadas até atingir a carne
viva, corpos humanos rachados até a sela dos cavalos, crânios
decepados por golpes cortantes e membros separados do tronco,
voando pelo ar, deve-se acrescentar, talvez, sobretudo, o sofrimento
dos pauperes, a violências infligidas às mulheres e às crianças, aldeias
incendiadas, colheitas destruídas. (LE GOFF, 2006, p. 477)
Apesar do caos instaurado com as invasões, os homens do ocidente medieval
buscaram recuperar e organizar este estado de decadência. Assim, estabeleceu-se o
sistema feudal, ou seja, um novo modo de vida entre os homens. Segundo Guizot, “no
século X tudo acabou por se transformar em feudo, inclusive os enxames de abelhas das
florestas. Todas as relações, por mais distintas que fossem, assumiram a forma feudal”
(apud. OLIVEIRA, 2000, p. 224).
Devido aos saques e às devastações provocadas pelas incursões dos povos
vindos do norte, sul e leste, a população do Ocidente europeu voltou-se totalmente para
o campo. Esse momento que ruralizou por completo o Ocidente europeu deu origem a
novos laços de interdependência entre servos e senhores feudais.
De um lado, foi necessário melhorar a vida do camponês para que este
continuasse a servir no campo ao proprietário da terra.
De outro, esse mesmo processo que levou o Ocidente a buscar abrigo no campo
e se proteger dos perigos do século fez dos castelos moradias fixas, o que possibilitou
que alguns hábitos da vida familiar se modificassem. O isolamento nos castelos
permitiu um relacionamento mais íntimo entre seus habitantes, os quais tiveram que
aprender a conviver uns com os outros num espaço mais limitado. Segundo Oliveira, ao
mesmo tempo em que esses homens se isolaram, novos vínculos afetivos despertaram.
[...] tudo passou a ser feito no sentido de proteger a vida. A própria
habitação deveria ser construída para permitir a sua conservação. Não
se construía uma casa apenas para se proteger das intempéries da
natureza; construíam- se fortalezas [...]
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Se o castelo dava aos homens abrigo e proteção, ao mesmo tempo,
produzia uma forma singular de vida. Em seu interior, produzia-se um
isolamento e uma profunda ociosidade [...]
[...] este isolamento e ociosidade provocaram uma profunda alteração
na vida dos homens que habitavam os castelos. Em primeiro lugar, na
medida em que lhes permitia uma certa tranqüilidade, uma certa paz, e
acima de tudo, uma segurança quanto à própria conservação da vida,
criaram condições para que o espírito humano pudesse se desenvolver.
(OLIVEIRA, 2000, p. 235 e 236)
Os castelos que foram construídos para a proteção e segurança da vida
proporcionaram o despertar de novos sentimentos e o desenvolvimento da família.
Ainda segundo Oliveira, pela primeira vez, o senhor feudal e seus familiares mais
íntimos, a esposa, o marido e os filhos, encontravam-se isolados produzindo uma forma
singular de vida.
Com a mudança nas relações familiares e a criação de uma nova condição de
vida, alguns hábitos mudaram. Os homens passaram a adquirir aspectos mais refinados,
começaram a despertar novos interesses para além da segurança e conservação do
feudo.
Nesta realidade feudal, durante a crise provocada pelas incursões do século X,
os mosteiros medievais foram importantes instituições educacionais, uma vez que se
tornaram os únicos espaços apropriados para o desenvolvimento intelectual e cultural. É
o que iremos analisar a partir deste ponto do texto.
Para melhor destacarmos a importância dos mosteiros no século X, faz-se
necessário compreender a Regra do Mestre, reescrita por Bento de Núrsia no século VI,
tendo vista que ela ajudou a organizar a vida dos monges nos mosteiros e foi o grande
pilar de sustentação das escolas monásticas no decorrer da Idade Média.
Bento nasceu em Núrcia, na Úmbria, por volta do ano de 480. Em 529, tendo
sido ordenado sacerdote, foi enviado a Cassino, para promover um combate ao
paganismo que ali estava instaurado. Foi nesse local que ele construiu o mosteiro de
Monte Cassino.
[...] São Bento dirigiu-se provavelmente já ordenado a sacerdote, a
Cassino, para debelar o paganismo que ali vicejava, e construiu o seu
mosteiro em torno do templo dedicado a Júpiter e a Apolo, que se
transformou em igreja do Deus vivo, consagrando-a a São Martinho
de Tours e estabelecendo um oratório em honra de São João Batista, o
precursor da vida monástica. (NUNES, 1979. p.90)
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Para normalizar a vida dentro do mosteiro, Bento reescreveu a Regra do
Mestre, uma norma que pode ter sido importada e traduzida ou de ser de origem local e
que estava sendo praticada no sul da Itália central. Conforme Le Goff (2006), que
analisa a ação dos monges durante a Idade Média, os mosteiros, antes da Regra
Beneditina,
[...] eram governados por diferentes regras monásticas, algumas
importadas e traduzidas e outras de origem local. Entre estas ultimas
citemos uma regra volumosa e rigorosa, corrente do sul da Itália
Central. Esta “regra do Mestre” seria revisada por Bento de Núrcia
nos anos 540. A “regra monástica” de Bento, daí resultante, é um
modelo de legislação sucinta, racional e adaptável... (p. 228)
A Regra monástica de Bento é constituída por um manual de doutrinas que
deviam ser seguidas, seja na forma de rituais de convivência, trabalho, estudo,
responsabilidade de abade e de monges e aceitação de novos membros, seja na forma de
punições pelo não respeito à Regra. Eram normas para organizar a vida dos monges no
interior dos mosteiros, orientar qualquer ação que afastasse os membros do caminho
celeste que dava acesso ao mundo divino.
[...] Tu, pois, quem quer que sejas que te apressas para a pátria celeste,
realiza com o auxílio de Cristo esta mínima Regra de iniciação aqui
escrita e, então, por fim, chegarás, com a proteção de Deus, aos
maiores cumes da doutrina e das virtudes de que falamos acima.
Amém (Regra de São Bento, p.53).
O mosteiro fundado por Bento transformou-se em espaço para a oração, local
de produção intelectual e de trabalho manual. Toda ação, tanto do abade como dos
monges, deveria ser baseada na Regra reescrita por Bento.
Com a Regra reformulada, a ordem beneditina transformou-se em modelo de
legislação sucinta, racional e adaptável, que estabelecia um mundo à parte, livrando o
homem de toda corrupção e do caos social reinante na sociedade no fim do Império
Romano.
Desta maneira, os mosteiros tornaram-se estruturas isoladas, distantes da vida
mundana. Preservavam técnicas artesanais e artísticas e mantinham um scriptorium e
uma biblioteca que armazenava grande parte do acervo literário produzido pelos
pensadores pagãos da Antigüidade greco-romana. Além disso, foram os únicos locais
que oportunizaram aos pensadores o acesso ao saber, conforme Le Goff.
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[...] graças aos seus domínios rurais, seus instrumentos de trabalho, a
mão-de-obra dos monges e de dependentes de todo o tipo é um centro
de produção e um modelo econômico; e claro, é um centro de vida
espiritual, na maior parte das vezes baseada no culto às relíquias de
um santo. (LE GOFF, 2005. p. 115)
No decorrer dos séculos posteriores, outros mosteiros, além dos fundados por
Bento, passaram a adotar a Regra Beneditina, principalmente depois que o papa
Gregório I (590-604) escreveu uma biografia com informações sobre a sua vida e suas
conquista, o que possibilitou a difusão do legado realizado por Bento.
Porém, foi no século VIII que Luiz, o Piedoso, iniciou um movimento de
uniformização da vida monástica, cujo resultado foi fazer da Regra Beneditina a única a
ser aplicada em todos os mosteiros. Anteriormente, cada mosteiro possuía a sua regra:
No âmbito da política real, Luís, o Piedoso, começou a impor uma
uniformização da vida monástica e, em especial, a fazer da Regra
Beneditina a única regra aplicada em todos os mosteiros. Apesar deste
programa de uniformização, cada mosteiro continuava sendo uma
entidade distinta. (LE GOFF, 2006, p. 231)
Assim, os mosteiros tornaram-se o espaço educativo no qual eram transmitidas,
conforme Nunes (1979), “as obras literárias e as concepções filosóficas e educacionais
dos romanos, especificamente através do benfazejo labor dos copistas que asseguraram
a preservação dos livros antigos” (p. 92). Os mosteiros foram procurados pelas famílias
para transmitir aos jovens da sociedade formas de escrever, contar, ler e cantar e,
assumindo esta função educativa, transformaram-se em escola interna - locais nos quais
os monges, ao mesmo tempo, estudavam para servir o ideal monástico de ensinar os
jovens nas escolas externas e internas. Segundo Nunes:
Acresce que os mosteiros, como os da Ordem beneditina desde a sua
origem, recebiam os pueri oblati, os meninos que lhes eram ofertados
pelos pais para se consagrarem a Deus na vida monástica. Daí as
escolas internas ou interiores dentro dos mosteiros para a instrução
dos postulantes, os candidatos à vida monástica, e dos oblatos. À
medida, entretanto, que meninos e adolescentes eram confiados aos
mosteiros só para receberem instrução, pois não tinham a intenção de
ser monges nem os pais o pretendiam, eles passavam a freqüentar
também as escolas internas como pensionistas ou, para eles, em
muitas regiões, existia um edifício especial ou uma ala do mosteiro, a
schola exterior, fora do perímetro da clausura, para que o bulício
escolar não perturbasse o silêncio monástico e a paz dos religiosos
(NUNES, 1979, p. 110)
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Nos seus escritos, Nunes afirma que os mosteiros no período retratado
ofereciam educação tanto aos monges como aos jovens levados pelos pais para serem
educados; vários mosteiros mantinham uma escola para a formação tanto de religiosos
como dos que não queriam seguir a vida clerical. Muitos mosteiros desempenhavam
essa função educativa num mesmo espaço: tanto os monges como os meninos que não
queriam seguir a vida religiosa aprendiam juntos.
Portanto, os mosteiros na Idade Média, além do caráter religioso muito intenso,
o que não poderia ser diferente em uma sociedade em que a religião cristã imperava,
promoveram um largo desenvolvimento intelectual.
Ao se tornarem espaços
importantes para a transmissão do conhecimento, segundo Nunes (1979), eles
necessitavam ter monges instruídos e com domínio da leitura para copiar e reproduzir
manuscritos antigos.
Nunes pontua que, no processo de ensino dos mosteiros, o currículo de
aprendizagem era composto pelas sete artes liberais: o trivium (gramática, dialética e
retórica) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). Porém, eram
poucos os monges que dominavam as duas artes. O ensino que mais se difundiu na
primeira fase da Idade Média foi o trivium, constituído pela leitura e a meditação da
Sagrada Escritura. Desta maneira, a aprendizagem da gramática seguia o processo
didático da leitura dos salmos; era um estudo dirigido ao conhecimento da bíblia.
Para que o conhecimento sobre o cristianismo fosse efetivo no processo de
ensino e aprendizagem, foi necessário instruir as pessoas na gramática e na retórica.
Conforme Nunes (1979), as duas disciplinas foram “... excelentes recursos para a
interpretação alegórica e para o alcance do censo místico das palavras sagradas” (p.
110). Os textos estudados eram interpretados profundamente, de forma que fosse
possível abstrair o sentido místico localizado nas entrelinhas da escrita. Esse recurso de
aprendizagem é conhecido como exegese ou ainda interpretação alegórica.
As obras interpretadas por alguns pensadores e consecutivamente copiadas nos
mosteiros trouxeram ao conhecimento da população importantes idéias de grandes
escritores pagãos. Nesse processo de tradução, o trabalho de cópia era efetivado pelos
monges conforme instruções determinadas por um mestre de obras. Ao final,
convocava-se uma reunião para sintetizar o conhecimento adquirido nos diversos
estudos realizados pelos monges. Portanto, era uma ação coletiva em torno de um
objetivo, conforme Le Goff (2006):
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[...]as obras históricas produzidas nesses mosteiros eram obras de
erudição, obras livrescas, obras coletivas, em que um mestre de obras,
que aliás estava na direção da escola ou do scriptorium ou da
biblioteca, organizava as leituras de uma equipe competente e presidia
a reunião das sínteses por ela realizadas. (p. 524)
Deste modo, a ação monástica da cópia e da escrita conservou a produção dos
pensadores greco-romanos da Antigüidade. Os manuscritos resultantes desta arte
constituíram-se, depois do período Carolíngio, em obras belamente adornadas com
iluminuras, as quais serviam à corte e ao bispo e abasteçam as bibliotecas. Com base
nelas, ministravam-se as disciplinas de gramática.
Alcuíno, monge anglo-saxão (735-804), teve participação fundamental nesse
processo de efetivação do método de reprodução de manuscritos. Ele foi o braço direito
de Carlos Magno na difusão da cultura, na restauração dos estudos antigos e na reforma
eclesiástica, tornando-se, assim, o mentor intelectual da Europa no século VIII.
Também foi o grande responsável pela multiplicação de escolas, uma vez que, como
conselheiro do rei dos francos, ajudou a elevar a educação do povo.
Reconhecendo o estado lamentável da cultura dos eclesiásticos e a
necessidade de contar com funcionários dignos de seu Império, Carlos
Magno baixou Proclamações e Editos, inspirados por seu conselheiro
Alcuíno. Entre as proclamações mais conhecidas figura a do ano 802,
dirigidas aos Senhores, de onde ordenava “que todos mandassem os
filhos à escola para estudar as letras e que o menino permanecesse na
escola até ser instruídos nelas”. (RATO, 1995. p. 22-23)
Alcuíno, por ser apaixonado pelos livros, organizou bibliotecas, coordenou a
produção de manuscritos e compôs opúsculos didáticos, como os diálogos sobre
gramática, ortografia, retórica, virtudes, dialéticas, entre outros. Conforme Nunes
(1979), muitos dos conhecimentos sobre o saber antigo foram conservados devido à
ação desse monge.
Não podemos deixar de destacar também o papel da monja Rosvita, do
mosteiro de Gandersheim. No século X, ela brilhou como escritora, retomando as
comédias teatrais profanas de Plauto e Terêncio escritas no ano 185 ªC. Por serem
sensuais e agradáveis, essas comédias despertavam o interesse do público. Ela utilizou
essa forma literária para transmitir ensinamentos que considerava importantes para a
formação dos jovens e dos religiosos do mosteiro de Gandersheim.
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Rosvita, como religiosa e educadora, ensinava, por meio das peças teatrais, os
princípios da religião cristã, os cálculos matemáticos e os valores morais que estavam se
perdendo, em razão se ser o século X um período bastante conturbado da história.
Temas como a defesa da virgindade e a celebração do martírio foram recorrentes em
suas obras. Vale destacar que foi no mosteiro de Gandersheim que Rosvita encontrou
condições para pesquisar e produzir peças teatrais, retomando nelas o pensamento de
teóricos pagãos e teólogos cristãos. Foram as condições existentes nos mosteiros que lhe
deram condições para contribuir para a transmissão do saber, a preservação da cultura e
a conservação dos valores cristãos e pagãos no Ocidente Medieval.
O mosteiro de Gandersheim era ocupado por mulheres que se ocupavam de
tarefas religiosas e intelectuais. De acordo com Lauand (1998), o mosteiro beneditino de
Gandersheim foi um importante centro cultural, no qual atuaram monjas de inusitada
cultura.
É importante destacar que, no mosteiro de Gandersheim, as monjas seguiam os
princípios da Regra beneditina. Assim como Bento de Núrsia, Rosvita lutou contra o
estilo de vida de muitos fiéis e, em meio à crise de valores do século X, buscou, por
meio de peças teatrais, recuperar conceitos doutrinários cristãos e estabelecer normas,
valores e regras para uma nova forma de vida. Para assegurar a busca, a guarda e a
multiplicação do saber, as mulheres que ali habitavam dedicavam-se à oração, à
meditação, ao trabalho social e à leitura dos clássicos greco-romanos.
Outro mosteiro que deve ser destacado no começo do século X é o de Cluny
(Borgonha). Segundo Nunes (1979), a grande reforma monástica do Ocidente teve por
eixo a forma adotada na abadia de Cluny, que difundiu e propagou em todos os
territórios do Ocidente europeu os princípios da renovação monástica.
Segundo Duby (1982), os cluniacenses, que deram uma nova interpretação à
Regra beneditina, buscavam um modo de vida mais dedicado à liturgia e à oração. Seus
monges não se deveriam dedicar a quase nenhum trabalho manual, ao passo que, nos
mosteiros do início da Idade Média, de acordo com a Regra de Bento, os homens se
dedicavam mais a esse tipo de trabalho.
A abadia de Cluny foi edificada no ano de 909, pelo duque Guilherme de
Aquitânia. O mosteiro foi construído para prestar um tributo a São Pedro e a São Paulo.
[...] Guilherme, o Pio, duque de Aquitânia, cansado das alegrias deste
mundo, possuía uma rica vila em Cluny: em 909, faz a doação dela,
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com seus servos, seus bosques, suas vinhas e seus moinhos, para que
fosse construído um monastério em honra de são Pedro e são Paulo,
onde se estabeleceriam os beneditinos, sob a direção de Bernão,
reformador da abadia de Beaume-le-Messieurs [...] (PIERRARD,
1982, p. 81).
Na doação, Guilherme de Aquitânia colocou uma cláusula que possibilitou a
Cluny uma liberdade em relação à autoridade civil e religiosa. Segundo ela, os Bispos
que não pertencessem à abadia não poderiam interferir na vida dos monges dentro do
mosteiro. Conforme Costa:
[...] Cluny, ou melhor, o mosteiro que eles deveriam construir em
Cluny, seria um portal de comunicação com o céu! Um elo de ligação
cheio de doçura. Cluny seria a Jerusalém celeste encarnada, o paraíso
novamente concretizado. Como um ponto de luz na escuridão, um
foco de bondade em meio à turbulência do século, as preces e súplicas
dos monges seriam a causa de sua reunião. É por esse motivo que o
duque os liberta das indesejáveis intromissões de nobres e bispos: os
monges deveriam ser livres para melhor obrar junto a Deus!...
(COSTA, 2007, p. 5)
É importante salientar que os mosteiros anteriores ao de Cluny sofriam
interferência dos bispos e da nobreza na eleição dos abades e nas regras a serem
seguidas. Por isso, o Duque Guilherme incluiu uma cláusula no ato de doação que
isentou a abadia de sofrer intervenção dos bispos, deixando-a livre para a escolha do
abade.
O mosteiro cluniacense alcançou grande privilégio e o movimento de reforma
por ele inaugurado desencadeou uma renovação no interior dos demais mosteiros. O
papa João XI, no ano de 931, decretou que qualquer mosteiro em ruínas que solicitasse
uma reforma seria incorporado à abadia de Cluny e dirigido pelo abade dessa
congregação.
Como já afirmamos anteriormente, os monges, com a reforma, deveriam
dedicar mais tempo à espiritualidade, libertando-se das tarefas domésticas. Assim, nos
mosteiros cluniacenses, para poder alcançar uma ligação mais íntima com o sagrado, os
monges deveriam manter uma série regular e contínua de celebrações litúrgicas e
cânticos. Essa mudança fica evidenciada quando se observa que, enquanto a Regra de
Bento prescrevia o canto dos 150 salmos, na reforma, as liturgias ultrapassaram esse
número.
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Bento deixara uma certa liberdade quanto à recitação dos salmos,
contando que todos os 150 salmos fossem cantados cada semana.
Contudo nos costumes compilados pelo monge Ulrico em torno de
1080, o número de salmos recitados cotidianamente era maior do que
150. O biógrafo do abade Odilon de Cluny notou que este sempre
cantava os salmos corretamente e que, em seus sermões, sua primeira
preocupação era repreender os monges que não lhe satisfaziam neste
ponto. (LE GOFF, 2006, p. 231).
Os mosteiros cluniacenses solidificaram-se no ocidente e, apesar da nova
interpretação que deram à Regra, os monges cumpriram a sua missão e continuaram o
trabalho monástico iniciado por Bento de Núrcia no século VI.
Na forma como administraram os mosteiros, onde viveram grande parte de suas
vidas, Bento de Núrsia, Alcuíno e a monja Rosvita de Gandersheim deixaram um
legado importante para a educação medieval, no sentido cultural e educativo. Eles
possibilitaram o desenvolvimento da escrita, da leitura, da pesquisa, além de reproduzir
as obras clássicas da Antigüidade greco-romana.
Eram numerosas as obras de autores clássicos antigos e pagãos que se
encontravam nas bibliotecas dos mosteiros de Gandersheim e Cluny. Dessa forma, uma
vez que, com as invasões, a cultura greco-romana corria o risco de desaparecer, o
contato direto desses pensadores com essas fontes tornou possível a conservação do
saber antigo. Ao preservar as obras dessa cultura, também se preservaram a língua, a
tradição e a religião, as quais foram assimiladas pelos povos do Ocidente europeu do
período.
Referências
COSTA, R. Cluny, Jerusalém celeste encarnada (século X-XII). Disponível em
http://www.ricardocosta.com/pub/cluny.htm. Acesso em 23/01/2007.
BLOCH, M. A sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1987.
DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editorial
Estampa, 1982.
REGRA DE SÂO BENTO. Disponível em http://www.osb.org.br/regra.html. Acesso
em 10/05/2007.
GUIZOT, François. História da Civilização na Europa. Lisboa: Livraria Editora, e
officinas Typographicas e Encadernação, 1907.
LAUAND, L. J. (org.). Educação, teatro e matemática medievais. São Paulo:
Perspectiva/Editora da Universidade de São Paulo. 1986.
LE GOFF, J. A civilização do Ocidente Medieval. Trad. José Rivair de Macedo. Bauru,
São Paulo: Edusc, 2005.
LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. Trad. Hilário Franco Junior. Bauru, SP: Edusc, 2006.
VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9
NUNES, R. A. da C. História da educação na Idade Média. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1979.
OLIVEIRA, T. O Papel do Lúdico na Educação Medieval. II Jornada de Estudos
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PIERRARD, P. História da Igreja. Trad. Álvaro Cunha. São Paulo: Ed. Paulina,
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RATO, C. C. A Diversidade das “Invenções” Escolares Medievais. In: ROEDEL, L.
R. e SILVA, A. C. L. F. (org.). Anais da III Semana de estudos Medievais. Disponível
em: http://www.pem.ifcs.ufcj.br . Acesso em: 11-09-2007.
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