A dança imóvel entre o passado e o rosto sem olhos do futuro
Cláudia Luna (UFRJ)
Ao publicar os cinco romances de seu ciclo Baladas, ou La guerra
silenciosa, o peruano Manuel Scorza (LIMA, 1928) surpreendia público e crítica com
narrativas de perfil inovador, até hoje pouco exploradas. Ainda menos conhecida é sua
última obra, La danza inmóvil, primeiro romance da trilogia El fuego y las cenizas.
Seus títulos já enunciam paradoxos: guerra e silêncio, fogo e cinzas, dança
e imobilidade, caracterizando um projeto que tem na exposição dos desafios e dilemas
do processo histórico e cultural peruano, marcado pela seqüência de marchas e
contramarchas, resistência e repressão, um de seus vetores; a seu lado, a busca por
um modelo narrativo que supere falsas dicotomias, os limitados recursos das escolas
anteriores, afaste-se do tom maniqueísta do romance de denúncia, questione o fazer
artístico e o papel do intelectual em uma sociedade que exige uma atuação plural.
Finalmente, dialoga com o romance do “boom” e questiona a influência do mercado
editorial europeu na produção intelectual latino-americana.
Neste ano em que Scorza completaria oitenta anos, vale revisitar esse
romance em que o uso do humor se associa à tragédia e o herói se ri de sua própria
desgraça. Ao mesmo tempo, constitui-se uma metaficção, já que o personagem
central é um escritor hispano-americano que busca convencer certo editor francês de
uma série latino-americana a financiar algum de seus projetos literários, em um jantar
no restaurante parisiense La Coupolle. Aqui, o autor dialoga com gerações de
escritores
que
acorreram
a
Paris
buscando
civilização,
homenageando
simultaneamente os exilados, que tantas agruras enfrentaram em território estrangeiro,
durante os anos de chumbo.
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A luta inglória do personagem-escritor fará com que desfilem ante nossos
olhos uma sucessão de relatos que revisitam a tradição literária hispano-americana,
em suas diversas vertentes. Os capítulos relativos à cena do restaurante se intercalam
com o desenvolvimento do segundo nível narrativo, dedicado à história de dois
guerrilheiros peruanos, Santiago e Nicolás. O primeiro vive suas aventuras e
desventuras em Paris; o outro, por sua vez, se encontra na selva peruana, capturado
que foi pelas forças repressoras, após a tentativa frustrada de fuga atravessando as
corredeiras dos rios amazônicos. Prisão, exílio ou clandestinidade: são estes os
espaços de atuação dos sobreviventes dos massacres do ciclo Baladas. Através dos
dilemas e da coragem destes personagens Scorza aborda os dilemas e conflitos
daqueles que optaram pelo modelo do foquismo, incentivados pelo sucesso da
guerrilha em Cuba.
O autor comentou em certa entrevista que há dois tipos de cronistas: “os
que acompanham os espanhóis, que vão desde Bernal Díaz até Vargas Llosa no Peru,
e os que acompanham os vencidos, que vão desde Guamán Poma a José Maria
Arguedas” (ESCAJADILLO, 1994, p. 120, nota 36). Dentro dessa linhagem se
posiciona Scorza e em La danza inmóvil faz uma incursão pelas narrativas da selva, a
partir do campo temático aberto pelo relato de Nicolás. A opção por esse espaço
merece atenção.
Gordon Brotherston lembra que
a selva tropical amazônica continua proporcionando cultura em suas formas mais
elevadas, como ar, alimentos vegetais e visão. Os textos indígenas que registram
essa visão desempenham um papel importante nas obras continentais de Galeano,
Posse e Cardenal (BROTHERSTON, 1997, p. 431).
No âmbito peruano, na esteira de Ciro Alegría, Scorza nos apresenta os
povos campa, do grupo arawako, disseminados pela região, ao lado dos yaninahuas e
dos chama.
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O universo em que transita representa a alteridade quer em relação à
civilização incaica, quer em relação à conquista e colonização espanholas. A selva
será espaço de interseção de múltiplos níveis. Trata-se dos povos nativos da floresta e
dos mestiços que ali se radicam, de povos cujas cosmogonias se afirmam e mantêm,
de grupos de resistência ancestral e organização crescente, que cada vez mais
interferem nos cenários nacionais dos países andinos e amazônicos. Especificamente
no Peru, ao lado das organizações andinas que reivindicam o Tawantinsuyu, há as da
selva. Trata-se de organizações regionais multiétnicas (BARRE, 1983, p. 109), como o
Consejo Aguaruna y Huambisa, ao qual pertencem 98 comunidades do Noroeste
peruano. Criado em fins dos anos setenta, lutou principalmente pela delimitação de
suas terras e defesa contra penetração de empresas multinacionais. Na ocasião o
governo de Belaúnde Terry visava a implantar na região do Valle Palcazu-Pichis o
cultivo maciço de alimentos para abastecimento de Lima, trazendo para isso dez mil
colonos, que se instalariam na região onde viviam seis mil índios amueshas e campas
(BARRE, 1983, p. 120).
Em um dos relatos do romance se menciona a tentativa de formação de
um Exército Revolucionário do Peru, associado ao personagem David Pent, norteamericano de beleza impressionante, “comprador” de indiazinhas que, como formigas,
lhe constroem uma fortaleza labiríntica na selva, onde funcionaria uma companhia de
exportação madeireira. Na verdade, se tratava de um disfarce para seu verdadeiro
propósito: articular um movimento de rebelião na selva: “Yo contaba con seis meses
para completar el abastecimiento [de armas]. Y más que nada para terminar de
convencer a los jefes campas. !Diez mil flecheros se hubieran alzado con nosotros!
Ahora lo veo difícil” (SCORZA, 1983, p. 60), como recorda Nicolás. Esta é uma das
versões sobre o personagem, em que se valoriza sua faceta militante.
Tanto no segundo relato de Pent como no de Carlitos Casanave se aborda
a utopia da satisfação sexual, do fascínio pelo branco exercido sobre a “boa
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selvagem”. No território dos campas, “Casanave, Señor del Alto Ucayali, marido y
cumplidor de doscientas nativas, y por matrimonio” seduzirá uma das esposas do
Curaca dos Curacas, que o segue; sua fuga deflagra uma guerra sangrenta entre as
tribos e aliados dos caciques Siviro e Shirambari, que durará meses. Acudirão índios
campas que trabalhavam como peões, lenhadores ou pastores, nas grandes fazendas
(SCORZA, 1983, p. 201).
O episódio, com seu tom exagerado e lascivo, recorda certos relatos de
viagem que enfatizam o Eldorado sexual, como pontua Pascal Dibie, ao referir-se a
um certo “cavaleiro da aventura”, o belga Robert de Wavrin de Villers du Tertre, que
percorreu a América do Sul entre 1913 e 1937, publicando relatos que o notabilizaram
como etnólogo, e onde não se constrangia em apresentar uma descrição da
sexualidade dos povos indígenas que contribuiria para a difusão da imagem de “objeto
sexual” das índias. Como pondera Dibie, a lubricidade, “o machismo e o olhar viril do
marquês-caçador e de seus companheiros de aventura sobre as mulheres
contribuíram largamente para uma visão ‘coisificada’ do exótico sexo oposto”
reforçando “o mito ocidental da ‘livre e desejada selvagem’” (NOVAES, 1988, p. 322324), legitimando a violência sexual de que têm sido vítimas secularmente as
mulheres indígenas.
Também da busca — e do inesperado encontro — do Eldorado se trata,
pois Nicolás será coroado de ouro pelos vaga-lumes. Personagens lendários, antigos
relatos, elementos inerentes ao imaginário relativo à Região Áurea se mesclam num
jogo de espelhos, onde se reduplicam ou parodiam. Recupera-se todo um imaginário
de lendas advindas da Antigüidade Clássica a respeito da alteridade, de homens
selvagens ou primitivos; utopias medievais que contavam de terras de fartura e
abundância; de personagens mitológicos; relatos de cronistas que em seus delírios
acreditavam ter alcançado o Eldorado; até chegar às atuais incursões científicas ou
religiosas nessa região mundialmente cobiçada.
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Scorza revisita e põe em xeque as oposições tradicionais entre civilização e
barbárie, urbanidade e selvageria, mito e história, utopia e desencanto, em processo
de intensa intertextualidade com a produção literária latino-americana. Se a selva e os
rios amazônicos foram os espaços “naturais” de migração de entidades mitológicas,
utopias de bem-aventurança, fartura ou satisfação sexual, enriquecimento e
imortalidade para os conquistadores europeus, Paris, por sua vez, constitui-se como
locus utópico para gerações e gerações de latino-americanos, desde a segunda
metade do século XIX. Paris, capital da América Latina, já se disse. Ambos espaços
serão apresentados de modo polimorfo, mostrando as duas faces, a luminosa e a
sombria, mas principalmente, como espaços de grande reverberação no imaginário de
ambos continentes.
Se no La Coupolle transitam celebridades, os subterrâneos da cidade serão
o único espaço permitido aos clandestinos, que, enquanto catam lixo para sobreviver,
comentam que só conheciam Paris pelas sedutoras fotos dos espaços sofisticados
estampadas nas revistas. Nicolás, por sua vez, triunfará sobre os rios amazônicos. De
cenário adverso, inicialmente, torna-se espaço acolhedor, até que a natureza o
consagra. Seja em antigos sistemas simbólicos ou nas teorias psicanalíticas, são
recorrentes as alusões a florestas e rios como espaços de mergulho no lado obscuro
de nós mesmos, no onírico, no inconsciente. Penetrar nas águas de um rio inicia uma
aventura e efetua o ingresso em dimensões de memória e sonho, de temores e
desejos, de realidade e delírio. Se conferirmos o trajeto exposto no livro em mapas,
verificaremos que o seu circunda o Peru, em direção ao norte, partindo da confluência
dos rios Tambo e Urubamba, subindo o Ucayali, até chegar ao Marañon, em direção
ao Amazonas, cruzando povoados ribeirinhos, como Bolognesi, Atalaya, Masisea ou
Iquitos.
No correr dos dias Nicolás sofrerá com o sol inclemente, a força das
corredeiras, sede e fome, o temor contínuo de ser descoberto na passagem pelos
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inúmeros Postos de Controle das margens. Um dos episódios mais marcantes é o da
chuva de peixes, fenômeno registrado pelos primeiros navegantes, em seus relatos
eivados de maravilhas. Pois o próprio personagem duvida, repetidamente, de seus
sentidos, do caráter real ou ilusório daquela realidade. A figura do Velho Almirante que
o abriga e dá provisões, por sua vez, pode encarnar as levas de conquistadores que
buscaram chegar a Eldorado, ao país das Amazonas, à província da Canela. Talvez
seja exagerado reconhecer uma dimensão surreal no relato; preferimos considerar a
liberdade que o fluxo da consciência permite, transitando entre tempos, misturando o
mundo desperto ao dos sonhos, o consciente e o inconsciente.
Outro aspecto fundamental a destacar é a relação que estabelece com os
povos da floresta. E aqui se tornam bem claros os papéis que civilização e barbárie
desempenham dentro da concepção scorziana. Por seu caráter avassalador, a selva e
o rio surgem dentro da perspectiva instalada pelo gigantismo a eles atribuído pelo
romance regionalista. Por outro lado, essa natureza será paulatinamente redimida, da
mesma forma que Nicolás supera as provas que esta lhe impõe. Pois o Coração das
Trevas se encontra no âmago do humano. O mundo natural não se submete às
interpretações humanas, ou melhor, à concepção ocidental do que seja este universo.
Enquanto os povos da floresta demonstram sua plena adaptação a esse ambiente,
convivendo harmoniosamente, respeitando as diferenças e coexistindo com animais e
plantas de forma respeitosa, os civilizados trazem da herança ocidental o desprezo
pelo mundo natural, sua exploração e aproveitamento como forma de opressão de
outros homens.
Nicolás será alimentado, abrigado, vestido pelos povos campas e pelos
chamas, que encontra no caminho e a quem pede socorro. O sol o amorena e o
aproxima do perfil indígena. Suas roupas andrajosas são trocadas pela túnica que
protege os habitantes da floresta do sol impiedoso. Ele sobrevive e se integra ao rio,
sendo coroado pelos vaga-lumes, símbolos da imortalidade.
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Por outro lado, é o uso da natureza pelos agentes da repressão o que a
torna inclemente: para os fugitivos Loco Higueras e Cucharita, recapturados, é
imputado o suplício de jaulas de plantas espinhosas, sem teto, onde permanecem dias
a fio, apodrecendo em vida. Paucarcito terá bem detalhado o fim que também Nicolás
experimenta: ser amarrado a uma árvore de cujo tronco saem multidões de
tangaranas, formigas carnívoras que os devorarão lentamente. Em certo momento,
Nicolás relembra o processo de resistência dos povos indígenas, e ao lado de Tupac
Amaru e outros, recordará Garabombo, o invisível, personagem de uma das baladas.
Finalmente, o romance reflete a angústia daqueles que devem abdicar do
presente para construir o futuro. Ao morrer, Nicolás inveja a opção de Santiago, que,
por sua vez, inveja a do primeiro, justificando envergonhado sua deserção: “Ramiro,
Nicolás, Launez morirían en los ojos llenos de esas promesas. Pero yo ya no era
capaz de cambiar la plenitud del presente, los ojos presentes de Marie Claire por el
rostro sin ojos del futuro” (SCORZA, 1983, p. 162).
Em suma, há no romance um rio de histórias que explora com lirismo e
humor trágico os dilemas de uma estirpe de intelectuais para quem o compromisso
sempre foi indissociável do fazer artístico. Finalmente, o jogo entre tempos narrativos
permite que se cruzem e dialoguem representações variadas das relações entre o
homem e o mundo natural, do Eldorado ao Coração das Trevas, questionando, em
última análise, o papel da literatura nas encruzilhadas da história.
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