CURSINHO POPULAR DA SANTA ROSA: DESAFIOS DE
UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO POPULAR1
Maíra MENDES
PPGEdu - UFRGS - Brasil
Lisandro MOURA
Colégio Aplicação -UFRGS - Brasil
Vicente RIBEIRO
PPGHist-UFRGS - Brasil
Marcus VIANNA
História-UFRGS - Brasil
Resumo: Esta comunicação visa relatar a experiência do projeto de extensão Cursinho
Popular Santa Rosa, curso de preparação para o acesso à universidade, construído desde a
perspectiva da educação popular. Este projeto surge a partir de uma articulação entre
militantes do movimento estudantil, principalmente da UFRGS, e a Associação de Moradores
da Grande Santa Rosa. Tendo em vista que este é um projeto recentemente iniciado, nesta
comunicação apresentaremos sobretudo os pressupostos a partir dos quais o projeto foi
construído e alguns dos principais desafios encontrados.
De acordo com CASTRO (2005), cursinhos populares são “ações políticas de atores
engajados em projetos e ações que têm como eixo a transformação social da realidade por
meio da preparação e do incentivo às classes populares a ingressarem no ensino superior
gratuito” (p. 51). Além da preparação para as provas, estes cursos problematizam as
desigualdades sociais e educacionais, o ensino superior, a conjuntura política, cultura, as
questões étnicas, de gênero, entre outras.
O desafio da entrada na universidade é compreendido como uma superação solidária e
coletiva (FREIRE; NOGUEIRA, 2001) que não se limita a melhorar o desempenho de jovens
dos setores populares nos vestibulares, se articulando igualmente a um conjunto mais amplo
de lutas pela democratização do acesso à universidade, entre as quais as políticas de ações
afirmativas e o aumento no número de vagas. Ao redor destes elementos está presente uma
tensão constitutiva dos cursinhos populares identificada por SANTOS (2005) como “o
confronto entre a politização pedagógica do trabalho que se efetiva nos pré-vestibulares e a
necessidade de preparação para o vestibular” (p.195).
Entre os principais desafios encontrados destacamos a busca pela construção de um
espaço comum de atuação entre o movimento de bairro e o movimento estudantil, bem como
a busca pela apropriação por parte dos educadores e educandos do cursinho enquanto um
projeto de educação popular. O projeto, que iniciou esse ano, ainda não tem apoio
institucional da universidade pública onde quase todos os professores estudam/estudaram,
contando apenas com apoio da Associação de Moradores e o Diretório Central de Estudantes,
além do espaço cedido pela Escola Ildo Meneghetti.
A partir dos primeiros passos deste projeto vemos que este se encontra em uma
permanente disputa. Por um lado, entre uma proposta de capacitação técnica para o ingresso
na universidade, em que os professores se enxergam fazendo um trabalho voluntário numa
perspectiva assistencial ou, por outro, a proposta de um movimento social, contestador das
desigualdades sócio-educacionais, tendo como pilar a educação popular enquanto ferramenta
de construção coletiva e crítica do conhecimento e de sujeitos políticos emancipados.
Palavras-Chave: <Cursinho Popular>, <Educação Popular>, <Acesso à Universidade>
Introdução
Esta comunicação visa relatar a experiência desenvolvida no Cursinho
Popular da Santa Rosa, conhecido por “Cursinho Che Guevara”, na cidade de
Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. O cursinho se
propõe, a partir de uma perspectiva da educação popular, a lutar pela
democratização do acesso à universidade, especialmente a pública. Esta prática
ocorre a partir da organização de um currículo voltado para a aprovação neste
exame, porém sem reduzir-se ao conteúdo, buscando estimular os educadores e
educandos a problematizar o contexto educacional brasileiro, a universidade e a
sociedade. A partir desta experiência, discutimos a relação universidade sociedade, do ponto de vista de quem é estudante na universidade e trabalha para
que jovens e adultos das classes populares também o sejam.
1. O ensino superior brasileiro
O ensino superior no Brasil possui atualmente uma minoria das suas
matrículas nas universidades públicas: são menos de 25% das vagas (BRASIL,
2007). Este retrato é um reflexo das políticas de ajuste fiscal aplicadas por
diversos anos, restringindo o orçamento da educação e estimulando a oferta de
cursos superiores pela iniciativa privada. Recentemente, a compra de vagas
ociosas nas instituições privadas pelo governo federal (Programa Universidade
para Todos) promoveu um impulso extra a essas empresas, ainda que,
contraditoriamente, ampliasse o acesso ao ensino superior, em instituições
pagas2.
A universidade pública, entretanto, mantém-se como instituição de
referência no ensino, pesquisa e na extensão, uma vez que as instituições
privadas no contexto brasileiro geralmente têm como único fim o ensino (com
caráter utilitarista para o mercado de trabalho). A qualidade reconhecida3 das
universidades públicas, bem como a gratuidade, são fatores que levam a uma
alta procura por estas vagas. Ocorre que num país em que a minoria das vagas é
pública, pelas quais há uma alta procura, a concorrência é utilizada como
maneira de “regular” o acesso a esse direito.
O instrumento usado para esta barreira no acesso às vagas é o discurso
sobre o mérito. Para ingressar em qualquer instituição de ensino superior é
necessário realizar uma prova, chamada de exame vestibular4, a qual classifica
os candidatos em ordem decrescente, os quais se tornam aptos a cursarem a vaga
pretendida. Assim, os candidatos que apresentam melhor desempenho no
vestibular, supostamente, têm maior mérito, e, portanto o direito adquirido de
cursar o ensino superior, enquanto aos outros resta a alternativa de tentar no ano
seguinte ou desistir. O conteúdo deste exame varia de instituição para instituição
e, via de regra, está dissociado do conteúdo escolar da rede pública de ensino
básico.
A premissa de que todos os candidatos têm chances iguais desconsidera as
gritantes diferenças sociais (e consequentemente educacionais) brasileiras. O
resultado desta política é uma distorção na composição dos bancos
universitários: estudantes oriundos da escola pública têm maior dificuldade de
ingressar na universidade pública, especialmente nos cursos com alta
concorrência (os quais, não por acaso, representam um posição de status na
sociedade: Medicina, Direito, Engenharia, dentre outros). Enquanto isso, as
escolas particulares orientam seus currículos para os conteúdos exigidos pelas
provas mais concorridas, e aqueles alunos que “investiram” na educação
(financeiramente falando), têm suas chances aumentadas de passar no vestibular,
uma vez que passam anos treinando para um tipo particular de provas.
2. Cursinhos preparatórios
O critério classificatório do vestibular foi instituído em 1968, em pleno
regime militar e inspirado pelo modelo americano preconizado pela USAID5.
Antes deste marco, o vestibular tinha caráter eliminatório, e aqueles candidatos
aprovados que não obtinham as vagas eram denominados “excedentes”. A luta
dos excedentes, encampada pelo movimento estudantil, teve amplas
repercussões, articulando aqueles que estavam dentro e fora da universidade.
Este movimento abrangente criou um grande impasse para o governo militar,
que então instituiu o critério classificatório (GUIMARÃES, 1984).
A partir desta mudança no caráter do vestibular, com o grande contingente
de “excedentes”, abriu-se um enorme espaço para que empresas do ramo
educacional oferecessem cursos preparatórios para a prova: os chamados
cursinhos pré-vestibulares. Cobrando altas mensalidades, os cursinhos chegam a
desenvolver estatísticas de quais questões tem maior probabilidade de serem
abordadas, preparam os candidatos para concorrerem entre si, incutindo a
lógica da competição e do mérito individual nos estudantes, além de
estimularem “técnicas” de memorização e treinamento.
Aparentemente esta aposta revelou-se um bom negócio: muitos cursinhos
abriram inúmeras filiais em seus estados de origem, abriram colégios associados
e depois faculdades privadas. É o caso da Rede Objetivo, que está entre os
primeiros lugares em número de matrículas do ensino superior brasileiro. A
repercussão desta estratégia foi tal que boa parte das escolas privadas passou a
orientar seu currículo para o mesmo fim, sendo que as questões de vestibular
aparecem como treinamento desde o começo do ensino médio, ou mesmo antes6.
A proposta pedagógica e os pressupostos epistemológicos que marcam o
caráter dos cursinhos pré-vestibulares privados se assemelham muito àquilo que
Paulo Freire (1975) chamou de “educação bancária”, na qual os conteúdos
disciplinares são “depositados” nos alunos, nos termos de uma relação social
desigual, em que o professor(a) representa aquele(a) que tudo sabe, e o aluno(a),
aquele(a) que nada sabe e que, por isso, nunca tem razão.
Além disso, estes cursinhos substituem a formação de nível médio sem
nenhuma fiscalização por parte do poder público, e vão de encontro aos
pressupostos legais contidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), uma vez que se dedicam apenas à preparação para o vestibular, ao
mesmo tempo em que deixam de lado o desenvolvimento da capacidade de
pensar do educando, ao escolher a pedagogia da memorização. Em outras
palavras, de acordo com Benevides, os vestibulares “avaliam quem sabe decorar
e resolver pegadinhas e acabam descartando possíveis alunos mais interessados
numa verdadeira formação, no sentido mais forte do termo” (BENEVIDES,
2004, p. 22).
Dessa forma, através da tentativa de driblar o vestibular, as escolas de
nível médio passam a organizar o currículo de acordo com as exigências da
prova. Como conseqüência, segundo PEREIRA (2007), “a questão do
conhecimento, da criatividade e da compreensão crítica do saber é deixada de
lado em detrimentos da objetividade da prova, da média matemática e da
competição em si” (PEREIRA, 2007, p.49).
Os cursinhos privados têm um elevado custo, o qual se coloca fora dos
padrões financeiros da massa trabalhadora e dos desempregados do nosso país, e
também operam sob a lógica do mercado, que visa o lucro e desconsidera a
trajetória de vida dos estudantes. Nessa lógica de atuação, as classes populares
estão fora da disputa, pois além de não terem condições financeiras para
ingressar no cursinho, elas também não “se encaixam” no modelo pedagógico
adotado (memorização).
3. Cursinhos pré-vestibulares populares
Numa sociedade tão desigual como a brasileira, a garantia do direito
fundamental à educação é quase inexistente. O acesso ao Ensino Superior é de
fato um obstáculo para a maioria da população brasileira, principalmente para os
mais pobres, que se encontram em posição desfavorecida em relação às classes
economicamente dominantes, produto da extrema concentração de riquezas
levada a cabo por sucessivos governos ao longo da formação do Estado
brasileiro.
Percebe-se, atualmente, na dinâmica da vida social, que diversos
movimentos sociais e associações civis vêm se mobilizando em defesa dos
direitos sociais, em especial, o direito à educação. São diferentes grupos sociais
e étnicos que reivindicam mecanismos capazes de garantir o acesso e a
permanência no ensino superior, como o caso da defesa das cotas étnico-raciais,
por exemplo.
Nesse sentido, os cursinhos populares constituem-se numa forma de
organização político-pedagógica que começa a ganhar visibilidade junto à
sociedade brasileira. Surgem como consequência do desdobramento, no campo
educacional, das lutas políticas pelo acesso universal ao ensino superior público
e gratuito (NASCIMENTO, 2003). Em outras palavras, nascem com a proposta
de oferecer um espaço de luta para que os jovens das classes populares entrem
na universidade, através do movimento estudantil, movimento negro,
movimentos populares.
O período da redemocratização, na década de 1980, em que o Brasil viveu
uma ampliação na participação política, com grandes greves e mobilizações nos
bairros populares em torno da luta pelas eleições diretas e anistia ampla e
irrestrita, foi o contexto de surgimento dos primeiros cursinhos de caráter
popular. Segundo CASTRO (2005), os primeiros cursinhos populares nascem na
década de 1980, na Baixada Fluminense, fruto da mobilização do movimento
negro, o qual após a constatação da dificuldade dos negros encontrarem
emprego, mobilizam a comunidade buscando inseri-la na universidade.
RIBEIRO (1999) relata a criação do Pré-Vestibular Alternativo de Petrópolis,
bairro de Manaus, no ano de 1987, a partir de uma greve das universidades
federais, em que professores e estudantes sentiram a necessidade de a
universidade sair de seus muros e ir ao encontro dos interesses populares.
É, entretanto, nos anos 1990 que a criação de cursinhos populares
protagoniza uma verdadeira proliferação, especialmente nos grandes centros
urbanos. Em diversas universidades ocorreu a institucionalização de cursinhos
como projetos de extensão universitária, no interior dos campi (na maioria das
vezes articulada pelo movimento estudantil), ao mesmo tempo em que outros
projetos se estabeleceram, como a EDUCAFRO (ação do movimento negro) e
outros projetos vinculados a movimentos de bairro. Dentre estas várias
experiências, há uma multiplicidade de participantes, arranjos institucionais,
propostas pedagógicas e relações com a universidade.
À guisa de definição, “cursinhos populares são ações políticas de atores
engajados em projetos e ações que têm como eixo a transformação social da
realidade por meio da preparação e do incentivo às classes populares a
ingressarem no ensino superior gratuito” (CASTRO, 2005, p. 51). Esta
transformação social se daria na medida em que, além da preparação para as
provas, estes cursos problematizem as desigualdades sociais e educacionais, o
ensino superior, a conjuntura política, cultura, as questões étnicas, de gênero,
entre outras. Entretanto, estão presos a um determinado conteúdo, imposto pelo
programa dos exames vestibulares.
O desafio da entrada na universidade é compreendido como uma superação
solidária e coletiva (FREIRE & NOGUEIRA, 2001) que não se limita a
melhorar o desempenho de jovens dos setores populares nos vestibulares,
articulando–se igualmente a um conjunto mais amplo de lutas pela
democratização do acesso à universidade, entre as quais as políticas de ações
afirmativas e o aumento no número de vagas. Tendo nascido de movimentos
sociais como o movimento estudantil, o movimento negro e o movimento
popular, os cursinhos articulam as bandeiras destes movimentos com o projeto
político pedagógico e a prática educativa, estimulando a organização popular
enquanto instrumento para conquistar seus direitos.
A desconstrução da responsabilização individual pelo desempenho, bem
como o entendimento de que se trata de um projeto coletivo, em que todos os
participantes do cursinho se engajam com vistas à democratização da
universidade ilustra a dimensão de “superação solidária”, e contrapõe-se ao
estímulo da competição e da meritocracia dos cursinhos pré-vestibulares
comerciais. Outra diferença significativa é o custo: os cursinhos populares são
gratuitos ou cobram bem abaixo da faixa de preço dos cursinhos comerciais.
A principal contradição vivida pelos cursinhos populares é a permanente
disputa entre capacitação e politização, emancipação e adaptação, tensão
identificada por SANTOS (2005) como “o confronto entre a politização
pedagógica do trabalho que se efetiva nos pré-vestibulares e a necessidade de
preparação para o vestibular”. São as opções tomadas pelo coletivo de cada
projeto que acentuam a dimensão prioritária de atuação.
4. O Cursinho Popular da Santa Rosa
O projeto do Cursinho Popular da Santa Rosa “Ernesto Che Guevara”
iniciou no ano de 2009, a partir de uma articulação entre militantes do
movimento estudantil e a Associação de Moradores da Vila Santa Rosa. A vila
pertence ao bairro Rubem Berta, localizado na Zona Norte de Porto Alegre,
região mais pobre da cidade.
As aulas do cursinho acontecem na Escola Municipal de Ensino
fundamental Ildo Meneghetti, com o apoio do Diretório Central de Estudantes
da UFRGS e da Associação de Moradores. Caracteriza-se, portanto, como um
espaço comum de atuação entre o movimento de bairro e o movimento
estudantil.
Se por um lado o movimento estudantil está preocupado com a
democratização do acesso à universidade pública, por outro, o movimento
popular, representado pela Associação de Moradores, tem a expectativa de que,
a partir do cursinho, aumente a participação política para reivindicar as
demandas do bairro. A partir da combinação dessas problemáticas, o cursinho se
insere no espaço que tem a universidade como uma das interlocutoras de
demandas.
A falta de relação institucional com a universidade, bem como a
impossibilidade de as aulas serem realizadas em uma escola de ensino médio,
refletem nas dificuldades de consolidação do cursinho: há poucos estudantes
envolvidos com o projeto, do qual a comunidade ainda não se apropriou.
Há dificuldades de interação com os alunos da escola em que acontecem as
aulas, já que estes ainda não cursam o ensino médio e a preocupação com o
ingresso no ensino superior ainda lhes é distante. A escola, assim, passou a ser
apenas o espaço onde ocorrem as aulas, e não centro de referência daqueles que
buscam transformar a realidade educacional do bairro.
Mesmo entre os alunos do bairro que cursam o ensino médio, a
universidade parece ainda ser algo distante de seus planos. Nenhum dos alunos
do cursinho é aluno da escola de ensino médio do bairro, e muitos são os
primeiros da família a concluir o ensino médio. Durante a divulgação do projeto,
estudantes do 1º ano do ensino médio demonstraram desconhecer o que seria a
própria prova do vestibular. Este quadro mostra que no bairro a universidade
está tão distante da realidade local que o projeto de cursar o ensino superior não
faz parte das aspirações destes jovens, que priorizam a busca por trabalho ou
alguma qualificação técnica.
Quanto aos professores do projeto, trabalham sem remuneração, e seu
compromisso com as aulas do cursinho é quinzenal; as aulas são realizadas aos
sábados e a cada sábado são ministradas cinco disciplinas, correspondentes ao
exigido nas provas de vestibular (Matemática, Português, Redação, Literatura,
Geografia, História, Química, Física, Biologia, Língua Estrangeira). O intervalo
de duas semanas entre uma aula e outra acaba distanciando os professores do
projeto e alguns concebem o trabalho como assistencial e não político. A não
remuneração é um fator que acaba causando uma alta rotatividade de
professores, os quais, por questão de sobrevivência, muitas vezes abandonam o
cursinho para trabalhar em algum emprego que garanta o seu sustento.
Percebemos que há dificuldade de trabalhar uma perspectiva de
horizontalidade do conhecimento, não só por parte dos professores, mas também
por parte dos estudantes. A expectativa destes é de que os professores vão “dar a
matéria”, a qual muitas vezes é correspondida pelos professores. Há, entretanto,
uma preocupação constante em trazer à sala de aula temas da conjuntura
política, problemas do bairro, os quais estimulam os alunos a tomar posição
acerca destas questões.
O maior problema vivido pelo projeto hoje, é, sobretudo, a evasão dos
alunos. Dentre os fatores envolvidos neste fenômeno, destacamos os de ordem
objetiva e subjetiva. Sendo os alunos do cursinho estudantes e/ou trabalhadores,
muitos acabam não conseguindo conciliar trabalho e estudo, precisando
abandonar as aulas. O fato de terem jornada de trabalho de no mínimo 40 horas
semanais faz com que o sábado seja também o único período de descanso,
quando não horário de trabalho destes estudantes.
Quanto aos fatores subjetivos da evasão, há que se retomar a construção do
projeto universitário como algo pouco difundido nesta comunidade. Há também
o fenômeno da produção do fracasso escolar (PATTO, 1990), que consiste na
construção, durante as trajetórias escolares do estudante, do imaginário de que
ele é incapaz, baseado em preconceitos de classe, raciais, de gênero, dentre
outros. Assim, o discurso da universidade como um espaço destinado aos
“melhores e mais capazes”, de tanto repetido, acaba sendo incorporado pelos
próprios estudantes, que passam a não acreditar na sua capacidade de entrar no
ensino superior.
5. A universidade e o bairro da Santa Rosa
A experiência desenvolvida até então no Cursinho Popular da Santa Rosa
“Che Guevara” nos revela algo que nossa prática no movimento estudantil já
apontava: o distanciamento da universidade com os bairros populares. A
sistemática alienação do direito ao ensino superior às classes populares reflete-se
para fora da universidade na sua ausência enquanto instituição reconhecida. Este
distanciamento se manifesta desde o projeto do ensino superior universitário não
estar no horizonte de boa parte dos jovens do bairro da Santa Rosa, bem como
no pouco alcance das políticas de assistência estudantil, uma vez que estes
estudantes não conseguem ingressar no ensino superior público.
Dialeticamente, não só a instituição universitária como referência não está
no cotidiano do bairro, como também a população do bairro de modo geral não
freqüenta a universidade, seja nos seus cursos, seja em outras atividades de
caráter aberto ao público geral.
Essa dupla dimensão explicita a necessidade de articulação de interesses no
sentido de tensionar a universidade para a produção democrática de saberes: por
um lado, ampliando o acesso das classes populares a essa instituição e, por
outro, produzindo conhecimento que seja capaz de responder às demandas desta
classe.
Uma mudança de orientação na universidade, entretanto, não se dá sem
embates, na medida em que ameaça os privilégios da sua elite econômica (que
acaba, pela universidade, firmando-se enquanto elite intelectual). Um exemplo
de conflito se deu no processo de implementação das ações afirmativas na
UFRGS, que em 2007 estabeleceu reserva de vagas para afrodescendentes e
indígenas: houve forte reação no interior dos cursos mais elitizados da
universidade, inclusive de orientação neonazista, contrária às cotas étnicoraciais.
Ao estimular a organização para reivindicar o direito ao ensino superior
público, através das ações afirmativas ou pela ampliação de vagas, os cursinhos
populares apresentam uma outra dimensão pedagógica para além dos conteúdos:
a cultura da luta como caminho de conquistas.
Notas
1. Este trabalho não contou com o financiamento de nenhuma instituição ou
organização, e o projeto é mantido pelos próprios participantes, através de
contribuições facultativas.
2. Para uma análise mais profunda sobre o processo de compra de vagas ociosas
nas universidades privadas brasileiras, consultar o trabalho de Deise Mancebo
(2004), que discute a privatização da oferta do ensino superior brasileiro.
3. Compreendemos que educação de qualidade é um conceito em disputa,
considerados os interesses conflitantes em jogo na universidade. A qualidade no
que tange à capacidade da universidade construir um projeto de nação soberana
pode não condizer com a qualidade enquanto algo objetivamente mensurável de
acordo com padrões internacionais, produtivista, que não leva em conta as
relações sociais desta produção acadêmica.
4. A história do vestibular no Brasil é recapitulada por Sônia Guimarães (1984),
e remonta a 1911. Neste período a opção por realizar uma prova unificada ou
regionalizada já oscilou diversas vezes. No ano de 2009 foi iniciada a discussão
sobre a unificação da prova de ingresso das universidades públicas federais,
através do Exame Nacional do Ensino Médio. Até o momento 59 universidades
federais decidiram optar pelo Enem enquanto critério de seleção para suas
vagas.
5. USAID é a sigla para United States Agency for International Development
(Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional). Sobre a
influência da USAID na universidade brasileira após o golpe militar de 1964,
consultar a obra de Luiz Antônio Cunha “A universidade reformanda”.
6. “Garoto de 8 anos é aprovado em direito” é o título da reportagem publicada
em 6 de março de 2008 no jornal Folha de São Paulo. A matéria narra que o
garoto, que cursava a 5ª série do ensino fundamental, foi aprovado em direito na
Universidade Paulista (UNIP) da cidade de Goiânia, Distrito Federal, Brasil.
Referências Bibliográficas
BENEVIDES, Maria Victoria. A democratização do acesso ao Ensino Superior.
Revista Adusp, v. 33 (outubro de 2004): p.21-24.
BRASIL, INEP, Ministério da Educação. Sinopse da Educação Superior.
Disponível em <http://www.inep.gov.br/superior/censosuperior/sinopse/> ,
acessado em 10/09/2009.
BRASIL, "Lei nº 9.394, de 20.12.96, Estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional". Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>, acessado em
22/02/2009.
CASTRO, C. A. Cursinhos alternativos e populares: movimentos territoriais de
luta pelo acesso ao ensino público superior no Brasil. Dissertação de
Mestrado. Faculdade de Ciências e Tecnologia. Unesp Presidente
Prudente/SP. Presidente Prudente, 2005.
CUNHA, Luiz Antônio. A universidade reformanda. 2ª. Edição. São Paulo:
Editora Unesp. 2007. 300p.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
213p.
FREIRE, P; NOGUEIRA, A. Que fazer: teoria e prática em educação popular.
Petrópolis: Vozes, 2001. 68p.
GUIMARÃES, Sônia. Como se faz a indústria do vestibular. (Coleção
Fazer/IBASE). Petrópolis: Vozes. 1984. 76p.
MANCEBO, Deise “Universidade para todos”: a privatização em questão. Proposições, v. 16 (2004), p 75-90.
NASCIMENTO, Antonio Luiz do. Cursinhos Militantes: ação coletiva pela
democratização da educação. Revista Espaço Acadêmico, v. 29 (outubro de
2003).
Disponível
em
<http://www.espacoacademico.com.br/029/29cnascimento.htm> acesso em
27.10.2007.
PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1990. 458 p.
RIBEIRO, Marlene. Universidade brasileira “pós-moderna”: democratização x
competência. Manaus: Editora Universidade do Amazonas. 1999. 444p.
SANTOS, Renato Emerson dos. Pré-vestibulares populares: dilemas políticos e
desafios pedagógicos. In: CARVALHO, José Carmelo; ALVIM FILHO,
Hélcio; COSTA, Renato Pontes (orgs.) Cursos pré-vestibulares
comunitários: espaços de mediações pedagógicas. Rio de Janeiro: Editora
da PUC-Rio, 2005, p. 188-204, 287p.
Download

CURSINHO POPULAR DA SANTA ROSA