DISCURSO DE POSSE DE CLÓVIS BARBOSA 29/05
O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA
Nem a divindade arriscaria impor rédeas ao amor. Intemporal, ele, incessantemente, comina derrotas acachapantes à corrosão e à oxidação
com as quais a rotina mostra-se capaz de sobrepujar outro sentimento.
Há, por exemplo, um provérbio popular que enuncia: “a esperança é a última que morre”. Certamente, embora seja a derradeira a morrer, um dia
ela efetivamente se dissipará. Com o amor, porém, isso não sucede. Ele,
e tão-somente ele, é sempiterno. A morte, que nos extingue enquanto humanos, sucumbe diante do amor que, em nós, é divino e supremo. Para o
amor, a propósito, qualquer adjetivação seria pífia. Quem sabe até contraproducente. Daí, garantir Nietzsche que “o que fazemos por amor,
sempre se consuma além do bem e do mal”. Daí, ademais, ter sido oportuno o título atribuído pelo sumo pontífice, Joseph Ratzinger, à sua primeira encíclica, “Deus caritas est”: “Deus é amor”.
Imortal, o amor sobressai-se pela constante marcha. Nunca recua. Nunca desanda. Avança permanentemente. Duas personagens estão aptas a
demonstrar a seriedade de tal garantia. A primeira, obra do gênio do colombiano Gabriel García Márquez: Florentino Ariza; a segunda – Aristófanes – extraída da poesia que Platão, sutilmente, fez respingar em “o banquete”, seu mais popular ensaio filosófico. Florentino Ariza amou Fermina
Daza. Aristófanes, ao proferir o quarto discurso de “o banquete”, provou
que o amor é o que explica a busca pela completude, a busca pela nossa
outra metade . Por que, todavia, o paralelo entre Aristófanes e Florentino
Ariza? Ora, a história de Florentino Ariza acha-se no romance “o amor nos
tempos do cólera”. O enredo desenrola-se na cidade de Cartagena
(Colômbia). Ali, ele descobriu a adorável Fermina Daza, que lhe entorpecia as idéias. Quis o destino, contudo, afastá-los.
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NÃO HÁ LIMITES PARA A VIDA
Conta García Márquez que o pai de Fermina Daza (Lorenzo Daza), ao
descobrir que sua jovem filha enamorara-se de um telegrafista, promoveu
a separação dos dois a fórceps. O suplício prolongar-se-ia por cerca de
cinqüenta e três anos. Quis o destino afastá-los, como já afirmado. Realmente os afastou. Nesse ínterim, Fermina Daza findou por desposar Juvenal Urbino, conceituado médico que erradicara a pandemia de cólera, moléstia que, à época, dizimava a Colômbia. Mas o amor reaproximou Florentino Ariza e Fermina Daza. Depois de mais de meio século, eis que ela,
curtindo o luto do falecido marido, reencontra o antigo pretendente. Começava, portanto, a ser redesenhado o intenso amor que ambos houveram planejado. O clímax, no entanto, aflui exatamente da conclusão à
qual Florentino Ariza chega, após ter nos braços Fermina Daza: há limites
para a morte; não há limites para a vida.
Em “o banquete”, Aristófanes assegura que, no princípio, os homens
eram como que duplicados. Originados ou da lua, ou do sol, ou da terra,
havia seres duplamente masculinos, havia aqueles que eram duplamente
femininos e, finalmente, havia os que eram compostos por uma parte
masculina e por outra feminina. A estes últimos, Aristófanes denominou
andróginos. Sucede que os homens, nessa performance, eram tão violentos que, um dia, resolveram subir aos céus para enfrentar os deuses. Mas
perderam a batalha. Como castigo pelo atrevimento, Zeus os partiu ao
meio, fazendo com que as metades fossem separadas. O homem, portanto, na compleição consoante a qual é hoje concebido (ou puramente masculino, ou puramente feminino), vive a vagar, procurando seu outro pedaço, do qual foi afastado pela divindade, assim como Lorenzo Daza separou
a filha de Florentino Ariza.
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A FAMÍLIA É O FUTURO DO AMOR
O amor, como se constata, autoriza-nos a enxergar o mundo pelos olhos
de Florentino Ariza ou de Aristófanes. Saber amar permite-nos revestir
com aço a ossatura. E essa armadura que, hoje, não deixa que sejamos divididos transfigura-se na família, que nos torna inquebrantáveis. Um exemplo: em março de 2007, li, no Jornal do Brasil, um texto da lavra de Álvaro Costa e Silva, onde o articulista asseverava que, não fosse Mercedes
Barcha (esposa de García Márquez), a humanidade não teria sido presenteada com o livro “cem anos de solidão”. Durante um ano e meio, intervalo durante o qual García Márquez enclausurou-se para dar à luz sua
mais importante criação, quem aplacava os entreveros que recaíam sobre
a casa era a mulher do escritor. O dinheiro que conseguiram com a venda
do automóvel que possuíam terminou. Mas Mercedes Barcha solucionou a
compra do pão sem atravancar o trabalho do marido.
Engraçado é que, ultimado o romance, Mercedes Barcha falou ao esposo: “Espero que o livro seja bom”. Quinze anos depois, García Márquez receberia o Nobel, não só graças ao dom com que os deuses o distinguiram,
mas graças a Mercedes Barcha (sua metade), que lhe conferiu paz para
velejar tranqüilo no oceano da arte. Com efeito, foi Oliveira Jr. quem
(quando compúnhamos a equipe de Déda frente à prefeitura da capital)
me apresentou ao filósofo Comte-Sponville, autor de o “pequeno tratado
das grandes virtudes”. A última virtude a ser estudada por Sponville é,
exatamente, o amor. Ali, ele revela que “a família é o futuro do amor”.
Pois bem, estou certo de que devo este dia à minha família – à minha metade (Guiomar Salmeron), aos meus filhos, à minha neta – que me fortaleceram para navegar, íntegro e inteiro, no mar colérico que é o mundo. E é
por causa desse amor que confesso que vivi.
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NAVEGAR É PRECISO
Já o sentido da vida política decorre de estabelecermos metas. Um homem sem objetivos ganha a tonalidade de espectro. É necessário arrematar, todavia, que nenhum esboço de conduta alcançará êxito se não for
bosquejado segundo dois princípios elementares: o da edificação da felicidade e o da caminhada realista. Um exemplo. Atribui-se ao físico Albert
Einstein a seguinte alegoria: há um barco no mar; os ares, contudo, não
são, em princípio, favoráveis ao timoneiro. O que faria o pessimista? Desistiria de navegar. Que postura adotaria o indivíduo utópico? Esperaria
que o vento passasse a soprar na direção que lhe interessasse. Como agiria o realista? Ora, esse ajustaria as velas e prosseguiria na sua viagem.
Enxerga-se, por conseguinte, que o realismo encorajador deve ser o verdadeiro combustível – que não poderá, jamais, faltar àquele que desenvolve a pretensão de gerir a coisa pública.
Diante disso, a carta de recomendação de um político comportará mensagens de realismo e propostas de felicidade. A mensagem de realismo
tem premissas. Todas elas trafegam pela noção que o gestor público deve
ter da accountability. Segundo os professores Bruce Stone e Joseph Jabbra, as mais consistentes modalidades de accountability são a administrativa e a política. O termo accountability não possui, no vernáculo, expressão correspondente. Uma tradução livre apontaria para a idéia de prestação de contas e de enquadramento da vontade pessoal do gestor ao querer abstrato da lei. A propósito da compreensão do instituto da accountability, vem a calhar episódio dado em abril de 1893, quando o então presidente da república, Floriano Peixoto, ordenou ao ministro Limpo de Abreu
que o estado pagasse um conto de réis ao irmão de Deodoro da Fonseca,
Pedro Paulino da Fonseca.
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ORIENTAR PARA NÃO SER NECESSÁRIO PUNIR
Como não havia dotação para a despesa, o tribunal de contas glosou a
determinação de Floriano. Colérico, ele declarou que tal fato só poderia
ter saído da cabeça de Serzedello Corrêa, que criara um tribunal que estava acima do chefe do executivo. Ao tomar conhecimento do disparate,
Serzedello mandou dizer a Floriano que o tribunal de contas não lhe seria
superior quando ele agisse conforme a lei. Mas, ali onde se quisesse tripudiar as leis da república, o tribunal seria superior a qualquer um. Possesso, Floriano mandou reformar o tribunal de contas, ato que fez com que
Serzedello Corrêa, então ministro da fazenda, pedisse exoneração. Floriano teve que recuar. Mas a parte da história que interessa neste instante é
exatamente essa: a precisa noção que Serzedello possuía da accountability: nada, num estado democrático, pode vir à tona ao arrepio das leis legitimamente postas pelo parlamento.
A accountability, nesse episódio, foi agraciada com as cores das limitações pecuniárias impostas pelo legislativo. Se o parlamento não autorizou
o gasto, não haverá gasto. O que for além disso é despotismo, macula a
legalidade, emascula a moralidade e defenestra a eficiência das ações públicas. Ainda assim, o tribunal de contas, nos idos de 1893, não tencionou
punir a ilegalidade perpetrada pelo presidente da república. Ele foi pedagógico. A corte, inspirada no espírito de cidadania que afluía da alma de
seu idealizador, Serzedello Corrêa, procurou orientar o chefe de estado,
como que dizendo: “o caminho é encontrar o beneplácito do legislativo”.
Mas a brutalidade de Floriano não lhe deixou agir consoante padrões de
razoabilidade. Ele não era realista. Se fosse, ajustaria as velas. O realismo
ao qual precisa dar vazão a accountability é exatamente esse: orientar
para não ser necessário punir.
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A PRAÇA É DO POVO, ASSIM COMO O CÉU É DO CONDOR
Sendo órgão auxiliar do parlamento, o tribunal de contas precisa alçar
vôos estratégicos em direção à filosofia pluralista sedimentada com o advento da constituição libertária de 1988. É conseqüência natural de uma
nação heterogênea, marcada pela necessária diferença entre os elementos étnicos e sociais que a compõem, a formação de um pensamento franqueado à abertura ideológica. Thomas Hobbes leciona que a única coisa
igual entre os homens é que todos eles são diferentes. Por isso, uma corte
de contas, ao fazer valer a accountability, precisa levar em consideração
tal disparidade. Nem todos os políticos são advogados, ou contadores, ou
economistas. Muitos não tiveram a efetiva oportunidade de saborear os
manuais científicos que ditam regras nas academias de ciência. E, honestamente, os políticos não devem ser doutores da lei, mas mestres da lógica e do bom-senso.
Contudo, é imprescindível mais bom-senso. Embora os julgamentos do
TC zelem pela dogmática, eles também orientam-se pelo primado da ponderação. É que o parlamento não decide como o judiciário. Casas políticas
prolatam julgamentos políticos. Daí, a essência do TC: equilibrar ideologias, dando substrato técnico aos arestos que nascerão no anfiteatro popular. O racional, no TC, funde-se ao sensível, ajustando as velas do barco
ao vento da realidade cotejada. Por quê? Porque as massas elegeram líderes que representam suas fantasias e sonhos. Não cabe ao julgador de
contas inviabilizar políticas gerenciais, ainda que não as melhores (de um
ponto-de-vista técnico), se elas não rompem com a moralidade. Tão preeminente como saber se a principiologia normativa foi atingida é aferir se a
opção do gestor trouxe felicidade à plebe. Afinal, “a praça é do povo, assim como o céu é do condor”.
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A LIBERDADE DOS HOMENS E DOS PÁSSAROS
Mas quem é o povo? Que melodia transborda do pulsar que o coração
das massas entoa? Não é difícil achar respostas para essas perguntas. Não
é necessário recorrer ao teólogo Tertuliano, que professava ser o absurdo
o substrato da crença e da fé: “creio porque é absurdo”. Não. Creio porque é real. A vontade do povo é real. E ela vem à tona quando um chefe
de estado se vê ungido pela pia batismal do voto. Irreal, por outro lado, é
querer atribuir vontade soberana a um fragmento das massas. É querer
dar sopro de vida à patifaria e à arrogância que acreditam poder espatifar
o sonho plebeu de ver sua geração a ditar os rumos de um governo, já que
foi essa a geração que conseguiu tomar democraticamente o poder. Todo
poder emana do povo. E o povo, cujo sangue se espalha pela praça festejada nos versos de Castro Alves, dá tonalidade e vida ao discurso de quem
foi por ele coroado e entronizado.
Não é, por exemplo, o concurso público quem outorga poder. Não é a
origem oligárquica quem o consolida. Quem sedimenta o poder (o verdadeiro poder) é a voz humana que se confunde com as asas dos pássaros.
Conseguir ser ouvido atribui tanta ou mais liberdade do que ter o dom de
voar. Hoje, a geração – que uma corja de assassinos tentou calar com baionetas – faz ecoar seu grito de liberdade, como quem sobrevoa muralhas.
Não há vida num governo de baionetas. E não há vida por uma razão: as
massas não amam quem ascendeu, não porque teve asas, mas porque as
pisoteou. A liberdade que o povo clama é aquela que se assemelha à profecia que o cineasta judeu Ari Folman externou em “Valsa com Bashir”:
ninguém foge de si ou de sua geração. A geração das baionetas morreu. E,
com o seu sepultamento, abriram-se as portas para que a minha geração,
a geração que lutou pela liberdade, pudesse voar.
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Por isso, embora seja Clóvis Barbosa quem, hoje, toma assento nesta
corte de contas, quem de fato se empossa no cargo de conselheiro é uma
geração de liberdade que já está no Olimpo:
01. Clóvis Marques;
02. Carivaldo Lima;
03. Pedro Hilário;
04. Tonico “alfaiate”;
05. João Santana Sobrinho;
06. Jackson Sá Figueiredo;
07. Antônio Jacinto Filho;
08. Osman Hora Fontes;
09. Mário Jorge Vieira;
10. Vítor Nunes Leal;
11. Silvério Leite Fontes;
12. Gonçalo Rollemberg Leite;
13. João Cardoso Nascimento Jr.;
14. Prof. Diomedes;
15. Gilberto “burguesia”.
Por causa dessa geração – a geração que me credenciou a amar intensamente a liberdade – é que hoje, 29 de maio, coincidentemente dia em
que nasceu o poeta italiano Dante Alighieri, todos nós podemos repetir os
versos da Divina Comédia: “cuida da liberdade com a sabedoria de quem
sabe que a liberdade é mais importante do que a própria vida”.
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Leia íntegra do discurso de Clóvis