Mídias, tempos e objetos: a devoção na cultura da aparência
Rúbia LÓSSIO1
Esse artigo analisa questões da estética na cultura popular e culturas periféricas
relacionada à mobilização e devoção diante da fé. Há de se considerar o favorecimento das mídias,
a relação com objetos no cotidiano das pessoas no tempo presente que gera uma sinergia entre o
valor da estética no sagrado. Desse modo, privilegiamos a devoção de santos canônicos e nãocanônicos, romarias, festas de padroeiros, ex-votos, artesões que fabricam santos, orações que o
povo reza e a comunicação que leva o povo ao encontro do divino pela fé. Ressaltamos também a
folkcomunicação, que integra questões da estética que favorecem uma nova compreensão do
cotidiano pelos caminhos do sagrado. Nesse sentido, as especulações e as expectativas são
necessárias para a dinâmica das culturas. A aparência é um modo de proteção para salientar a
relação dos seres humanos com os objetos, percebendo e sendo percebidos ao mesmo tempo.
Aquilo que a gente aprende, a partir do que se oferece, recai nas diversas modulações dos signos
que a gente usa. Nesse conjunto de significados afloram-se o estilo das coisas. O estético se
destaca na maneira como as pessoas veem a sociedade, numa relação dinâmica entre objetos,
tempo e mídias. O estético gera um sistema entre o visível e o invisível. Podemos salientar que hoje
em dia o valor do sagrado encontra-se nos valores estéticos influenciados pelo holograma midiático.
O sagrado recai em arte, e a arte da devoção nas culturas populares e periféricas revela o sentido e
a força da fé e de suas narrativas, fixando o presente pelo passado. Assim, encontramos na
imagem de santo estampadas em camisas, um dos exemplos da voz da estética na devoção,
analisado pela cultura da aparência.
Talvez seja este o segredo da estética, a cultura da aparência é revelada numa dominante
específica estabelecendo uma fronteira entre a modernidade e tradição. Entre segredos e
manifestações as pessoas assumem formas de exibir a dinâmica da cultura numa magnífica
pluralidade de signos, registrada no cotidiano. Numa mistura dramática do hedonismo com as
banalidades do cotidiano as culturas periféricas e populares conseguem exalar os signos da
devoção pela questão da estética. Então privilegiamos o estilo ótico e o estilo tátil, favorecido pela
proxemia, a estética revela o sentido das relações sociais no presente. De fato a “‘conexão
tátil’(A.Riegl), que integra num vasto conjunto de interdependência” (MAFFESOLI, 1996: p.55),
favorece a correspondência entre culturas para que o valor estético seja eleito. Na verdade, há uma
lógica, uma dinâmica nessas culturas entre mídias tempos e objetos que restauram modelos de
sobrevivências. Talvez a leitura melhor para compreender a devoção nas culturas populares e
periféricas seja pela estética que se instaura no fundo das aparências. O cotidiano das pessoas é
como se fosse o cinema de cada um. Em cada filme as banalidades e o s detalhes desvendam
histórias. Na vida cotidiana os detalhes e as banalidades são revelados pelos valores estéticos.
Como todo ser humano em seu íntimo reflete questões do pensar, do querer e do julgar, é o julgar
que está na mira da estética. Então a mídia encarrega-se de fazer julgamentos, de pontecializar a
efervescência do cotidiano das pessoas. Nesse sentido o julgamento é óleo para dimensão estética.
E quando o assunto é devoção toda forma de fé é o julgamento, o querer e o pensar de um
povo. Digamos que a dor maior de um povo seja a certeza de algo, e não da incerteza. A incerteza
deixa brechas para intervalos de esperanças. Já a certeza, a certeza dói mais, daí a devoção ser
um espaço de vários signos, signos revelados pela beleza estética da fé. Mesmo na mira das
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Coordenadora do Núcleo de Estudos Folclóricos Mário Souto Maior da fundação Joaquim Nabuco
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questões econômicas e políticas a estética pode ser lida pela façanha que as culturas populares e
periféricas inauguram em sua mobilidade diária, gerando novos sentidos de sobrevivência. Por isso,
muitas vezes não compreendemos a lógica dessas pessoas. Na verdade eles driblam o sistema
para dar sentido ao próprio sistema de seu cotidiano. São os gêneros do cotidiano. Podemos
destacar que o ser humano seja uma “síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de
liberdade e de necessidade, é, em resumo, uma síntese” (KIERKEGAARD, 2009: p.19). Cabe aqui
ressaltar que as modulações dos signos alteram e religam a dinâmica das pessoas.
Assim, “Duas coisas unem as pessoas: esperança e terror. Elas é que dão coesão à
sociedade.” (CAMPBELL, 2008). Entre o terror e a esperança prevalece à criatividade que apesar
da tecnologia da informação o povo constrói em seu cotidiano alternativa imaginária para compor o
ritmo da vida. Com o uso da tecnologia, reascende-se o mito, Maffesoli (1996): “é sempre uma
anamnese dos fundamentos, e a involução do tempo (no future), ou efervescência social a que se
assiste hoje em dia, é certamente uma maneira de lembrar a ‘a lama original’ que o racionalismo
moderno tivera tendência para esquecer”.
Então, encontramos na cultura um sistema de símbolos que o povo cria e usa para
organizar, interagir e regular o comportamento (TURNER, 2000). Desse modo, as culturas
populares, como afirma Canclini (1982), possuem como características como resistência,
ambivalência e a busca constante das necessidades imediatas. Para tanto, as culturas populares
“se constituem por um processo de apropriação desigual dos bens econômicos e culturais de uma
nação por parte de seus setores subalternos, e pela compreensão, reprodução e transformação,
real e simbólica, das condições gerais e específicas do trabalho e da vida”.
As culturas populares, entretanto, apresentam também em peculiar no seu determinado
grupo ou comunidade uma própria comunicação onde as pessoas interagem umas com as outras,
constituindo e construindo um sistema de comunicação próprio do lugar a partir de crenças e
também da mídia. Por viverem em comunidade, analisaremos que a comunidade é “um
entendimento compartilhado... O tipo de entendimento em que a comunidade se baseia precede
todos os acordos e desacordos. Tal entendimento não é uma linha de chegada, mas o ponto de
partida de toda união. É um “sentimento recíproco e vinculante” _ “a vontade real e própria daqueles
que se unem”; e graças a esse entendimento, e somente a esse entendimento, que na comunidade
as pessoas “permanecem essencialmente unidas a despeito de todos os fatores que as separam”.
(BAUMAN, 2003. p.15 e 16).
Sem perder os significados que as culturas populares constroem, visualizamos outro
aspecto importante que é da folkcomunicação: processo de intercâmbio criado a partir das
mensagens que o povo recebe da mídia e faz uso em seu cotidano. Pesquisado por Luiz Beltrão o
termo ajuda a compreender os anseios que o povo demonstra em seus afazeres e em seus
saberes. Ressalto que “os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam
maneiras de viver.” (DELEUZE, 1994, p.17-8). Também encontramos na vida cotidiana respostas
para compreender o belo nos caminhos da fé.
Adverte Maffesoli que na teatralidade da correria do cotidiano, o furor da vida acontece pelo
drama e pela paixão. O cotidiano oferece um espetáculo de variedades. Dessa maneira, diz
Maffesoli: “A aparência, o simulacro, a duplicidade, cuja importância na estruturação social é sabida,
encontram na teatralização sua expressão mais perfeita. (MAFFESOLI:2001, p. 177)
Nesse sentido, encontramos na teatralidade da vida cotidiana explicação para as
turbulências, conflitos e insatisfações diante das relações sociais. Os conflitos de status e papéis
sociais que a sociedade contemporânea oferece revelam o significado que é atribuído à teoria do
cotidiano.
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O cotidiano, como conjunto de atividades em aparência modestas, como
conjunto de produtos e de obras bem diferentes dos seres vivos (plantas,
animais, oriundos da Physis, pertencentes à natureza), não seria apenas aquilo
que escapa aos mitos da natureza, do divino e do humano. Não constituiria ele
uma primeira esfera de sentido, um domínio no qual a atividade produtora
(criadora) se projeta, precedendo assim criações novas? Esse campo, esse
domínio não se resumiria nem a uma representação objetiva (ou ‘objetal’) de
objetos classificados em categorias (roupas, alimentação etc). Seria algo mais:
não uma queda vertiginosa, nem um bloqueio ou obstáculo, mas um campo e
uma renovação simultânea, uma etapa e um trampolim, um momento composto
de momentos (necessidades, trabalho, diversão – produtos e obras –
passividade e criatividade – meios e finalidade etc), interação dialética da qual
seria impossível não partir realizar o possível (a totalidade dos
possíveis).(LEFEBRE: 1991, p.19 e 20)
Na verdade o estudo da vida cotidiana trata e retrata as relações sociais, estabelece a
produção de sentidos nas interações sociais.Os determinismos da vida cotidiana traduzem a
correria, a competição, à insatisfação registrada pela aceleração da tecnologia da informação.
Queremos salientar que à medida que há modulações dos signos, ocorre uma transparência
nos estilos na vida das pessoas. Consequentemente a maneira como vemos a sociedade contribui
no surgimento da estética. Nesse campo observamos que segundo Flusser, “existem dois modos
distintos de ver e de pensar: o material e o formal.”(FLUSSER:2007, p. 28) O que acontece no
cotidiano das pessoas passa pela questão do material, do imaterial e do tempo. A mídia, por sua
vez contribui na projeção de expectativas e da autoexposição.
Devoção digital
A devoção digital é uma alternativa em tempos globalizados. Celulares ao som de orações e
músicas religiosas, promessas digitais, velas digitais entre outras home Pages que retratam o
ambiente religioso de forma encantadora. Em tempos de comunicação a devoção não poderia
deixar de exercer sua dinâmica.
Diz o site <http://aprendiz.uol.com.br/content/tristoslij.mmp acesso em 27 de abril de 2010 às
15H05>:
Algumas senhoras colocam o celular no alto-falante digital para
transmitir a reza a parentes internados em hospitais. Toca-se numa
imagem de Cristo e ouve-se o relato de uma passagem bíblica. Foi
criado até mesmo um sino digital - a igreja estava sem sino -, com
os mais diferentes tipos da badalada. Nesse laboratório, levaramse em consideração as preocupações ecológicas. Luzes artificiais,
comandadas por um software, reproduzem o movimento e a
intensidade das labaredas de uma vela da cera. "Com isso, evito a
poluição atmosférica."
Realmente, mídias, tempos e objetos são exibidos numa dimensão que ninguém imaginava.
Levar a devoção para tecnologia revela o belo da fé. A relação com o virtual refaz os caminhos da
fé. As promessas virtuais, os pedidos de aflição são feitos nesses sites que enviam um e-mail ao
fiel. Há de se considerar, que a internet mantém o fiel conectado com o seu pedido. De fato essa
relação entre o computador e fé, revela tempos de oratórios digitais. A devoção tecnológica é o
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pleonasmo da fé. Sem falar nas correntes virtuais, que chegam por e-mail. Toda essa devoção
tecnológica traduz um novo caminho do sagrado. O sagrado passa pela conotação virtual, ou seja, é
alimentado por um canal de muita criatividade. E, entre santos digitais, a devoção na cultura da
aparência é enaltecida, tanto pelos que elaboram o site, quanto para quem visita o referido site
depositando suas mais diversas intenções.
A dinâmica da aparência
A dinâmica da cultura da aparência ocorre justamente porque há na vida dos seres
humanos, ciclos que vão do aparecer, do parecer, para depois vir a desaparecer. Primeiro
queremos mostrar exibir, expor, depois queremos imitar para logo depois reinventarmos maneiras
de sobrevivências. Nesse mundo cotidiano de aparências, tornam-se acessíveis as experiências do
senso comum. A cultura da aparência se configura em um esforço cíclico, através de símbolos
estéticos, na tentativa de expor o que está, nos bastidores do cotidiano. Na verdade, a cultura da
aparência precisa dos seres humanos – e das relações dos seres humanos com os objetos – para
sobreviver. O que não pode ser visto, pode ser dito. O que pode ser dito, entretanto, nem sempre é
o que é, mas, o que parece ser. Não é de estranhar que as histórias contadas pelos desfechos e
fracassos são bem mais efervescentes e que são ressaltadas pela cultura da aparência. Para
Nosengo, o mundo se configura por uma "rede sem costura", afirmando a história contada pelo
fracasso é geralmente, mas interessante que a de um êxito, as histórias de sucessos são mais
parecidas entre si, afirma Tolstói: "Todas as famílias felizes são parecidas entre si, cada família
infeliz é infeliz ao seu modo.”(NOSENGO:2008) Desse modo, os símbolos são necessários para a
vida dos seres humanos. Portanto, os símbolos são essenciais nas culturas e por sua vez o
essencial encontra-se sob a superfície e a superfície é o “superficial”.
O que está dentro de nós, nossa ‘vida interior, é mais relevante para o
que nós ‘somos’ do que o que aparece exteriormente não passa de uma
ilusão; mas, quando tentamos consertar essas falácias, verificamos que
nossa linguagem, ou ao menos nossa terminologia, é falha”(ARENDT:
2008, p. 46 e 47).
Para analisar tais fatos de perto, verificamos que a comunicação é a única maneira de
externar os sentidos, ou seja, de aparecer os sentidos. Segundo Arendt, “não há dois mundos, pois
a metáfora os une”. (ARENDT: 2008, p.130)
O mundo é codificado, explica Vilém Flusser, onde precisamos compreender a relação entre
tempo, materialidade e imaterialidade, ou seja, no jogo do mundo também temos que ter jogo de
cintura. Para Flusser, CÓDIGO é “um sistema de signos configurados em um padrão regular.
(FLUSSER: 2007, p. 83)” Precisamos compreender que os objetos hoje em dia são mais que
objetos, e os sujeitos precisam desses objetos para se relacionar com o mundo. Nada se esgota e
nada se anula. Há com tudo uma característica importante que é ambivalência, que traduz essa
relação. Daí, encontrarmos questões relacionadas à necessidade (aparências, modos de
sobrevivência), resistência (hibridização) e ambivalência (mobilidade).
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O código da devoção
A devoção aos santos católicos não-canônicos representa um assunto que, há muito, vem
sendo reconhecido por estudiosos da cultura popular. A esse respeito, muitas pessoas manifestam
as suas ansiedades e desejos (curas para doenças, resolução de problemas financeiros e de ordem
afetiva, entre outros) mediante a devoção daqueles santos. Segundo Cascudo (1974), “o povo faz
seu santo”. E Sousa Barros (1977), por sua vez, atribui a existência das devoções à situação sócioeconômica das populações e à precariedade dos serviços públicos básicos.
As estórias da vida dos santos populares são processadas no imaginário popular, dando
margem ao surgimento de várias lendas, a exemplo do caso de São Longuinho, um santo
pertencente ao devocionário nordestino. Vale a pena ressaltar que o vocábulo longino é proveniente
do latim e significa alto, longo. Segundo a lenda, Longino foi o centurião que transpassou o coração
de Jesus com sua lança. Como era cego, ele não percebeu os respingos de sangue que lhe caíram
nos olhos. E, quando isto ocorreu, deu-se um verdadeiro milagre: Longino voltou a enxergar. A partir
daí, dizem que ele se converteu ao cristianismo: ficou conhecido como São Longuinho, considerado
como o santo dos objetos perdidos, e seu dia ficou sendo o 15 de março. Neste sentido, quando
alguém perde um objeto, por exemplo, para achá-lo é preciso dizer: “São Longuinho, São
Longuinho, se eu achar o que perdi, dou três pulinhos, três assobios e três gritos”. Não se sabe ao
certo o porquê dos três pulinhos, depois de se alcançar a graça concedida. Dizem ainda que São
Longuinho perdeu uma das pernas em uma batalha e, por essa razão, gostava de ver as pessoas
pulando. Vale registrar que São Longuinho - figura que faz parte do devocionário europeu e
brasileiro - representa um santo bastante cultuado na cidade do Recife. Ao longo do tempo, os
milagres exaltados pelos santos não-canônicos foram sendo destacados e memorizados. Com o
acontecimento dos milagres, concedidos por aqueles santos, o interesse de outros fiéis foram sendo
despertados, tornando-se eles, por sua vez, seguidores e devotos desses “santos”. Cabe lembrar
que os avanços das práticas comunicacionais também influenciaram, em muito, a propagação de
tais milagres.
Menina-Sem-Nome
A Menina-Sem-Nome é uma santa católica não-canônica inserida na categoria das “vítimas
inocentes”. Segundo os registros, no início da década de 1980, uma menina de 10 anos de idade,
aproximadamente, foi encontrada morta, com características de estupro, na praia do Pina, no
Recife. Como a família jamais apareceu para reivindicar o seu corpo no Instituto Médico Legal
(IML), a criança foi enterrada como indigente no Cemitério de Santo Amaro, e o seu túmulo ficou
sendo conhecido como o da Menina-Sem-Nome. Até os dias de hoje, esse túmulo continua sendo
um dos mais visitados daquele cemitério e, muitos devotos, acreditando nos poderes milagrosos
daquela Menina, deixam nele as suas preces e ex-votos.
Padre Cícero
Sem sombra de dúvida, no Nordeste do Brasil, o mais famoso e popular, dentre os santos
católicos não-canônicos, continua sendo o Padre Cícero Romão Batista. Ele nasceu no Crato,
Estado do Ceará, no dia 24 de março de 1844, e ordenou-se capelão em 1870, quando Juazeiro do
Norte ainda era chamado pelo nome de Tabuleiro Grande e, em seu povoado, existiam somente 32
casebres de taipa e palha, além de uma igrejinha sob a invocação de Nossa Senhora das Dores.
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Padre Cícero não se dedicou apenas ao culto: ensinou a lavrar a terra, tratou as doenças das
pessoas, cuidou da bicheira do gado, ensinou os cearenses a trabalhar com diversos materiais, a
exemplo do couro, da palha, do barro e da fibra. Um certo dia, a beata Maria de Araújo fez sangrar
a hóstia que Padre Cícero lhe colocou na boca. A partir desse episódio, o fato milagroso foi
espalhado, não mais cessando as romarias para Juazeiro do Norte, com o objetivo de verem de
perto a eleita do Senhor. Com a chegada de tantas pessoas, a cidade cresceu muito. Junto às
ocupações masculinas surgiram oficinas de sapateiro, funileiro, seleiro, ferreiro; e, junto às
femininas, surgiram rendeiras, fiandeiras, chapeleiras, oleiras.
Uma Comissão de Inquérito foi formada, então, para apurar os fatos. Mas, quando
chamaram a beata Maria e lhe ministraram uma hóstia, ela não mais sangrou. Sendo assim, os
religiosos julgaram o ocorrido como um grande engano, o capelão ficou proibido de falar sobre
milagres e de atender aos romeiros. Entretanto, como as romarias continuavam, os superiores
religiosos tomaram uma outra decisão: proibiram o Padre Cícero de exercer as funções
eclesiásticas, o que permaneceu por mais de duas décadas. No dia 20 de julho de 1934, quando o
padre morreu aos 90 anos de idade, mais de 70 mil pessoas acompanharam o seu sepultamento.
Daquele dia em diante, mensalmente, a cada dia 20, os fiéis se reúnem em torno da capela de
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde repousam os restos mortais daquele sacerdote
carismático, amável, paciente, hospitaleiro, modesto e empreendedor.
E, em Juazeiro do Norte, em uma área de 100 metros quadrados, foi erigido um grande
monumento em homenagem ao Padre Cícero. Junto com o pedestal, o monumento apresenta 25
metros de altura. A estátua propriamente dita, contudo, possui 17 metros de altura, 7 metros de
diâmetro, e pesa 357 toneladas. Nas romarias, Juazeiro do Norte recebe centenas de milhares de
peregrinos, que chegam de ônibus, carros e caminhões, ou mesmo a pé.
Santeiros
Os peritos trabalhadores manuais, os mestres santeiros, ganham a vida se dedicando a
arte de fazer santos. Exalando sensibilidade os santeiros reproduzem santos das mais diversas
maneiras, sejam em madeira, sejam em pedra-sabão, barro ou em gesso. Os santos atendem ao
gosto e estilo do santeiro ou é elaborado a pedido do fiel. É o caso do Santeiro Roque que em seu
ateliê na cidade de Petrolina, Pernambuco reproduz santos em estilo barroco feitos de madeira com
originalidade brasileira. Temos também em Tracunháem, situada na zona da mata de Pernambuco,
onde a cerâmica artesanal é o fator de principal fonte econômica da população local. Muitos santos
de barro são reproduzidos ao estilo do artesão. E, em muitas casas, avôs, pais e filhos aprendem a
arte manual de fazer santo. Os Santeiros na verdade é um artista que exprime sua devoção no
trabalho manual de suas mãos. Muitos santos mantém uma semelhança com o próprio santeiro.
Festas de padroeiros
O sentido da festas populares envolve confraternização e apresentações. Há também
brincadeira para espaço de negociação, mobilização e intercâmbio, mito e rito de projeção simbólica, de
valor estético e recreação, em que há uma efervescência coletiva. A festa também é capaz de colocar, em
cena, segundo Durkheim, o conflito entre as exigências da "vida séria" e a própria natureza
humana. Segundo seu modo de ver, as religiões e as festas refazem e fortificam o "espírito fatigado
por aquilo que há de muito constrangedor no trabalho cotidiano". Nas festas, por alguns momentos,
os indivíduos têm acesso a uma vida "menos tensa, mais livre", a um mundo onde "sua imaginação
está mais à vontade" (DURKHEIM, 1968: 543/547),( AMARAL , 2001).
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Com toda essa dimensão, é nas festas de padroeiros e romarias que aparecem pelo valor
estético, o cotidiano (pela forma como o povo se organiza), a mídia (pela forma como o povo se
apresenta desde a vestimenta à ornamentação) e tempo (onde a tradição se renova por códigos).
"A festa é a fusão da vida humana. Ela é para a coisa e o indivíduo o cadinho onde as distensões
se fundem ao calor intenso da vida íntima" (BATAILLE, 1973: 74).
Maffesoli usa o termo êxtase para se referir àquilo que Durkheim chamou de efervescência,
isto é, o “ultrapassamento”, a “transcendência” do indivíduo no interior de um grupo mais amplo; o
"eu" que se dilui no coletivo. Ele afirma, ainda, que a festa e o êxtase são os dois maiores inimigos
do princípio de individualização que parece controlar as relações sociais na sociedade
contemporânea e, indo mais longe, acredita que a "revolta" da festa em todas as suas "feições" é
iminente. Ele diz: "Uma cidade, um povo, mesmo um grupo mais ou menos restrito de indivíduos,
que não logrem exprimir coletivamente sua imoderação, sua demência, seu imaginário, desintegrase rapidamente." (MAFFESOLI, 1985:23)
"Um festival é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma proibição”
(Freud, 1974: 168).Os critérios da festa ultrapassam o tempo cotidiano, onde há uma celebração,
como a festa de representação (contam-se aquelas que apresentam “atores” e “espectadores”) e
festa de participação (cerimônias públicas das quais participa a comunidade no seu conjunto).
(DUVIGNAUD, 1976, 1983).
Segundo Amaral (1998), longe de serem um fenômeno alienante, de distanciamento da
realidade, cujo resultado seria negar ou reiterar a sociedade tal como se encontra organizada, as
festas brasileiras são capazes de estabelecer a mediação entre as utopias e a ação transformadora,
pois através da vontade de realização da festa, muitos grupos se organizam, crescendo política e
economicamente, ainda que em modo local. A organização para as festas tem visado, muitas
vezes, atingir finalidades de ordem social, passando a organização primária a existir como ONG. A
festa "à brasileira" não só não nega exclusivamente os valores sociais, podendo celebrá-los,
inclusive, como também não os reitera apenas, como querem as principais teorias sobre festas.
Sendo, antes, mediação entre ambas intenções (e outras), nega os aspectos da sociedade em que
ela se mostra deletéria à vida humana, ao mesmo tempo em que reafirma valores do povo
brasileiro, como projeto social ou como utopia.(a esse respeito consultar:
http://www.arikah.net/enciclopedia-portuguese/Rita_Amaral
http://www.aguaforte.com/antropologia/).
Para tanto há nas festas populares, comunicação entre culturas, significado da vida em
grupo, além de ser um fenômeno social. De qualquer modo, a festa, para os autores Goldwasser,
1975; Leopoldi, 1978; Da Matta, 1978; Magnani, 1984, Brandão, 1985, 1988 e outros, é sempre
positiva, seletiva e edificante, mais que destruidora.
Também há uma carga de emoção e sensibilidade nos artesões que fabricam as peças de
santos. Os santeiros demonstram, através da estética, formas que nem sempre obedecem a uma
simetria correspondente à que estamos acostumados a ver. Os ex-votos, por sua vez, fazem parte
de um cenário que leva para o sagrado a comunicação dos mutilados e dos vencidos. Os vencidos
carregam em seu imaginário a forma elegante de expressar os sentimentos relacionados à dor. Eis
aí o belo da fé.
Cruz na beira estrada
Em viagens feitas pelo sertão de Pernambuco, ou mesmo em alguma estrada do Brasil
encontramos cruzes que apontam vestígios de pessoas que morreram ou sofreram acidentes
nesses locais. Os registros de Câmara Cascudo em seu Dicionário apontam que “a cruz afugenta
os seres diabólicos e os bichos de assombração...As cruzes de madeira marcam sepulturas cristãs
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em todo mundo e também em lugares onde alguém faleceu de morte violenta, assassinato ou
acidente. Junto às cruzes põem pedrinhas representando orações, equilibradas no transepto ou
agrupadas ao pé. (CASCUDO, 1998: p.323)”. A cruz é um símbolo universal muito poderoso. Muitas
pessoas colocam uma cruz na beira da estrada para dizer que naquele local morreu alguém de
morte matada. Muitos fazem uma pequena capela, colocam pedras e flores e visitam aquele local
mesmo não sendo o local onde o morto foi enterrado. A cruz na beira da estrada esteticamente
analisando, recai no que o povo pensa, quer e julga sob a forma como aquele parente ou ente
querido morreu. O importante é que ninguém sabe se foi mulher, homem ou criança, mas sabe-se
que alguém morreu ali, no local onde há uma cruz. Ninguém sabe como foi o acidente, mas, há uma
cruz indicando a angústia do povo. A cruz na beira da estrada designa o desespero humano em
forma de símbolo.
Orações que o povo reza
No fabuloso mundo da imaginação humana, encontra-se a comunicação. A comunicação
com o divino é revelada nas maneiras expressivas do pensar, querer e julgar nas culturas
periféricas e populares. O povo em sua dimensão entra em contato com Deus exibindo orações
elaboradas para facilitar ou até mesmo para solucionar o desespero humano. A oração é um
manifesto do íntimo de cada pessoa em um desespero particular. Sem falar nas orações
convencionais, o povo elabora em sua dinâmica do cotidiano, orações para promover os seus
pedidos com o divino. Na verdade o povo edita em orações os seus desejos e desesperos.
Curiosamente no livro de Mário Souto Maior (1998), Orações que o Povo Reza, encontrei orações
para proteger o carro, para guiar pessoas em perigo, para dores nas costas, oração do meio dia,
para levantar o ânimo, para determinadas coisas ou sucesso sejam vistos durante o sono, entre
outras. Achei interessante esta oração que foi publicada no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro,
1951, onde Manuel Diegues Júnior menciona esta oração para dor de dente passar (SOUTO
MAIOR, 1998: p.70):
“Escreve-se na areia e se vai apagando seguidamente cada palavra:
São Nicodemos sarai este dente!
Nicodemos, sarai este dente!
Sarai este dente!
Este dente!
Dente!”
Entre segredos e manifestação o povo constrói um espaço estético de signos e
significados.
Promessas
Uma súplica atendida, um ex-voto, uma obrigação de praticar ou não determinados atos,
penitências entre outros momentos de afazeres para devoção, revelam a voz do povo em tempos
de aflição. Nesse sentido, as mídias os objetos de devoção geram formas estéticas na cultura da
aparência para designar a ponte entre o sagrado e suas manifestações. As promessas na verdade
é forma estética de devoção, é a manifestação de um povo desesperado. Cada símbolo ou ação
diante de promessas de um povo revela o pensar e o querer registrado em obrigações. O ex-voto
define o sentimento de cada pessoa. A promessa é um contrato de devoção seja deixar a barba
crescer, não cortar o cabelo, usar só uma cor no dia do santo, subir degraus de joelhos, andar com
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tijolo na cabeça, andar de costas, usar a camisa do seu time de futebol, vestir-se de anjo, entre
outras para alcançar ou suplicar alguma graça traduz na estética à aparência da dor de um povo
para demandar seus quereres.
Procissões
Desfile de fiéis, a procissão é o cortejo estético da devoção. A procissão revela o pensar de
um povo pelo canto, pela vestimenta, pelo andor e pela fé.
“As procissões religiosas, desfile de fiéis, acompanhando o pálio onde ia o
sacerdote, ou seguindo andores ou charolas, com imagens dos santos do dia,
foram instituídas no Brasil, desde 1549, quando o primeiro governador-geral,
Tomé de Sousa, fundou a cidade do Salvador e vieram os jesuítas. ‘A primeira
solenidade celebrada com esplendor nesta heróica e leal cidade foi a procissão
do Corpo de Deus”. (CASCUDO, 1998: p.737)
Hoje as procissões têm carro de som, velas em garrafas de plásticos (garrafa PET)
cortadas para iluminar o caminho, camisas de santos, fitinhas amarradas, andores e muito mais. O
desespero humano aparece no valor estético nas procissões para designar em aparências as dores
em coletividade. E entre o pensar e o querer o povo desfila suas dores nas procissões.
Em Olinda, Pernambuco há um o homem que se dedica em enfeitar os andores das
procissões e ao mesmo tempo ele também se dedica em ornamentar o carnaval da referida cidade.
Nesse espaço arquitetônico de vibração e de euforia que é Olinda, o artista plástico e carnavalesco
Carlos Ivan de Melo, contribui com sua dedicação e perfeição em seus trabalhos ricos em
criatividade que exalta o belo.
Carlos Ivan de Melo nasceu na cidade de Olinda, Rua Coronel João Lopes, antigo “Beco da
Poeira”, nos arredores do Varadouro. É filho de dona Antônia da Paz Vieira de Melo e do senhor
Manoel Vieira de Melo. Durante sua infância apreciava com admiração os trabalhos de sua tia
Julinha, senhora prendada nas artes da costura e da decoração. Também observava a criatividade
dos artistas ao seu redor. A sua faculdade foi à cidade que lhe serviu de berço e seus professores
de arte os artistas ao seu redor. Aos poucos foi adquirindo sua própria linguagem, seu jeito de fazer
arte, unindo uma fantástica criatividade a um estilo refinado e aristocrático. Viajou e conheceu
outras terras, principalmente várias vezes a Portugal onde foi várias vezes, inclusive para
apresentar trabalhos tais como o “Grupo de Canto e Dança de Olinda”.
Em seus trabalhos estão a religiosidade e envolvimento com os movimentos da igreja
católica romana, sua paixão pelo carnaval e principalmente sua extraordinária memória. Carlos Ivan
lembra fatos, músicas e brincadeiras do passado olindense com riqueza de detalhes. Este amor e
admiração pelo passado de Olinda fizeram-lhe realizar durante alguns anos o “Baile das
Sinhazinhas”, todo a caráter, com os jovens da sociedade de Olinda, onde reviveu os velhos saraus
de sua amada cidade. Sua obra também é encontrada nos andores e procissões de Olinda e Recife,
como por exemplo, as procissões de Nossa Senhora do Carmo e N.Sra. dos Passos (Recife) e as
Procissões de Olinda, principalmente do Padroeiro da cidade, São Salvador do Mundo.As
ornamentações de igrejas e outros ambientes realizados por este artista são reconhecidos pelo seu
bom gosto e respeitadas por aqueles que entendem de beleza e refinamento.
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Argumentos finais
Não é a toa que o povo se expõe para exibir a sua participação nos caminhos dos santos. A
beleza é justamente o diferencial na forma da assimetria: acender vela para o time preferido, expor
seu filho para o Santo, colocar a roupa da cor do Santo protetor, vestir-se para pagar promessa,
comprar santinhos, fazer pedido, ajoelhar-se, formam uma dinâmica estética que recai na
contemplação do tempo em que vivemos, entre a tecnologia e a devoção. Nada se anula nem se
esgota, a um valor estético que direciona o tempo. A simplicidade do senso comum é revelada pela
estética. A estética é a fotografia do belo, o belo da fé. É o caminho para compreender as relações
sociais em tempos de inovações tecnológicas. A estética talvez seja o segredo para analisarmos o
mundo da autoexposição na cultura popular e periféricas. O pensar, o querer e o julgar, são
exalados no fundo das aparências no cotidiano dessas pessoas. E entre mídias tempos e objetos a
devoção é compreendida na dimensão de sua beleza. A devoção tecnológica é o pleonasmo da fé.
Toda essa devoção tecnológica traduz um novo caminho do sagrado. O sagrado passa pela
conotação virtual, ou seja, é alimentado por um canal de muita criatividade. E, entre santos digitais,
a devoção na cultura da aparência é enaltecida em suas mais diversas intenções.
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Mídias, tempos e objetos: a devoção na cultura da aparência