Latusa Digital Ano 8 – N. 44/45 – Março e Junho de 2011.
A prática psi como suplemento do sistema judicial1
Romildo do Rêgo Barros
RESUMO
O texto trata da intervenção do profissional psi no campo judicial. A psicanálise
opera como tratamento para as crises que se dão no plano dos universais, ou no
ponto em que o particular se confronta com o universal. Atualmente, percebe-se
uma dificuldade de que o encontro do sujeito com a Lei funcione, pois não há
assentimento do sujeito, necessário à lógica da lei. É preciso tentar localizar onde
está o sujeito, seguindo o caminho que vai da decifração de uma mensagem que
escapa ao sujeito, ao acompanhamento de um sofrimento que exclui o Outro.
Palavras-chave: lei, universal, assentimento subjetivo
ABSTRACT
The text deals with the psi professional intervention in the judicial field.
Psychoanalysis operates as a treatment for crisis that occurs in terms of universal, or
at the point where the particularity is confronted with the universal. Currently, one
can perceive the difficulty of the subject's encounter with the law to operate, because
there is no subjective assent, necessary to the logic of the law. It is necessary to try
to locate where is the subject, by following the path from deciphering a message that
escapes the subject, to the accompaniment of a suffering that excludes the Other.
Key-words: Law, universal, subjective assent
1
Mesa redonda na Escola Superior de Administração da Justiça ― ESAJ, em mar. 2006, com a participação da
desembargadora Dra. Marilene Melo. A mesma palestra, um pouco modificada, foi apresentada na Sociedade de
Psicanálise Iracy Doyle, por ocasião da homenagem a Horus Vital Brazil, em maio. 2006
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A existência da psicanálise está intimamente ligada às formas que tomou a civilização.
De forma talvez um pouco particular, mas ligada. A psicanálise é uma conquista, e, ao
mesmo tempo, um efeito sintomático da civilização. Podemos entender esta afirmação
como se a psicanálise fosse o coroamento de um período da civilização, uma forma
aperfeiçoada do laço social, mas podemos entendê-la também como uma constatação
de que a civilização, após chegar a certo patamar, engendrou sintomas que suscitaram
a invenção, por parte de Freud, dessa forma tão singular de intervenção clínica. Não foi
simplesmente o surgimento dos sintomas o que suscitou a invenção freudiana ― a
histeria, por exemplo, existia antes da psicanálise ―, mas também a posição do Outro,
representada na estrutura da família e nas formas de transmissão dos significantes da
cultura.
Se tomarmos como exemplos dois pólos extremos da civilização, a barbárie e a
teocracia, veremos que ambas dificultam ou impedem a existência da psicanálise. A
primeira porque se dá como dissolução do Outro
― ou anomia, nos termos de
Durkheim ―, como impossibilidade de pactuar, e a segunda porque esse Outro é nela
absoluto, ou seja, é um Outro a quem o sujeito entregou a causa do seu desejo, como
diz Lacan em A ciência e a verdade2.
Essa mesma relação, me parece, a psicanálise mantém com outras dimensões da vida
social, como a ciência, a lei e o Direito. Não haveria psicanálise sem a hegemonia da
ciência, e nem tampouco sem a vocação da lei como expressão do universal.
Esses universais estão em crise: nos nossos tempos, descobrimos que a ciência não é
simplesmente uma prática que conduziria ao progresso infinito e levaria a humanidade a
dispensar as superstições, como se esperou a partir do século XVIII.
Ela engendra
igualmente problemas que não sabe resolver, como os graves impasses da ecologia.
Também estamos nos dando conta de que o universal da lei é relegado a um segundo
plano, em benefício dos contratos particulares, necessariamente relativos; e, finalmente,
sabemos que a aplicação do direito sofre de uma patologia que não é simplesmente
contingente, como a corrupção ou a imperfeição dos dispositivos legais.
2
LACAN, J. “A ciência e a verdade”. Em:Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 887.
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Podemos citar um exemplo escolhido meio ao acaso: folheando o Novo Código Civil
Brasileiro, lemos, no item VII do artigo 1.634, que “compete aos pais, quanto à pessoa
dos filhos menores, (...) exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços
próprios de sua idade e condição”.
Há alguns termos nesse enunciado legal que nos dão a impressão de que o
entendemos a partir do simples bom senso, mas na verdade não sabemos muito bem
até onde vão, e provavelmente não se pode estabelecer esse limite por meio da lei: até
onde, por exemplo, vai a obediência, ou o respeito, ou os “serviços próprios da idade e
condição”? Pensando numa iniciativa parlamentar recente, cabe a pergunta: será que
um pai, ao dar uma palmada no seu filho, está impondo a obediência que é seu dever
exigir, ou está torturando um cidadão que, apesar de mais fraco, tem em princípio os
mesmos direitos fundamentais? O que está em questão, como se pode constatar, é até
que ponto um ato em princípio privado, particular, motivado pela ideia que um pai tem
de como educar os filhos, pode ser abrangido pelo universal da lei. É a eterna relação
contraditória entre o particular e o universal, ou entre o privado e o público, que é o pão
cotidiano dos que trabalham com a aplicação da justiça.
Apesar de escolhido quase ao acaso, este exemplo do nosso Código Civil é bem
oportuno. Na verdade, ele mostra uma tendência, provavelmente mundial, a uma
politização das relações privadas, ou seja, a uma ampliação do espaço da família, das
áreas que Hannah Arendt chamou de “pré-políticas”, e que dizem respeito à “criação
dos filhos e a educação”, ao avanço das iniciativas do poder público3. Antes, segundo
Hannah Arendt, a autoridade podia ser exercida mais facilmente no pré-político porque
se impunha, por um lado, sem necessidade de coerção, e, por outro, sem necessidade
de argumentos ou justificativas — “onde se utilizam argumentos, a autoridade é
colocada em suspenso”. Ou seja, tratava-se de uma autoridade autojustificada, fundada
não em algum texto legal escrito, mas em uma tradição tão remota que muitos pensam
que vem da natureza, ou de Deus.
Dito de outro modo, a função do pai se impunha como critério do certo e do errado,
mesmo quando o personagem não estava à altura da função. A função é de alguma
forma transcendente, ela extrai sua autoridade de um plano mais alto do que o da
3
ARENDT, H.: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 3a edição, p. 128.
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pessoa que a exerce. A psicanálise surgiu exatamente no momento em que essa
transformação se manifestou de forma mais efetiva, ou talvez mais acelerada. A
psicanálise é um sintoma dessa transformação: foi em boa parte como tratamento
dessa crise que ela foi inventada por Freud.
A psicanálise é um sintoma do universal, e não ela própria um universal. Talvez se
possa entender assim a famosa frase de Freud, segundo a qual a psicanálise não
precisa ter uma concepção do mundo própria, pois dispõe da Weltanschauung
científica. Ou seja, ela opera como tratamento para as crises que se dão no plano dos
universais, ou no ponto em que o particular se confronta com o universal.
Diante disso, como considerar a tarefa que os psicanalistas podem desempenhar no
âmbito do Direito, ou seja, no âmbito das técnicas de distribuição da justiça e de
aplicação da lei?
Esta pergunta tem uma origem contingente, pois surgiu dos meus contatos com
psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, etc. que trabalham no Judiciário, em
particular nas Varas de Família. Eu tive um encontro muito interessante com eles: fui
convidado há alguns anos a participar do Encontro de Psicólogos Jurídicos que é
realizado anualmente, e, desde então, temos mantido contato.
II
No último encontro que tivemos, eu escolhi como título da minha intervenção A prática
psi como suplemento do sistema judicial.
Naturalmente, a questão está no termo “suplemento”. Será que essas relações são de
fato suplementares? Ou seja, será que a ajuda que os profissionais psi - psicólogos,
psiquiatras, psicanalistas, psicoterapeutas... — prestam à Justiça, visam realmente a
suplementar o universo do Direito e da aplicação da lei?
Um suplemento é diferente de um complemento. Na definição que nos dá a matemática,
aprendemos que ângulo complementar é aquele que falta para completar noventa graus
(por exemplo, o ângulo complementar de 40° é 50°). Já o suplementar é o ângulo que
se deve somar a um outro para formar cento e oitenta graus. Em relação ao ângulo de
90°, portanto, cujo paradigma é a altura máxima do sol, o suplemento é algo que se
acrescenta ao que, por si só, já se definiria sem a ajuda de mais nada.
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Se este raciocínio está correto, devemos dizer que a lei não precisa propriamente de
complemento, pois não lhe falta nada. Faltam sem dúvida à lei as maneiras de aplicá-la,
e certas técnicas para tornar possível que ela seja posta em prática. É aqui que
intervêm eventualmente os vários campos do saber que são convocados como
auxiliares da Justiça: entram aqui os profissionais da saúde, do serviço social, da
educação, etc., que facilitam a aplicação da lei. Mas nada falta à lei para que seja lei.
Como lei, ela é sempre universal. Quando dizemos, por exemplo, que “todos são iguais
perante a lei”, estamos anunciando forma tomou o universal da lei na nossa época
democrática.
Se é necessária a intervenção do profissional psi no sistema judicial (eu tomo aqui
como paradigma do psi o psicanalista), é porque há algo que excede esses dispositivos,
algo que não conduz à pura aplicação das leis, mas até, pelo contrário, a impede ou
dificulta. Dito de outra forma: o próprio caráter universal da lei é de certa forma
dependente das exceções que a lei produz.
Em 1950, Lacan escreveu que:
O recurso à confissão do sujeito, que é uma das chaves da
verdade criminológica, e a reintegração na comunidade social,
que é uma das finalidades da sua aplicação, parecem encontrar
uma forma privilegiada no diálogo analítico, isso se dá, antes de
mais nada, porque, podendo ser levado às significações mais
radicais, esse diálogo aproxima-se do universal que está inscrito
na linguagem (...)4.
Essa frase descreve perfeitamente o encontro de um sujeito com a lei, ou seja, o
encontro de uma exceção, ou de uma particularidade, com o universal. Esse encontro
pode se dar por meio da confissão ou da punição, mas também por meio do mero
cumprimento da lei. Ao mesmo tempo, a frase de Lacan situa a análise como mediação,
ou como um recurso que pode ser usado quando esse encontro não funciona muito
bem. De alguma maneira, a análise seria um sintoma intermediário, entre o particular e
o universal.
4
LACAN, J.: "Funções da psicanálise em criminologia". Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p 130.
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III
Esse encontro implica, como Lacan já apontava, um assentimento do sujeito; se o
sujeito não reconhece, por exemplo, o direito que tem o juiz de condená-lo, esse
encontro só pode se dar como violência.
Penso que algumas formas de violência, particularmente anômalas, que caracterizam a
nossa época e que não podemos imputar simplesmente ao aumento da marginalidade
social ou da pobreza, podem servir de exemplos de como a ausência de um
assentimento do sujeito impede o sintoma de operar como maneira de expressão do
particular ou como endereçamento de uma mensagem — que é um ponto fundamental
da descoberta freudiana.
O sintoma passa a ser a simples repetição — como
assinalava Jacques-Alain Miller há alguns anos — ou a simples compulsão, ou as
passagens ao ato inteiramente cegas. Ao mesmo tempo, essas formas contemporâneas
de violência mostram que há uma dificuldade em se obter o assentimento, necessário à
lógica da lei.
O psicanalista saberá fazer essa passagem, que vai da decifração de uma mensagem
que escapa ao sujeito, ao acompanhamento paciente de um sofrimento que até certo
ponto exclui o Outro?
Não devemos lamentar as transformações do mundo — como sempre acontece, há
aspectos de destruição e de construção no que estamos assistindo —, mas tentar ver
quais formas estão tomando os sintomas, ou seja, tentar localizar onde está o sujeito.
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