ISSN 0102-0625 Em defesa da causa indígena Ano XXXI • N0 310 • Brasília-DF • Novembro-2008 R$ 3,00 Policiais em ação na aldeia Tucum, no sul da Bahia – Foto: Walney Magno TRUCULÊNCIA POLICIAL Agentes da Polícia Federal invadem aldeias dos Tupinambá, no sul da Bahia. Na Serra do Padeiro, pelo menos 20 pessoas ficaram feridas e dois indígenas foram presos Página 10 Os Guarani do Paraná comemoram duas ações favoráveis na Justiça Os 25 anos do assassinato de Marçal é lembrado durante Aty Guasu Povo Bororo luta para reconquistar seu território tradicional Página 4 Página 5 Páginas 8 e 9 Opinião Conflito de governo na política de saúde indígena E ISSN 0102-0625 m 1999, quando a lei Arouca (que instituiu o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena com base nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas - DSEIs) foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, imaginava-se que o Ministério da Saúde implementaria uma política de atenção à saúde indígena nos moldes do que a lei determinava. Naquele ano, ao contrário, as responsabilidades de governo foram entregues a ONGs, prefeituras e organizações indígenas. Como conseqüência, coube ao Ministério da Saúde, através da Funasa, apenas o estabelecimento de convênios com as terceirizadas, o repasse dos recursos e a cobrança da sua aplicação. O modelo perdurou até o início de 2008, quando o Ministério Público Federal do Trabalho solicitou judicialmente que esta política terceirizada fosse considerada ilegal. Foi estabelecido um prazo para que o Ministério da Saúde reformulasse o modelo de assistência, rompesse com os convênios e realizasse concursos públicos para contratação dos profissionais em saúde indígena. Nos últimos anos, o movimento indígena e as entidades indigenistas vêm solicitando a constituição de uma Secretaria Especial de Saúde Indígena, no âmbito do Ministério da Saúde, para coordenar as políticas de saúde indígena. A esta secretaria devem vincular-se os profissionais e ela deve contar com um orçamento que assegure as ações dos DSEIs, tendo eles autonomia administrativa e financeira mediante plano distrital. Porém, em 29 de agosto, o ministro da Saúde apresentou ao presidente o Projeto de Lei 3.958/2008, que altera a Lei 10.683/2003. O projeto dispõe sobre a organização da Presidência e dos ministérios e cria a Secretaria de Atenção Primária e Promoção da Saúde, para a qual seriam transferidas Edição fechada em 12/11/2008 Publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). UNIÃO EUROPÉIA 2 reuniões, a pretexto de avaliar o modelo de atenção em curso, busca-se a adesão dos indígenas para pressionar o governo, no sentido de que este reveja sua decisão e que a Funasa se mantenha responsável pela saúde indígena. Além disso, a Funasa mantém em Brasília indígenas e representantes das prestadoras de serviço para que conversem com variados segmentos sociais e órgãos de Estado, em uma espécie de lobby para evitar que o projeto seja aprovado. Enquanto a discussão acontece, vemos a grave situação de saúde de muitos povos indígenas, com quadros de endemias de hepatite, malária, tuberculose e outras doenças, o que demonstra a inadequação do modelo terceirizado e centrado na Funasa. Por outro lado, preocupa-nos o fato de que os povos indígenas sejam mantidos de fora das definições mais importantes. O projeto de lei apresentado pelo governo parece ser muito mais um paliativo, uma solução confortável para retirar da ilegalidade a atual política de saúde indígena, sem manifestar interesse em implementar uma política que respeite as determinações constitucionais, a Lei Arouca e as recomendações das Conferências Nacionais de Saúde Indígena. Roberto Liebgott Vice-presidente do Cimi Dom Erwin Kräutler PRESIDENTE Paulo Maldos Assessor Político Vale-tudo eleitoreiro O fazendeiro Délio Fernandes, suspeito de ser o mandante do assassinato de Irmã Dorothy, há três anos, foi eleito vice-prefeito de Anapu, no Pará. Surpreendentemente, Fernandes é vice na chapa de Chiquinho do PT, antigo aliado e amigo da missionária assassinada. Em 2003, Chiquinho e Irmã Dorothy acusaram o fazendeiro de grilagem de terras no município. Crise – parte 1 Governos dos Estados Unidos e Europa já gastaram 11% de toda a riqueza produzida no mundo para salvar bancos na crise do sistema financeiro. A estimativa é do Banco Central da Inglaterra. O valor corresponde a quatro vezes a economia brasileira, mas o BC inglês prevê que a crise ainda gere prejuízos de cerca de 2 trilhões e 800 bilhões de dólares. O curioso é que, enquanto há toda essa mobilização para “salvar os bancos”, seria necessário um esforço muito menor, de apenas 1% das riquezas produzidas para solucionar os problemas climáticos e metade do que foi dado aos bancos para erradicar a fome no mundo. Crise – parte 2 Chamados de heróis pelo presidente Lula há dois anos, os usineiros da cana acumulam dívidas e atrasam o pagamento de trabalhadores e fornecedores. Segundo o Centro Nacional das Indústrias do Setor Sucroalcooleiro e Energético, 30% dos usineiros estão inadimplentes com os fornecedores de equipamento e, pela apuração do Estado de S. Paulo, 75% não estão pagando os trabalhadores das usinas. A crise é para todos, até os heróis. Isolados do Madeira MARIOSAN Na língua da nação indígena Sateré-Mawé, PORANTIM significa remo, arma, memória. APOIADORES Novembro-2008 as competências da Funasa. O projeto foi analisado pelo presidente, apresentado ao Congresso e atualmente está em tramitação na Câmara dos Deputados. A iniciativa desencadeou um conflito entre funcionários e técnicos da Funasa, lideranças indígenas e terceirizados com o Ministério da Saúde, o que deixa evidente o descontentamento do movimento indígena com a imposição de um projeto pelo ministério sem submetê-lo a uma discussão mais ampla. A proposta embutida na nova lei constitui um retrocesso, pois, ao invés de criar uma Secretaria Especial de Saúde Indígena, propõe a vinculação das ações e serviços de saúde indígena a uma secretaria com responsabilidades diversas. Não existe uma idéia clara de como esta “secretaria ambivalente” funcionará e que relação será estabelecida com os Distritos, quais recursos serão disponibilizados, que modelo de atenção vai adotar e se a execução das ações se dará de forma direta, terceirizada, municipalizada ou através de fundações estatais a serem criadas. Por conta do descontentamento de funcionários da Funasa com o ministro da Saúde, a Fundação vem organizando reuniões com representantes indígenas país afora. Nestas Porantinadas Após vários alertas, inclusive do Cimi, a Funai vem agora a público confirmar a presença de índios isolados nas proximidades das obras das usinas do rio Madeira, em Rondônia. A informação havia sido registrada em documento entregue nas audiências públicas em Porto Velho, mas, segundo a coordenadora da Associação de Defesa Etno-Ambiental, Ivaneide Bandeira, o Ibama e as empreiteiras preferiram fingir que não sabiam. A Funai diz que pode haver mudança no cronograma das obras, mas, pasmem, apenas se forem comprovados os impactos que elas trarão aos indígenas. Só falta o órgão querer consultar os isolados sobre a questão! Clarissa Tavares EDITORA - RP 01580JP/CE Redação e Administração: SDS - Ed. Venâncio III, sala 310 (61) 3349-5274 CEP 70.393-902 - Brasília-DF Marcy Picanço Tel: (61) 2106-1650 Editora - RP: 4604/02 SP Revisão: Leda Bosi Fax: (61) 2106-1651 Impressão: Conselho DE REDAÇÃO Caixa Postal 03.679 Gráfica Teixeira Antônio C. Queiroz CEP: 70.089-970 - Brasília-DF (61) 3336-4040 Benedito Prezia E-mail: [email protected] Egon D. Heck Cimi Internet: www.cimi.org.br Administração: Nello Ruffaldi Registro nº 4, Port. 48.920, Dadir de Jesus Costa Paulo Guimarães Cartório do 2º Ofício Página 16: Fotos/Arquivo Cimi Paulo Maldos de Registro Civil - Brasília com seleção de Aida Cruz Paulo Suess Editoração eletrônica: Licurgo S. Botelho Faça sua assinatura pela internet: [email protected] Preços: Ass. anual:R$ 40,00 Ass. de apoio:R$ 60,00 América latina: US$ 40,00 Outros Países: US$ 60,00 Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores. Foto: Eden Magalhães Conjuntura Foto: Divulgação/ Minga Foto: Marcy Picanço América Latina em movimento As lutas no Brasil pelos direitos indígenas encontram eco em outros países do continente, em um mês marcado por mobilizações populares O utubro foi um mês marcado pelas lutas dos povos da América Latina. Enquanto representantes de movimentos e organizações sociais articulavam suas demandas no 3º Fórum Social das Américas, na Guatemala, e na 5ª Conferência Internacional da Via Campesina, em Moçambique, na África, em diversos países do continente as bases populares, camponesas e indígenas se colocaram em marcha contra a discriminação e opressão de suas comunidades. Na Colômbia, os indígenas se mobilizam para reivindicar os direitos sobre os territórios originários e por uma saída negociada e digna ao conflito armado em que vive o país. Também denunciaram a violação sistemática dos seus direitos e a criminalização de suas demandas: incursões violentas em seus territórios, estigmatização de seus líderes como terroristas, detenções, torturas, assassinatos, desaparecimentos e deslocamentos forçados. Segundo a Organização Nacional Indígena Colombiana (ONIC), 400 mil indígenas foram desalojados de suas terras e 18 comunidades correm perigo de extinção. Em resposta, o governo do presidente Álvaro Uribe reagiu com forte repressão matando 19 indígenas, em apenas 15 dias. Porém, a população colombiana não se rendeu. Aglutinou o apoio de vários setores populares, também insatisfeitos com o governo, e se pôs em marcha até a capital, Bogotá, para exigir que sejam consultados, ouvidos e respeitados. No Peru, as principias vias que ligam a região de Puno - na fronteira com a Bolívia - a localidades do sul do país foram bloqueadas por camponeses e indígenas que protestavam contra o Estado peruano. Os manifestastes exigiam a anulação dos decretos legislativos aprovados pelo governo para implementar o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos. No primeiro dia de protesto, foram presas mais de 150 pessoas. O presidente Alan Garcia se recusou a negociar, declarou estado de emergência em oito províncias e ordenou a ação policial contra a greve. A polícia matou quatro camponeses e deixou muitas pessoas feridas. A ação repressiva do governo peruano é parte de uma política de criminalização dos movimentos sociais, que se expressou também nos 11 decretos legislativos que ampliam as penas por bloqueios de estradas e outras formas de mobilização. Mesmo antes dos decretos, mais de 700 camponeses e indígenas já haviam sido processados judicialmente, inclusive por terrorismo, ao defender suas comunidades contra os efeitos destrutivos das minerações. A Bolívia, por sua vez, não saiu do centro das atenções. Os apoiadores do presidente Evo Morales realizaram uma marcha de 200 km, da cidade de Caracollo até a capital La Paz, para pressionar o Congresso a adiantar os trabalhos que visam o fechamento do texto da nova Constituição. Se concluído, o Foto: Divulgação/ Minga Clarissa Tavares Editora do Porantim texto poderá ser posto em votação num referendo a ser realizado em 2009. No Congresso, a oposição resiste às mudanças constitucionais, alegando que elas darão mais poder para a maioria indígena e aumentarão o controle do Estado sobre a economia. Enquanto oposição e governistas não chegam a um consenso sobre o assunto, dezenas de protestos violentos se espalham pelo país. O que temos com isso? O que acontece nestes outros países da América Latina tem mais a ver com o Brasil do que suspeita grande parte da população. É, por um lado, o retrato da reação governista ao que já não se pode esconder: a emergência das populações historicamente subjugadas e oprimidas. E, por outro, o registro de uma história de resistência e bravura destes povos. Aqui no Brasil vivemos, além das lutas cotidianas travadas pelas organizações sociais, um momento decisivo para os povos indígenas. Assim como em vários países da América Latina, está exposta a disputa entre os interesses do sistema capitalista e os dos setores populares. Os primeiros são representados por empresas nacionais e estrangeiras ligadas à mineração, produção de energia e ao agronegócio – muitas vezes defendidos pelo Estado. As classes populares são as populações tradicionais, camponesas, indígenas e quilombolas que visam o desenvolvimento sustentável e a defesa do meio ambiente. O embate chegou ao Supremo Tribunal Federal, que em breve decidirá sobre o futuro das comunidades residentes na terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e do povo Pataxó Hã-hã-hãe, no sul da Bahia. No primeiro caso, a disputa se efetiva entre fazendeiros, liderados pelo arrozeiro Paulo César Quartiero - que chegou ao estado em 1994, invadiu o território ancestral indígena e hoje se diz proprietário da área - e as comunidades tradicionais que não possuem registro, nem memorial nem material, de terem habitado outro território. O estado de Roraima também é parte do embate contra os interesses dos povos indígenas. Na Bahia, os Pataxó estão há 26 anos esperando que a Justiça decida pela nulidade dos títulos imobiliários emitidos pelo estado da Bahia a fazendeiros, na terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas. A disputa também está explicitada no estado do Mato Grosso do Sul, onde os fazendeiros que plantam cana, soja e criam gado invertem a lógica do uso da terra: expulsam os povos que tradicionalmente a ocuparam e disponibilizam-na à produção exaustiva e indiscriminada. É chegado o momento de os interesses serem confrontados frente-a-frente. Os setores que historicamente dominaram este país, finalmente, encaram as populações indígenas que já não podem mais se manter caladas e andar de cabeça baixa. No Brasil e em toda a América Latina, se anuncia que é chegado o outro momento para os povos do continente. As populações indígenas, camponesas, afrodescendentes, tradicionais estão em marcha. n Representantes de movimentos e organizações sociais estiveram reunidos na África e Guatemala para articular as ações no continente. Enquanto isso, povo Pataxó Hã-hã-hãe espera decisão do STF sobre suas terras 3 Novembro-2008 Justiça determina melhoria na assistência à saúde e educação das aldeias Aldeia Tekoha Araguaju, em Terra Roxa, não possui sanitários, nem fornecimento regular de água tratada, sendo constantes os problemas de saúde. Também não possui estrutura adequada para o acesso à educação e falta equipe de saúde Cleber Buzatto, Marline Dassoler e Diego Pelizzari Equipe Paraná - Cimi Regional Sul O juiz federal Luiz Carlos Canalli, da 1ª. Vara Federal de Umuarama, no Paraná, determinou que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e o estado do Paraná qualifiquem o atendimento prestado aos Guarani que vivem nas aldeias Tekoha Porã e Tekoha Marangatu, no município de Guaíra, e Tekoha Araguajú, em Terra Roxa, no oeste paranaense. À Funasa, o juiz determinou a instalação, num prazo de 10 dias, de A decisão foi tomada após a constatação de que as comunidades indígenas não possuem sanitários, nem fornecimento regular de água tratada. As famílias consomem água do rio Paraná, sendo constantes e numerosos os problemas de saúde. Elas não recebem cestas básicas regularmente e há total falta de estrutura para o acesso à educação, assim como, falta de equipe de saúde e de fornecimento de medicamentos, originando casos de desnutrição e doenças principalmente nas crianças. Outra decisão, no dia 27 de outubro, determinou que a Companhia Para- naense de Energia (Copel/PR) realizasse a imediata instalação e disponibilização de energia elétrica à comunidade indígena Tekoá Araguajý, em Terra Roxa, e que a Prefeitura Municipal de Terra Roxa fornecesse imediatamente medicamentos a uma criança indígena de dois anos na qual foi constatada desnutrição. A determinação responde a reivindicações urgentes e legítimas dos Guarani e demonstra a falta de iniciativa própria de órgãos públicos responsáveis, jurídica e legalmente, pela efetivação de direitos dos povos indígenas no Brasil. n Itaipu tem recurso negado pela Justiça A aldeia Tekoha Marangatu, em Guaíra, é um dos alvos da Itaipu. Durante a construção da hidroelétrica, os povos indígenas foram desrespeitados e grande extensão de seus territórios foram cobertos pelas águas Novembro-2008 módulos sanitários e cozinha para preparação de alimentos, o fornecimento de água tratada e de cestas básicas, regularmente, bem como disponibilizar uma equipe multidisciplinar na área da saúde para atendimento aos indígenas, dando-lhes assistência 24 horas e medicamentos. Ao estado do Paraná foi determinado que, no prazo de 20 dias, proceda à instalação e provenha a infra-estrutura física e de pessoal necessária ao funcionamento de escolas indígenas nas comunidades. Para o caso de descumprimento da decisão, foi fixada multa diária de R$ 500. Fotos: Cimi Regional Sul/Equipe Paraná Guarani do Paraná O 4 Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre (RS), negou, por unanimidade, o provimento à ação impetrada pela empresa Itaipu Binacional contra os Guarani que vivem nas aldeias Tekoha Marangatu, Tekoha Porá e Tekoha Karambey, no município de Guaíra, no oeste paranaense. Com isso, o Tribunal confirmou a decisão da Justiça Federal de Umuarama (PR), de dezembro de 2007, em relação à ação em que a Itaipu Binacional pedia a reintegração de posse das áreas de terra onde estão localizadas as três aldeias. Na sentença, o juiz federal defendeu enfaticamente o direito dos Guarani sobre suas terras tradicionais, afirmando: “Ante o exposto, julgo improcedente o pedido possessório formulado pela Itaipu Binacional e declaro que as terras ocupadas pelos índios Avá-Guarani nos lotes abordados (Tekoha Porá; Karumbey e Tekoha Marangatu) constituem terras indígenas tradicionalmente ocupadas, não podendo ser objeto de domínio ou posse, senão pelos próprios índios, conforme disposição constitucional, independente de prévia demarcação”. Na decisão do TRF-4ª, publicada em 27 de outubro, os desembargadores citam parte da sentença da primeira instância: “Atualmente as ocupações indígenas em Guaíra concentram-se em três lotes: 1) Tekoha Porá (sul); 2) Karumbey (norte), e 3) Tekoha Marangatu, na faixa de proteção. É sobre a área desses três lotes que a requerente postula a proteção possessória. Todavia, segundo o estudo antropológico em questão, os dois primeiros lotes são provenientes de uma mesma antiga aldeia indígena, invadida pelo crescimento da cidade, que restringiu a extensão do território anteriormente ocupado pelos índios, envolvendo-o na zona urbana. Portanto, a área em questão representa terra tra- dicionalmente ocupada pelos índios, já que originária de uma só terra indígena, atualmente transformada em dois lotes de cerca de 2 ha, mas que certamente alcançava uma dimensão muito maior, e que acabou sendo restrita ante o crescimento da área urbana de Guaíra”. Citam ainda parte do parecer do representante do Ministério Público Federal, segundo o qual “o argumento de que o alcance da norma inscrita no art. 231 da Constituição deve restringirse às terras atualmente ocupadas por silvícolas não prospera. O art. 231 da Constituição deve ser interpretado segundo a lição de José Afonso da Silva: ‘o tradicionalmente refere-se não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos em que se deslocam, etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições’. Assim, o conceito de posse indígena remete à ocupação de forma tradicional. Se os índios foram expulsos ou afastados da área no passado, isso não pode ser obstáculo ao reconhecimento do direito que possuem”. Durante a construção da Hidroelétrica Itaipu, na fronteira do Brasil com o Paraguai, no rio Paraná, os direitos dos povos indígenas foram absolutamente desrespeitados, sendo que dezenas de Tekohas (território tradicional) foram cobertos pelas águas. Como se não bastasse, a Itaipu Binacional continua sua “cruzada” antiindígena tentando, mais uma vez, inclusive judicialmente, expropriar os Guarani de suas terras tradicionais, alegando, sem legitimidade, ser “proprietária” dos pequenos pedaços de mata que restaram ao longo do rio alagado. n Aty Guasu da luta da terra e da memória dos lutadores Foto: Cimi Regional MS Terras indígenas “Eu sou uma pessoa marcada para morrer. Mas levantarão outros que terão o mesmo idealismo e que continuarão o trabalho que hoje nós começamos” Marçal Tupã’i Egon Heck Cimi Regional MS P róximo ao local onde Marçal foi assassinado, há 25 anos, na terra indígena Nhanderu Marangatu, aldeia Campestre, município de Antônio João, no Mato Grosso do Sul, mais de 600 Kaiowá Guarani, com a presença solidária dos Terena da Mãe Terra e entidades aliadas, realizaram mais uma importante Aty Guasu (Assembléia do Povo). A assembléia aconteceu de 29 a 31 de outubro e buscou fortalecer a luta pela terra e lembrar a memória dos guerreiros que morreram defendendo os direitos do povo. Existem muitas razões para a realização da Aty Guasu em Nhanderu Marangatu. Faz 10 anos da retomada dessa terra indígena e 25 anos do início do processo de retomadas, com a retomada do Pirakuá. É o momento de lembrar com especial carinho os 25 anos do assassinato de Marçal de Souza. Na manhã do dia 30, um grupo de lideranças esteve no local do assassina- to discutindo o que fazer para deixar o local mais visível. Diante da sugestão de fazer uma placa, alguém disse: “é bom deixar essa goiabeira, pois isso representa que ele não está morto”. A assembléia acontecera a poucos metros do local onde Marçal tombou na noite de 25 de novembro de 1983. No local do sangue derramado está hoje um pé de goiaba e uma cruz desgastada pelo tempo. Ali serão realizados os rituais da memória dos lutadores da resistência, os heróis de um novo futuro em suas terras reconquistadas. As palavras de Marçal saíam do coração: “A gente vive e morre pelo que é nosso. A luta é em primeiro lugar. Um dia vamos escrever a nossa história com nosso próprio sangue”, relembrou Ava Apykuverá. Que o espírito de Marçal, Dorvalino e Dorival, Marcos Verón e Martins, Julite e Ortiz e dezenas de lutadores desse povo que derramaram seu sangue para fazer brotar a semente da paz e autonomia nos tekoha, vejam a terra tradicional Kaiowá Guarani recuperada. Tensões e expectativas A conjuntura local é tensa. Antropólogos responsáveis pelos estudos de identificação da área são ameaçados e perseguidos. Notícias de cunho racista contra os indígenas são diariamente vei- culadas pela mídia local, visivelmente aliada ao poder político e econômico da região. Nesse contexto, os índios pediram ao governo federal que promova uma ampla campanha de informação sobre a realidade indígena no estado. Diante dessa dura realidade, nós, indígenas participantes da Assembléia, exigimos: • Segurança para nossas lideranças e que possamos andar com liberdade em qualquer lugar deste estado; • Que os GTs sejam acompanhados pela Comissão de Lideranças Nhanderu, quando estiverem realizando seu trabalho na região; • Que os GTs procurem comunicar com freqüência o andamento dos trabalhos para que as lideranças e a Comissão possam manter as comunidades informadas; • Diante da lentidão de alguns trabalhos de identificação, solicitamos o máximo de empenho e agilidade na elaboração dos laudos bem fundamentados, com argumentos sólidos e inquestionáveis; • Que a “Instrução Normativa” seja publicada com a máxima urgência para não criar maiores dificuldades no andamento dos trabalhos. Que o CAC seja rigorosamente cumprido em todos os termos e prazos. Que a Funai apóie o fortalecimento de nossas organizações e movimentos. vido e revivido pelos próprios Guarani, protagonistas das desventuras nos dois mundos, o real e o ficcional. Alicélia Batista Cabreira (Lia), Abrísio da Silva (Osvaldo), Ambrósio Vilhalva (Nadio) compõem parte do elenco indígena e atuam ao lado de atores conhecidos como Leonardo Medeiros e Mateus Nachtergale. Os indígenas falam entre si na sua língua originária, o guarani, o que confere, para além de autenticidade e veracidade, um ar de respeito ao povo e à sua cultura. A sensibilidade em captar a alma Guarani consegue ir ainda mais fundo. Consegue tratar das adversidades da vida do povo sem apequenar a força de sua cultura. As crenças, a religiosidade, os mitos, a cosmovisão indígena permeiam toda a narrativa. O enredo, por sua vez, engrandece o público ao propor uma desconstrução da figura do índio utópico, imaginário, selvagem, isolado, distante da realidade. O índio, abordado com todas as suas complexidades e contradições, luta por sua sobrevivência física e também cultural, o que só se torna possível quando se vive no seu lugar, no seu território. Por isso, a incansável e já conhecida luta pela terra é, também na ficção, a problemática central da vida Guarani. Nesse ponto, o filme retrata, com força e sensibilidade, a visceral ligação do índio com a terra. O espectador descobre um índio capaz de morrer pela terra, um índio capaz de comer a terra, um índio que, na verdade, é a própria terra. (Clarissa Tavares) n Ato em homenagem em memória de Marçal de Souza, realizado durante a Aty Guasu. No lugar onde foi assassinado, uma goiabeira sinaliza que ali ainda há vida Resenha Terra Vermelha dos Kaiowá Filme conta a saga de um grupo Guarani na luta por sua sobrevivência física e cultural P “ ra branco ver, tá bom!”. A afirmação da liderança Guarani Anastácio Peralta, após assistir à pré-estréia do filme Terra Vermelha, pode soar como pejorativa, mas, em verdade, diz muito sobre o impacto da película a todo tipo de espectador - do mais alheio à questão ao que vive na pele o enredo abordado no cinema. O filme, dirigido por Marco Bechis, relata a difícil história de luta pela terra de um grupo de indígenas, que no fundo é uma resenha da trajetória do povo Guarani no Mato Grosso do Sul. Com um tom documental, a ficção leva o espectador a indagar-se, por diversas vezes, sobre a veracidade ou não do que está sendo mostrado. E o que se vê não é de fácil digestão, seja para o espectador comum ou para Anastácio, que vive na reserva de Dourados - onde se passa boa parte da narrativa - e que é, na vida real, também personagem assim como os 40 mil Guarani que vivem no estado, da saga contada pelo longa. Do trabalho semi-escravo no corte da cana à onda de suicídio entre os jovens indígenas, da vida apertada num estreito de terra à falta de comida, dos acampamentos à margem das rodovias ao conflito com os fazendeiros, e muito mais, tudo é contado e recontado, vi- 5 Novembro-2008 Meio Ambiente Zoneamento Socioeconômico Ecológico de Mato Grosso Projeto é discutido com sociedade civil, que denuncia falhas no processo de consulta e se organiza para revertê-las A pesar de arquitetado há mais de 10 anos, o Zoneamento Socioeconômico Ecológico de Mato Grosso (ZSEE) parece ainda estar longe de sua aprovação. Elaborado pelo governo do estado, o zoneamento é desenvolvido com o auxílio de um conselho, composto por 47 entidades que compõe a Comissão Estadual do ZSEE/MT. O projeto encontra-se em tramitação na Assembléia Legislativa (AL) do Estado que tem a espinhosa missão de realizar o debate do documento com a sociedade civil organizada. O zoneamento tem como objetivo principal a eficiência e a melhoria das condições de vida da população, a partir do desenvolvimento de atividades sustentáveis econômica e ambientalmente. Envolve, por um lado, os ‘setores produtivos’, principalmente o agronegócio e, por outro, as chamadas minorias étnicas e sociais, populações tradicionais, como ribeirinhos e pescadores, quilombolas, indígenas, ciganos, assentados, entre outros. Para garantir o amplo debate com a população, a AL estabeleceu a realização de 15 audiências públicas em diferentes regiões do estado. Até o momento quatro audiências foram realizadas. Representantes do agronegócio lutam por mais espaço para as atividades agropastoris e são contra os cuidados propostos no ZSEE nas áreas frágeis, além de contrários à demarcação de novas terras indígenas Falhas no processo Novembro-2008 6 Na audiência de Paranatinga, o processo que deveria ser democrático não se concretizou. Participantes afirmaram que a condução da mesa não seguiu a metodologia estabelecida previamente entre os setores sociais, que deveria evitar votações, ou agregação de valores no conteúdo do ZSEE, sem a avaliação da comissão técnica. “Ocorre que ‘setores produtivos’ feriram este acordo e, a partir de manobras, posturas e ideologias claramente visíveis na mesa que deveria promover a mediação pedagógica entre as partes, tornou-se absurdamente promotora de mais conflitos”, observa a professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Michèle Sato, que acompanhou a audiência. Outro problema foi a pressão que os representantes do agronegócio exerceram sobre o movimento indígena, entidades indigenistas e ambientalistas. A postura deste setor deixa claramente demarcado que lutam por mais espaço para as atividades agropastoris e são contra os cuidados propostos no ZSEE nas áreas frágeis, além de contrários à demarcação de novas terras indígenas contratação de técnicos e advogados no intuito de defenderem os interesses do autodenominado “setor produtivo”. Fotos: Cimi Regional MT Gilberto Vieira Cimi Regional MT Mundo sustentável – embora o zoneamento por si só não tenha poder para demarcá-las. Organização social Devido ao que ocorreu em Paranatinga, foi fortalecida uma aliança entre segmentos dos movimentos sociais no estado, que vêm se articulando para eliminar os problemas registrados nas audiências anteriores. Em discussão oragnizada pela UFMT, ficou decidido que o Ministério Público Estadual será o articulador de uma reunião entre a sociedade civil organizada e a AL para estabelecer critérios que levem ao cumprimento da metodologia estabelecida previamente. Participação popular Uma dificuldade enfrentada pelos setores populares foi a pequena participação de suas representações, decorrida, muitas vezes, por falta de informações. Enquanto isso, os “setores produtivos” recebem infomações privilegiadas e comparecem fortemente às discussões. Nas duas primeiras audiências, o movimento indígena não se fez presente. “Quando tomamos conhecimento de que se tratava de uma política de gestão territorial com objetivo de ordenar as atividades produtivas, e que seu conteúdo estava diretamente relacionado à sustentabilidade dos meios de vida das comunidades indígenas, tratamos de procurar mais informações”, salienta Mariléia Tauiá Bakairi. Apesar das dificuldades, a participação indígena nas discussões sobre demarcações das terras indígenas, assim como de projetos que impactam no entorno das terras já demarcadas, tem sido realizada por meio do Instituto Maiwu. “Paranatinga [3ª audiência] foi nossa primeira tentativa de participar ativamente nas audiências sobre o zoneamento. Desde o início, deixamos claro que estávamos ali para dialogar e levar nossas propostas, mas, infelizmente, fomos recebidos com sete pedras nas mãos. Sabíamos da participação ativa do setor do agronegócio nessas audiências, apenas não esperávamos que fossem agir com tanta ignorância. Não houve conhecimento técnico-científico e nem argumentos jurídicos que os convencessem da inviabilidade de suas propostas. Queriam ganhar tudo no grito e com apoio da mesa condutora dos trabalhos. Diante dos fatos, o Instituto Indígena Maiwu liderou uma Moção de Repúdio contra a organização da audiência, ameaçando entrar com uma ação no MP, caso outras intimidações viessem a acontecer”, argumenta Mari. Esta Moção foi assinada por várias entidades do estado. Em Diamantino, onde ocorreu a 4ª Audiência, a articulação das entidades e movimentos garantiu uma maior participação popular, com destaque para a participação indígena. Contudo, a pressão dos representantes do agronegócio também se fez presente. Faixas indicavam seu descontentamento com a possibilidade da criação de áreas de proteção ambiental - que no Zoneamento são apenas indicações para estudo - e foi visível a Instrumento de planejamento e gestão territorial, o Zoneamento Socioeco nômico e Ecológico de Mato Grosso deve ser pautado por princípios de democratização, descentralização e parcerias. Ele deve indicar as diretrizes de fomento, adequação, redirecionamento e normatização das atividades sociais e econômicas, além de permitir intervenções e ações de ordenamento territorial, regionalização coordenada de serviços e obras estaduais, articulação com municípios e a sociedade. Para isso, deve ouvir e considerar todos os setores envolvidos no processo. O Grupo Pesquisador em Educação Ambiental (GPEA) da UFMT lidera um processo de mapeamento social, tentando identificar os povos “invisívibilizados” cujas vozes não são ouvidas. Neste intuito, foi realizado entre os dias 24 e 26 de outubro em Cuiabá o I Seminário de Mobilização e Mapeamento Social que contou com a presença de representantes indígenas, quilombolas, retireiros, comunidades tradicionais, seringueiros, assentados, pantaneiros entre outros segmentos que não veêm no Zoneamento o reconhecimento de seus territórios tradicioanalmente ocupados. Um dos primeiros resultados do Grupo de Mobilização Social, que congrega várias entidades do estado, o Seminário foi um primeiro passo para uma maior articulação dos mais diversos setores sociais, para o esclarecimento e empoderamento das discussões e do processo de Zoneamento. Para além, o evento apontou para a criação de espaços de mobilização destes setores para a garantia de que suas vozes sejam ouvidas também em outros momentos. A construção de processos educativos, para além das audiências públicas, poderá ser um caminho para diminuir, por meio de um zoneamento responsável, o abismo das disparidades econômicas e sociais, gritantes no estado. Para a aplicação de políticas que visam um mundo sustentável é fundamental pautar a inclusão, a preservação do meio ambiente, o desenvolvimento responsável. Acima de tudo, porém, deve-se garantir atitudes que corroborem com a construção de sociedades saudáveis, que respeitem e incluam as diferenças, promovam a justiça social e ambiental. n Colaboraram Aluízio de Azevedo (iCaracol), Mariléia Taiua Peruare (MAIWU) e Michèle Sato (UFMT). Foto: Adirp A lei e sua aplicação Nailton Pataxó, liderança que participou do processo constituinte, lamenta que a Constituição ainda não tenha garantido a demarcação das terras de seu povo Q uando a voz de diversos indígenas ecoou pelo Congresso Nacional, Nailton Pataxó era um dos que se faziam presentes. Aconteceu durante os anos de 1987 e 1988, época em que o Brasil parecia querer refundar-se, desta vez, sob os princípios da democracia. Muitos foram os que se fizeram, pela primeira vez, visíveis diante do poder nacional, como propositores de seus próprios destinos. Dentre eles, estiveram os povos indígenas. Foi o começo de uma nova trajetória da relação entre o Estado brasileiro e seus povos originários. Que, de ali em diante, ninguém mais falassem em nome deles! Ao completar 20 anos, essa história é lembrada por Nailton. Segundo ele, as mobilizações no sul da Bahia começaram tão logo as lideranças se inteiraram do que estava acontecendo em Brasília. “Nos reunimos na área e realizamos uma assembléia interna, depois uma assembléia de micro e macro região até que chegou a assembléia geral da Comissão de Articulação das Regiões Leste e Nordeste. Depois a gente foi a Brasília e nos encontramos com outros povos. Ali foi criada uma co- missão organizadora da nossa proposta constitucional. A gente se reuniu com várias organizações para discutir essa proposta e a entregamos em todos os gabinetes dos deputados”. Dentre os principais pontos da proposta entregue pelos indígenas, um deles Nailton considera fundamental: ter assegurado o direito ao usufruto exclusivo das terras que tradicionalmente ocupam. “Mas enfrentamos várias barreiras, porque muitos deputados defendiam as mineradoras e as madeireiras”, recorda. No entanto, os indígenas se mostraram fortes e saíram vitoriosos com relação a esta e outra importante questão “lutamos contra a tutela, porque antes nós éramos considerados como relativamente incapazes”, explica Nailton. A luta não foi fácil, mas os índios e seus aliados conseguiram aprovar um capítulo na nova Constituição sobre os direitos indígenas. Hoje, 20 anos depois, a liderança lamenta que a aplicação da lei não corresponda ao que está previsto. “O artigo 231 assegura o reconhecimento aos índios da sua organização social, seu costume, língua, crença e o direito originário sobre as terras que Foto: Egon Heck Clarissa Tavares Editora do Porantim tradicionalmente ocupam, competindo a União demarcá-las e protegê-las. Isso hoje não está acontecendo. A gente reivindica uma área e, quando ocupa, os fazendeiros entram com pedido de reintegração de posse. Às vezes, o juiz da região também é fazendeiro e dá a liminar favorável aos fazendeiros e o que tem acontecido é que os índios são expulsos das suas terras”, conta. Situação semelhante é a que acontece com seu povo, Pataxó Hã-hã-hãe, que há 26 anos espera a decisão do STF sobre a nulidade de títulos emitidos pelo estado da Bahia a fazendeiros que invadiram suas terras. Outro aspecto levantado por Nailton é que, até hoje, a tramitação da proposta de Estatuto dos Povos Indígenas, que substitui o Estatuto do Índio (Lei. 6.001/1973), está parada. “Também preparada pelos índios e baseada na Constituição, ela não foi aprovada. Se encontra engavetada no Congresso Nacional e nossa opinião não está sendo contemplada”, lamenta. Mas as adversidades não são motivos para a desilusão. “Quando a gente se mobilizou [naquela época] existia um pensamento de participação de todos os povos, onde todos estavam preocupados com o que poderia acontecer aos povos indígenas dali pra frente. A gente acreditava que juntos podíamos dar uma resposta a isso... agora a gente precisa realizar uma discussão geral com as lideranças, realizar uma conferência nacional dos povos indígenas do Brasil para discutir o posicionamento de todos em nível nacional”. n Nailton Pataxó discursando durante a entrega da proposta final do capítulo dos índios, na Constituinte. Ao lado, ele e outros índios reunidos no acampamanto montado naquele período Direitos Indígenas são debatidos em Florianópolis Evento tratou das conquistas constitucionais e das decisões que o STF tomará sobre as terras indígenas Equipe Florianópolis Cimi Regional Sul S e o Supremo Tribunal Federal decidir por não demarcar a terra indígena Raposa Serra do Sol em área contínua, a discussão sobre os direitos constitucionais dos povos indígenas perderá sentido. É o que avaliou a Subprocuradora Geral da República e Coordenadora da 6ª Câmara de Comissão e Revisão do Ministério Público Federal, Deborah Duprat, durante seminário que ocorreu no auditório da Reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no dia 21 de outubro. Essa também foi a preocupação dos debatedores e participantes do evento que discutiu a Constituição Federal no marco dos seus 20 anos de promulgação. Os avanços legais conquistados pelos povos indígenas estão sofrendo ataques constantes em setores do Executivo, Legislativo e Judiciário. Os mesmos interesses que pressionam o Executivo para não demarcar terras indígenas, tentam alterar o texto constitucional e impedir a aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas, bem como buscam confirmar suas teses no Judiciário. Essa foi a preocupação manifestada pelo advogado e assessor jurídico do Cimi, Paulo Machado Guimarães. Já os indígenas presentes ao evento reclamaram que, mesmo com direitos garantidos na Constituição Federal, estes não são aplicados na prática. “Não tenho visto muitas mudanças. O que conseguimos foi com muita briga, com muita luta de nossa comunidade. Mas, apesar da luta, a demarcação de nossa terra continua paralisada. Já são 15 anos de luta”, declarou o professor indígena e diretor da escola La Klãno, José Cuzun Ndilli do povo Xokleng. As mesas contaram também com a presença dos indígenas Hyrl Moreira, cacique e coordenador da Comissão Nhemonguetá; Marcos Djekupe, professor do povo Guarani; Valmor de Paula, professor do povo Kaingang; além de Analucia Hartamnn, representante da Procuradoria da República em Santa Catarina, e da antropóloga da UFSC, Maria Dorothea Post Darella. Foi unânime a constatação de que as conquistas indígenas na Constituição significam uma mudança profunda da perspectiva da transitorialidade e da tutela para uma noção de autonomia indígena e pluralidade da sociedade brasileira. To- davia, foi unânime também a constatação de que esses direitos estão seriamente ameaçados e correndo o risco de serem radicalmente modificados pelo STF. Também se constatou que, em termos práticos, a Carta não levou avanços para a vida de algumas comunidades. As demarcações das terras indígenas deveriam ter sido concluídas em 1993, conforme estabelece o Art. 67 das Disposições Constitucionais Transitórias, o que não ocorreu. O seminário foi organizado pela Comissão Guarani Nhemonguetá; Comissão de Apoio aos Povos Indígenas; Cimi Regional Sul; Conselho de Missão junto com Povos Indígenas; Museu Universitário e Departamentos de Antropologia, História e Direito da UFSC. Participaram do evento cerca de 200 pessoas. n 7 Novembro-2008 Resistência Bororo Histórias de um povo guerreiro Após ser expulso de suas terras, povo luta para reconquistar a totalidade de seu território, o que tem lhe rendido muitas perseguições Marcy Picanço Q Cacica Maria Aparecida (ao centro) com sua família às margens do rio Pogubo, em frente ao morro Jarudore, que dá nome à região. Apesar disso, o local foi deixado de fora da área demarcada Novembro-2008 8 Repórter uando o grande ancestral Akaruio Bokodori tocou seu tambor no morro Torowari e chamou os Boe para ocuparem a região do rio Pogubo (vermelho), eles eram um povo que circulava por uma grande área - da região que hoje faz fronteira com a Bolívia até o estado de Goiás. As diversas aldeias dos Boe eram organizadas em círculos. No centro da roda, ficava o “bororo” - o pátio - local de convivência, que de tão importante fez eles ficarem conhecidos por este nome. Calcula-se que viviam pelo menos 16 mil Bororo em 1500. Já no início do século, segundo registros, religiosos e bandeirantes teriam encontrado grandes e fortes guerreiros na região central do Brasil, mais tarde identificados como os Bororo. Desde os primeiros contatos, eles enfrentaram bravamente os colonizadores. Os indígenas tiveram diversas vitórias, mas as armas de fogo e as doenças (sarampo, varíola, peste bubônica...) trazidas pelos portugueses enfraqueceram os Bororo e obrigaram muitos deles a virarem escravos ou a deixarem suas aldeias. Os Bororo da região mais oriental (área do Mato Grosso e Goiás) tiveram problemas, principalmente, com os garimpeiros em busca do ouro na região. Várias vilas se formaram, apesar das constantes batalhas entre os Bororo e os não-índios. A partir do fim do século XIX, a maioria dos Bororo que ainda resistia passou a fazer acordos para a trégua. No fim da década de 1880, foram criadas as primeiras colônias militares para reunir os Bororo (Teresa Cristina e Isabel), na região próxima a Cuiabá. O objetivo era integrálos por meio de atividades econômicas, mas, de fato, os militares exploravam os indígenas - inclusive abusando das mulheres - incentivavam o alcoolismo e ficavam com os recursos enviados às colônias pelo Estado. Na primeira década do século XX, os padres salesianos fundaram as missões (Sangradouro, Tacho – Merure) que abrigaram muitos Bororo da região mais próxima a Goiás. Inicialmente, os padres montaram acampamento em regiões de passagem dos indígenas e, aos poucos, os incentivaram fixar-se sob o risco de perderem totalmente suas terras. Naquela época, a proposta para os indígenas era a integração. Os padres, então, os preparavam com aulas para viverem na sociedade. Os indígenas aprendiam o português e deixavam de praticar seus rituais. Também nas primeiras décadas do século XX, o Marechal Cândido Rondon demarcou algumas reservas para os Bororo. As terras onde eles viviam, no entanto, fossem elas reservas, colônias ou missões eram cobiçadas por pessoas que chegavam ao Mato Grosso. Os Bororo continuavam resistindo em suas terras muitas vezes pagando com a vida em conflitos com garimpeiros e colonos agrícolas, que chegavam incentivados pelo Estado. O número de Bororo diminuía. Poucos tinham filhos, pois não viam futuro. Mesmo assim, continuavam com a cultura fascinante que impressionava a tantos teóricos que os visitavam. Mudança na missão e luta pela terra Em meados do século passado, muitos Bororo já viviam em periferias de cidades e vilas, alguns ainda viviam em aldeias dispersas pelo Mato Grosso, como nas terras Jarudore e Tadarimana e outros nas missões salesianas. Algumas famílias continuavam circulando, pois eram expulsas por invasores de suas terras. Em 1966, chega a Merure o padre João Falco, que leva idéias novas e promove a retirada dos não índios de Merure, por entender que com eles seria mais difícil conseguir a terra para os Bororo. Também passa a valorizar as manifestações culturais do povo. Nessa época, um grupo expulso da terra Jarudopre chega a Merure e incentiva a retomada dos rituais. Apesar das constantes ameaças, os Bororo e missionários de Merure intensifi- cam as ações de luta pela terra e pela vida dos Bororo. Em 1976, uma tragédia facilita o processo de demarcação da terra: o assassinato de Pe. Rodolfo Lunkenbein (veja mais no box). Desde então, em Merure, o trabalho principal tem sido cultivar a terra, melhorar a saúde e a educação - cada vez mais assumida pelos indígenas. “Na escola, agora, todos os professores são Bororo. Parte das aulas são na língua Bororo e muitos pais falam com as crianças em casa na nossa língua. Assim, as crianças aprendem”, comenta a cacique de Merure, Maria Auxiliadora Joware Etogiudo. “A gente tenta não deixar nossas tradições morrerem. Não queremos que os jovens tenham vergonha de ser Bororo. Alguns têm, mas muitos gostam de participar dos rituais”, completa. Os principais desafios hoje para os Bororo de Merure são enfrentar o alcoolismo e conseguir a subsistência de todos os cerca de 400 Bororo da terra. “Gostaria que cada um conseguisse ter uma roça, para não precisar comprar os alimentos. Eu gostaria que os parentes vissem que é importante tirar o sustento da nossa terra”, diz a cacique. Nos últimos anos, os Bororo também tentam resolver um problema com algumas famílias Xavante que passaram a ocupar faixas da terra Merure. Desde 1957, os Xavante, expulsos de suas terras originais, vivem na terra São Marcos, ligada à Merure. Jarudore – a resistência Bororo segue forte Se por um lado, em Merure as coisas ficaram mais tranqüilas nas últimas décadas, isso não ocorreu em outras aldeias da região, em que os Bororo continuaram sendo expulsos violentamente. A situação de Jarudore merece destaque pelo que esta terra significa para eles e por ser exemplo da violência contra o povo e da resistência desses guerreiros. A terra indígena de Jarudore, no município de Poxoréu, fica na área central do antigo território tradicional dos Bororo. Era local de passagem e comunicação para os Bororo de diversas regiões. No início do século XX, Marechal Rondon demarcou a terra São João do Jarudóri com 100 mil hectares. A terra abrigou grandes aldeias de onde os Bororo foram expulsos violentamente ou morreram em função de doenças. Em 1940, os primeiros colonos nãoíndios se estabeleceram na terra demarcada por Rondon. Em 1945, o governo do Mato Grosso cria a Reserva Indígena Jarudóri, com 6 mil hectares. Em 1951, novo decreto do interventor federal no estado determina que a reserva para os Bororo terá 4.706 hectares. O próprio governo do estado, 7 anos depois, criou o distrito de Paz de Jarudóri, em 1958. Uma pequena parte, 3% deste distrito de Poxóreu, incide sobre a terra Jarudóri. Apesar de demarcada, a maior parte dos Bororo que vivia em Jarudore foi expulsa da terra, principalmente a partir da década de 1960. Em 1983, eles fizeram uma grande assembléia do povo em Merure e lá reafirmaram que não queriam fazendeiros “em qualquer reserva dos Bororo.” Na mesma época, no entanto, a última grande família Bororo é obrigada a sair de Jarudore e vai viver na terra Sangradouro. Em 1997, o chefe da família José Carlos Meriri Ekuréu chega a escrever uma carta para o então presidente Fernando Henrique Cardoso afirmando o desejo de voltar para sua terra. Restava então, em Jarudore, apenas uma mulher Bororo, casada com um não-índio, e seus três filhos – Bororo, pois a descendência do povo vem da mãe. Retomando Jarudore Em maio de 2006, Maria Aparecida Toroekure e sua família saem de Sangradouro e passam a viver num pedaço de terra de Jarudore. O pai de Maria nasceu ali, sua avó está enterrada no cemitério do povo que fica na área. “Essa terra é Bororo. Sempre foi nossa e aqui vamos viver”, afirma Maria, confiante, apesar das dificuldades. Junto com Maria estão cerca de 15 pessoas. Ao redor, os invasores tomaram conta da terra indígena, dentre estes, há vereadores de Poxoréu, donos de lojas em Rondonópolis e pecuaristas. Além das fazendas, há algumas casas e estabelecimentos comerciais em duas ruas, que formam o “centro” de Jarudore. Quando a nova cacique de Jarudore chegou na área, viviam quatro Bororo em meio aos não-índios. Era Helena Egiri Figueiredo, casada Nilson Figueiredo, com quem teve três filhos: Helenilson, Helenilda e Edilson Figueiredo. Helena e Maria Aparecida são do mesmo clã, dos Kiedo. A contra-gosto dos invasores, Helena e seus filhos ajudavam como podiam os parentes Bororo, que vivem em uma situação muito precária. “A gente veio sem apoio da Funai. Até hoje, é difícil conseguir lona, combustível ou comida com eles. É difícil se manter aqui”, conta Maria. Ela e sua família vivem em quatro barracos, numa área de terra arenosa, que não é boa para agricultura. Conseguiram um poço de água com apoio da Missão Salesiana. Enquanto aguardam que a Justiça retire os invasores de sua terra sofrem diversas violências. Em dezembro de 2006, João Osmar, um não-índio que é genro de Maria Aparecida, sofreu tentativa de homicídio e teve seu caminhão incendiado por dois homens, ao sair da área indígena. Ele já sabia que corria perigo, pois era ameaçado. Helenilson, que convivia com os invasores, sempre alertava João e Aparecida. “Eu dizia para o Leno (Helenilson) ficar meio longe da gente, pois era perigoso para ele, mas ele respondia: ‘Eu não posso ficar longe do meu povo’”, lembra triste Maria. Em março de 2007, Helenilson foi assassinado por dois policiais. “Ele sabia que podia ser morto, pois tinha informações sobre o atentado contra o João”, conta a irmã Helenilda. Os dois assassinos respondem ao processo em liberdade. Helena não agüentou a dor de perder o filho e faleceu alguns meses depois. Enquanto isso, desde julho de 2006, tramita na Justiça Federal no Mato Grosso a ação civil pública do Ministério Público Federal e da Funai que requer a retirada dos não-índios de Jarudore. Apesar das perdas e da demora da Justiça em garantir a posse da área de- marcada, a luta dos Bororo já rendeu algumas vitórias em Jarudore. Em setembro de 2008, a Justiça Federal impediu a realização de um festival musical perto do cemitério tradicional dos Bororo. Os invasores da terra começaram a realizar o festival em 2006 para tentar legitimar a invasão. A festa acontecia às margens do rio Pogubo, em frente ao morro Jarudore, que dá nome à região, mas foi deixado de fora da área demarcada. Hoje, Maria e suas família olham o Morro e mantêm firme a decisão de resistir na área onde estão enterrados tantos guerreiros e guerreias Bororo e por onde Akaruio Bokodori disse para os Boe se espalharem. n Em Jarudóri vivem Maria e cerca de 15 pessoas. Ao redor, os invasores tomaram conta da terra indígena. As condições de vida são precárias, mas o grupo está determinado a reconquistar seu território Padre Ochoa 50 anos de vida missionária E m 1960, quando o Padre Gonçalo Ochoa chegou à Missão Salesiana de Merure, no Mato Grosso, os Bororo que viviam lá praticamente não tinham mais filhos. Estavam desanimados. Cresciam os projetos agropecuários ao redor da terra Bororo, que ficava cada vez mais ameaçada. Dentro da terra, viviam muitas famílias não-indígenas e o povo estava sendo expulso das aldeias da região. No colégio da missão, havia mais não-índios do que indígenas e os Bororo pouco falavam a própria língua. Passados 48 anos, no dia 11 de outubro de 2008, Merure celebrou os 50 anos de sacerdócio de Pe. Ochoa – quase todo dedicado aos Bororo que vivem nesta terra. Dentro da igreja, dezenas de indígenas, moradores da região e religiosos falaram do importante trabalho desenvolvido pelo padre em Merure. Mas era fora da igreja que se podia ouvir o principal resultado da delicada e firme ação de Pe. Ochoa: o riso de inúmeras crianças Bororo brincando. Elas corriam tranqüilas, no mesmo pátio em que 32 anos atrás, fazendeiros mataram Simão Bororo e o Pe. Rodolfo Lunkenbein – grande companheiro de Ochoa. Antes dos assassinatos, os pistoleiros agrediram Pe. Ochoa. Até hoje, ele se emociona muito ao lembrar daquela noite. Se aquele foi o momento mais triste de sua vida missionária, os anos de convivência com Pe. Rodolfo são lembrados com muita alegria. Até por que, em sua grande humildade, Pe. Ochoa diz que em sua vida missionária apenas aprendeu “com as pessoas maravilhosas com quem convivi e tentei fazer alguma coisa para defender a vida dos Bororo”. Ao longo de seus anos em Merure, Pe. Ochoa viveu a transformação da missão. “Quando cheguei era uma época difícil, pois a terra não estava regularizada. Os Bororo já tinham 60 anos de contato com os missionários. Estavam, como se dizia, preparados para viver na sociedade com os brancos. Se os missionários antigos erraram, era por que achavam que era o certo, era a mentalidade geral, integrar. Mas, tudo foi mudando junto com a opinião geral”. E completa: “Mas a preocupação do missionário sempre foi a vida dos povos indígenas”. Ochoa logo aprendeu a língua dos Bororo e passou a registrar elementos da cultura, da vida e da língua do povo, em diversas publicações. A partir da década de Missionários do Cimi e Pe. Ochoa em frente à cruz que marca o local onde Pe. Rodolfo foi assassinado em 1976 1960, os missionários passaram a valorizar o uso da língua e as manifestações culturais dos Bororo. Hoje, os indígenas estão passando a assumir a gestão da terra, da saúde e da educação. O professor Bororo, Ivair, fala que Ochoa é a memória viva da aldeia. Com seu respeito, com sua força resistiu aos conflitos nos anos mais difíceis. Com seu respeito, comprometeu-se a guardar os conhecimentos dos anciãos Bororo. “Todos nós somos muito gratos”, resume Ivair. Ele sabe que muitos Bororo existiram e foram favorecidos pela obra de Ochoa – que segue trabalhando pelo povo que é a sua vida. n 9 Novembro-2008 Indígenas Tupinambá são presos e feridos no sul da Bahia Fotos: Walney Magno Violência De forma truculenta, agentes da PF invadem aldeia na Serra do Padeiro deixando 20 feridos e dois indígenas presos Haroldo Heleno Cimi Regional Leste - Equipe Itabuna D Ação da polícia na aldeia Tucum deixou indígenas revoltados com a forma truculenta. Ao lado, indígenas da Serra do Padeiro mostram as marcas da violência e a destruição da aldeia ois Tupinambá foram presos e 14 pessoas do povo ficaram feridas em conflitos com a Polícia Federal (PF), no dia 23 de outubro, na Serra do Padeiro, em Buerarema, no sul da Bahia. A tensão começou no dia 20, quando a PF iniciou a reintegração de posse da aldeia Serra do Padeiro, uma das áreas onde os Tupinambá vivem. Em janeiro de 2008, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região suspendeu, por 180 dias, a decisão de retirar das aldeias os Tupinambá que vivem próximos de Ilhéus e Itabuna (em Olivença, Una e Buararema). Nesse período, a Funai deveria finalizar o relatório de identificação das terras indígenas dos Tupinambá da região. O relatório foi finalizado, mas a Funai pediu informações complementares aos antropólogos responsáveis pelo Grupo Técnico (GT), que ainda não concluiu o documento. Como o prazo expirou, a Justiça Federal em Ilhéus determinou que a PF cumprisse os mandados de reintegração de posse já concedidos. Na semana anterior ao conflito, dois mandados haviam sido cumpridos em Olivença. Como aconteceu Na segunda-feira (20), alguns policiais estavam na aldeia Serra do Padeiro verificando as áreas de onde os Tupinambá seriam retirados. Três indígenas que questionaram os policiais sobre a presença deles na terra foram feridos com balas de borracha. No dia seguinte, uma ação de reintegração de posse foi executada na aldeia Tucum, no Parque de Olivença. Na ocasião, a PF impediu o administrador regional da Funai, Rômulo Siqueira, e o coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Luis Titiá, de acompanhar o despejo. No dia 22, foram suspensas as liminares de reintegração de posse pelo TRF-1, que decidiu dar mais 180 dias para a Funai concluir a identificação das terras. Em Olivença, as famílias voltaram para a aldeia Tucum, mas na Serra do Padeiro a tensão permaneceu. Usando balas de borracha e gás lacrimogêneo, uma ação da PF, no dia 23, deixou mais de 20 pessoas feridas, destruiu casas, carros e utensílios da comunidade. Dois indígenas, Jurandir e José Nildo Barbosa, foram presos e o cacique Babau passou a ser perseguido, acusado de formação de quadrilha, cárcere privado e danos ao patrimônio público. Tensão e prisões Jurandir, irmão de Babau, conduzia um carro da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para levar mulheres da cidade de Buerarema para a aldeia. Entre elas, encontravam-se duas mulheres com filhos recém-nascidos e uma grávida. Elas foram levadas para a Prefeitura de Buararema e depois precisaram subir a pé os 20 km até a aldeia. Jurandir foi levado para a delegacia da Polícia Federal, em Ilhéus. Segundo os indígenas, ele sofreu agressões e foi levado ao hospital. A PF afirmou que ele foi preso em flagrante e deveria ser acusado de formação de quadrilha e resistência à prisão. Apesar de ser flagrante, a prisão teria relação com os fatos ocorridos no dia 20. O motorista do ônibus escolar José Nildo Barbosa foi levado preso pela polícia enquanto transportava crianças para o colégio em Buerarema, após ficarem detidos e ameaçados durante um bom tempo na estrada. José Nildo foi liberado à tarde. Justiça revoga prisão de cacique No dia 24 de outubro, o TRF-1 revogou, provisoriamente, a ordem de prisão contra Rosivaldo da Silva (Babau), do povo Tupinambá, cacique da aldeia Serra do Padeiro. Lideranças Tupinambá foram à Procuradoria Geral da República (PGR), em Ilhéus, denunciar a ação truculenta dos policiais durante a tentativa de prender o cacique Babau. Analistas da PGR tiraram fotos e recolheram depoimentos dos indígenas feridos para dar andamento à denúncia. Após ouvir os indígenas, a Procuradora Fernanda Alves de Oliveira pediu o relaxamento da prisão de Jurandir da Silva, que foi solto no dia seguinte (25). A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados também está acompanhando o caso da violência contra os Tupinambá. No dia 24, a Comissão enviou um ofício ao Ministério da Justiça e à Funai, em Brasília, solicitando informações sobre o ocorrido e ações para proteger a integridade física do povo. No dia 31, um grupo com representantes de mais de 30 entidades, movimentos sociais e órgãos públicos do sul da Bahia foram à aldeia da Serra do Padeiro para prestar solidariedade ao povo. Procuradores do Ministério Público Federal acompanharam a comitiva. Entidades como a Anistia Internacional, a Associação Brasileira de Antropologia e a Apoinme denunciaram a violência e declaram apoio aos Tupinambá, por meio de notas e campanha. n Campanha contra a criminalização dos movimentos sociais na Amazônia Luiz Cláudio Teixeira Cimi Regional Norte II A campanha foi lançada em Belém, no dia 17 de outubro, com a realização de seminário e ato político-cultural na Praça do Operário, no bairro de São Brás. Cerca de 500 militantes de entidades do campo e da cidade estiveram preNovembro-2008 10 sentes. O lema da campanha, “Lutar por direitos humanos não é crime!”, contesta as práticas do Estado e de grandes corporações de mineração e do agronegócio, de criminalizar as ações dos movimentos sociais contra as injustiças e em defesa da Amazônia. A luta pelo respeito aos direitos humanos levou à perseguição e morte de lutadores e defensores dos direitos humanos na região. Pina Tembé, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), esteve no seminário e falou sobre as violentas campanhas contra os povos indígenas em todo o país. Estiveram presentes índios Tembé, de Santa Maria do Pará, e dois representantes dos povos indígenas de Santarém, que falaram sobre as ameaças de morte contra suas lideranças. A campanha reforçou propostas de ações dos movimentos para a região, entre elas dar prosseguimento à luta em defesa da Amazônia e dos povos tradicionais contra as frentes de expansão do agronegócio, da mineração e dos grandes projetos governamentais e manifestar apoio a dom Erwin Krautler, bispo do Xingu e presidente do Cimi, na luta contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, na defesa da causa indígena, da floresta e do rio Xingu. n Fotos: Cimi Regional Leste/Equipe Itabuna Cimi realiza oficina sobre controle social de políticas públicas Marcos Antônio Reis Cimi Regional Norte II O Força-tarefa para evitar violência contra os índios em Pernambuco Governo estadual e Funai assumem compromissos diante do histórico de assassinatos, criminalização e ameaças contra as comunidades Marcy Picanço Repórter N o dia 15 de outubro, cerca de 50 lideranças de povos indígenas que vivem em Pernambuco denunciaram, para representantes dos governos federal e estadual, as ameaças, os assassinatos e a perseguição praticada por agentes públicos e por particulares contra os índios naquele estado. Os governantes prometeram ações articuladas para acabar com a violência contra os indígenas. A audiência aconteceu na Assembléia Legislativa de Pernambuco e foi promovida pelo deputado Izaltino Nascimento (PT-PE) junto à Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme). Os indígenas relataram os principais casos de violência contra as comunidades. Lourdes Truká falou do histórico de agressões contra seu povo. Lembrou do recente assassinato de Mozeni Truká (em agosto 2008), então candidato a vereador em Cabrobó. Segundo os Truká, a polícia tem investigado apenas a autoria do assassinato, sem buscar a relação deste caso com outros episódios de violência. Ela também lembrou que os poli- ciais que participaram do assassinato de Dena Truká e seu filho (em junho de 2004) até hoje trabalham em Cabrobó, o que deixa os Truká intimidados. A cacique Dorinha Pankará e a liderança do povo Atikum falaram das ameaças que recebem de agentes públicos da cidade de Carnaubeira da Penha. O cacique Marcos Xukuru falou das violências contra seu povo desde o início da década de 1990. Lembrou dos assassinatos de Xicão Xukuru, Chico Quelé e seu filho, entre outros. Destacou que as investigações de muitos dos crimes incriminam as lideranças do povo como Zé de Santa, Zenilda, Aguinaldo e ele próprio. O cacique lembrou que depois do atentado que sofreu em 2006, passou de vítima a acusado. Agora, ele e outras 35 pessoas do povo respondem a processos na Justiça. Há sete meses, dois Xukuru, Renildo e Edmilson, estão presos acusados de participarem do assassinato do filho de Chico Quelé, em 2007. “Quando só os adversários nos perseguem já é difícil, mas agora, nos sentimos perseguidos pela Justiça”, comenta Zé de Santa, do povo Xukuru, coordenador da Apoinme. O Conselho Estadual de Direitos Humanos preparou um dossiê sobre a criminalização e as ameaças con- tra os indígenas em Pernambuco, que foi entregue ao presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, presente à audiência. Além de Meira, participou da audiência Fernando Matos, coordenador nacional do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos da Secretaria Especial de Direitos Humanos. No fim da tarde, o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, recebeu os participantes da audiência. Ele se comprometeu a adotar medidas para proteger os indígenas, como a inclusão de lideranças no programa de proteção aos defensores de direitos humanos e o incentivo à incorporação de indígenas como policiais em seus territórios. Campos também lembrou que muitos dos conflitos existem por conta de questões fundiárias. Em função disso, o presidente da Funai se comprometeu a fazer um levantamento de todas as áreas indígenas de Pernambuco e, junto ao governador, trabalhar pela regularização destas terras. Para a Apoinme, o resultado inicial da reunião parece positivo. “As propostas foram boas e eles se comprometeram a fazer uma força-tarefa, agora vamos ver como as coisas andam”, avalia Zé de Santa. n Cimi, através do seu Coletivo Nacional de Formação, realizou a primeira oficina temática abordando as análises, os fundamentos normativos, a prática, as responsabilidades administrativas e os desafios políticos que norteiam o acompanhamento das políticas governamentais, por meio das instâncias de controle social. Participaram 32 pessoas da entidade que integram, de forma direta e indireta, estas instâncias de controle. A idéia da oficina partiu de um levantamento das principais dificuldades dos missionários referentes ao exercício da participação das lideranças indígenas e dos próprios membros do Cimi. m amcorem Também foi objetivo da oficina identificar iril utpat non vulputem as sugestões e os encaminhamentos comuns quamcon a todas as experiências de participação nos sequat. Conselhos Distritais de Saúde Indígena, ConseLummodi psuscidunt lhos de Educação Escolar Indígena, Comissão luptat vendre Nacional de Política Indigenista (CNPI), Comismagnissed são Interinstitucional de Saúde Indígena (Cisi) magnim volorer ciduis e demais órgãos públicos federais, estaduais e del ut in ullan municipais. henisi etue As participações nessas instâncias buscam ming ese tat irit atummy fortalecer a intervenção dos missionários em nim vendipis temas referentes tanto às questões indígenas at. Ut volore dunt lam ver quanto indigenistas na formulação e no controle ilit alit social de políticas e ações administrativas de responsabilidade do poder público. Os temas que nortearam as discussões e que tiveram maior destaque na primeira parte da oficina foram: a mudança no atendimento à saúde dos povos indígenas, a proposta dos arranjos etno-educacionais do Ministério da Educação e o funcionamento e a estruturação dos espaços de controle social. Em outro momento, os assessores jurídicos do Cimi, Paulo Machado Guimarães e Cláudio Luiz Beirão, procuraram situar o controle social na organização estatal, analisando os parâmetros constitucionais de participação popular na formulação e fiscalização das políticas e ações de órgãos públicos. Eles ressaltaram as especificidades normativas em relação aos povos indígenas, como a Constituição Federal, a Convenção 169 da OIT, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, o Estatuto do Índio e a legislação sobre educação escolar indígena e saúde indígena. Ao final da oficina os participantes visualizaram as possibilidades, limitações e responsabilidades legais, administrativas e políticas dos integrantes de órgãos colegiados destinados à formulação, articulação e fiscalização de ações da administração pública de interesse dos povos indígenas. A oficina ocorreu entre os dias 25 e 27 de setembro, no Centro de Formação do Cimi Vicente Canhas, em Luziânia (GO), com a participação de integrantes de 11 regionais do Cimi. n 11 Novembro-2008 Retomada indígena: Evento na fronteira amazônica reúne participantes do Brasil, Peru e Colômbia encruzilhada País Afora J. Rosha Cimi Regional Norte I R ealizado de 16 a 19 de outubro, o seminário “Realidade Sócio Ambiental da Fronteira” reuniu cerca de 100 lideranças indígenas, ribeirinhas, dirigentes de entidades e movimentos sociais do Brasil, Peru e Colômbia, na cidade de Tabatinga, no Amazonas. Para sensibilizar a sociedade e cobrar dos governos políticas públicas na região fronteiriça os participantes divulgaram a Carta da Tríplice Fronteira, em que reivindicam o compromisso para a proteção e conflitos dos territórios indígenas, a assistência às comunidades ribeirinhas e a preservação do meio ambiente. Lideranças do Brasil denunciaram a falta de assistência aos povos do Vale do Javari (oeste do Amazonas), as mortes por desassistência e reclamaram proteção aos indígenas sem contato. Evento realizado pela PUC-SP relembrou os 25 anos da morte de Marçal de Souza Marcos Alexandre Albuquerque doutorando em antropologia social no PPGAS/UFSC E Fotos: Cimi Regional Norte I ntre os dias 24 de setembro a 3 de outubro ocorreu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) o evento Retomada indígena: encruzilhada e conflitos. Com o lema 25 anos sem Marçal, ele propôs dar visibilidade aos indígenas que estudam na PUC e aos 25 anos do assassinato da liderança indígena Guarani, Marçal Tupã’i (1920-1983), e a atual luta dos povos indígenas no país. A abertura aconteceu com o lançamento da página eletrônica do Projeto Pindorama (www.projetopindorama.com.br), feita pelos alunos indígenas, seguido pelo curta “Marçal de Souza”, de Nilson Barbosa (1985). Logo após, houve a mesa-redonda “Encruzilhada e Conflitos”, em que Benedito Prezia - doutor em antropologia, um dos coordenadores do Pindorama e autor do livro “Marçal Guarani: a voz que não pode ser esquecida” - discorreu sobre o legado que Marçal deixou para a causa indígena no país. Em seguida, a advogada Michael Nolan, que atuou naquele processo, falou sobre o caso, expondo também a atual política indigenista brasileira e enfatizando a continuidade da antiga aliança entre a grande mídia e os monopolistas da terra e do capital contra os povos indígenas. Em seguida, o professor Rinaldo Arruda (PUC-SP) enfocou a conjuntura indígena atual e a questão na cidade de São Paulo com relação à educação superior indígena. A aluna indígena Pankararu, Rejane Silva, concluinte do curso de Direito , falou do papel do Projeto Pindorama na sua formação acadêmica, e de como devolver à sua comunidade o que aprendeu, atuando como advogada nas causas indígenas. Por fim a liderança Guarani, Pedro Macena, da aldeia do Pico do Jaraguá, falou sobre os impasses na demarcação das terras indígenas em São Paulo. n N Carta da Tríplice Fronteira ós, indígenas, ribeirinhos e representantes de organizações da sociedade civil, participantes do Seminário Realidade Sócio-Ambiental na Tríplice Fronteira Peru - Colômbia - Brasil transcorrido na cidade de Tabatinga, Amazonas, Brasil, nos dias 16 a 19 de outubro de 2008, com o objetivo de buscar caminhos comuns diante dos desafios sócioambientais da região, nos manifestamos sobre a realidade enfrentada por nossos povos e comunidades. Nossa Mãe-natureza nos brindou a Amazônia, provendo-nos com recursos naturais, com grande biodiversidade e riquezas culturais ancestrais, que sempre permaneceram identificadas com nossas formas de organização, nossos costumes e nossa existência. Denunciamos todas as violações aos direitos dos povos indígenas e tradicionais estabelecidos e firmados nas Constituições de nossos países e na Convenção 169 da OIT, cometidos por ações de exploração indiscriminada dos recursos naturais, o narcotráfico, a violência de grupos armados legais e ilegais, a corrupção, o descaso e o abandono dos nossos governantes. Chamamos a atenção dos governos do Peru, Colômbia e Brasil para a ameaça de extinção de povos indígenas em situação de isolamento. Que reconheçam a sua existência, garantam sua integridade e a inviolabilidade de seus territórios. Encontramos-nos ameaçados pelos grandes projetos econômicos impostos pelos interesses transnacionais, provocando abusos cometidos por parte de governos que não adotam políticas diferenciadas de acordo com nossas realidades, sem levar em conta que nossos direitos ancestrais e tradicionais existem desde sempre e antes da criação dos Estados Nacionais. Exigimos que se adotem políticas governamentais que se adaptem à nossa cosmovisão, levando em consideração Novembro-2008 12 nossas necessidades especificas e diferenciadas voltadas para a saúde, a educação, o meio ambiente e a justiça social, a fim de melhorar nossa qualidade de vida. E por isso propomos: 1. O estabelecimento de políticas migratórias e de refúgio para as vítimas deslocadas por conflitos sociais, ambientais e políticos; 2. A igualdade de tratamento para os direitos tradicionais, levando em conta que entre os indígenas não pode haver fronteiras; 3. Que se assegure aos povos amazônicos a administração, a gestão e o controle de seus recursos em seus territoriais. Por tudo isto, assumimos os compromissos: • De criar uma equipe de coordenação trifronteiriça composta por representantes indígenas, camponeses e ribeirinhos de cada um dos três países; • Criar espaços que favoreçam uma permanente formação social, política, ambiental e cultural a fim de fortalecer as capacidades de liderança indígena, camponesa e ribeirinha na luta para o estabelecimento de políticas de desenvolvimento sustentável, fazendo prevalecer nossos direitos; • Criar fóruns fronteiriços de debate permanente. Foto: Divulgação Cerca de 100 lideranças indígenas e ribeirinhas, além de dirigentes de entidades dos três países, reuniram-se para sensibilizar a sociedade e cobrar dos governos políticas públicas na região fronteiriça Tabatinga, 19 de Outubro de 2008 Participantes: Povos Matsés, Mayoruna, Tikuna, Matis, Tukano, Marubo, Kokama, Kambeba, Kanamari, Aguajun, Yagua, OGTBBBC, COIAB, CIMI, SARES, Pastoral do Migrante, PIDAS, Diocese do Alto Solimões, Equipe Itinerante, PPGSCA, CTI, CPT, FASE, UEA, FUNAI, UNIVAJA, Instituto de Desenvolvimento e Assistência à Saúde e à Sociedade Indígena, OTAM, Comunidade Ribeirinha Santa Terezina, RAL, PROCREL, Reserva Nacional del Pacaya Samiria, CEDIA, WCS, Comunidade São Pedro, ACITAM, AZCAITA, ATICOYA, ASOAINTAM, AZICACH, CODEBA, CORPOAMAZONIA, PNNA, SINCHI, OMACHA, Pastoral Social de Letícia. A liderança Guarani, Pedro Macena, da aldeia do Pico do Jaraguá, falou sobre os impasses na demarcação das terras indígenas em São Paulo 5ª Conferência Internacional da Via Campesina Eden Magalhães Secretário-executivo do Cimi A conferência aconteceu na cidade de Maputo, em Moçambique – África, entre os dias 19 e 22 de outubro. Cerca de 600 pessoas, incluindo mais de 325 delegados e delegadas de 57 países foram recebidas de maneira calorosa, fraternal e combativa pelos anfitriões, a União Nacional de Camponeses (UNAC) de Moçambique. A abertura se deu ao ritmo de danças e tambores africanos, com a presença do presidente moçambicano, Armando Emílio Guebuza. Além de definir as estratégias e o plano de ação da Via Campesina para os próximos quatro anos, a conferência ratificou sua sede internacional na África e a admissão de 41 novos membros. Diversos temas que têm um impacto sobre a agricultura camponesa foram abordados, tais como a luta diária para sobreviver como camponeses; as corporações transnacionais; os tratados comerciais, a Organização Mundial do Comércio e a soberania alimentar; as sementes e a biodiversidade para a soberania alimentar; os territórios versus as mudanças climáticas e agrocombustíveis e os modelos de produção. Foram aprovadas algumas moções, entre elas duas apresentadas pelo Ameríndia Fotos: Eden Magalhães Realizada na África, o evento reuniu cerca de 600 participantes e aprovou duas moções de solidariedade aos povos indígenas mulheres sem-terra, indígenas, juventude rural e trabalhadores rurais. O movimento é pluralista, multicultural, autônomo e independente de qualquer orientação política e religiosa. A Via Campesina promoveu a idéia da “soberania alimentar” como resposta ao conceito de segurança alimentar que criou mais fome no mundo e mais pobreza entre as famílias camponesas. A soberania alimentar é um conceito alternativo que apóia os povos na sua luta contra as políticas neoliberais como aquelas que são impostas pelas instituições financeiras internacionais, a OMC e as corporações transnacionais do agronegócio, através do livre comércio e da liberação da agricultura. n Cimi. Na primeira, a 5ª Conferência manifestou apoio e solidariedade aos povos indígenas do Brasil e a sua firme disposição em continuar aprofundando a grande construção da aliança camponesa e indígena no Brasil, na América Latina e em todo o mundo. A segunda moção foi em favor da terra e vida do povo Kaiowá Guarani, solicitando apoio para a urgente identificação e demarcação de suas terras, em cumprimento à Constituição Federal, em consonância com a Convenção 169 da OIT e a Declaração dos Direitos Indígenas da ONU. A Via Campesina é um movimento internacional de camponeses, pequenos e médios produtores, homens e Participantes se deslocam para as discussões. Ao lado a delegação brasileira integrada por representantes dos mais diversos movimentos sociais. Na conferência foram discutidos temas comuns a todos os movimentos Os Tupi de Piratininga Acolhida, resistência e colaboração Benedito Prezia da Tese de Doutorado em Ciências Sociais (Antropologia) – PUC – São Paulo, 2008 A tese tem como objetivo mostrar como os Tupi de Piratininga se posicionaram na segunda metade do século XVI frente ao projeto colonial português. Possui duas grandes unidades. A primeira, com os capítulos 1, 2 e 3, onde são apresentados os protagonistas deste embate: o povo Tupi, o colono e o missionário jesuíta. Dos Tupi são apresentadas algumas de suas características socioculturais, como a chefia, a religião e a mobilidade, com sua rede de caminhos entre as aldeias e as diversas regiões do interior com as quais tinha contato. Do colono, formado na sua maioria por degredados e aventureiros, é mostrado o projeto comercial, implantado no litoral vicentino, e que era baseado na cultura da cana de açúcar e na escravidão indígena. Por sua vez o pequeno número de povoadores que viviam isolados em São Paulo de Foto: Arquivo Cimi Tese Piratininga propiciou a formação de uma sociedade mestiça, que se dedicará, a partir do final do século XVI, ao tráfico de indígenas Do jesuíta, vemos seu projeto missionário, trazido da Europa no espírito da reforma tridentina. Na segunda unidade, capítulos 4 e 5, são apresentadas as respostas indígenas frente a estes agentes da colônia: a acolhida, a adesão ao projeto missionário e colonial, e a resistência, na suas duas formas, a dissimulada e a guerreira. Quanto à adesão ao projeto missionário são apresentados os dois primeiros aldeamentos reais, o de Nossa Senhora da Conceição de Pinheiros e o de São Miguel de Ururay, e a ligação destes indígenas que se tornaram cristãos com a vida colonial. Quanto à resistência, é mostrada a importância das lideranças religiosas Tupi nos levantes guerreiros, sobretudo na guerra de Piratininga, e a resistência dos Tupi autônomos, que pressionaram belicamente a vila de São Paulo até o final do século XVI. E finalmente vemos a participação de um importante segmento Tupi no projeto colonial paulista, que resultou no bandeirismo escravista. Em anexo há traduções, ainda inéditas, dos mitos Tupinambá, recolhidos por Thevet, no século XVI; o texto da primeira demarcação de terra indígena no planalto paulista; e o primeiro levantamento populacional do Brasil, feito pelo jesuíta Pe. Luis da Fonseca por volta de 1592. n Benedito Prezia trabalhou no Cimi, em Brasília, por 8 anos, de 1983 a 1991, dos quais quatro anos como secretário adjunto. Atuou no setor de formação e de publicações, sendo um dos editores do Suplemento do Porantim. Atualmente coordena a Pastoral Indigenista de São Paulo e é um dos coordenadores do Programa Pindorama, da PUC-SP, para universitários indígenas. Já publicou vários livros, entre eles, Terra à Vista – Descobrimento ou invasão? (Ed. Moderna), Indígenas do Leste do Brasil – Destruição e resistência (ed. Paulinas) e Marçal Guarani – A voz que não pode ser esquecida (Ed. Expressão Popular). n O indigenista Benedito Prezia, que trabalhou durante 8 anos no Cimi, defendeu sua tese de doutorado em Ciências Sociais, no departamento de Antropologia, da PUC/SP 13 Novembro-2008 Relato Missionário Índios isolados e de pouco contato: como lidar? O respeito à cultura e autonomia destes povos tem se mostrado como alternativa ao contato forçado Os Zuruaha foram contatados em 1980 pela equipe da Pastoral Indigenista de Lábrea. A primeira fase do contato foi marcada pela tentativa de demarcação da área, conscientização da sociedade envolvente e aprendizado da língua Concepção O Cimi e a Opan elaboraram uma proposta alternativa de contato com índios isolados em face ao projeto oficial de pacificação. A serviço de interesses econômicos, as pacificações visavam desocupar as áreas tradicionais indígenas para ocupação, colonização e implantação de grandes projetos na Amazônia Legal. Essa ideologia neocolonial e geopolítica levou vários povos à redução populacional, ao extermínio parcial e, finalmente, ao genocídio. A proposta alternativa consistia em proteger os índios isolados, ameaçados Formas de Pagamento: cientização da população envolvente e aprendizado da língua. A segunda fase, entre 1984 e 1987, teve o objetivo de preparar os índios para a vacinação, já que a Funai tinha feito uma “pacificação oficial”, abrindo caminho para a área e tornado os índios vulneráveis a doenças. Os índios também foram acompanhados no processo de ocupação do seu território tradicional. Foto: Gunter Kroemer A sistematização de um trabalho com os índios isolados ou de pouco contato teve início em 1980, quando foi realizado entre algumas entidades o primeiro encontro sobre os índios “livres”. No encontro, foram discutidas experiências com povos recém-contatados: Myky, Enawenê-Nawê, Tapaiuna e Cinta-Larga. Elaborou-se um quadro com informações sobre grupos não contatados. Em 1986 houve o segundo encontro onde se tentou elaborar um modelo de metodologia, procedimentos e comparação com as formas de atração realizadas pela Funai. Também neste encontro foram levantados dados sobre índios isolados. Nesse mesmo ano, aconteceu um encontro entre os antigos sertanistas da Funai que traçam uma nova política para os índios isolados. Foi criada a Coordenadoria de Índios Isolados e reelaborado o objetivo do trabalho, passando da perspectiva do contato para a da proteção dos isolados, incorporando as idéias do Cimi e da Operação Amazônia Nativa (Opan). Perspectivas pelas frentes econômicas, militares, políticas e de particulares, substituindo o contato forçado por uma proposta de respeito e adotando um processo lento de contatação, a fim de garantir a integridade de seus valores e o domínio de sua autonomia. Práticas Os Enawenê-Nawê, os Myky e os Zuruaha são povos contatados a partir do conceito indigenista do Cimi e Opan. Os Myky foram contatados em 1971, por missionários da Missão Anchieta, quando o grupo se constituía de apenas 22 membros. Hoje eles já somam 58. O processo de contato foi respeitoso e lento. O primeiro período foi marcado pelo trabalho de interdição da área, atendimento à saúde, aprendizado da língua e da cultura e pela presença direta da equipe. Hoje a equipe atua no atendimento à saúde, na formação de agentes Myky de saúde, no repasse de informações, no processo de educação informal, de alfabetização na língua e na formação de professores Myky, no acompanhamento Se preferir pode enviar CHEQUE por carta registrada nominal ao CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, para o endereço: SDS – Ed. Venâncio III, Salas 309/314 – CEP: 70393-902 – Brasília-DF – Para a sua segurança, se for enviar cheque, mande-o por carta registrada! – Comunique sempre a finalidade do depósito ou cheque que enviar. – Inclua seus dados: nome, endereço, telefone e e-mail. Envie cópia do depósito por e-mail, fax (61-2106-1651) ou correio e especifique a finalidade do mesmo. P Ass. anual: R$ 40,00 Baseado em texto original de Gunter Kroemer – Cimi Regional Norte I Assine o BANCO BRADESCO Agência: 0606-8 – Conta Corrente: 144.473-5 CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO dos Myky no contato com a população regional e no trabalho com a população de Brasnorte (cidade mais próxima) para conscientização da presença dos Myky na região. Os Enawenê-Nawê foram contatados em 1974, também pela Missão Anchieta. Neste grupo destacou-se a presença de Vicente Cañas até 1987, quando foi assassinado por madeireiros. Foi realizado um trabalho de aprendizado da língua e da cultura, de introdução de novos cultivos e de demarcação e fiscalização do território, o que ocasionou diversos conflitos com os invasores das terras indígenas. Em 1988, a Opan assumiu os trabalhos com a saída da Missão Anchieta e começou a pensar alternativas econômicas para a sobrevivência da comunidade. Houve avanços com os estudos lingüísticos e com a presença de médicos e dentistas. Os Zuruaha foram contatados em 1980 pela equipe da Pastoral Indigenista de Lábrea. A primeira fase do contato, que vai até 1984, foi marcada pela tentativa de demarcação da área, cons- As perspectivas resultam também em desafios dos quais podemos citar alguns: quanto à troca, qual a correlação dos valores de cada objeto? Quanto à saúde, quais as conseqüências das vacinações e como se dá a medicina natural tradicional? Quanto ao trabalho das equipes, como deve ser sua permanência nas áreas? É importante ensinar o português? Quais os critérios para introduzir novas necessidades? Avalia-se que é necessário ampliar os conhecimentos antropológicos, com auxílio de assessorias, buscar conhecimentos técnicos e investir em pesquisa, além de articular organizações e movimentos indígenas e populares para pressionar o governo por uma política ecologicamente sustentável e adequada às várias realidades sociais da região Amazônica. Deve-se avaliar as mudanças econômicosociais ocorridas em cada grupo indígena, acarretadas pelo contato, e os efeitos das ações indigenistas. A experiência ao longo do tempo tem mostrado que o caminho é de respeito aos povos, suas culturas e autonomia, sua organização social e formas de vida. n *Ass. de apoio: R$ 60,00 r e ç o s América Latina: US$ 40,00 Outros países: US$ 60,00 * Com a assinatura de apoio você contribui para o envio do jornal a diversas comunidades indígenas do País. Novembro-2008 14 Solicite sua assinatura pela internet: [email protected] Homenagem Mais um guerreiro Xukuru no Reino dos Encantados Vamos dar a despedida, Como deu a Saracura, Bateu asas, foi embora; Coisa boa, não adura. (Toante de despedida do Povo Xukuru) Saulo Feitosa Secretário-adjunto do Cimi F aleceu na manhã de 14 de outubro João Jorge, liderança maior da aldeia Sucupira, na terra indígena Xukuru, em Pernambuco. Conhecido por sua aguerrida militância, o companheiro de primeira hora do cacique Xicão continuou seu combate incansável e intransigente na defesa dos direitos do povo Xukuru até o momento de sua despedida. Foram inúmeras as retomadas de terras em que esteve presente, sempre “arrebanhando seu povo”, como costumava dizer. De temperamento forte e objetividade nas ações, jamais se deixou intimidar pelas ameaças sofridas por parte de latifundiários invasores da terra de seu povo. Aliava à sua prática política a mística Xukuru, pois era principalmente um grande líder religioso, chefe de terreiro do Toré. Sua crença na força dos Encantados sempre o impulsionou nas horas mais difíceis, tornando-o imbatível nas empreitadas assumidas. Diferentemente do cacique Xicão, João Jorge teve a felicidade de habitar na “Terra Prometida”, no Solo Sagrado da Serra do Ororubá. Pôde desfrutar da alegria de viver numa terra sem invasores e, por essa razão, não cansava de manifestar seu contentamento em “ver seu povo comer” do fruto da terra e deixar para trás o tempo da fome. Vai agora se reencontrar com tantos mártires de seu povo: Xicão, Chico Quelé, Everaldo, Milson, Nilsinho, Rolim, além de muitos outros que, assim como ele, partiram em paz, na certeza de que “Guerreiro não morre, apenas se Encanta”. n As memórias de quem conviveu com seu João Jorge Roberto Saraiva Indigenista A pós mais de 11 anos trabalhando no indigenismo desta região, recebi com tristeza a informação do falecimento de seu João Jorge, liderança da aldeia Sucupira e uma das mais fortes referências do povo Xukuru, principalmente pela sua história e pela sua determinação em nunca desanimar. Fui uma das muitas testemunhas da dedicação deste guerreiro que entregou sua vida à luta do povo Xukuru. Precisamos fazer justiça a essa pessoa, rude e ao mesmo tempo afável, controversa sem deixar de ser leal e, principalmente, um homem eternamente apaixonado pelo seu povo. Líder religioso, foi uma figura firme no que ele chamava de “fidelidade ao sagrado”: “Toré é a nossa força, toré é a nossa raiz!”. Para lembrar deste guerreiro, reproduzimos uma entrevista que fizemos com ele por ocasião da retomada da terra que estava em posse do fazendeiro Atavio Carneiro Leão. Roberto Saraiva - Seu João, me responda qual o sentimento que o senhor tem neste momento desta retomada? João Jorge - Sabe meu amigo, vocês do Cimi são testemunhas do quanto somos perseguidos, o quanto a gente é caluniado e do quanto a gente é zombado. Olha Roberto, eu sou um homem muito sofrido e tive muitas passagens por outros lugares fora da aldeia. Trabalhei em Recife, morei em Casa Amarela, mas sempre tive um sonho de voltar pra minha casa, meu chão, minha aldeia. Quando o cacique Xicão começou a organizar o nosso povo, eu me empolguei e senti com a força dos Encantados que ia dar certo. Me arrepiei todo e ficava sempre ardido de forças para não desanimar quando as coisas parecia que iam dar errado. Xicão falava e eu muitas vezes ficava pensando quando seria isso, que nós íamos nos libertar e conseguir dar o nosso grito de guerra e liberdade. Nesta terra que entramos agora, pra não mais sair, eu fui muitas vezes expulso e mal visto pelo fazendeiro e também pelos capangas que ele tinha. Hoje eu tenho a alegria de ver que ele estava errado e nós, [nesse momento, ele tira o chapéu e olha pro céu fazendo referência às forças dos Encantados] juntamente com as forças sagradas e nossas entidades de apoio, conseguimos botar o bicho ruim pra fora de nossas terras, e ele saiu sem mugir desta vez, por isso a gente tá aqui com o herdeiro de Xicão, Marquinho, que você sabe é muito novo, mas tem o tino do pai. Por isso eu tenho o sentimento que juntos vamos conseguir tudo o que eles nos roubaram e nós orientados pelos Encantados, pelas entidades de apoio, vamos correr para buscar tudo o que esses tubarões nos devem. Roberto Saraiva - Então seu João, fale como é que essa comunidade vence esses obstáculos? João Jorge - Tem um segredo, a gente não nasce pequeno e sem saber de nada? Pois bem, sabíamos tudo, nos roubaram e nos obrigaram a desconhecer as nossas forças. Aí a gente como uma sementinha, fomos brotando, e essa sementinha cresceu, cresceu e ficamos forte, fomos regados a sofrimento e resistência, assim nasce um guerreiro Xukuru, não podemos contar tudo né? (risos) têm coisas que têm que ter os nossos segredos. Ele ainda me falou assim: “Olha Roberto eu não sei o que você vai fazer com minhas palavras, mas eu termino cantando um ponto de Toré: ‘quem quiser mangar de mim, eu não me importo não, pois quando eu chego lá na mata, eia, eia...”. Esse é João Jorge de Melo, no olhar de quem pode beber um pouco de sua sabedoria, nas viagens que fizemos juntos e nas conversas embaixo da árvore de casa ou ainda no terraço de sua residência, onde falamos muitas vezes do sonho concretizado de recuperar seu espaço, seu território, com o seu sorriso banguela e sincero, de quem tinha a certeza de que um sonho sempre embala outros sonhos. n 15 Novembro-2008 À terra, meu canto para te fecundar Ao ar, minha dança para te saudar À água, minha pintura para te agradecer Ao fogo, minha crença para te alimentar À floresta, meu rito para te preservar Sou terra e ar, água e fogo, floresta... E minha vida é uma confissão de resistência APOIADORES UNIÃO EUROPÉIA Novembro-2008 16