ISSN 0102-0625
Em defesa da causa indígena
Ano XXXI • N0 310 • Brasília-DF • Novembro-2008
R$ 3,00
Policiais em ação na aldeia Tucum, no sul da Bahia – Foto: Walney Magno
TRUCULÊNCIA POLICIAL
Agentes da Polícia Federal invadem aldeias dos Tupinambá,
no sul da Bahia. Na Serra do Padeiro, pelo menos 20 pessoas
ficaram feridas e dois indígenas foram presos
Página 10
Os Guarani do Paraná
comemoram duas ações
favoráveis na Justiça
Os 25 anos do assassinato
de Marçal é lembrado
durante Aty Guasu
Povo Bororo luta
para reconquistar seu
território tradicional
Página 4
Página 5
Páginas 8 e 9
Opinião
Conflito de governo na
política de saúde indígena
E
ISSN 0102-0625
m 1999, quando a lei Arouca (que instituiu o Subsistema de Atenção à Saúde
Indígena com base nos
Distritos Sanitários Especiais Indígenas - DSEIs) foi aprovada
pelo Congresso e sancionada pelo
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, imaginava-se que o Ministério da
Saúde implementaria uma política de
atenção à saúde indígena nos moldes
do que a lei determinava.
Naquele ano, ao contrário, as
responsabilidades de governo foram
entregues a ONGs, prefeituras e
organizações indígenas. Como conseqüência, coube ao Ministério da
Saúde, através da Funasa, apenas o
estabelecimento de convênios com as
terceirizadas, o repasse dos recursos e
a cobrança da sua aplicação.
O modelo perdurou até o início
de 2008, quando o Ministério Público
Federal do Trabalho solicitou judicialmente que esta política terceirizada
fosse considerada ilegal. Foi estabelecido um prazo para que o Ministério
da Saúde reformulasse o modelo de
assistência, rompesse com os convênios e realizasse concursos públicos
para contratação dos profissionais em
saúde indígena.
Nos últimos anos, o movimento
indígena e as entidades indigenistas
vêm solicitando a constituição de uma
Secretaria Especial de Saúde Indígena,
no âmbito do Ministério da Saúde,
para coordenar as políticas de saúde
indígena. A esta secretaria devem
vincular-se os profissionais e ela deve
contar com um orçamento que assegure as ações dos DSEIs, tendo eles
autonomia administrativa e financeira
mediante plano distrital.
Porém, em 29 de agosto, o ministro da Saúde apresentou ao presidente
o Projeto de Lei 3.958/2008, que altera
a Lei 10.683/2003. O projeto dispõe
sobre a organização da Presidência
e dos ministérios e cria a Secretaria
de Atenção Primária e Promoção da
Saúde, para a qual seriam transferidas
Edição fechada em 12/11/2008
Publicação do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), organismo vinculado à Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
UNIÃO EUROPÉIA
2
reuniões, a pretexto de avaliar o modelo de atenção em curso, busca-se a
adesão dos indígenas para pressionar
o governo, no sentido de que este
reveja sua decisão e que a Funasa se
mantenha responsável pela saúde indígena. Além disso, a Funasa mantém
em Brasília indígenas e representantes
das prestadoras de serviço para que
conversem com variados segmentos
sociais e órgãos de Estado, em uma
espécie de lobby para evitar que o
projeto seja aprovado.
Enquanto a discussão acontece,
vemos a grave situação de saúde de
muitos povos indígenas, com quadros
de endemias de hepatite, malária,
tuberculose e outras doenças, o que
demonstra a inadequação do modelo
terceirizado e centrado na Funasa.
Por outro lado, preocupa-nos o fato
de que os povos indígenas sejam
mantidos de fora das definições
mais importantes. O projeto de lei
apresentado pelo governo parece ser
muito mais um paliativo, uma solução
confortável para retirar da ilegalidade
a atual política de saúde indígena, sem
manifestar interesse em implementar
uma política que respeite as determinações constitucionais, a Lei Arouca
e as recomendações das Conferências
Nacionais de Saúde Indígena.
Roberto Liebgott
Vice-presidente do Cimi
Dom Erwin Kräutler
PRESIDENTE
Paulo Maldos
Assessor Político
Vale-tudo eleitoreiro
O fazendeiro Délio Fernandes, suspeito
de ser o mandante do assassinato de Irmã
Dorothy, há três anos, foi eleito vice-prefeito
de Anapu, no Pará. Surpreendentemente,
Fernandes é vice na chapa de Chiquinho
do PT, antigo aliado e amigo da missionária
assassinada. Em 2003, Chiquinho e Irmã
Dorothy acusaram o fazendeiro de grilagem
de terras no município.
Crise – parte 1
Governos dos Estados Unidos e Europa
já gastaram 11% de toda a riqueza produzida
no mundo para salvar bancos na crise do
sistema financeiro. A estimativa é do Banco
Central da Inglaterra. O valor corresponde
a quatro vezes a economia brasileira, mas o
BC inglês prevê que a crise ainda gere prejuízos de cerca de 2 trilhões e 800 bilhões de
dólares. O curioso é que, enquanto há toda
essa mobilização para “salvar os bancos”,
seria necessário um esforço muito menor,
de apenas 1% das riquezas produzidas para
solucionar os problemas climáticos e metade
do que foi dado aos bancos para erradicar a
fome no mundo.
Crise – parte 2
Chamados de heróis pelo presidente
Lula há dois anos, os usineiros da cana
acumulam dívidas e atrasam o pagamento
de trabalhadores e fornecedores. Segundo
o Centro Nacional das Indústrias do Setor
Sucroalcooleiro e Energético, 30% dos
usineiros estão inadimplentes com os
fornecedores de equipamento e, pela
apuração do Estado de S. Paulo, 75% não
estão pagando os trabalhadores das usinas.
A crise é para todos, até os heróis.
Isolados do Madeira
MARIOSAN
Na língua da nação indígena
Sateré-Mawé, PORANTIM
significa remo, arma, memória.
APOIADORES
Novembro-2008
as competências da Funasa. O projeto
foi analisado pelo presidente, apresentado ao Congresso e atualmente
está em tramitação na Câmara dos
Deputados.
A iniciativa desencadeou um
conflito entre funcionários e técnicos da Funasa, lideranças indígenas
e terceirizados com o Ministério da
Saúde, o que deixa evidente o descontentamento do movimento indígena
com a imposição de um projeto pelo
ministério sem submetê-lo a uma
discussão mais ampla.
A proposta embutida na nova lei
constitui um retrocesso, pois, ao invés
de criar uma Secretaria Especial de
Saúde Indígena, propõe a vinculação
das ações e serviços de saúde indígena
a uma secretaria com responsabilidades diversas. Não existe uma idéia
clara de como esta “secretaria ambivalente” funcionará e que relação será
estabelecida com os Distritos, quais
recursos serão disponibilizados, que
modelo de atenção vai adotar e se a
execução das ações se dará de forma
direta, terceirizada, municipalizada
ou através de fundações estatais a
serem criadas.
Por conta do descontentamento
de funcionários da Funasa com o
ministro da Saúde, a Fundação vem
organizando reuniões com representantes indígenas país afora. Nestas
Porantinadas
Após vários alertas, inclusive do Cimi, a
Funai vem agora a público confirmar a presença de índios isolados nas proximidades
das obras das usinas do rio Madeira, em Rondônia. A informação havia sido registrada em
documento entregue nas audiências públicas
em Porto Velho, mas, segundo a coordenadora da Associação de Defesa Etno-Ambiental,
Ivaneide Bandeira, o Ibama e as empreiteiras
preferiram fingir que não sabiam. A Funai diz
que pode haver mudança no cronograma
das obras, mas, pasmem, apenas se forem
comprovados os impactos que elas trarão aos
indígenas. Só falta o órgão querer consultar
os isolados sobre a questão!
Clarissa Tavares
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Foto: Eden Magalhães
Conjuntura
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América Latina em movimento
As lutas no Brasil pelos direitos indígenas encontram eco em outros países do continente, em um mês marcado por mobilizações populares
O
utubro foi um mês marcado
pelas lutas dos povos da América Latina. Enquanto representantes de movimentos e
organizações sociais articulavam suas
demandas no 3º Fórum Social das Américas, na Guatemala, e na 5ª Conferência
Internacional da Via Campesina, em
Moçambique, na África, em diversos países do continente as bases populares,
camponesas e indígenas se colocaram
em marcha contra a discriminação e
opressão de suas comunidades.
Na Colômbia, os indígenas se mobilizam para reivindicar os direitos sobre
os territórios originários e por uma
saída negociada e digna ao conflito
armado em que vive o país. Também
denunciaram a violação sistemática
dos seus direitos e a criminalização de
suas demandas: incursões violentas em
seus territórios, estigmatização de seus
líderes como terroristas, detenções,
torturas, assassinatos, desaparecimentos e deslocamentos forçados.
Segundo a Organização Nacional
Indígena Colombiana (ONIC), 400 mil
indígenas foram desalojados de suas
terras e 18 comunidades correm perigo
de extinção. Em resposta, o governo
do presidente Álvaro Uribe reagiu com
forte repressão matando 19 indígenas,
em apenas 15 dias.
Porém, a população colombiana não
se rendeu. Aglutinou o apoio de vários
setores populares, também insatisfeitos
com o governo, e se pôs em marcha até
a capital, Bogotá, para exigir que sejam
consultados, ouvidos e respeitados.
No Peru, as principias vias que ligam
a região de Puno - na fronteira com a
Bolívia - a localidades do sul do país
foram bloqueadas por camponeses e
indígenas que protestavam contra o Estado peruano. Os manifestastes exigiam
a anulação dos decretos legislativos
aprovados pelo governo para implementar o Tratado de Livre Comércio
(TLC) com os Estados Unidos.
No primeiro dia de protesto, foram
presas mais de 150 pessoas. O presidente Alan Garcia se recusou a negociar,
declarou estado de emergência em oito
províncias e ordenou a ação policial
contra a greve. A polícia matou quatro
camponeses e deixou muitas pessoas
feridas.
A ação repressiva do governo peruano é parte de uma política de criminalização dos movimentos sociais, que
se expressou também nos 11 decretos
legislativos que ampliam as penas por
bloqueios de estradas e outras formas
de mobilização. Mesmo antes dos
decretos, mais de 700 camponeses e
indígenas já haviam sido processados
judicialmente, inclusive por terrorismo, ao defender suas comunidades
contra os efeitos destrutivos das
minerações.
A Bolívia, por sua vez, não saiu do
centro das atenções. Os apoiadores
do presidente Evo Morales realizaram
uma marcha de 200 km, da cidade de
Caracollo até a capital La Paz, para pressionar o Congresso a adiantar os trabalhos que visam o fechamento do texto
da nova Constituição. Se concluído, o
Foto: Divulgação/ Minga
Clarissa Tavares
Editora do Porantim
texto poderá ser posto em votação num
referendo a ser realizado em 2009.
No Congresso, a oposição resiste
às mudanças constitucionais, alegando
que elas darão mais poder para a maioria indígena e aumentarão o controle
do Estado sobre a economia. Enquanto
oposição e governistas não chegam a
um consenso sobre o assunto, dezenas
de protestos violentos se espalham
pelo país.
O que temos com isso?
O que acontece nestes outros países
da América Latina tem mais a ver com o
Brasil do que suspeita grande parte da
população. É, por um lado, o retrato da
reação governista ao que já não se pode
esconder: a emergência das populações
historicamente subjugadas e oprimidas.
E, por outro, o registro de uma história
de resistência e bravura destes povos.
Aqui no Brasil vivemos, além das lutas
cotidianas travadas pelas organizações
sociais, um momento decisivo para os
povos indígenas. Assim como em vários
países da América Latina, está exposta
a disputa entre os interesses do sistema
capitalista e os dos setores populares.
Os primeiros são representados por empresas nacionais e estrangeiras ligadas
à mineração, produção de energia e ao
agronegócio – muitas vezes defendidos
pelo Estado. As classes populares são as
populações tradicionais, camponesas,
indígenas e quilombolas que visam o
desenvolvimento sustentável e a defesa
do meio ambiente.
O embate chegou ao Supremo Tribunal Federal, que em breve decidirá
sobre o futuro das comunidades residentes na terra indígena Raposa Serra
do Sol, em Roraima, e do povo Pataxó
Hã-hã-hãe, no sul da Bahia.
No primeiro caso, a disputa se efetiva entre fazendeiros, liderados pelo
arrozeiro Paulo César Quartiero - que
chegou ao estado em 1994, invadiu o
território ancestral indígena e hoje se
diz proprietário da área - e as comunidades tradicionais que não possuem
registro, nem memorial nem material,
de terem habitado outro território. O
estado de Roraima também é parte do
embate contra os interesses dos povos
indígenas. Na Bahia, os Pataxó estão
há 26 anos esperando que a Justiça
decida pela nulidade dos títulos imobiliários emitidos pelo estado da Bahia a
fazendeiros, na terra tradicionalmente
ocupada pelos indígenas.
A disputa também está explicitada
no estado do Mato Grosso do Sul, onde
os fazendeiros que plantam cana, soja e
criam gado invertem a lógica do uso da
terra: expulsam os povos que tradicionalmente a ocuparam e disponibilizam-na à
produção exaustiva e indiscriminada.
É chegado o momento de os interesses serem confrontados frente-a-frente.
Os setores que historicamente dominaram este país, finalmente, encaram
as populações indígenas que já não
podem mais se manter caladas e andar
de cabeça baixa.
No Brasil e em toda a América Latina, se anuncia que é chegado o outro
momento para os povos do continente.
As populações indígenas, camponesas,
afrodescendentes, tradicionais estão
em marcha. n
Representantes
de movimentos
e organizações
sociais
estiveram
reunidos
na África e
Guatemala
para articular
as ações no
continente.
Enquanto isso,
povo Pataxó
Hã-hã-hãe
espera decisão
do STF sobre
suas terras
3 Novembro-2008
Justiça determina
melhoria na assistência
à saúde e educação
das aldeias
Aldeia
Tekoha
Araguaju, em
Terra Roxa,
não possui
sanitários,
nem
fornecimento
regular de
água tratada,
sendo
constantes
os problemas
de saúde.
Também
não possui
estrutura
adequada
para o
acesso à
educação e
falta equipe
de saúde
Cleber Buzatto, Marline Dassoler
e Diego Pelizzari
Equipe Paraná - Cimi Regional Sul
O
juiz federal Luiz Carlos Canalli,
da 1ª. Vara Federal de Umuarama, no Paraná, determinou que
a Fundação Nacional de Saúde
(Funasa) e o estado do Paraná qualifiquem o atendimento prestado aos
Guarani que vivem nas aldeias Tekoha
Porã e Tekoha Marangatu, no município
de Guaíra, e Tekoha Araguajú, em Terra
Roxa, no oeste paranaense.
À Funasa, o juiz determinou a
instalação, num prazo de 10 dias, de
A decisão foi tomada após a constatação de que as comunidades indígenas não possuem sanitários, nem
fornecimento regular de água tratada.
As famílias consomem água do rio
Paraná, sendo constantes e numerosos os problemas de saúde. Elas não
recebem cestas básicas regularmente
e há total falta de estrutura para o
acesso à educação, assim como, falta
de equipe de saúde e de fornecimento
de medicamentos, originando casos de
desnutrição e doenças principalmente
nas crianças.
Outra decisão, no dia 27 de outubro, determinou que a Companhia Para-
naense de Energia (Copel/PR) realizasse
a imediata instalação e disponibilização de energia elétrica à comunidade
indígena Tekoá Araguajý, em Terra
Roxa, e que a Prefeitura Municipal de
Terra Roxa fornecesse imediatamente
medicamentos a uma criança indígena
de dois anos na qual foi constatada
desnutrição.
A determinação responde a reivindicações urgentes e legítimas dos Guarani
e demonstra a falta de iniciativa própria de órgãos públicos responsáveis,
jurídica e legalmente, pela efetivação
de direitos dos povos indígenas no
Brasil. n
Itaipu tem recurso negado pela Justiça
A aldeia
Tekoha
Marangatu,
em Guaíra, é
um dos alvos
da Itaipu.
Durante a
construção da
hidroelétrica,
os povos
indígenas
foram
desrespeitados
e grande
extensão de
seus territórios
foram cobertos
pelas águas
Novembro-2008
módulos sanitários e cozinha para preparação de alimentos, o fornecimento
de água tratada e de cestas básicas,
regularmente, bem como disponibilizar
uma equipe multidisciplinar na área da
saúde para atendimento aos indígenas,
dando-lhes assistência 24 horas e medicamentos.
Ao estado do Paraná foi determinado que, no prazo de 20 dias, proceda à
instalação e provenha a infra-estrutura
física e de pessoal necessária ao funcionamento de escolas indígenas nas
comunidades. Para o caso de descumprimento da decisão, foi fixada multa
diária de R$ 500.
Fotos: Cimi Regional Sul/Equipe Paraná
Guarani do Paraná
O
4
Tribunal Regional Federal da
4ª Região, com sede em Porto Alegre (RS), negou, por
unanimidade, o provimento à
ação impetrada pela empresa Itaipu
Binacional contra os Guarani que vivem
nas aldeias Tekoha Marangatu, Tekoha
Porá e Tekoha Karambey, no município
de Guaíra, no oeste paranaense.
Com isso, o Tribunal confirmou a
decisão da Justiça Federal de Umuarama
(PR), de dezembro de 2007, em relação à
ação em que a Itaipu Binacional pedia a
reintegração de posse das áreas de terra
onde estão localizadas as três aldeias.
Na sentença, o juiz federal defendeu
enfaticamente o direito dos Guarani sobre suas terras tradicionais, afirmando:
“Ante o exposto, julgo improcedente
o pedido possessório formulado pela
Itaipu Binacional e declaro que as terras
ocupadas pelos índios Avá-Guarani nos
lotes abordados (Tekoha Porá; Karumbey
e Tekoha Marangatu) constituem terras
indígenas tradicionalmente ocupadas,
não podendo ser objeto de domínio
ou posse, senão pelos próprios índios,
conforme disposição constitucional, independente de prévia demarcação”.
Na decisão do TRF-4ª, publicada em
27 de outubro, os desembargadores
citam parte da sentença da primeira
instância:
“Atualmente as ocupações indígenas em Guaíra concentram-se em três
lotes: 1) Tekoha Porá (sul); 2) Karumbey
(norte), e 3) Tekoha Marangatu, na faixa
de proteção. É sobre a área desses três
lotes que a requerente postula a proteção possessória. Todavia, segundo o
estudo antropológico em questão, os
dois primeiros lotes são provenientes
de uma mesma antiga aldeia indígena,
invadida pelo crescimento da cidade,
que restringiu a extensão do território
anteriormente ocupado pelos índios,
envolvendo-o na zona urbana. Portanto,
a área em questão representa terra tra-
dicionalmente ocupada pelos índios, já
que originária de uma só terra indígena,
atualmente transformada em dois lotes
de cerca de 2 ha, mas que certamente
alcançava uma dimensão muito maior, e
que acabou sendo restrita ante o crescimento da área urbana de Guaíra”.
Citam ainda parte do parecer do
representante do Ministério Público
Federal, segundo o qual “o argumento
de que o alcance da norma inscrita no
art. 231 da Constituição deve restringirse às terras atualmente ocupadas por
silvícolas não prospera. O art. 231 da
Constituição deve ser interpretado segundo a lição de José Afonso da Silva:
‘o tradicionalmente refere-se não a uma
circunstância temporal, mas ao modo
tradicional de os índios ocuparem e
utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo
tradicional como eles se relacionam
com a terra, já que há comunidades
mais estáveis, outras menos estáveis, e
as que têm espaços mais amplos em que
se deslocam, etc. Daí dizer-se que tudo
se realiza segundo seus usos, costumes
e tradições’. Assim, o conceito de posse
indígena remete à ocupação de forma
tradicional. Se os índios foram expulsos
ou afastados da área no passado, isso
não pode ser obstáculo ao reconhecimento do direito que possuem”.
Durante a construção da Hidroelétrica Itaipu, na fronteira do Brasil com o
Paraguai, no rio Paraná, os direitos dos
povos indígenas foram absolutamente
desrespeitados, sendo que dezenas de
Tekohas (território tradicional) foram
cobertos pelas águas. Como se não
bastasse, a Itaipu Binacional continua
sua “cruzada” antiindígena tentando,
mais uma vez, inclusive judicialmente,
expropriar os Guarani de suas terras
tradicionais, alegando, sem legitimidade, ser “proprietária” dos pequenos
pedaços de mata que restaram ao longo
do rio alagado. n
Aty Guasu da luta da terra e
da memória dos lutadores
Foto: Cimi Regional MS
Terras indígenas
“Eu sou uma pessoa marcada para morrer. Mas
levantarão outros que terão o mesmo idealismo e que
continuarão o trabalho que hoje nós começamos”
Marçal Tupã’i
Egon Heck
Cimi Regional MS
P
róximo ao local onde Marçal
foi assassinado, há 25 anos,
na terra indígena Nhanderu
Marangatu, aldeia Campestre,
município de Antônio João, no Mato
Grosso do Sul, mais de 600 Kaiowá Guarani, com a presença solidária dos Terena
da Mãe Terra e entidades aliadas, realizaram mais uma importante Aty Guasu
(Assembléia do Povo). A assembléia
aconteceu de 29 a 31 de outubro e buscou fortalecer a luta pela terra e lembrar
a memória dos guerreiros que morreram
defendendo os direitos do povo.
Existem muitas razões para a realização da Aty Guasu em Nhanderu
Marangatu. Faz 10 anos da retomada
dessa terra indígena e 25 anos do início
do processo de retomadas, com a retomada do Pirakuá. É o momento de lembrar com especial carinho os 25 anos do
assassinato de Marçal de Souza.
Na manhã do dia 30, um grupo de
lideranças esteve no local do assassina-
to discutindo o que fazer para deixar o
local mais visível. Diante da sugestão de
fazer uma placa, alguém disse: “é bom
deixar essa goiabeira, pois isso representa que ele não está morto”.
A assembléia acontecera a poucos
metros do local onde Marçal tombou na
noite de 25 de novembro de 1983. No
local do sangue derramado está hoje
um pé de goiaba e uma cruz desgastada pelo tempo. Ali serão realizados os
rituais da memória dos lutadores da
resistência, os heróis de um novo futuro
em suas terras reconquistadas.
As palavras de Marçal saíam do coração: “A gente vive e morre pelo que
é nosso. A luta é em primeiro lugar. Um
dia vamos escrever a nossa história com
nosso próprio sangue”, relembrou Ava
Apykuverá.
Que o espírito de Marçal, Dorvalino
e Dorival, Marcos Verón e Martins, Julite
e Ortiz e dezenas de lutadores desse
povo que derramaram seu sangue para
fazer brotar a semente da paz e autonomia nos tekoha, vejam a terra tradicional Kaiowá Guarani recuperada.
Tensões e expectativas
A conjuntura local é tensa. Antropólogos responsáveis pelos estudos de
identificação da área são ameaçados e
perseguidos. Notícias de cunho racista
contra os indígenas são diariamente vei-
culadas pela mídia local, visivelmente
aliada ao poder político e econômico
da região. Nesse contexto, os índios
pediram ao governo federal que promova uma ampla campanha de informação
sobre a realidade indígena no estado.
Diante dessa dura realidade,
nós, indígenas participantes da Assembléia, exigimos:
• Segurança para nossas lideranças e
que possamos andar com liberdade
em qualquer lugar deste estado;
• Que os GTs sejam acompanhados
pela Comissão de Lideranças Nhanderu, quando estiverem realizando
seu trabalho na região;
• Que os GTs procurem comunicar
com freqüência o andamento dos
trabalhos para que as lideranças
e a Comissão possam manter as
comunidades informadas;
• Diante da lentidão de alguns trabalhos de identificação, solicitamos o
máximo de empenho e agilidade na
elaboração dos laudos bem fundamentados, com argumentos sólidos
e inquestionáveis;
• Que a “Instrução Normativa”
seja publicada com a máxima
urgência para não criar maiores
dificuldades no andamento dos
trabalhos. Que o CAC seja rigorosamente cumprido em todos
os termos e prazos. Que a Funai
apóie o fortalecimento de nossas
organizações e movimentos.
vido e revivido pelos próprios Guarani,
protagonistas das desventuras nos dois
mundos, o real e o ficcional.
Alicélia Batista Cabreira (Lia), Abrísio da Silva (Osvaldo), Ambrósio Vilhalva
(Nadio) compõem parte do elenco
indígena e atuam ao lado de atores
conhecidos como Leonardo Medeiros
e Mateus Nachtergale. Os indígenas
falam entre si na sua língua originária,
o guarani, o que confere, para além de
autenticidade e veracidade, um ar de
respeito ao povo e à sua cultura.
A sensibilidade em captar a alma
Guarani consegue ir ainda mais fundo.
Consegue tratar das adversidades da
vida do povo sem apequenar a força
de sua cultura. As crenças, a religiosidade, os mitos, a cosmovisão indígena
permeiam toda a narrativa. O enredo,
por sua vez, engrandece o público ao
propor uma desconstrução da figura do
índio utópico, imaginário, selvagem,
isolado, distante da realidade.
O índio, abordado com todas as
suas complexidades e contradições, luta
por sua sobrevivência física e também
cultural, o que só se torna possível
quando se vive no seu lugar, no seu
território. Por isso, a incansável e já
conhecida luta pela terra é, também na
ficção, a problemática central da vida
Guarani. Nesse ponto, o filme retrata,
com força e sensibilidade, a visceral
ligação do índio com a terra. O espectador descobre um índio capaz de morrer
pela terra, um índio capaz de comer a
terra, um índio que, na verdade, é a
própria terra. (Clarissa Tavares) n
Ato em
homenagem
em memória
de Marçal
de Souza,
realizado
durante a Aty
Guasu. No
lugar onde foi
assassinado,
uma
goiabeira
sinaliza que
ali ainda há
vida
Resenha
Terra Vermelha
dos Kaiowá
Filme conta a saga de um grupo Guarani na luta por sua
sobrevivência física e cultural
P
“
ra branco ver, tá bom!”. A afirmação da liderança Guarani
Anastácio Peralta, após assistir
à pré-estréia do filme Terra
Vermelha, pode soar como pejorativa,
mas, em verdade, diz muito sobre o
impacto da película a todo tipo de
espectador - do mais alheio à questão
ao que vive na pele o enredo abordado
no cinema.
O filme, dirigido por Marco Bechis,
relata a difícil história de luta pela terra de um grupo de indígenas, que no
fundo é uma resenha da trajetória do
povo Guarani no Mato Grosso do Sul.
Com um tom documental, a ficção leva
o espectador a indagar-se, por diversas
vezes, sobre a veracidade ou não do
que está sendo mostrado. E o que se
vê não é de fácil digestão, seja para o
espectador comum ou para Anastácio,
que vive na reserva de Dourados - onde
se passa boa parte da narrativa - e que
é, na vida real, também personagem
assim como os 40 mil Guarani que
vivem no estado, da saga contada
pelo longa.
Do trabalho semi-escravo no corte
da cana à onda de suicídio entre os
jovens indígenas, da vida apertada num
estreito de terra à falta de comida, dos
acampamentos à margem das rodovias
ao conflito com os fazendeiros, e muito
mais, tudo é contado e recontado, vi-
5 Novembro-2008
Meio Ambiente
Zoneamento Socioeconômico Ecológico de Mato Grosso
Projeto é discutido com sociedade civil, que denuncia falhas no processo de consulta e se organiza para revertê-las
A
pesar de arquitetado há mais de
10 anos, o Zoneamento Socioeconômico Ecológico de Mato
Grosso (ZSEE) parece ainda
estar longe de sua aprovação. Elaborado
pelo governo do estado, o zoneamento
é desenvolvido com o auxílio de um
conselho, composto por 47 entidades
que compõe a Comissão Estadual do
ZSEE/MT. O projeto encontra-se em tramitação na Assembléia Legislativa (AL)
do Estado que tem a espinhosa missão
de realizar o debate do documento com
a sociedade civil organizada.
O zoneamento tem como objetivo
principal a eficiência e a melhoria das
condições de vida da população, a partir
do desenvolvimento de atividades sustentáveis econômica e ambientalmente.
Envolve, por um lado, os ‘setores produtivos’, principalmente o agronegócio e,
por outro, as chamadas minorias étnicas
e sociais, populações tradicionais, como
ribeirinhos e pescadores, quilombolas,
indígenas, ciganos, assentados, entre
outros.
Para garantir o amplo debate com a
população, a AL estabeleceu a realização
de 15 audiências públicas em diferentes
regiões do estado. Até o momento quatro audiências foram realizadas.
Representantes
do agronegócio
lutam por mais
espaço para
as atividades
agropastoris
e são contra
os cuidados
propostos no
ZSEE nas áreas
frágeis, além
de contrários
à demarcação
de novas terras
indígenas
Falhas no processo
Novembro-2008
6
Na audiência de Paranatinga, o processo que deveria ser democrático não
se concretizou. Participantes afirmaram
que a condução da mesa não seguiu a
metodologia estabelecida previamente
entre os setores sociais, que deveria
evitar votações, ou agregação de valores
no conteúdo do ZSEE, sem a avaliação
da comissão técnica.
“Ocorre que ‘setores produtivos’
feriram este acordo e, a partir de manobras, posturas e ideologias claramente
visíveis na mesa que deveria promover
a mediação pedagógica entre as partes,
tornou-se absurdamente promotora de
mais conflitos”, observa a professora da
Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT), Michèle Sato, que acompanhou
a audiência.
Outro problema foi a pressão que
os representantes do agronegócio exerceram sobre o movimento indígena,
entidades indigenistas e ambientalistas.
A postura deste setor deixa claramente
demarcado que lutam por mais espaço
para as atividades agropastoris e são
contra os cuidados propostos no ZSEE
nas áreas frágeis, além de contrários à
demarcação de novas terras indígenas
contratação de técnicos e advogados no
intuito de defenderem os interesses do
autodenominado “setor produtivo”.
Fotos: Cimi Regional MT
Gilberto Vieira
Cimi Regional MT
Mundo sustentável
– embora o zoneamento por si só não
tenha poder para demarcá-las.
Organização social
Devido ao que ocorreu em Paranatinga, foi fortalecida uma aliança entre
segmentos dos movimentos sociais no
estado, que vêm se articulando para
eliminar os problemas registrados nas
audiências anteriores. Em discussão
oragnizada pela UFMT, ficou decidido
que o Ministério Público Estadual será
o articulador de uma reunião entre a
sociedade civil organizada e a AL para
estabelecer critérios que levem ao cumprimento da metodologia estabelecida
previamente.
Participação popular
Uma dificuldade enfrentada pelos setores populares foi a pequena participação de suas representações, decorrida,
muitas vezes, por falta de informações.
Enquanto isso, os “setores produtivos”
recebem infomações privilegiadas e
comparecem fortemente às discussões.
Nas duas primeiras audiências, o
movimento indígena não se fez presente. “Quando tomamos conhecimento de
que se tratava de uma política de gestão
territorial com objetivo de ordenar as
atividades produtivas, e que seu conteúdo estava diretamente relacionado
à sustentabilidade dos meios de vida
das comunidades indígenas, tratamos
de procurar mais informações”, salienta
Mariléia Tauiá Bakairi.
Apesar das dificuldades, a participação indígena nas discussões sobre
demarcações das terras indígenas, assim
como de projetos que impactam no entorno das terras já demarcadas, tem sido
realizada por meio do Instituto Maiwu. “Paranatinga [3ª audiência] foi
nossa primeira tentativa de participar
ativamente nas audiências sobre o zoneamento. Desde o início, deixamos claro
que estávamos ali para dialogar e levar
nossas propostas, mas, infelizmente,
fomos recebidos com sete pedras nas
mãos. Sabíamos da participação ativa
do setor do agronegócio nessas audiências, apenas não esperávamos que
fossem agir com tanta ignorância. Não
houve conhecimento técnico-científico
e nem argumentos jurídicos que os
convencessem da inviabilidade de suas
propostas. Queriam ganhar tudo no grito e com apoio da mesa condutora dos
trabalhos. Diante dos fatos, o Instituto
Indígena Maiwu liderou uma Moção
de Repúdio contra a organização da
audiência, ameaçando entrar com uma
ação no MP, caso outras intimidações
viessem a acontecer”, argumenta Mari.
Esta Moção foi assinada por várias entidades do estado.
Em Diamantino, onde ocorreu a 4ª
Audiência, a articulação das entidades e
movimentos garantiu uma maior participação popular, com destaque para a participação indígena. Contudo, a pressão dos
representantes do agronegócio também
se fez presente. Faixas indicavam seu
descontentamento com a possibilidade
da criação de áreas de proteção ambiental - que no Zoneamento são apenas
indicações para estudo - e foi visível a
Instrumento de planejamento e gestão territorial, o Zoneamento Socioeco­
nômico e Ecológico de Mato Grosso
deve ser pautado por princípios de
democratização, descentralização e parcerias. Ele deve indicar as diretrizes de
fomento, adequação, redirecionamento
e normatização das atividades sociais e
econômicas, além de permitir intervenções e ações de ordenamento territorial,
regionalização coordenada de serviços
e obras estaduais, articulação com municípios e a sociedade.
Para isso, deve ouvir e considerar todos os setores envolvidos no processo. O
Grupo Pesquisador em Educação Ambiental (GPEA) da UFMT lidera um processo de
mapeamento social, tentando identificar
os povos “invisívibilizados” cujas vozes
não são ouvidas. Neste intuito, foi realizado entre os dias 24 e 26 de outubro
em Cuiabá o I Seminário de Mobilização
e Mapeamento Social que contou com a
presença de representantes indígenas,
quilombolas, retireiros, comunidades tradicionais, seringueiros, assentados, pantaneiros entre outros segmentos que não
veêm no Zoneamento o reconhecimento
de seus territórios tradicioanalmente
ocupados. Um dos primeiros resultados
do Grupo de Mobilização Social, que
congrega várias entidades do estado, o
Seminário foi um primeiro passo para
uma maior articulação dos mais diversos
setores sociais, para o esclarecimento
e empoderamento das discussões e do
processo de Zoneamento. Para além, o
evento apontou para a criação de espaços
de mobilização destes setores para a garantia de que suas vozes sejam ouvidas
também em outros momentos.
A construção de processos educativos, para além das audiências públicas,
poderá ser um caminho para diminuir,
por meio de um zoneamento responsável, o abismo das disparidades econômicas e sociais, gritantes no estado.
Para a aplicação de políticas que
visam um mundo sustentável é fundamental pautar a inclusão, a preservação
do meio ambiente, o desenvolvimento
responsável. Acima de tudo, porém,
deve-se garantir atitudes que corroborem com a construção de sociedades
saudáveis, que respeitem e incluam as
diferenças, promovam a justiça social e
ambiental. n
Colaboraram Aluízio de Azevedo (iCaracol),
Mariléia Taiua Peruare (MAIWU) e Michèle Sato
(UFMT).
Foto: Adirp
A lei e sua aplicação
Nailton Pataxó, liderança que participou do processo
constituinte, lamenta que a Constituição ainda não
tenha garantido a demarcação das terras de seu povo
Q
uando a voz de diversos indígenas ecoou pelo Congresso
Nacional, Nailton Pataxó era um
dos que se faziam presentes.
Aconteceu durante os anos de 1987
e 1988, época em que o Brasil parecia
querer refundar-se, desta vez, sob
os princípios da democracia. Muitos
foram os que se fizeram, pela primeira
vez, visíveis diante do poder nacional,
como propositores de seus próprios
destinos. Dentre eles, estiveram os
povos indígenas. Foi o começo de uma
nova trajetória da relação entre o Estado brasileiro e seus povos originários.
Que, de ali em diante, ninguém mais
falassem em nome deles!
Ao completar 20 anos, essa história é lembrada por Nailton. Segundo
ele, as mobilizações no sul da Bahia
começaram tão logo as lideranças se
inteiraram do que estava acontecendo
em Brasília. “Nos reunimos na área e
realizamos uma assembléia interna,
depois uma assembléia de micro e
macro região até que chegou a assembléia geral da Comissão de Articulação
das Regiões Leste e Nordeste. Depois a
gente foi a Brasília e nos encontramos
com outros povos. Ali foi criada uma co-
missão organizadora da nossa proposta
constitucional. A gente se reuniu com
várias organizações para discutir essa
proposta e a entregamos em todos os
gabinetes dos deputados”.
Dentre os principais pontos da
proposta entregue pelos indígenas, um
deles Nailton considera
fundamental: ter assegurado o direito ao usufruto
exclusivo das terras que
tradicionalmente ocupam.
“Mas enfrentamos várias
barreiras, porque muitos
deputados defendiam as
mineradoras e as madeireiras”, recorda. No entanto,
os indígenas se mostraram fortes e
saíram vitoriosos com relação a esta
e outra importante questão “lutamos
contra a tutela, porque antes nós éramos considerados como relativamente
incapazes”, explica Nailton.
A luta não foi fácil, mas os índios e
seus aliados conseguiram aprovar um
capítulo na nova Constituição sobre os
direitos indígenas. Hoje, 20 anos depois,
a liderança lamenta que a aplicação da
lei não corresponda ao que está previsto.
“O artigo 231 assegura o reconhecimento aos índios da sua organização
social, seu costume, língua, crença e o
direito originário sobre as terras que
Foto: Egon Heck
Clarissa Tavares
Editora do Porantim
tradicionalmente ocupam, competindo
a União demarcá-las e protegê-las. Isso
hoje não está acontecendo. A gente
reivindica uma área e, quando ocupa,
os fazendeiros entram com pedido de
reintegração de posse. Às vezes, o juiz
da região também é fazendeiro e dá a
liminar favorável aos fazendeiros e o
que tem acontecido é que os índios são
expulsos das suas terras”, conta.
Situação semelhante é a que acontece com seu povo, Pataxó Hã-hã-hãe,
que há 26 anos espera a decisão do STF
sobre a nulidade de títulos emitidos
pelo estado da Bahia a fazendeiros que
invadiram suas terras.
Outro aspecto levantado por Nailton é que, até hoje, a tramitação da
proposta de Estatuto dos Povos Indígenas, que substitui o Estatuto do Índio
(Lei. 6.001/1973), está parada. “Também
preparada pelos índios e baseada na
Constituição, ela não foi aprovada. Se
encontra engavetada no Congresso Nacional e nossa opinião não está sendo
contemplada”, lamenta.
Mas as adversidades não são motivos para a desilusão. “Quando a gente
se mobilizou [naquela época] existia um
pensamento de participação de todos
os povos, onde todos estavam preocupados com o que poderia acontecer
aos povos indígenas dali pra frente. A
gente acreditava que juntos podíamos
dar uma resposta a isso... agora a gente
precisa realizar uma discussão geral
com as lideranças, realizar uma conferência nacional dos povos indígenas do
Brasil para discutir o posicionamento de
todos em nível nacional”. n
Nailton
Pataxó
discursando
durante a
entrega da
proposta final
do capítulo
dos índios, na
Constituinte.
Ao lado, ele e
outros índios
reunidos no
acampamanto
montado
naquele
período
Direitos Indígenas são debatidos em Florianópolis
Evento tratou das conquistas constitucionais e das decisões que o STF tomará sobre as terras indígenas
Equipe Florianópolis
Cimi Regional Sul
S
e o Supremo Tribunal Federal
decidir por não demarcar a terra
indígena Raposa Serra do Sol em
área contínua, a discussão sobre
os direitos constitucionais dos povos indígenas perderá sentido. É o que avaliou
a Subprocuradora Geral da República e
Coordenadora da 6ª Câmara de Comissão
e Revisão do Ministério Público Federal,
Deborah Duprat, durante seminário
que ocorreu no auditório da Reitoria da
Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), no dia 21 de outubro. Essa também foi a preocupação dos debatedores
e participantes do evento que discutiu a
Constituição Federal no marco dos seus
20 anos de promulgação.
Os avanços legais conquistados pelos
povos indígenas estão sofrendo ataques
constantes em setores do Executivo, Legislativo e Judiciário. Os mesmos interesses que pressionam o Executivo para não
demarcar terras indígenas, tentam alterar
o texto constitucional e impedir a aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas, bem
como buscam confirmar suas teses no
Judiciário. Essa foi a preocupação manifestada pelo advogado e assessor jurídico do
Cimi, Paulo Machado Guimarães.
Já os indígenas presentes ao evento
reclamaram que, mesmo com direitos
garantidos na Constituição Federal,
estes não são aplicados na prática. “Não
tenho visto muitas mudanças. O que
conseguimos foi com muita briga, com
muita luta de nossa comunidade. Mas,
apesar da luta, a demarcação de nossa
terra continua paralisada. Já são 15 anos
de luta”, declarou o professor indígena
e diretor da escola La Klãno, José Cuzun
Ndilli do povo Xokleng.
As mesas contaram também com a
presença dos indígenas Hyrl Moreira,
cacique e coordenador da Comissão
Nhemonguetá; Marcos Djekupe, professor do povo Guarani; Valmor de Paula,
professor do povo Kaingang; além de
Analucia Hartamnn, representante da
Procuradoria da República em Santa Catarina, e da antropóloga da UFSC, Maria
Dorothea Post Darella.
Foi unânime a constatação de que
as conquistas indígenas na Constituição
significam uma mudança profunda da
perspectiva da transitorialidade e da tutela para uma noção de autonomia indígena
e pluralidade da sociedade brasileira. To-
davia, foi unânime também a constatação
de que esses direitos estão seriamente
ameaçados e correndo o risco de serem
radicalmente modificados pelo STF.
Também se constatou que, em termos práticos, a Carta não levou avanços
para a vida de algumas comunidades.
As demarcações das terras indígenas
deveriam ter sido concluídas em 1993,
conforme estabelece o Art. 67 das Disposições Constitucionais Transitórias, o
que não ocorreu.
O seminário foi organizado pela Comissão Guarani Nhemonguetá; Comissão
de Apoio aos Povos Indígenas; Cimi Regional Sul; Conselho de Missão junto com
Povos Indígenas; Museu Universitário e
Departamentos de Antropologia, História
e Direito da UFSC. Participaram do evento
cerca de 200 pessoas. n
7 Novembro-2008
Resistência
Bororo
Histórias de um povo guerreiro
Após ser expulso de suas terras, povo luta para
reconquistar a totalidade de seu território, o
que tem lhe rendido muitas perseguições
Marcy Picanço
Q
Cacica Maria
Aparecida
(ao centro)
com sua
família às
margens do
rio Pogubo,
em frente
ao morro
Jarudore,
que dá nome
à região.
Apesar disso,
o local foi
deixado de
fora da área
demarcada
Novembro-2008
8
Repórter
uando o grande ancestral
Akaruio Bokodori tocou
seu tambor no morro Torowari e chamou os Boe
para ocuparem a região
do rio Pogubo (vermelho),
eles eram um povo que circulava por uma grande área - da região
que hoje faz fronteira com a Bolívia até
o estado de Goiás. As diversas aldeias
dos Boe eram organizadas em círculos.
No centro da roda, ficava o “bororo” - o
pátio - local de convivência, que de tão
importante fez eles ficarem conhecidos
por este nome.
Calcula-se que viviam pelo menos
16 mil Bororo em 1500. Já no início do
século, segundo registros, religiosos e
bandeirantes teriam encontrado grandes
e fortes guerreiros na região central do
Brasil, mais tarde identificados como os
Bororo.
Desde os primeiros contatos, eles
enfrentaram bravamente os colonizadores. Os indígenas tiveram diversas vitórias, mas as armas de fogo e as doenças
(sarampo, varíola, peste bubônica...)
trazidas pelos portugueses enfraqueceram os Bororo e obrigaram muitos
deles a virarem escravos ou a deixarem
suas aldeias. Os Bororo da região mais
oriental (área do Mato Grosso e Goiás)
tiveram problemas, principalmente, com
os garimpeiros em busca do ouro na
região. Várias vilas se formaram, apesar
das constantes batalhas entre os Bororo
e os não-índios.
A partir do fim do século XIX, a
maioria dos Bororo que ainda resistia
passou a fazer acordos para a trégua. No
fim da década de 1880, foram criadas as
primeiras colônias militares para reunir os
Bororo (Teresa Cristina e Isabel), na região
próxima a Cuiabá. O objetivo era integrálos por meio de atividades econômicas,
mas, de fato, os militares exploravam
os indígenas - inclusive abusando das
mulheres - incentivavam o alcoolismo
e ficavam com os recursos enviados às
colônias pelo Estado.
Na primeira década do século XX, os
padres salesianos fundaram as missões
(Sangradouro, Tacho – Merure) que
abrigaram muitos Bororo da região mais
próxima a Goiás. Inicialmente, os padres
montaram acampamento em regiões de
passagem dos indígenas e, aos poucos,
os incentivaram fixar-se sob o risco de
perderem totalmente suas terras. Naquela época, a proposta para os indígenas
era a integração. Os padres, então, os
preparavam com aulas para viverem na
sociedade. Os indígenas aprendiam o
português e deixavam de praticar seus
rituais.
Também nas primeiras décadas do
século XX, o Marechal Cândido Rondon
demarcou algumas reservas para os
Bororo. As terras onde eles viviam, no
entanto, fossem elas reservas, colônias
ou missões eram cobiçadas por pessoas que chegavam ao Mato Grosso. Os
Bororo continuavam resistindo em suas
terras muitas vezes pagando com a vida
em conflitos com garimpeiros e colonos
agrícolas, que chegavam incentivados
pelo Estado. O número de Bororo diminuía. Poucos tinham filhos, pois não viam
futuro. Mesmo assim, continuavam com
a cultura fascinante que impressionava a
tantos teóricos que os visitavam.
Mudança na missão e
luta pela terra
Em meados do século passado, muitos
Bororo já viviam em periferias de cidades
e vilas, alguns ainda viviam em aldeias
dispersas pelo Mato Grosso, como nas
terras Jarudore e Tadarimana e outros nas
missões salesianas. Algumas famílias continuavam circulando, pois eram expulsas
por invasores de suas terras.
Em 1966, chega a Merure o padre João
Falco, que leva idéias novas e promove a
retirada dos não índios de Merure, por
entender que com eles seria mais difícil
conseguir a terra para os Bororo. Também passa a valorizar as manifestações
culturais do povo. Nessa época, um grupo
expulso da terra Jarudopre chega a Merure
e incentiva a retomada dos rituais.
Apesar das constantes ameaças, os
Bororo e missionários de Merure intensifi-
cam as ações de luta pela terra e pela vida
dos Bororo. Em 1976, uma tragédia facilita
o processo de demarcação da terra: o assassinato de Pe. Rodolfo Lunkenbein (veja
mais no box). Desde então, em Merure, o
trabalho principal tem sido cultivar a terra, melhorar a saúde e a educação - cada
vez mais assumida pelos indígenas.
“Na escola, agora, todos os professores são Bororo. Parte das aulas são na
língua Bororo e muitos pais falam com as
crianças em casa na nossa língua. Assim,
as crianças aprendem”, comenta a cacique de Merure, Maria Auxiliadora Joware
Etogiudo. “A gente tenta não deixar nossas tradições morrerem. Não queremos
que os jovens tenham vergonha de ser
Bororo. Alguns têm, mas muitos gostam
de participar dos rituais”, completa.
Os principais desafios hoje para os
Bororo de Merure são enfrentar o alcoolismo e conseguir a subsistência de todos
os cerca de 400 Bororo da terra. “Gostaria
que cada um conseguisse ter uma roça,
para não precisar comprar os alimentos.
Eu gostaria que os parentes vissem que
é importante tirar o sustento da nossa
terra”, diz a cacique.
Nos últimos anos, os Bororo também tentam resolver um problema com
algumas famílias Xavante que passaram
a ocupar faixas da terra Merure. Desde
1957, os Xavante, expulsos de suas terras originais, vivem na terra São Marcos,
ligada à Merure.
Jarudore – a resistência
Bororo segue forte
Se por um lado, em Merure as coisas
ficaram mais tranqüilas nas últimas décadas, isso não ocorreu em outras aldeias
da região, em que os Bororo continuaram
sendo expulsos violentamente. A situação
de Jarudore merece destaque pelo que
esta terra significa para eles e por ser
exemplo da violência contra o povo e da
resistência desses guerreiros.
A terra indígena de Jarudore, no município de Poxoréu, fica na área central do
antigo território tradicional dos Bororo.
Era local de passagem e comunicação
para os Bororo de diversas regiões. No
início do século XX, Marechal Rondon
demarcou a terra São João do Jarudóri
com 100 mil hectares. A terra abrigou
grandes aldeias de onde os Bororo foram
expulsos violentamente ou morreram em
função de doenças.
Em 1940, os primeiros colonos nãoíndios se estabeleceram na terra demarcada por Rondon. Em 1945, o governo do
Mato Grosso cria a Reserva Indígena Jarudóri, com 6 mil hectares. Em 1951, novo
decreto do interventor federal no estado
determina que a reserva para os Bororo
terá 4.706 hectares. O próprio governo do
estado, 7 anos depois, criou o distrito de
Paz de Jarudóri, em 1958. Uma pequena
parte, 3% deste distrito de Poxóreu, incide
sobre a terra Jarudóri.
Apesar de demarcada, a maior parte
dos Bororo que vivia em Jarudore foi
expulsa da terra, principalmente a partir
da década de 1960. Em 1983, eles fizeram uma grande assembléia do povo em
Merure e lá reafirmaram que não queriam
fazendeiros “em qualquer reserva dos
Bororo.” Na mesma época, no entanto, a
última grande família Bororo é obrigada
a sair de Jarudore e vai viver na terra
Sangradouro. Em 1997, o chefe da família
José Carlos Meriri Ekuréu chega a escrever uma carta para o então presidente
Fernando Henrique Cardoso afirmando o
desejo de voltar para sua terra. Restava
então, em Jarudore, apenas uma mulher
Bororo, casada com um não-índio, e seus
três filhos – Bororo, pois a descendência
do povo vem da mãe.
Retomando Jarudore
Em maio de 2006, Maria Aparecida
Toroekure e sua família saem de Sangradouro e passam a viver num pedaço de
terra de Jarudore. O pai de Maria nasceu
ali, sua avó está enterrada no cemitério
do povo que fica na área. “Essa terra é
Bororo. Sempre foi nossa e aqui vamos
viver”, afirma Maria, confiante, apesar
das dificuldades.
Junto com Maria estão cerca de 15
pessoas. Ao redor, os invasores tomaram
conta da terra indígena, dentre estes, há
vereadores de Poxoréu, donos de lojas
em Rondonópolis e pecuaristas. Além
das fazendas, há algumas casas e estabelecimentos comerciais em duas ruas, que
formam o “centro” de Jarudore.
Quando a nova cacique de Jarudore
chegou na área, viviam quatro Bororo
em meio aos não-índios. Era Helena Egiri
Figueiredo, casada Nilson Figueiredo,
com quem teve três filhos: Helenilson,
Helenilda e Edilson Figueiredo. Helena e
Maria Aparecida são do mesmo clã, dos
Kiedo. A contra-gosto dos invasores, Helena e seus filhos ajudavam como podiam
os parentes Bororo, que vivem em uma
situação muito precária.
“A gente veio sem apoio da Funai.
Até hoje, é difícil conseguir lona, combustível ou comida com eles. É difícil
se manter aqui”, conta Maria. Ela e sua
família vivem em quatro barracos, numa
área de terra arenosa, que não é boa
para agricultura. Conseguiram um poço
de água com apoio da Missão Salesiana.
Enquanto aguardam que a Justiça retire
os invasores de sua terra sofrem diversas
violências.
Em dezembro de 2006, João Osmar, um
não-índio que é genro de Maria Aparecida,
sofreu tentativa de homicídio e teve seu
caminhão incendiado por dois homens, ao
sair da área indígena. Ele já sabia que corria
perigo, pois era ameaçado. Helenilson, que
convivia com os invasores, sempre alertava
João e Aparecida. “Eu dizia para o Leno
(Helenilson) ficar meio longe da gente, pois
era perigoso para ele, mas ele respondia:
‘Eu não posso ficar longe do meu povo’”,
lembra triste Maria.
Em março de 2007, Helenilson foi assassinado por dois policiais. “Ele sabia que
podia ser morto, pois tinha informações
sobre o atentado contra o João”, conta a
irmã Helenilda. Os dois assassinos respondem ao processo em liberdade. Helena
não agüentou a dor de perder o filho e
faleceu alguns meses depois.
Enquanto isso, desde julho de 2006,
tramita na Justiça Federal no Mato Grosso
a ação civil pública do Ministério Público
Federal e da Funai que requer a retirada
dos não-índios de Jarudore.
Apesar das perdas e da demora da
Justiça em garantir a posse da área de-
marcada, a luta dos Bororo já rendeu
algumas vitórias em Jarudore. Em setembro de 2008, a Justiça Federal impediu a
realização de um festival musical perto
do cemitério tradicional dos Bororo. Os
invasores da terra começaram a realizar
o festival em 2006 para tentar legitimar
a invasão.
A festa acontecia às margens do rio
Pogubo, em frente ao morro Jarudore,
que dá nome à região, mas foi deixado de
fora da área demarcada. Hoje, Maria e suas
família olham o Morro e mantêm firme
a decisão de resistir na área onde estão
enterrados tantos guerreiros e guerreias
Bororo e por onde Akaruio Bokodori disse
para os Boe se espalharem. n
Em Jarudóri
vivem Maria
e cerca de
15 pessoas.
Ao redor, os
invasores
tomaram
conta da terra
indígena.
As condições
de vida são
precárias,
mas o
grupo está
determinado a
reconquistar
seu território
Padre Ochoa
50 anos de vida missionária
E
m 1960, quando o Padre Gonçalo Ochoa chegou à Missão
Salesiana de Merure, no Mato
Grosso, os Bororo que viviam lá praticamente não tinham mais filhos. Estavam
desanimados. Cresciam os projetos
agropecuários ao redor da terra Bororo, que ficava cada vez mais ameaçada.
Dentro da terra, viviam muitas famílias
não-indígenas e o povo estava sendo
expulso das aldeias da região. No colégio da missão, havia mais não-índios
do que indígenas e os Bororo pouco
falavam a própria língua.
Passados 48 anos, no dia 11 de outubro de 2008, Merure celebrou os 50
anos de sacerdócio de Pe. Ochoa – quase todo dedicado aos Bororo que vivem
nesta terra. Dentro da igreja, dezenas
de indígenas, moradores da região e religiosos falaram do importante trabalho
desenvolvido pelo padre em Merure.
Mas era fora da igreja que se podia ouvir
o principal resultado da delicada e firme
ação de Pe. Ochoa: o riso de inúmeras
crianças Bororo brincando. Elas corriam
tranqüilas, no mesmo pátio em que 32
anos atrás, fazendeiros mataram Simão
Bororo e o Pe. Rodolfo Lunkenbein –
grande companheiro de Ochoa.
Antes dos assassinatos, os pistoleiros
agrediram Pe. Ochoa. Até hoje, ele se emociona muito ao lembrar daquela noite. Se
aquele foi o momento mais triste de sua
vida missionária, os anos de convivência
com Pe. Rodolfo são lembrados com
muita alegria. Até por que, em sua grande
humildade, Pe. Ochoa diz que em sua vida
missionária apenas aprendeu “com as
pessoas maravilhosas com quem convivi
e tentei fazer alguma coisa para defender
a vida dos Bororo”.
Ao longo de seus anos em Merure, Pe.
Ochoa viveu a transformação da missão.
“Quando cheguei era uma época difícil,
pois a terra não estava regularizada. Os
Bororo já tinham 60 anos de contato com
os missionários. Estavam, como se dizia,
preparados para viver na sociedade com os
brancos. Se os missionários antigos erraram, era por que achavam que era o certo,
era a mentalidade geral, integrar. Mas,
tudo foi mudando junto com a opinião
geral”. E completa: “Mas a preocupação
do missionário sempre foi a vida dos povos
indígenas”.
Ochoa logo aprendeu a língua dos
Bororo e passou a registrar elementos da
cultura, da vida e da língua do povo, em
diversas publicações. A partir da década de
Missionários do Cimi e Pe. Ochoa em frente à cruz que
marca o local onde Pe. Rodolfo foi assassinado em 1976
1960, os missionários passaram a valorizar
o uso da língua e as manifestações culturais dos Bororo. Hoje, os indígenas estão
passando a assumir a gestão da terra, da
saúde e da educação.
O professor Bororo, Ivair, fala que
Ochoa é a memória viva da aldeia. Com
seu respeito, com sua força resistiu aos
conflitos nos anos mais difíceis. Com seu
respeito, comprometeu-se a guardar os
conhecimentos dos anciãos Bororo. “Todos
nós somos muito gratos”, resume Ivair.
Ele sabe que muitos Bororo existiram e
foram favorecidos pela obra de Ochoa –
que segue trabalhando pelo povo que é
a sua vida. n
9 Novembro-2008
Indígenas Tupinambá
são presos e feridos
no sul da Bahia
Fotos: Walney Magno
Violência
De forma truculenta, agentes da PF invadem aldeia na Serra
do Padeiro deixando 20 feridos e dois indígenas presos
Haroldo Heleno
Cimi Regional Leste - Equipe Itabuna
D
Ação da
polícia na
aldeia Tucum
deixou
indígenas
revoltados
com a forma
truculenta.
Ao lado,
indígenas
da Serra
do Padeiro
mostram as
marcas da
violência e a
destruição da
aldeia
ois Tupinambá foram presos
e 14 pessoas do povo ficaram
feridas em conflitos com a
Polícia Federal (PF), no dia 23
de outubro, na Serra do Padeiro, em
Buerarema, no sul da Bahia. A tensão
começou no dia 20, quando a PF iniciou a reintegração de posse da aldeia
Serra do Padeiro, uma das áreas onde
os Tupinambá vivem.
Em janeiro de 2008, o Tribunal
Regional Federal (TRF) da 1ª Região
suspendeu, por 180 dias, a decisão de
retirar das aldeias os Tupinambá que
vivem próximos de Ilhéus e Itabuna (em
Olivença, Una e Buararema). Nesse período, a Funai deveria finalizar o relatório
de identificação das terras indígenas dos
Tupinambá da região. O relatório foi finalizado, mas a Funai pediu informações
complementares aos antropólogos responsáveis pelo Grupo Técnico (GT), que
ainda não concluiu o documento.
Como o prazo expirou, a Justiça
Federal em Ilhéus determinou que a PF
cumprisse os mandados de reintegração
de posse já concedidos. Na semana
anterior ao conflito, dois mandados
haviam sido cumpridos em Olivença.
Como aconteceu
Na segunda-feira (20), alguns policiais estavam na aldeia Serra do Padeiro
verificando as áreas de onde os Tupinambá seriam retirados. Três indígenas
que questionaram os policiais sobre a
presença deles na terra foram feridos
com balas de borracha.
No dia seguinte, uma ação de reintegração de posse foi executada na
aldeia Tucum, no Parque de Olivença. Na
ocasião, a PF impediu o administrador
regional da Funai, Rômulo Siqueira, e o
coordenador da Articulação dos
Povos Indígenas do Nordeste
Minas Gerais e Espírito Santo
(Apoinme), Luis Titiá, de acompanhar o despejo.
No dia 22, foram suspensas
as liminares de reintegração de
posse pelo TRF-1, que decidiu
dar mais 180 dias para a Funai
concluir a identificação das
terras. Em Olivença, as famílias
voltaram para a aldeia Tucum,
mas na Serra do Padeiro a tensão
permaneceu. Usando balas de borracha
e gás lacrimogêneo, uma ação da PF,
no dia 23, deixou mais de 20 pessoas
feridas, destruiu casas, carros e utensílios da comunidade. Dois indígenas,
Jurandir e José Nildo Barbosa, foram
presos e o cacique Babau passou a ser
perseguido, acusado de formação de
quadrilha, cárcere privado e danos ao
patrimônio público.
Tensão e prisões
Jurandir, irmão de Babau, conduzia
um carro da Fundação Nacional de
Saúde (Funasa) para levar mulheres da
cidade de Buerarema para a aldeia. Entre elas, encontravam-se duas mulheres
com filhos recém-nascidos e uma grávida. Elas foram levadas para a Prefeitura
de Buararema e depois precisaram subir
a pé os 20 km até a aldeia.
Jurandir foi levado para a delegacia
da Polícia Federal, em Ilhéus. Segundo
os indígenas, ele sofreu agressões e foi
levado ao hospital. A PF afirmou que
ele foi preso em flagrante e deveria
ser acusado de formação de quadrilha
e resistência à prisão. Apesar de ser
flagrante, a prisão teria relação com os
fatos ocorridos no dia 20.
O motorista do ônibus escolar José
Nildo Barbosa foi levado preso pela
polícia enquanto transportava crianças
para o colégio em Buerarema, após
ficarem detidos e ameaçados durante
um bom tempo na estrada. José Nildo
foi liberado à tarde.
Justiça revoga
prisão de cacique
No dia 24 de outubro, o TRF-1
revogou, provisoriamente, a ordem de
prisão contra Rosivaldo da Silva (Babau),
do povo Tupinambá, cacique da aldeia
Serra do Padeiro. Lideranças Tupinambá
foram à Procuradoria Geral da República
(PGR), em Ilhéus, denunciar a ação truculenta dos policiais durante a tentativa
de prender o cacique Babau. Analistas
da PGR tiraram fotos e recolheram depoimentos dos indígenas feridos para
dar andamento à denúncia.
Após ouvir os indígenas, a Procuradora Fernanda Alves de Oliveira pediu
o relaxamento da prisão de Jurandir da
Silva, que foi solto no dia seguinte (25).
A Comissão de Direitos Humanos da
Câmara dos Deputados também está
acompanhando o caso da violência contra os Tupinambá. No dia 24, a Comissão
enviou um ofício ao Ministério da Justiça
e à Funai, em Brasília, solicitando informações sobre o ocorrido e ações para
proteger a integridade física do povo.
No dia 31, um grupo com representantes de mais de 30 entidades,
movimentos sociais e órgãos públicos
do sul da Bahia foram à aldeia da Serra
do Padeiro para prestar solidariedade ao
povo. Procuradores do Ministério Público Federal acompanharam a comitiva.
Entidades como a Anistia Internacional, a Associação Brasileira de Antropologia e a Apoinme denunciaram a violência e declaram apoio aos Tupinambá,
por meio de notas e campanha. n
Campanha contra a criminalização dos movimentos sociais na Amazônia
Luiz Cláudio Teixeira
Cimi Regional Norte II
A
campanha foi lançada em
Belém, no dia 17 de outubro,
com a realização de seminário
e ato político-cultural na Praça
do Operário, no bairro de São Brás.
Cerca de 500 militantes de entidades
do campo e da cidade estiveram preNovembro-2008 10 sentes.
O lema da campanha, “Lutar por
direitos humanos não é crime!”,
contesta as práticas do Estado e de
grandes corporações de mineração
e do agronegócio, de criminalizar as
ações dos movimentos sociais contra
as injustiças e em defesa da Amazônia. A luta pelo respeito aos direitos
humanos levou à perseguição e morte
de lutadores e defensores dos direitos
humanos na região.
Pina Tembé, da Coordenação das
Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (Coiab), esteve no seminário
e falou sobre as violentas campanhas
contra os povos indígenas em todo
o país. Estiveram presentes índios
Tembé, de Santa Maria do Pará, e dois
representantes dos povos indígenas de
Santarém, que falaram sobre as ameaças de morte contra suas lideranças. A
campanha reforçou propostas de ações
dos movimentos para a região, entre
elas dar prosseguimento à luta em defesa da Amazônia e dos povos tradicionais
contra as frentes de expansão do agronegócio, da mineração e dos grandes
projetos governamentais e manifestar
apoio a dom Erwin Krautler, bispo do
Xingu e presidente do Cimi, na luta contra a construção da hidrelétrica de Belo
Monte, na defesa da causa indígena, da
floresta e do rio Xingu. n
Fotos: Cimi Regional Leste/Equipe Itabuna
Cimi realiza oficina
sobre controle social
de políticas públicas
Marcos Antônio Reis
Cimi Regional Norte II
O
Força-tarefa para evitar violência
contra os índios em Pernambuco
Governo estadual e Funai assumem compromissos diante do histórico de
assassinatos, criminalização e ameaças contra as comunidades
Marcy Picanço
Repórter
N
o dia 15 de outubro, cerca
de 50 lideranças de povos
indígenas que vivem em
Pernambuco denunciaram,
para representantes dos governos
federal e estadual, as ameaças,
os assassinatos e a perseguição
praticada por agentes públicos e
por particulares contra os índios
naquele estado. Os governantes
prometeram ações articuladas para
acabar com a violência contra os
indígenas.
A audiência aconteceu na Assembléia Legislativa de Pernambuco e foi promovida pelo deputado
Izaltino Nascimento (PT-PE) junto à
Articulação dos Povos Indígenas do
Nordeste, Minas Gerais e Espírito
Santo (Apoinme).
Os indígenas relataram os principais casos de violência contra as
comunidades. Lourdes Truká falou
do histórico de agressões contra
seu povo. Lembrou do recente
assassinato de Mozeni Truká (em
agosto 2008), então candidato a
vereador em Cabrobó. Segundo
os Truká, a polícia tem investigado
apenas a autoria do assassinato,
sem buscar a relação deste caso
com outros episódios de violência.
Ela também lembrou que os poli-
ciais que participaram do assassinato de Dena Truká e seu filho (em
junho de 2004) até hoje trabalham
em Cabrobó, o que deixa os Truká
intimidados.
A cacique Dorinha Pankará e a
liderança do povo Atikum falaram
das ameaças que recebem de agentes públicos da cidade de Carnaubeira da Penha. O cacique Marcos
Xukuru falou das violências contra
seu povo desde o início da década
de 1990. Lembrou dos assassinatos
de Xicão Xukuru, Chico Quelé e
seu filho, entre outros. Destacou
que as investigações de muitos dos
crimes incriminam as lideranças do
povo como Zé de Santa, Zenilda,
Aguinaldo e ele próprio. O cacique
lembrou que depois do atentado
que sofreu em 2006, passou de vítima a acusado. Agora, ele e outras
35 pessoas do povo respondem a
processos na Justiça. Há sete meses,
dois Xukuru, Renildo e Edmilson,
estão presos acusados de participarem do assassinato do filho de
Chico Quelé, em 2007.
“Quando só os adversários nos
perseguem já é difícil, mas agora,
nos sentimos perseguidos pela Justiça”, comenta Zé de Santa, do povo
Xukuru, coordenador da Apoinme.
O Conselho Estadual de Direitos
Humanos preparou um dossiê sobre
a criminalização e as ameaças con-
tra os indígenas em Pernambuco,
que foi entregue ao presidente
da Fundação Nacional do Índio
(Funai), Márcio Meira, presente à
audiência. Além de Meira, participou da audiência Fernando Matos,
coordenador nacional do Programa
de Proteção aos Defensores de
Direitos Humanos da Secretaria
Especial de Direitos Humanos.
No fim da tarde, o governador
de Pernambuco, Eduardo Campos, recebeu os participantes da
audiência. Ele se comprometeu a
adotar medidas para proteger os
indígenas, como a inclusão de lideranças no programa de proteção
aos defensores de direitos humanos e o incentivo à incorporação
de indígenas como policiais em
seus territórios. Campos também
lembrou que muitos dos conflitos
existem por conta de questões
fundiárias. Em função disso, o presidente da Funai se comprometeu
a fazer um levantamento de todas
as áreas indígenas de Pernambuco
e, junto ao governador, trabalhar
pela regularização destas terras.
Para a Apoinme, o resultado
inicial da reunião parece positivo.
“As propostas foram boas e eles
se comprometeram a fazer uma
força-tarefa, agora vamos ver
como as coisas andam”, avalia Zé
de Santa. n
Cimi, através do seu Coletivo Nacional
de Formação, realizou a primeira oficina temática abordando as análises, os
fundamentos normativos, a prática, as
responsabilidades administrativas e os desafios
políticos que norteiam o acompanhamento das
políticas governamentais, por meio das instâncias
de controle social. Participaram 32 pessoas da
entidade que integram, de forma direta e indireta,
estas instâncias de controle.
A idéia da oficina partiu de um levantamento
das principais dificuldades dos missionários referentes ao exercício da participação das lideranças
indígenas e dos próprios membros do Cimi.
m amcorem
Também foi objetivo da oficina identificar
iril utpat non
vulputem
as sugestões e os encaminhamentos comuns
quamcon
a todas as experiências de participação nos
sequat.
Conselhos Distritais de Saúde Indígena, ConseLummodi
psuscidunt
lhos de Educação Escolar Indígena, Comissão
luptat vendre
Nacional de Política Indigenista (CNPI), Comismagnissed
são Interinstitucional de Saúde Indígena (Cisi)
magnim
volorer ciduis
e demais órgãos públicos federais, estaduais e
del ut in ullan
municipais.
henisi etue
As participações nessas instâncias buscam
ming ese tat
irit atummy
fortalecer a intervenção dos missionários em
nim vendipis
temas referentes tanto às questões indígenas
at. Ut volore
dunt lam ver
quanto indigenistas na formulação e no controle
ilit alit
social de políticas e ações administrativas de
responsabilidade do poder público.
Os temas que nortearam as discussões e que
tiveram maior destaque na primeira parte da oficina foram: a mudança no atendimento à saúde
dos povos indígenas, a proposta dos arranjos
etno-educacionais do Ministério da Educação e
o funcionamento e a estruturação dos espaços
de controle social.
Em outro momento, os assessores jurídicos
do Cimi, Paulo Machado Guimarães e Cláudio
Luiz Beirão, procuraram situar o controle social
na organização estatal, analisando os parâmetros
constitucionais de participação popular na formulação e fiscalização das políticas e ações de
órgãos públicos.
Eles ressaltaram as especificidades normativas
em relação aos povos indígenas, como a Constituição Federal, a Convenção 169 da OIT, a Declaração
da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, o
Estatuto do Índio e a legislação sobre educação
escolar indígena e saúde indígena.
Ao final da oficina os participantes visualizaram as possibilidades, limitações e responsabilidades legais, administrativas e políticas dos
integrantes de órgãos colegiados destinados à
formulação, articulação e fiscalização de ações
da administração pública de interesse dos povos
indígenas.
A oficina ocorreu entre os dias 25 e 27 de setembro, no Centro de Formação do Cimi Vicente
Canhas, em Luziânia (GO), com a participação de
integrantes de 11 regionais do Cimi. n
11 Novembro-2008
Retomada indígena:
Evento na fronteira amazônica reúne
participantes do Brasil, Peru e Colômbia encruzilhada
País
Afora
J. Rosha
Cimi Regional Norte I
R
ealizado de 16 a 19 de
outubro, o seminário “Realidade Sócio Ambiental
da Fronteira” reuniu cerca
de 100 lideranças indígenas, ribeirinhas, dirigentes de entidades e
movimentos sociais do Brasil, Peru
e Colômbia, na cidade de Tabatinga,
no Amazonas.
Para sensibilizar a sociedade
e cobrar dos governos políticas
públicas na região fronteiriça os
participantes divulgaram a Carta da
Tríplice Fronteira, em que reivindicam o compromisso para a proteção
e conflitos
dos territórios indígenas, a assistência às comunidades ribeirinhas
e a preservação do meio ambiente.
Lideranças do Brasil denunciaram
a falta de assistência aos povos do
Vale do Javari (oeste do Amazonas),
as mortes por desassistência e reclamaram proteção aos indígenas
sem contato.
Evento realizado pela PUC-SP
relembrou os 25 anos da morte de
Marçal de Souza
Marcos Alexandre Albuquerque
doutorando em antropologia
social no PPGAS/UFSC
E
Fotos: Cimi Regional Norte I
ntre os dias 24 de setembro a 3
de outubro ocorreu na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP) o evento Retomada indígena: encruzilhada e conflitos. Com o lema 25
anos sem Marçal, ele propôs dar visibilidade
aos indígenas que estudam na PUC e aos 25
anos do assassinato da liderança indígena
Guarani, Marçal Tupã’i (1920-1983), e a atual
luta dos povos indígenas no país.
A abertura aconteceu com o lançamento
da página eletrônica do Projeto Pindorama
(www.projetopindorama.com.br), feita pelos
alunos indígenas, seguido pelo curta “Marçal
de Souza”, de Nilson Barbosa (1985). Logo
após, houve a mesa-redonda “Encruzilhada e
Conflitos”, em que Benedito Prezia - doutor
em antropologia, um dos coordenadores do
Pindorama e autor do livro “Marçal Guarani: a
voz que não pode ser esquecida” - discorreu
sobre o legado que Marçal deixou para a causa indígena no país. Em seguida, a advogada
Michael Nolan, que atuou naquele processo,
falou sobre o caso, expondo também a atual
política indigenista brasileira e enfatizando
a continuidade da antiga aliança entre a
grande mídia e os monopolistas da terra e
do capital contra os povos indígenas.
Em seguida, o professor Rinaldo Arruda
(PUC-SP) enfocou a conjuntura indígena atual
e a questão na cidade de São Paulo com relação à educação superior indígena. A aluna
indígena Pankararu, Rejane Silva, concluinte
do curso de Direito , falou do papel do Projeto Pindorama na sua formação acadêmica,
e de como devolver à sua comunidade o
que aprendeu, atuando como advogada nas
causas indígenas. Por fim a liderança Guarani,
Pedro Macena, da aldeia do Pico do Jaraguá,
falou sobre os impasses na demarcação das
terras indígenas em São Paulo. n
N
Carta da Tríplice Fronteira
ós, indígenas, ribeirinhos e representantes de
organizações da sociedade civil, participantes
do Seminário Realidade Sócio-Ambiental na
Tríplice Fronteira Peru - Colômbia - Brasil
transcorrido na cidade de Tabatinga, Amazonas, Brasil,
nos dias 16 a 19 de outubro de 2008, com o objetivo
de buscar caminhos comuns diante dos desafios sócioambientais da região, nos manifestamos sobre a realidade
enfrentada por nossos povos e comunidades.
Nossa Mãe-natureza nos brindou a Amazônia, provendo-nos com recursos naturais, com grande biodiversidade
e riquezas culturais ancestrais, que sempre permaneceram identificadas com nossas formas de organização,
nossos costumes e nossa existência.
Denunciamos todas as violações aos direitos dos
povos indígenas e tradicionais estabelecidos e firmados
nas Constituições de nossos países e na Convenção 169
da OIT, cometidos por ações de exploração indiscriminada dos recursos naturais, o narcotráfico, a violência de
grupos armados legais e ilegais, a corrupção, o descaso
e o abandono dos nossos governantes.
Chamamos a atenção dos governos do Peru, Colômbia
e Brasil para a ameaça de extinção de povos indígenas
em situação de isolamento. Que reconheçam a sua existência, garantam sua integridade e a inviolabilidade de
seus territórios.
Encontramos-nos ameaçados pelos grandes projetos
econômicos impostos pelos interesses transnacionais,
provocando abusos cometidos por parte de governos
que não adotam políticas diferenciadas de acordo com
nossas realidades, sem levar em conta que nossos direitos
ancestrais e tradicionais existem desde sempre e antes
da criação dos Estados Nacionais.
Exigimos que se adotem políticas governamentais que
se adaptem à nossa cosmovisão, levando em consideração
Novembro-2008 12 nossas necessidades especificas e diferenciadas voltadas
para a saúde, a educação, o meio ambiente e a justiça
social, a fim de melhorar nossa qualidade de vida.
E por isso propomos:
1. O estabelecimento de políticas migratórias e de
refúgio para as vítimas deslocadas por conflitos sociais,
ambientais e políticos;
2. A igualdade de tratamento para os direitos tradicionais, levando em conta que entre os indígenas não
pode haver fronteiras;
3. Que se assegure aos povos amazônicos a administração, a gestão e o controle de seus recursos em seus
territoriais.
Por tudo isto, assumimos os compromissos:
• De criar uma equipe de coordenação trifronteiriça
composta por representantes indígenas, camponeses
e ribeirinhos de cada um dos três países;
• Criar espaços que favoreçam uma permanente formação social, política, ambiental e cultural a fim de
fortalecer as capacidades de liderança indígena, camponesa e ribeirinha na luta para o estabelecimento
de políticas de desenvolvimento sustentável, fazendo
prevalecer nossos direitos;
• Criar fóruns fronteiriços de debate permanente.
Foto: Divulgação
Cerca de 100
lideranças
indígenas e
ribeirinhas,
além de
dirigentes
de entidades
dos três
países,
reuniram-se
para
sensibilizar
a sociedade
e cobrar dos
governos
políticas
públicas
na região
fronteiriça
Tabatinga, 19 de Outubro de 2008
Participantes:
Povos Matsés, Mayoruna, Tikuna, Matis, Tukano, Marubo, Kokama,
Kambeba, Kanamari, Aguajun, Yagua, OGTBBBC, COIAB, CIMI, SARES, Pastoral do Migrante, PIDAS, Diocese do Alto Solimões, Equipe
Itinerante, PPGSCA, CTI, CPT, FASE, UEA, FUNAI, UNIVAJA, Instituto de
Desenvolvimento e Assistência à Saúde e à Sociedade Indígena, OTAM,
Comunidade Ribeirinha Santa Terezina, RAL, PROCREL, Reserva Nacional del Pacaya Samiria, CEDIA, WCS, Comunidade São Pedro, ACITAM,
AZCAITA, ATICOYA, ASOAINTAM, AZICACH, CODEBA, CORPOAMAZONIA, PNNA, SINCHI, OMACHA, Pastoral Social de Letícia.
A liderança Guarani, Pedro Macena, da aldeia
do Pico do Jaraguá, falou sobre os impasses na
demarcação das terras indígenas em São Paulo
5ª Conferência Internacional da Via Campesina
Eden Magalhães
Secretário-executivo do Cimi
A
conferência aconteceu na cidade de Maputo, em Moçambique – África, entre os dias
19 e 22 de outubro. Cerca de
600 pessoas, incluindo mais de 325
delegados e delegadas de 57 países
foram recebidas de maneira calorosa,
fraternal e combativa pelos anfitriões, a
União Nacional de Camponeses (UNAC)
de Moçambique. A abertura se deu ao
ritmo de danças e tambores africanos,
com a presença do presidente moçambicano, Armando Emílio Guebuza.
Além de definir as estratégias e o
plano de ação da Via Campesina para os
próximos quatro anos, a conferência ratificou sua sede internacional na África e
a admissão de 41 novos membros.
Diversos temas que têm um impacto
sobre a agricultura camponesa foram
abordados, tais como a luta diária para
sobreviver como camponeses; as corporações transnacionais; os tratados
comerciais, a Organização Mundial do
Comércio e a soberania alimentar; as
sementes e a biodiversidade para a soberania alimentar; os territórios versus
as mudanças climáticas e agrocombustíveis e os modelos de produção.
Foram aprovadas algumas moções,
entre elas duas apresentadas pelo
Ameríndia
Fotos: Eden Magalhães
Realizada na África, o evento reuniu cerca de 600 participantes e aprovou duas moções de solidariedade aos povos indígenas
mulheres sem-terra, indígenas, juventude rural e trabalhadores rurais. O
movimento é pluralista, multicultural,
autônomo e independente de qualquer orientação política e religiosa.
A Via Campesina promoveu a idéia da
“soberania alimentar” como resposta
ao conceito de segurança alimentar
que criou mais fome no mundo e mais
pobreza entre as famílias camponesas.
A soberania alimentar é um conceito
alternativo que apóia os povos na sua
luta contra as políticas neoliberais
como aquelas que são impostas pelas
instituições financeiras internacionais,
a OMC e as corporações transnacionais
do agronegócio, através do livre comércio e da liberação da agricultura. n
Cimi. Na primeira, a 5ª Conferência
manifestou apoio e solidariedade aos
povos indígenas do Brasil e a sua firme
disposição em continuar aprofundando
a grande construção da aliança camponesa e indígena no Brasil, na América
Latina e em todo o mundo.
A segunda moção foi em favor da
terra e vida do povo Kaiowá Guarani,
solicitando apoio para a urgente identificação e demarcação de suas terras,
em cumprimento à Constituição Federal, em consonância com a Convenção
169 da OIT e a Declaração dos Direitos
Indígenas da ONU.
A Via Campesina é um movimento
internacional de camponeses, pequenos e médios produtores, homens e
Participantes
se deslocam
para as
discussões.
Ao lado a
delegação
brasileira
integrada por
representantes
dos mais
diversos
movimentos
sociais. Na
conferência
foram
discutidos
temas comuns
a todos os
movimentos
Os Tupi de Piratininga
Acolhida, resistência e colaboração
Benedito Prezia
da Tese de Doutorado em Ciências Sociais (Antropologia) – PUC
– São Paulo, 2008
A
tese tem como objetivo mostrar como os Tupi
de Piratininga se posicionaram na segunda
metade do século XVI frente ao projeto colonial português.
Possui duas grandes unidades. A primeira, com os
capítulos 1, 2 e 3, onde são apresentados os protagonistas deste embate: o povo Tupi, o colono e o missionário jesuíta. Dos Tupi são apresentadas algumas
de suas características socioculturais, como a chefia,
a religião e a mobilidade, com sua rede de caminhos
entre as aldeias e as diversas regiões do interior com
as quais tinha contato. Do colono, formado na sua
maioria por degredados e aventureiros, é mostrado
o projeto comercial, implantado no litoral vicentino,
e que era baseado na cultura da cana de açúcar e na
escravidão indígena. Por sua vez o pequeno número
de povoadores que viviam isolados em São Paulo de
Foto: Arquivo Cimi
Tese
Piratininga propiciou
a formação de uma sociedade mestiça, que
se dedicará, a partir do
final do século XVI, ao
tráfico de indígenas Do
jesuíta, vemos seu projeto missionário, trazido
da Europa no espírito da
reforma tridentina.
Na segunda unidade, capítulos 4 e 5, são
apresentadas as respostas indígenas frente a estes agentes da colônia: a
acolhida, a adesão ao projeto missionário e colonial,
e a resistência, na suas duas formas, a dissimulada e
a guerreira. Quanto à adesão ao projeto missionário
são apresentados os dois primeiros aldeamentos
reais, o de Nossa Senhora da Conceição de Pinheiros
e o de São Miguel de Ururay, e a ligação destes indígenas que se tornaram cristãos com a vida colonial.
Quanto à resistência, é mostrada a
importância das lideranças religiosas
Tupi nos levantes guerreiros, sobretudo na guerra de Piratininga, e a
resistência dos Tupi autônomos, que
pressionaram belicamente a vila de
São Paulo até o final do século XVI.
E finalmente vemos a participação
de um importante segmento Tupi no
projeto colonial paulista, que resultou
no bandeirismo escravista.
Em anexo há traduções, ainda
inéditas, dos mitos Tupinambá, recolhidos por Thevet, no século XVI;
o texto da primeira demarcação de
terra indígena no planalto paulista; e
o primeiro levantamento populacional
do Brasil, feito pelo jesuíta Pe. Luis da
Fonseca por volta de 1592. n
Benedito Prezia trabalhou no Cimi, em Brasília, por 8 anos, de
1983 a 1991, dos quais quatro anos como secretário adjunto.
Atuou no setor de formação e de publicações, sendo um dos
editores do Suplemento do Porantim. Atualmente coordena a
Pastoral Indigenista de São Paulo e é um dos coordenadores do
Programa Pindorama, da PUC-SP, para universitários indígenas. Já
publicou vários livros, entre eles, Terra à Vista – Descobrimento ou
invasão? (Ed. Moderna), Indígenas do Leste do Brasil – Destruição
e resistência (ed. Paulinas) e Marçal Guarani – A voz que não pode
ser esquecida (Ed. Expressão Popular). n
O indigenista
Benedito
Prezia, que
trabalhou
durante 8
anos no Cimi,
defendeu
sua tese de
doutorado
em Ciências
Sociais, no
departamento
de
Antropologia,
da PUC/SP
13 Novembro-2008
Relato Missionário
Índios isolados e de pouco contato: como lidar?
O respeito à cultura e autonomia destes povos tem se mostrado como alternativa ao contato forçado
Os Zuruaha
foram
contatados
em 1980
pela equipe
da Pastoral
Indigenista
de Lábrea. A
primeira fase
do contato foi
marcada pela
tentativa de
demarcação
da área,
conscientização
da sociedade
envolvente e
aprendizado da
língua
Concepção
O Cimi e a Opan elaboraram uma
proposta alternativa de contato com
índios isolados em face ao projeto
oficial de pacificação. A serviço de
interesses econômicos, as pacificações
visavam desocupar as áreas tradicionais
indígenas para ocupação, colonização
e implantação de grandes projetos na
Amazônia Legal. Essa ideologia neocolonial e geopolítica levou vários povos
à redução populacional, ao extermínio
parcial e, finalmente, ao genocídio.
A proposta alternativa consistia em
proteger os índios isolados, ameaçados
Formas de Pagamento:
cientização da população envolvente e
aprendizado da língua. A segunda fase,
entre 1984 e 1987, teve o objetivo de
preparar os índios para a vacinação, já
que a Funai tinha feito uma “pacificação
oficial”, abrindo caminho para a área e
tornado os índios vulneráveis a doenças.
Os índios também foram acompanhados
no processo de ocupação do seu território tradicional.
Foto: Gunter Kroemer
A
sistematização de um trabalho
com os índios isolados ou de
pouco contato teve início em
1980, quando foi realizado
entre algumas entidades o primeiro
encontro sobre os índios “livres”. No
encontro, foram discutidas experiências
com povos recém-contatados: Myky,
Enawenê-Nawê, Tapaiuna e Cinta-Larga.
Elaborou-se um quadro com informações sobre grupos não contatados.
Em 1986 houve o segundo encontro
onde se tentou elaborar um modelo
de metodologia, procedimentos e
comparação com as formas de atração
realizadas pela Funai. Também neste
encontro foram levantados dados sobre
índios isolados.
Nesse mesmo ano, aconteceu um
encontro entre os antigos sertanistas da
Funai que traçam uma nova política para
os índios isolados. Foi criada a Coordenadoria de Índios Isolados e reelaborado o
objetivo do trabalho, passando da perspectiva do contato para a da proteção dos
isolados, incorporando as idéias do Cimi
e da Operação Amazônia Nativa (Opan).
Perspectivas
pelas frentes econômicas, militares,
políticas e de particulares, substituindo
o contato forçado por uma proposta de
respeito e adotando um processo lento
de contatação, a fim de garantir a integridade de seus valores e o domínio de
sua autonomia.
Práticas
Os Enawenê-Nawê, os Myky e os Zuruaha são povos contatados a partir do
conceito indigenista do Cimi e Opan.
Os Myky foram contatados em 1971,
por missionários da Missão Anchieta,
quando o grupo se constituía de apenas
22 membros. Hoje eles já somam 58. O
processo de contato foi respeitoso e
lento. O primeiro período foi marcado
pelo trabalho de interdição da área,
atendimento à saúde, aprendizado da
língua e da cultura e pela presença direta
da equipe.
Hoje a equipe atua no atendimento
à saúde, na formação de agentes Myky
de saúde, no repasse de informações,
no processo de educação informal, de
alfabetização na língua e na formação de
professores Myky, no acompanhamento
Se preferir pode enviar CHEQUE por carta registrada nominal ao
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, para o endereço:
SDS – Ed. Venâncio III, Salas 309/314 – CEP: 70393-902 – Brasília-DF
– Para a sua segurança, se for enviar cheque, mande-o por carta registrada!
– Comunique sempre a finalidade do depósito ou cheque que enviar.
– Inclua seus dados: nome, endereço, telefone e e-mail.
Envie cópia do depósito por e-mail, fax (61-2106-1651) ou
correio e especifique a finalidade do mesmo.
P
Ass. anual: R$ 40,00
Baseado em texto original de Gunter Kroemer –
Cimi Regional Norte I
Assine o
BANCO BRADESCO
Agência: 0606-8 – Conta Corrente: 144.473-5
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO
dos Myky no contato com a população
regional e no trabalho com a população
de Brasnorte (cidade mais próxima) para
conscientização da presença dos Myky
na região.
Os Enawenê-Nawê foram contatados
em 1974, também pela Missão Anchieta.
Neste grupo destacou-se a presença de
Vicente Cañas até 1987, quando foi assassinado por madeireiros. Foi realizado
um trabalho de aprendizado da língua
e da cultura, de introdução de novos
cultivos e de demarcação e fiscalização
do território, o que ocasionou diversos
conflitos com os invasores das terras
indígenas.
Em 1988, a Opan assumiu os trabalhos com a saída da Missão Anchieta e começou a pensar alternativas
econômicas para a sobrevivência da
comunidade. Houve avanços com os
estudos lingüísticos e com a presença
de médicos e dentistas.
Os Zuruaha foram contatados em
1980 pela equipe da Pastoral Indigenista
de Lábrea. A primeira fase do contato,
que vai até 1984, foi marcada pela
tentativa de demarcação da área, cons-
As perspectivas resultam também
em desafios dos quais podemos citar
alguns: quanto à troca, qual a correlação
dos valores de cada objeto? Quanto
à saúde, quais as conseqüências das
vacinações e como se dá a medicina
natural tradicional? Quanto ao trabalho
das equipes, como deve ser sua permanência nas áreas? É importante ensinar
o português? Quais os critérios para
introduzir novas necessidades?
Avalia-se que é necessário ampliar os
conhecimentos antropológicos, com auxílio de assessorias, buscar conhecimentos técnicos e investir em pesquisa, além
de articular organizações e movimentos
indígenas e populares para pressionar
o governo por uma política ecologicamente sustentável e adequada às várias
realidades sociais da região Amazônica.
Deve-se avaliar as mudanças econômicosociais ocorridas em cada grupo indígena, acarretadas pelo contato, e os efeitos
das ações indigenistas.
A experiência ao longo do tempo
tem mostrado que o caminho é de
respeito aos povos, suas culturas e
autonomia, sua organização social e
formas de vida. n
*Ass. de apoio: R$ 60,00
r
e
ç
o
s
América Latina: US$ 40,00
Outros países: US$ 60,00
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Novembro-2008
14
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Homenagem
Mais um guerreiro
Xukuru no
Reino dos Encantados
Vamos dar a despedida,
Como deu a Saracura,
Bateu asas, foi embora;
Coisa boa, não adura.
(Toante de despedida do Povo Xukuru)
Saulo Feitosa
Secretário-adjunto do Cimi
F
aleceu na manhã de 14
de outubro João Jorge,
liderança maior da aldeia
Sucupira, na terra indígena
Xukuru, em Pernambuco. Conhecido por sua aguerrida militância, o
companheiro de primeira hora do
cacique Xicão continuou seu combate incansável e intransigente na
defesa dos direitos do povo Xukuru
até o momento de sua despedida.
Foram inúmeras as retomadas de
terras em que esteve presente,
sempre “arrebanhando seu povo”,
como costumava dizer.
De temperamento forte e objetividade nas ações, jamais se deixou
intimidar pelas ameaças sofridas por
parte de latifundiários invasores da
terra de seu povo. Aliava à sua prática política a mística Xukuru, pois
era principalmente um grande líder
religioso, chefe de terreiro do Toré.
Sua crença na força dos Encantados
sempre o impulsionou nas horas
mais difíceis, tornando-o imbatível
nas empreitadas assumidas.
Diferentemente do cacique
Xicão, João Jorge teve a felicidade
de habitar na “Terra Prometida”, no
Solo Sagrado da Serra do Ororubá.
Pôde desfrutar da alegria de viver
numa terra sem invasores e, por
essa razão, não cansava de manifestar seu contentamento em “ver
seu povo comer” do fruto da terra e
deixar para trás o tempo da fome.
Vai agora se reencontrar com
tantos mártires de seu povo: Xicão,
Chico Quelé, Everaldo, Milson, Nilsinho, Rolim, além de muitos outros
que, assim como ele, partiram em
paz, na certeza de que “Guerreiro
não morre, apenas se Encanta”. n
As memórias
de quem conviveu
com seu João
Jorge
Roberto Saraiva
Indigenista
A
pós mais de 11 anos trabalhando
no indigenismo desta região,
recebi com tristeza a informação do falecimento de seu João Jorge,
liderança da aldeia Sucupira e uma das
mais fortes referências do povo Xukuru,
principalmente pela sua história e pela
sua determinação em nunca desanimar.
Fui uma das muitas testemunhas da
dedicação deste guerreiro que entregou
sua vida à luta do povo Xukuru.
Precisamos fazer justiça a essa pessoa, rude e ao mesmo tempo afável,
controversa sem deixar de ser leal e,
principalmente, um homem eternamente apaixonado pelo seu povo.
Líder religioso, foi uma figura firme
no que ele chamava de “fidelidade ao
sagrado”: “Toré é a nossa força, toré é
a nossa raiz!”.
Para lembrar deste guerreiro, reproduzimos uma entrevista que fizemos
com ele por ocasião da retomada da
terra que estava em posse do fazendeiro Atavio Carneiro Leão.
Roberto Saraiva - Seu João, me responda qual o sentimento que o senhor tem
neste momento desta retomada?
João Jorge - Sabe meu amigo, vocês
do Cimi são testemunhas do quanto
somos perseguidos, o quanto a gente
é caluniado e do quanto a gente é
zombado. Olha Roberto, eu sou um
homem muito sofrido e tive muitas
passagens por outros lugares fora da
aldeia. Trabalhei em Recife, morei em
Casa Amarela, mas sempre tive um
sonho de voltar pra minha casa, meu
chão, minha aldeia. Quando o cacique
Xicão começou a organizar o nosso
povo, eu me empolguei e senti com a
força dos Encantados que ia dar certo.
Me arrepiei todo e ficava sempre ardido
de forças para não desanimar quando as
coisas parecia que iam dar errado.
Xicão falava e eu muitas vezes ficava
pensando quando seria isso, que nós
íamos nos libertar e conseguir dar o
nosso grito de guerra e liberdade. Nesta
terra que entramos agora, pra não mais
sair, eu fui muitas vezes expulso e mal
visto pelo fazendeiro e também pelos
capangas que ele tinha. Hoje eu tenho
a alegria de ver que ele estava errado e
nós, [nesse momento, ele tira o chapéu
e olha pro céu fazendo referência às
forças dos Encantados] juntamente com
as forças sagradas e nossas entidades
de apoio, conseguimos botar o bicho
ruim pra fora de nossas terras, e ele
saiu sem mugir desta vez, por isso a
gente tá aqui com o herdeiro de Xicão,
Marquinho, que você sabe é muito
novo, mas tem o tino do pai. Por isso eu
tenho o sentimento que juntos vamos
conseguir tudo o que eles nos roubaram
e nós orientados pelos Encantados,
pelas entidades de apoio, vamos correr
para buscar tudo o que esses tubarões
nos devem.
Roberto Saraiva - Então seu João, fale
como é que essa comunidade vence esses
obstáculos?
João Jorge - Tem um segredo, a gente
não nasce pequeno e sem saber de nada?
Pois bem, sabíamos tudo, nos roubaram
e nos obrigaram a desconhecer as nossas
forças. Aí a gente como uma sementinha,
fomos brotando, e essa sementinha
cresceu, cresceu e ficamos forte, fomos
regados a sofrimento e resistência, assim
nasce um guerreiro Xukuru, não podemos
contar tudo né? (risos) têm coisas que têm
que ter os nossos segredos.
Ele ainda me falou assim: “Olha
Roberto eu não sei o que você vai fazer
com minhas palavras, mas eu termino
cantando um ponto de Toré: ‘quem quiser mangar de mim, eu não me importo
não, pois quando eu chego lá na mata,
eia, eia...”.
Esse é João Jorge de Melo, no olhar
de quem pode beber um pouco de sua
sabedoria, nas viagens que fizemos
juntos e nas conversas embaixo da árvore de casa ou ainda no terraço de sua
residência, onde falamos muitas vezes
do sonho concretizado de recuperar
seu espaço, seu território, com o seu
sorriso banguela e sincero, de quem tinha a certeza de que um sonho sempre
embala outros sonhos. n
15 Novembro-2008
À terra, meu canto para te fecundar
Ao ar, minha dança para te saudar
À água, minha pintura para te agradecer
Ao fogo, minha crença para te alimentar
À floresta, meu rito para te preservar
Sou terra e ar, água e fogo, floresta...
E minha vida é uma confissão de resistência
APOIADORES
UNIÃO EUROPÉIA
Novembro-2008
16
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TRUCULÊNCIA POLICIAL