UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL
Departamento de Economia e Contabilidade
Departamento de Estudos Agrários
Departamento de Estudos da Administração
Departamento de Estudos Jurídicos
LUCAS GOULART DA SILVA
AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DURANTE A
DITADURA MILITAR
Ijuí (RS)
2012
LUCAS GOULART DA SILVA
AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DURANTE A
DITADURA MILITAR
Dissertação apresentada ao Curso de PósGraduação
Strictu
Sensu
em
Desenvolvimento, Área de Concentração:
Direito, Cidadania e Desenvolvimento, da
Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ,
como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas
Ijuí (RS)
2012
Catalogação na Publicação
S586v
Silva, Lucas Goulart da.
As violações aos direitos e garantias fundamentais durante a ditadura
militar / Lucas Goulart da Silva. – Ijuí, 2012. –
119 f. ; 29 cm.
Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Desenvolvimento.
“Orientador: Doglas Cesar Lucas”.
1. Ditadura militar. 2. Violação dos direitos. 3. Garantias fundamentais.
I. Lucas, Doglas Cesar. II. Título.
CDU: 321.64
342.1
Tania Maria Kalaitzis Lima
CRB 10/ 1561
UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento – Mestrado
A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação
AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
DURANTE A DITADURA MILITAR
elaborada por
LUCAS GOULART DA SILVA
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Desenvolvimento
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas (UNIJUÍ): __________________________________________
Prof. Dr. Adalberto Narciso Hommerding (URI): ___________________________________
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin (UNIJUÍ): ________________________________________
Ijuí (RS), 03 de abril de 2012.
AGRADECIMENTOS
A criação de uma dissertação de mestrado jamais
ocorre de forma individual, o autor conta sempre com a
ajuda de pessoas próximas e comprometidas com esse
objetivo.
Por isso, agradeço aos meus pais, Veneza e
Antonio, sempre dispostos a financiar a realização dos
meus sonhos.
Agradeço o apoio incondicional da minha esposa
Karla Schwerz, que ao meu lado decide pelo nosso futuro.
À professora Dra. Luciene Dal Ri, responsável por
despertar o meu interesse em pesquisar sobre a ditadura
militar.
Ao professor Dr. Doglas Cesar Lucas, que mesmo
à distância sempre esteve a minha disposição.
Obrigado a todos.
“Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça
dando milho aos pombos” (Zé Geraldo).
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo abordar a gênese e a evolução histórica
dos direitos fundamentais, as conquistas e retrocessos ao longo dos tempos e a inserção
destes direitos perante a Constituição Federal de 1988. De forma crítica serão estudadas
as violações aos direitos e garantias fundamentais durante a ditadura militar de 1964 a
1985. Serão analisados os principais Atos Institucionais, dando-se ênfase ao AI-1, AI-2 e
AI-5, meios utilizados pelos militares na implantação e manutenção do poder vigente.
Comparativamente serão abordados os tratamentos dados por outros países sulamericanos aos envolvidos com suas respecitvas ditaduras militares, estabelecendo-se
um paralelo com a tentativa brasileira de revisão da Lei de Anistia através da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundametal nº 153. Ação judicial proposta pelo Conselho
Nacional da OAB e negada pelo Supremo Tribunal Federal, que reafirmou a validade da
lei. Será analisada a condenação sofrida pelo Brasil no caso Gomes Lund vs. Brasil,
perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na qual o Estado brasileiro restou
obrigado a reparar os danos causados às vítimas pelas atrocidades cometidas durante a
Guerrilha do Araguaia.
Palavras-chave: Direitos e Garantias Fundamentais. Violação de Direitos. Ditadura
Militar.
ABSTRACT
This dissertation aims to address the genesis and historical evolution of fundamental
rights, achievements and setbacks over the years and the inclusion of these rights
under the Constitution of 1988. Will be critically studied violations of fundamental
rights and guarantees during the military dictatorship from 1964 to 1985. We will
analyze the principal institutional acts, giving emphasis to the AI-1, AI-2 and AI-5, the
means used by the military in establishing and maintaining in power. Comparison will
consider the treatment given by other South American countries to those involved in
their respecitvas military dictatorships, establishing a parallel with the Brazilian
attempt to revise the Amnesty Law by invoking a Violation of Precept Fundametal nº
153. Legal action filed by the National Council of the Bar Association and denied by
the Supreme Court, which reaffirmed the validity of the law. Consideration will be
given the sentence in the case suffered by Brazil vs Gomes Lund. Brazil, before the
Inter-American Court of Human Rights, in which the Brazilian government remains
obligated to repair the damage caused to the victims for atrocities committed during
the Araguaia guerrilla movement.
Keywords: Fundamental Rights and Guarantees. Violation of Rights. Military
Dictatorship.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8
1 DIREITOS FUNDAMENTAIS: aspectos conceituais .............................................. 12
1.1 Gênese e evolução histórica ............................................................................... 14
1.2 Classificação dos direitos fundamentais ............................................................. 25
1.2.1 Direitos fundamentais de primeira geração ...................................................... 26
1.2.2 Direitos fundamentais de segunda geração ..................................................... 28
1.2.3 Direitos fundamentais de terceira geração ....................................................... 30
1.2.4 Direitos fundamentais de quarta geração ......................................................... 32
1.3 Os direitos fundamentais e a Constituição Federal de 1988 ............................... 33
2 A DITADURA MILITAR E OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS ......... 37
2.1 O contexto histórico que precedeu a ditadura militar .......................................... 38
2.2 As Constituições Federais que vigoraram durante a ditadura militar .................. 49
2.2.1 A Constituição Federal de 1946 ....................................................................... 49
2.2.2 A Constituição Federal de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 ...... 54
2.3 Os Atos Institucionais e a autoconcessão de poder ............................................ 58
2.3.1 O Ato Institucional nº 1 e as condições para impor o novo regime .................. 59
2.3.2 O Ato Institucional nº 2 e o fim da Constituição Federal de 1946 ..................... 65
2.3.3 O Ato Institucional nº 5 e a consolidação de uma ditadura .............................. 68
2.4 As principais violações aos direitos fundamentais durante a ditadura militar ...... 75
3 OS REFLEXOS DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS E GARANTIAS
FUNDAMENTAIS DURANTE A DITADURA MILITAR .............................................. 78
3.1 A abertura política e a Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79)........................................ 82
3.2 A tentativa de revisão da Lei de Anistia através da ação de Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 ................................................... 94
3.3 A condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos ................................................................................................................. 100
3.4 A criação da Comissão da Verdade e a Lei de Acesso à Informação ............... 107
CONCLUSÃO.......................................................................................................... 110
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 112
INTRODUÇÃO
A evolução dos direitos fundamentais, cujo nascimento se deu na
Antiguidade, culminou na elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948), em âmbito americano na Convenção Americana de Direitos Humanos (1969)
e no Brasil na Constituição Federal de 1988. Influenciadas por declarações
históricas de direitos, apresentam neste princípio de século problemas que
questionam a efetividade de suas normas.
Como país membro da Organização das Nações Unidas (ONU) e da
Organização dos Estados Americanos (OEA), o Brasil compromete-se a cumprir as
normas estabelecidas, distanciando-se gradativamente dos períodos de violações de
direitos iniciados principalmente com o golpe militar de 1964.
Oriunda do temor socialista que dividia o mundo do pós Segunda Guerra
Mundial, a ditadura militar teve início no golpe/revolução militar que culminou na
deposição em 1964, do Presidente João Goulart. Apoiados pelos Estados Unidos e
por parcelas da sociedade civil, os militares tomaram o poder e elegeram o primeiro
presidente do regime militar, o General Humberto Alencar Castelo Branco.
A involução democrática iniciada nesse período culminou na edição de
dezessete Atos Institucionais, decretos que possibilitaram as mais diversas
violações aos direitos e garantias fundamentais estabelecidos pela Constituição
Federal de 1946 então em vigor. Alternaram-se no poder outros quatro presidentes
militares, responsáveis pela revogação da Constituição Federal de 1946 e a
outorgação da Constituição Federal de 1967.
Considerada um dos maiores retrocessos da história política do país, suprimiu
muitos direitos fundamentais, como a liberdade de publicação de livros e periódicos,
restrição ao direito de reunião e criou a pena de suspensão dos direitos políticos.
Sofreu forte influência da “Guerra Fria”, que no contexto internacional pregava a
“teoria da segurança nacional”, combatia os inimigos internos rotulados de
subversivos, no caso, os opositores de esquerda.
A decretação por parte dos ministros militares da Emenda Complementar nº
01 praticamente outorgou uma nova Constituição Federal em 1969. Conforme César
Caldeira e Marcos Arruda, “intensificou a concentração de poder no Executivo
dominado pelo Exército e, junto com o AI-12, permitiu a substituição do presidente
por uma Junta Militar, apesar de existir o vice-presidente (na época, Pedro Aleixo)”
(1986, p. 40).
Já no fim do década de 70, sob o governo de João Figueiredo, diante da
pressão exercida pela sociedade civil e também por militares contrários à
manutenção da ditadura, iniciou-se o processo de redemocratização do país. Neste
cenário foi promulgada a Lei nº 6.693/79, popularmente conhecida por Lei de Anistia,
que tinha o objetivo de preparar a sociedade do pós-ditadura militar e anistiar
exilados e presos políticos, bem como todos os brasileiros que cometeram crimes
políticos ou conexos com estes, favorecendo assim os militares e seus agentes.
Porém, a controvérsia causada pela interpretação ampla da Lei motivou a
interposição da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF), ajuizada pelo Conselho Federal da OAB perante o Supremo Tribunal
Federal. Ferramenta jurídica trazida pela Constituição Federal de 1988 que visa
evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público
(União, Estados, Distrito Federal e Municípios), incluídos atos anteriores à
promulgação da própria Constituição.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em 29 de abril de 2010, decidiu pela
improcedência da demanda (ADPF nº 153), negando a possibilidade de revisão da
questionada Lei de Anistia, que, segundo Fábio Konder Comparatto, tinha por
objetivo “recuperar a honorabilidade das Forças Armadas, após os atos de
arbitrariedade – terrorismo, sequestro, assalto, tortura e atentado pessoal –
praticados por integrantes da corporação contra opositores do regime militar” (2010).
Na prática, a procedência da demanda possibilitaria a investigação por
abusos cometidos durante os “anos de chumbo”, punindo os envolvidos pelos crimes
cometidos e não responsabilizados. Possibilidade que gera revolta no meio militar
brasileiro, que se julga amparado pelo direito anteriormente adquirido.
Internacionalmente a busca pela reparação dos danos decorrentes de
ditaduras militares, principalmente em âmbito americano, tem ocorrido de forma
mais incisiva. Neste sentido a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão
integrante da Convenção Americana de Direitos Humanos, já proferiu cinco
acórdãos contra diferentes países considerando inválidas suas leis de autoanistia.
Nessa situação encontra-se o Brasil, que, em 24 de novembro de 2010, teve julgado
contra si demanda referente às atrocidades cometidas durante a Guerrilha do
Araguaia (Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil). Evento ocorrido às margens do
Rio Araguaia entre os anos de 1972 e 1975, onde cerca de 70 guerrilheiros
opositores ao regime, membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da
região, foram torturados e assassinados, sendo que vários corpos jamais foram
localizados.
Os argumentos defensivos não foram aceitos, ocasionando a condenação de
forma unânime do Brasil pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação
dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade
pessoal, à liberdade pessoal e à liberdade de pensamento. Entenderam os juízes da
Corte que o Estado brasileiro descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno
à Convenção Americana de Direitos Humanos, incluindo neste item a controversa
Lei de Anistia. De forma conclusiva, entenderam os julgadores que as medidas
adotadas pelo Brasil, como a Lei de Anistia e a política de indenizações e benefícios,
não se constituíram em uma "reparação suficiente" às violações de direitos alegadas
pelas vítimas e seus familiares.
Destacaram ainda que a intervenção ocorrida no Brasil produziu eficácia em
países vizinhos, que revisaram suas leis de autoanista e puniram seus agentes que
abusaram do poder durante suas ditaduras militares. Entendem os julgadores que
essa condenação repercutirá na evolução democrática do país, solidificando a
cultura de respeito aos direitos humanos fundamentais.
Para tanto, no primeiro capítulo deste trabalho serão abordadas questões
referentes à gênese e à evolução histórica dos direitos fundamentais, as conquistas
e retrocessos ao longo do tempo, as revoltas e revoluções que contribuíram na
consolidação de direitos. Após a análise histórica serão estudadas as classificações
dos direitos fundamentais e a sua inserção perante a Constituição Federal de 1988.
O segundo capítulo destinar-se-á ao estudo dos retrocessos aos direitos
fundamentais ocorridos a partir do golpe militar de 1964, o contexto histórico que
precedeu a tomada do poder pelos ditadores militares. Cronologicamente serão
analisadas as Constituições Federais que vigoraram durante o período de exceção,
além das violações aos direitos fundamentais proporcionadas pelos
Atos
Institucionais editados pelos governos militares.
Por fim, o último capítulo tem como objeto a abordagem dos reflexos que o
fim da ditadura militar proporcionou ao Brasil, culminando na tentativa de revisão da
Lei da Anistia e na condenação do Estado brasileiro perante a Corte Interamericana
de Direitos Humanos. Serão analisadas as recentes criações da Comissão da
Verdade e a Lei de Acesso à Informação, imposições que o Estado brasileiro deverá
adotar para a consolidação de sua democracia.
Nesta pesquisa adotar-se-á o método indutivo, o qual possibilita o
desenvolvimento de enunciados gerais sobre observações acumuladas de casos
específicos ou proposições que possam ter validades universais. Do ponto de vista
dos procedimentos técnicos trata-se de uma pesquisa de documentação indireta,
especificamente bibliográfica, elaborada a partir da literatura já publicada sobre o
tema.
Os métodos de procedimentos adotados são o histórico e o comparativo. O
primeiro consiste na investigação dos acontecimentos, processos e instituições do
passado, para verificar a sua influência na sociedade de hoje. O segundo realiza
comparações com a finalidade de verificar semelhanças e explicar divergências. É
um método usado para comparações de grupos no presente e no passado, entre
sociedades de iguais ou diferentes estágios de desenvolvimento.
1 DIREITOS FUNDAMENTAIS: aspectos conceituais
Os direitos fundamentais são considerados um dos pilares de sustentação do
Estado Democrático de Direito. Ao lado dos princípios da legalidade e da separação
dos poderes, formam a proteção constitucional do indivíduo contra os abusos de
poder por parte do Estado.
Apesar da vasta produção teórica, as definições convergem no sentido de
proteção da dignidade da pessoa humana, destacando-se o conceito proferido por
José Afonso da Silva, o qual afirma serem os direitos fundamentais “aquelas
prerrogativas e instituições que o Direito Positivo concretiza em garantias de uma
convivência digna, livre e igual de todas as pessoas” (2003, p. 562).
Na respeitada opinião do jurista português José Joaquim Gomes Canotilho:
Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos
cidadãos sob dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo,
normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo
fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2)
implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente
direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes
públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos
(liberdade negativa) (1995, p. 507).
Embora uníssona na definição do conceito, a doutrina ainda busca o
consenso para a nomenclatura adotada quando se refere a esta categoria de
direitos. A utilização de expressões como “direitos individuais”, “liberdades públicas”,
“direitos naturais”, “direitos civis”, vem sendo rechaçada progressivamente, restando
aceita, conforme opinião de Ingo Wolfgang Sarlet, apenas a dicotomia entre os
termos “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, por se referirem aos mesmos
direitos, porém, inseridos em contextos jurídicos diversos.
Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos
fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação
corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o
termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano
reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de
determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos”
guardaria relação com os documentos de direitos internacional, por referirse àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal,
independentemente de sua vinculação com determinada ordem
constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os
povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter
supranacional (internacional) (2010, p. 29).
Com a teoria de “direitos humanos internacionais” e “direitos fundamentais
constitucionais” concorda Helenice Braun. Porém, defende a expressão “direitos
humanos fundamentais”. Destaca a ideia de que as expressões “direitos humanos” e
“direitos fundamentais” não são excludentes uma da outra, mas expressões que dão
a ideia de interação, isto é, que se inter-relacionam (2001, p. 98).
Essa formatação contrapõe o conceito de Canotilho, para quem as
expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais”, apesar de utilizados como
sinônimos, por sua origem e significado podem ser distinguidos da seguinte forma:
[...] direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos
os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são
os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados
espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria
natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os
direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa
ordem jurídica concreta (1995, p. 505).
Segundo o jurista português, além da existência de direitos fundamentais
formalmente constitucionais, há direitos fundamentais inseridos em leis e regras
aplicáveis de direito internacional, e, por isso, considerados direitos materialmente
fundamentais. Reforçando sua teoria que extrapola a dicotomia entre direitos
fundamentais constitucionais e direitos humanos internacionais.
Contrapondo essas teorias e conjugações, destaca-se a opinião de Raimundo
Panikkar, teórico indu, que afirma serem os Direitos Humanos apenas um conceito
ocidental, negando seu caráter de universalidade. Esta teoria não nega a existência
de uma natureza humana universal, embora esta natureza não seja totalmente
específica e distinta da natureza dos demais seres vivos (1983).
A própria Constituição Federal de 1988 utilizou diferentes expressões ao se
referir aos direitos fundamentais, contribuindo para a não resolução das
divergências.
Exemplo dessa heterogeneidade está na própria Constituição brasileira de
1988, que utiliza diversos termos ao tratar dos direitos fundamentais, tais
como: direitos humanos no artigo 4º, inciso III, direitos e garantias
fundamentais na epígrafe do Título II e artigo 5º, inciso LXXI, e direitos e
garantias individuais, no artigo 60, § 4º, inciso IV, do seu texto constitucional
(BRAUN, 2001, p. 97).
Independentemente das expressões utilizadas pela doutrina, a proteção aos
direitos fundamentais e aos direitos humanos ganhou relevância no pós Segunda
Guerra Mundial e mais recentemente após a ditadura militar de 1964, períodos
marcados por constantes violações desses direitos, o que estimulou a criação e o
aperfeiçoamento desses meios de proteção social.
1.1 Gênese e evolução histórica
A difícil tarefa de determinar a origem precisa dos direitos fundamentais
explica a dissonância entre os conceitos. Porém, parte da doutrina concorda que as
primeiras declarações de direitos surgiram durante a Idade Antiga, período entre os
anos 4.000 a.C e 476 d.C. Consideram esses pesquisadores que até o fim da PréHistória a humanidade não havia evoluído o suficiente para respeitar normas
previamente estabelecidas, tampouco criá-las, vivendo ainda de forma nômade e
pelas atividades de caça e de coleta, respeitando tão somente a “lei do mais forte.”
Porém, a teoria jusnaturalista, atribuída a Aristóteles, questiona essas
origens, julgando haver leis eternas, superiores às normas positivadas, dentre as
quais, as primeiras declarações de direitos escritas da humanidade. Conforme
afirma Ricardo Castilho:
Já na Roma Antiga, Cícero, no seu livro Da república, formulava a doutrina
do direito natural, segundo a qual existem leis estabelecidas pelos deuses e
que se antepunham à vontade dos governantes. Assim o direito natural
seria eterno, imutável, superior e mais válido do que o direito positivo de
natureza política (2010, p. 19).
Ingo Wolfgang Sarlet ressalta a difícil constatação teórica acerca do
surgimento dos direitos fundamentais, comparando a influência exercida pelas
teorias do Direito Natural na positivação de direitos na Idade Antiga:
Ainda que consagrada a concepção de que não foi na antiguidade que
surgiram os primeiros direitos fundamentais, não menos verdadeira é a
constatação de que o mundo antigo, por meio da religião e da filosofia,
legou-nos algumas das idéias-chaves que, posteriormente, vieram a
influenciar diretamente o pensamento jusnaturalista e a sua concepção de
que o ser humano, pelo simples fato de existir, é titular de alguns direitos
naturais inalienáveis, de tal sorte que esta fase costuma também ser
denominada, consoante já ressaltado, de “pré-história” dos direitos
fundamentais (2010, p. 38).
Nesse sentido, Ricardo Castilho, afirma, mesmo isoladamente, que a origem
deste pretenso constitucionalismo ocorreu através do Código de Hammurabi de
1780 a.C, na Antiga Babilônia (atual Irã), o qual em seus 282 artigos introduziu um
início de ordem na sociedade (2010, p. 23).
Contrapondo essa opinião, Bruno
Galindo, de forma mais específica, qualifica o Código de Hammurabi como o
primeiro catálogo, mesmo que insipiente de direitos fundamentais. Rejeita, porém, a
característica de uma pretensa carta Constitucional.
[...] que é considerado por muitos como a primeira codificação a consagrar
um catálogo de direitos fundamentais aos homens. Ainda não era uma
constituição, mas um corpo legislativo genérico que regulava
indistintamente as condutas humanas e impunha-se como legislação
limitadora do poder governamental (2005, p. 34).
O pioneirismo da Lei de Talião e suas severas punições baseadas na
ideologia do “olho por olho, dente por dente” foi sucedido, na cadeia evolutiva das
normas de organização da sociedade, pelo Código de Ur-Nammu, editado por este
soberano assírio por volta de 1.200 a.C. Foi o primeiro a aplicar penas pecuniárias
para punir delitos cometidos, considerado por Ricardo Castilho “a primeira notícia
referente a um constitucionalismo, ainda tosco” (2010, p. 23).
Ainda que de forma primitiva, esses códigos de conduta inauguraram a busca
pela consolidação de direitos humanos, havendo outros povos do Oriente Médio,
como os hebreus, que igualmente foram precursores na abordagem desse tema.
Nesses códigos a influência de uma religião monoteísta era bastante acentuada, e
também o humanismo judaico servia de fundamento para as autoridades
enfrentarem problemas concretos no campo dos direitos fundamentais. No entanto,
foi na Grécia Antiga que ocorreu o maior desenvolvimento de um humanismo
racional, apesar do caráter excludente por se voltar apenas aos seus cidadãos,
excluindo as mulheres, os estrangeiros e os escravos. Teve na pessoa de
Aristóteles seu expoente (GALINDO, 2005).
Mas o grande exemplo veio mesmo dos gregos. Um dos mais
representativos exemplos de reflexão sobre a necessidade de normas para
uma sociedade política é um ensaio sobre a Constituição de Atenas, cujos
fragmentos originais foram descobertos no Egito no final do século XIX.
Escrito provavelmente entre os anos 322 e 332 a.C., foi atribuído a princípio
– e falsamente – a Xenofonte. Hoje se reconhece a autoria da peça com
segurança: é de Aristóteles, considerada a segunda obra mais importante
do pensador estagirita sobre política. O livro historia as experiências
constitucionais da Cidade-Estado de Atenas, conforme seus principais
legisladores (Drácon, Sólon, Pisítrato, Clístenes e Péricles), e também pode
ser lido como uma história política da cidade. [...] São Tomás de Aquino
complementaria o pensamento aristotélico falando da “ordem que
fundamenta e substantiva as leis” (CASTILHO, 2010, p. 24-25).
A partir do surgimento do Cristianismo no final da Idade Antiga e por toda a
Idade Média, os direitos humanos ganharam destaque, mesmo que intimamente
vinculados à religião, conquistas que culminaram na Reforma Protestante, período
em que surge a democracia moderna ligada aos direitos fundamentais do homem
(SARLET, 2010).
A evolução para Idade Média marcou o surgimento de declarações de direitos
inseridos nos Forais e nas Cartas de Franquia, documentos outorgados pelos reis
portugueses e espanhóis, que, segundo Ricardo Castilho, “dava foro jurídico próprio
aos habitantes medievais de uma povoação que quisesse libertar-se do poder
feudal” (2010, p. 27). Essas declarações de direitos antecederam a Magna Charta
Libertatun de 1215, “principal documento referido por todos que se dedicam ao
estudo da evolução dos direitos humanos” (SARLET, 2010, p. 41). Considerada por
grande parte da doutrina o marco inicial dos direitos fundamentais.
Eficaz ou não, a Magna Carta de 1215 foi um marco na história, tornando-se
o início da monarquia constitucional inglesa e um primeiro passo para o
constitucionalismo no mundo ocidental. Foi redigida em latim medieval
(chamado latim bárbaro), em pergaminho, e outorgada no dia 15 de junho
de 1215 (CASTILHO, 2010, p. 30).
Apesar de ser considerada o primeiro passo para o constitucionalismo
ocidental, a Carta Magna firmada pelo Rei João Sem-Terra e pelos bispos e barões
ingleses, não teve por objetivo garantir direitos às classes menos favorecidas da
sociedade. Conforme ensina Ingo Wolfgang Sarlet:
Este documento, inobstante tenha apenas servido para garantir aos nobres
ingleses alguns privilégios feudais, alijando, em princípio, a população do
acesso aos “direitos” consagrados no pacto, serviu como ponto de
referência para alguns direitos e liberdades civis clássicos, tais como o
habeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade (2010,
p. 41).
Houve tão somente a tentativa por parte dos nobres e religiosos de limitar o
comportamento despótico do rei, que, conforme Bruno Galindo, restou assim
definida:
A Magna Charta Libertatum de 1215 foi o marco medieval da limitação do
poder pelo respeito a alguns direitos fundamentais. Apesar de consagrar
tais direitos apenas para os senhores feudais, a Carta inglesa, nascida das
controvérsias entre esses nobres e o Rei João Sem Terra, teve o condão de
colocar, em um plano normativo, as limitações ao poder de tributar, a
proporcionalidade entre delito e sanção, o devido processo legal, o livre
acesso à Justiça, e a liberdade de locomoção. Essa luta pela limitação do
poder monárquico foi o principal fator influenciador das teorias democráticas
da Idade Moderna, que defenderam um Estado onde predominasse a
pluralidade em termos de participação popular na formação da vontade
estatal e onde os direitos fundamentais pudessem ser garantidos com maior
efetividade possível, teorias que culminaram nas Declarações de Direitos
dos séculos XVII, XVIII e XX (2005, p. 36).
Embora a destacada importância das declarações de direitos e privilégios
medievais, suas outorgas pelas autoridades reais ocorreram em um contexto social
e econômico marcado pela desigualdade, excluindo grande parcela da população de
seus benefícios. Entretanto, a evolução dos direitos fundamentais se manteve
constante ao longo da transição da Idade Média para a Idade Moderna, destacandose as conquistas ocorridas através de eventos como a Reforma Protestante (século
XVI), que levou à reivindicação e ao gradativo reconhecimento da liberdade de
opção religiosa e de culto em diversos países da Europa (SARLET, 2010, p. 42).
As declarações de direitos de origem inglesa do século XVII, como a Petição
de Direitos (Petition of Rights) de 1628, evento que a História considera responsável
pelo início do constitucionalismo moderno (CASTILHO, 2010, p. 41), o Habeas
Corpus Act, de 1679, o Bill of Rights, de 1689 e o Establishment Act, de 1701, que,
segundo Ingo Wolfgang Sarlet, “foram direitos e liberdades reconhecidos aos
cidadãos ingleses resultantes da progressiva limitação do poder monárquico e da
afirmação do Parlamento perante a corte inglesa” (2010, p. 42).
As conquistas europeias de direitos fundamentais se difundiram para a
América do Norte, onde, em 12 de junho de 1776, o povo da colônia de Virgínia,
atual estado americano, divulgou a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia.
Escrita por Thomas Jefferson, precedeu a Declaração da Independência dos
Estados Unidos da América ocorrida em 4 de julho do mesmo ano. Evento
fortemente influenciado pela Magna Carta inglesa, conforme ensina Ricardo
Castilho:
Os colonos norte-americanos, ao se rebelarem contra o governo britânico,
usaram como argumento a mesma filosofia que norteava os dominadores
desde a Magna Carta: a concepção liberal de que o povo não deve ficar
sujeito a um governo arbitrário, mas, sim, ser protegido pela lei e controlar o
Executivo por meio do Poder Legislativo livremente eleito (2010, p. 54).
Inovadora por inserir o “direito à vida” como norma a ser respeitada, a
Declaração de Independência americana, aliada à Declaração dos Direitos da
Virgínia, contribuíram para a edição da primeira e única Constituição dos Estados
Unidos da América. Também considerada a primeira Carta Constitucional do mundo,
foi promulgada em 4 de março de 1789, treze anos após a Declaração dos Direitos
da Virgínia. “Nessa carta, as dez primeiras emendas são chamadas Bill of Rights,
porque enumeram os direitos básicos dos cidadãos norte-americanos perante o
poder do Estado” (CASTILHO, 2010, p. 60).
A evolução da humanidade determinou a derrocada do período moderno e a
entrada na Idade Contemporânea. O marco de transição entre estes períodos foi a
Revolução Francesa de 1789, evento que Ingo Wolfgang Sarlet classifica como a
“primeira que marca a transição dos direitos de liberdade legais ingleses para os
direitos fundamentais constitucionais” (2010, p. 43).
Marcou também o surgimento da expressão “direitos do homem”, que,
segundo Fernando Barcellos de Almeida, “foram a conquista de uma classe
emergente como dona de poder econômico e que se torna dona também do poder
político, como ocorreu mais significativamente com a classe burguesa na Revolução
Francesa” (1996, p. 45).
A edição da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, fruto
da revolução que provocou a derrocada do antigo regime e a instauração da ordem
burguesa na França, conforme ensina Sarlet, sofreu forte influência das declarações
de direitos americanas, as quais reciprocamente foram influenciadas pela doutrina
iluminista francesa:
A influência dos documentos americanos, cronologicamente anteriores, é
inegável, revelando-se principalmente mediante a contribuição de Lafayette
na confecção da Declaração de 1789. Da mesma forma, incontestável a
influência da doutrina iluminista francesa, de modo especial de Rousseau e
Montesquieu, sobre os revolucionários americanos, levando à consagração,
na Constituição Americana de 1787, do princípio democrático e da teoria da
separação dos poderes. Sintetizando, há que reconhecer a inequívoca
relação de reciprocidade, no que concerne à influência exercida por uma
declaração de direitos sobre a outra [...] (2010, p. 44).
O surgimento desta marcante declaração de direitos ocorreu de forma
atrelada à Revolução Francesa, mais propriamente após a Tomada Bastilha, marco
que simboliza as conquistas burguesas e a derrocada do absolutismo monárquico
francês. Conquistas que influenciaram o mundo através dos ideais de “Liberdade,
Igualdade e Fraternidade” e marcaram a evolução da humanidade para a Idade
Contemporânea.
Alçados ao poder, os revolucionários convocaram a Assembléia Nacional
Constituinte francesa para que se redigisse a primeira Constituição do país e,
consequentemente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Já o
preâmbulo da Carta restou redigido em paralelo por um conjunto seleto de
deputados reunidos na casa de Thomas Jefferson. Conforme ensina Ricardo
Castilho:
Em paralelo, uma comissão de deputados decidiu escrever um preâmbulo
para a Carta francesa, com uma síntese dos ideais da revolução. Reuniramse na casa de Thomas Jefferson, então embaixador norte-americano em
Paris. Os principais membros dessa delegação eram o marquês de La
Fayette, que havia participado da guerra de independência dos Estados
Unidos, Antoine Pierre Joseph Marie Barnave, grande orador e ativista da
revolução, e o jornalista e escritor Honoré-Gabriel Victor Riqueti, conde de
Mirabeau, este responsável pelo texto final. A declaração foi aprovada em
sessão da Assembléia Constituinte de 26 de agosto de 1789 (2010, p. 67).
Apesar das conquistas alcançadas a partir da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, bem como a reconhecida importância das mulheres na
Revolução Francesa, a referência ao termo “Homem” no título que caracteriza a
declaração francesa de direitos ocorreu por ser dedicada tão somente aos
representantes do sexo masculino. Fato retratado pela autora teatral Marie Olympe
de Gouges, que, em repúdio, escreveu e publicou em 1791 o manifesto chamado
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã.
A História registra que as mulheres tiveram participação ativa na Revolução
Francesa. No entanto, a Declaração é inteiramente dedicada aos
representantes do sexo masculino. Uma autora teatral, Marie Gouze
Olympe de Gouges, de certo destaque na época, escreveu e publicou em
1791 o manifesto chamado Declaração dos direitos da mulher e da cidadã,
usando a mesma linguagem que o documento original, reivindicando que os
direitos fossem estendidos às mulheres da França (CASTILHO, 2010, p.
69).
O manifesto não teve o poder de incluir direitos às mulheres no texto original.
Porém, no mesmo ano em que os incomodados revolucionários prenderam e
guilhotinaram Marie Gouze Olympe de Gouge, 1793, o documento foi revisado e
nele incluída “a concepção de liberdade aos negros, e pela primeira vez eram
proclamados os direitos econômicos e sociais, que incluíam direito à instrução, ao
trabalho e à assistência” (CASTILHO, 2010, p. 69).
Constituída de XVII enunciados, a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão ficou marcada por seus avanços sociais ao garantir direitos iguais para
todos os cidadãos, além do pioneirismo em permitir a participação política do povo.
Restou sucedida somente em 10 de dezembro de 1948 com a edição da Declaração
Universal
dos
Direitos
Humanos,
promulgada
pela
Assembleia
Geral
da
Organização das Nações Unidas. Esse evento Flávia Piovesan caracteriza como a
“verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos surge em
meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial” (1997, p. 139).
O surgimento da Declaração dos Direitos Humanos em 1948 marcou a
evolução dos direitos conquistados através das revoluções do século XVIII. Teve por
objetivo dar proteção aos povos do planeta, baseando-se no princípio fundamental
de que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Para que se possa compreender o processo de discussão até a
promulgação da Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, é necessário
fazer referência a outros momentos relevantes da história que contribuíram
para sua criação. Destacam-se as declarações de direito norte-americana,
de 1776, e a declaração francesa, de 1789, as quais marcaram a
emancipação histórica do indivíduo perante os grupos sociais, como a
família, entidades religiosas e outros segmentos, dando em troca a
segurança da legalidade, com garantia da igualdade de todos perante a lei
(BRAUN, 2001, p. 130-131).
Formalizada em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos contou com a aprovação unânime de 48 países, havendo apenas
8 abstenções. A inexistência de qualquer questionamento ou reserva feita pelos
Estados aos princípios da Declaração, e a inexistência de qualquer voto contrário às
suas disposições conferem à Declaração Universal o significado de um código e
plataforma comum de ação. Consolida a afirmação de uma ética universal, ao
consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos
Estados (PIOVESAN, 1997, p. 155).
Precedida de um preâmbulo e composta por trinta artigos, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos formalizou os objetivos declarados e defendidos
pela Organização das Nações Unidas (ONU). Embora não possua obrigatoriedade
legal, foi redigida após o final da Segunda Guerra Mundial e durante um princípio de
Guerra Fria, pretendendo o alcance global de respeito aos direitos e liberdades
fundamentais.
Em janeiro de 1946, a Assembléia Geral das Nações examinou um projeto
de declaração sobre os direitos e liberdades fundamentais e o remeteu ao
Conselho Econômico e Social, que, por sua vez, transmitiu-o à Comissão de
Direitos Humanos e esta recebeu-o como subsídio a uma carta internacional
de Direitos Humanos. Em 1947, a Comissão autorizou os membros de sua
Mesa Diretora a formular um projeto preliminar, tarefa essa que depois foi
assumida por um Comitê de Redação, integrado por membros da
Comissão, representava oito Estados e que foram escolhidos em função de
uma equânime distribuição geográfica (ALMEIDA, 1996, p. 108).
Importante destacar a proclamação solene inserida pela Assembleia Geral no
corpo do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Parágrafo em
que o Órgão plenário e deliberativo, composto por todos os países membros,
expressou de forma didática os objetivos e intenções dos artigos que precede:
A Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos
Humanos como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as
nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade,
tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela
educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por
promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o
seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto entre as
populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios
colocados sob a sua jurisdição (DUDH, ONU, 1948).
O respaldo alcançado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos
acabou por influenciar a elaboração e a formalização de tratados regionalizados de
proteção de direitos. Seus princípios passaram a balizar os julgamentos dos
tribunais internacionais e nacionais, servindo de referencial teórico para a
elaboração de cartas constitucionais e infraconstitucionais.
Porém, dentre as importantes normas que a compõem, Helenice Braun
destaca a “concepção de que o único regime político que respeita efetivamente os
direitos do homem é o regime democrático, único caminho legítimo para a
organização do Estado” (2002, p. 140). Normativa inserida no artigo XXI, que, de
forma implícita, impõe a soberania do voto na organização política dos Estados: “A
vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa
em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou
processo equivalente que assegure a liberdade de voto” (D.U.D.H., 1948).
Dentre os tratados surgidos a partir da Declaração Universal, destaca-se, em
âmbito americano, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969. Também
influenciada pelo Pacto Interamericano de Direitos Civis e Políticos de 1966, é
composta por órgãos ativos e regida por normas de efeito vinculante, impondo aos
países integrantes o respeito às decisões de sua Corte de julgamentos.
Aprovada na Conferência de São José da Costa Rica em 22 de novembro
de 1969, a Convenção reproduz a maior parte das declarações de direitos
constantes do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966.
Quanto aos órgãos competentes para supervisionar o cumprimento de suas
disposições e de julgar os litígios referentes aos direitos humanos nela
declarados, a Convenção aproxima-se mais do modelo da Convenção
Européia de Direitos Humanos de 1950 (COMPARATO, 2001, p. 364).
Igualmente conhecido por Pacto de São José da Costa Rica, tem por
integrantes os países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Diferentemente da Declaração Universal de Direitos Humanos, possui um órgão
competente para o julgamento dos processos de eventuais violações, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
Similar ao sistema da ONU, o sistema da OEA é composto de uma
Declaração, equivalente a uma recomendação e uma Convenção – A
Convenção Americana sobre Direitos Humanos – equivalente ao Pacto da
ONU, mas mais particularizado do que este -, também conhecida por “Pacto
de San José”, por ter sido elaborada e assinada nesta localidade em 1969
(ARAÚJO; ANDREIUOLO, 1999, p. 73).
O caráter vinculante das decisões proferidas pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos conferiu à Convenção o respaldo necessário para o respeito às
suas normas. As eventuais transgressões expuseram os demandados às punições
impostas pela Corte, formando ao longo do tempo a jurisprudência de proteção aos
direitos humanos em âmbito americano.
Desde a sua primeira sentença, no caso Velásquez Rodriguez, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos determinou que a obrigação de
garantia estipulada no artigo 1º da Convenção. [...] Esse conceito foi
reiterado sistematicamente pela jurisprudência da Corte, que o precisou
definindo que o Estado é o organizador do respeito aos direitos humanos,
inclusive nas relações interindividuais, quando por sua aquiescência, ação
ou omissão, contribuiu para sua violação (NIKKEN, 2009, p. 258-259).
Composta por 82 artigos, a Convenção Americana de Direitos Humanos foi
ratificada pelo Brasil somente em 1992 por meio do Decreto 678/92, pois, quando da
sua subscrição, o país vivenciava um período de regime militar, inviabilizando a
aplicação de seus preceitos de proteção e garantia aos direitos humanos.
No que se refere à posição do Brasil em relação ao sistema internacional de
proteção dos direitos humanos, observa-se que somente a partir do
processo de democratização do país, deflagrado em 1985, é que o Estado
Brasileiro passou a ratificar relevantes tratados internacionais de direitos
humanos (PIOVESAN, 1999, p. 126).
Destaca-se a preocupação dos legisladores da Convenção Americana de
Direitos Humanos em combater a impunidade dos signatários na garantia dos
direitos humanos, como confirma Pedro Nikken; “a Corte Interamericana salientou
que os Estados Partes na Convenção devem erradicar a impunidade” (2009, p. 261).
Diretriz que impôs aos países a obrigação de responsabilizar seus agentes por
crimes cometidos contra os direitos humanos no âmbito de suas ditaduras militares.
Esse procedimento maximizou a importância da Convenção Americana de Direitos
Humanos, alçando-a à condição de guardiã dos direitos humanos no período de
consolidação democrática pós ditaduras militares sul-americanas.
1.2 Classificação dos direitos fundamentais
A Constituição Federal de 1988 e as doutrinas modernas que tratam dos
Direitos Fundamentais divergem quanto às suas classificações e nomenclaturas. De
acordo com a Constituição Federal, o Título II, os direitos e garantias fundamentais
subdividem-se em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos; direitos sociais;
nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos. Dessa forma, ressalta Alexandre
de Moraes que a classificação adotada pelo legislador constituinte estabeleceu cinco
espécies ao gênero direitos e garantias fundamentais; direitos políticos; e direitos
relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos (2004, p.
61).
Já a classificação apresentada por T. H. Marshall, proposta em 1950,
classificou os direitos em civis (afirmados no século XVIII), políticos (conquistados
no século XIX) e sociais (conquistados no século XX) (MARSHALL apud BESTER,
2005, p. 587). Ainda, de acordo com a autora, todas as classificações de direitos
realizadas depois desta, de algum modo, desta se serviram.
Porém, a classificação por gerações feita pelo jurista italiano Norberto Bobbio
em sua obra A era dos direitos encontrou simpatizantes na doutrina brasileira, dentre
eles, Paulo Bonavides e José Afonso da Silva. No entanto, apesar desta
consolidação teórica, o termo “gerações” também encontra oposição, conforme
destaca Ingo Wolfgang Sarlet, que adota o termo “dimensão”, por afastar a
compreensão de substituição de direitos por gerações futuras, complementando-se
em dimensões coexistentes.
Num primeiro momento, é de se ressaltarem as fundadas críticas que vêm
sendo dirigidas contra o próprio termo “gerações” por parte da doutrina
alienígena e nacional. Com efeito, não há como negar que o
reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter
de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância,
de tal sorte que o uso da expressão “gerações” pode ensejar a falsa
impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela
qual há quem prefira o termo “dimensões” dos direitos fundamentais,
posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna
doutrina (SARLET, 2010, p. 45).
Superadas as divergências, relativizam-se as opiniões no sentido de agrupar
os
diferentes
direitos
fundamentais
constitucionais
ou
direitos
humanos
internacionais em três ou quatro grupos; direitos de primeira, segunda, terceira e
quarta gerações ou dimensões.
1.2.1 Direitos fundamentais de primeira geração
Surgidos preliminarmente no âmbito da Magna Carta Libertatum de 1215, os
direitos de primeira geração visavam à proteção das liberdades individuais em
detrimento ao poder do Estado, que deveria respeitar e garantir a liberdade, a vida, a
propriedade, a manifestação, a expressão, o voto, entre outros direitos dos
cidadãos. Reconhecidos desde as primeiras Constituições escritas, são, segundo
Ingo Wolfgang Sarlet, “o produto peculiar do pensamento liberal-burguês do século
XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do
indivíduo frente ao Estado [...]” (2010, p. 46).
Os fundamentos do Estado Absolutista começavam, lentamente, a desabar,
principalmente diante das pretensões da emergente burguesia urbana, que
buscava espaço para crescer economicamente. Com estas influências
históricas e políticas, surgiram os direitos fundamentais de primeira geração
(SCHÄFER, 2005, p. 19).
Segundo
Paulo
Bonavides,
apesar
de
atualmente
pacificados
constitucionalmente, a consolidação dos direitos de primeira geração ocorreu de
forma diversa entre os países, fato que demonstra as peculiaridades e as
necessidades de cada sociedade.
Os direitos de primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a
constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis
e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico,
àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente.
Se hoje esses direitos parecem já pacificados na codificação política, em
verdade se moveram em cada país constitucional num processo dinâmico e
ascendente, entrecortado não raro de eventuais recuos, conforme a
natureza do respectivo modelo de sociedade, mas permitindo visualizar a
cada passo uma trajetória que parte com freqüência do mero
reconhecimento formal para concretizações parciais e progressivas, até
ganhar a máxima amplitude nos quadros consensuais de efetivação
democrática de poder.
[...] os direitos e da primeira geração – direitos civis e políticos – já se
consolidaram em sua projeção de universalidade formal, não havendo
Constituiçlão digna desse nome que os não reconheça em toda a extensão
(2003, p. 563).
Por definirem um não fazer do Estado em prol do cidadão, caracterizam-se
como uma prestação negativa. Conforme refere Sarlet, “são por esse motivo,
apresentados como direitos de cunho “negativo”, uma vez que dirigidos a uma
abstenção, e não a uma conduta positiva por parte dos poderes públicos [...]” (2010,
p. 47).
[...] essas idéias encontravam um ponto fundamental em comum, a
necessidade de limitação e controle dos abusos de poder do próprio Estado
e de suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios básicos
da igualdade e da legalidade como regentes do Estado moderno e
contemporâneo (MORAES, 2000, p. 19).
Segundo refere Jairo Schäfer, “o estudo da evolução dos direitos
fundamentais confunde-se com a própria história do Estado de Direito” (2005, p. 14).
Interpretação que ressalta a importância dos direitos fundamentais de primeira
geração, que de forma precursora viabilizaram a criação de instâncias de controle
dos poderes do Estado.
Sarlet exemplifica quais são os direitos considerados de primeira geração:
Assumem particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua
notória inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à
propriedade e à igualdade perante a lei. São, posteriormente,
complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim
denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão,
imprensa, manifestação, reunião, associação, etc.) e pelos direitos de
participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral
passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos
fundamentais e a democracia. Também o direito de igualdade, entendido
como igualdade formal (perante a lei) e algumas garantias processuais
(devido processo legal, habeas corpus, direito de petição) se enquadram
nesta categoria (2010, p. 47).
Apesar de corresponderem à fase inicial do constitucionalismo ocidental, os
direitos eminentemente de cunho civil e político estabelecidos pelos direitos
fundamentais de primeira geração comprovam sua importância ao integrarem desde
o surgimento a totalidade das Cartas Constitucionais.
1.2.2 Direitos fundamentais de segunda geração
Os
problemas
sociais
e
econômicos
decorrentes
do
processo
de
industrialização do século XIX, aliados às doutrinas socialistas e à constatação de
que somente a liberdade e a igualdade dos cidadãos não seriam garantidas por sua
mera consagração formal, geraram, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, “amplos
movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de direitos” (2010, p.
47). Direitos que necessitaram ser garantidos pelo Estado, contrapondo os direitos
de primeiro grau e sua característica de prestação negativa.
Esta posição ativa do Estado na garantia de direitos representou o
nascimento de um pretenso Estado de bem-estar social, que, conforme Rodrigo
César Rebello Pinho “significam uma prestação positiva, um fazer do Estado em prol
dos menos favorecidos pela ordem social e econômica” (2005, p. 69). A utilização da
expressão direitos sociais consolidou o processo histórico de formação do Estado
Social, conforme destaca Jairo Schäfer:
A expressão direitos sociais, segundo Baldassarre, não era de utilização
comum no âmbito do discurso político e jurídico antes do advento do Estado
Contemporâneo, sendo que o reconhecimento dos direitos sociais resultou
do processo histórico de formação e virtude da superveniência de dois
relevantes eventos da época contemporânea, quais sejam, a
industrialização e a democratização do poder político. Isso porque se, de
um lado, a industrialização estimulou as diferenças entre classes sociais,
separando radicalmente trabalho de capital, por outro a democracia permitiu
o exercício de pressões políticas dialéticas (2005, p. 26).
Surgiram, conforme Rodrigo César Rebello Pinho, “em um segundo momento
do capitalismo, com o aprofundamento das relações entre capital e trabalho. As
primeiras Constituições a estabelecer a proteção de direitos sociais foram a
mexicana de 1917 e a alemã de Weimar em 1919” (PINHO, 2005, p. 69), porém,
pondera Sarlet, o fato das inserções anteriores.
Estes direitos fundamentais, que embrionária e isoladamente já haviam sido
contemplados nas Constituições Francesas de 1793 e 1848, na
Constituição Brasileira de 1824 e na Constituição Alemã de 1849 (que não
chegou a entrar em vigor), caracterizam-se, ainda hoje, por outorgarem ao
indivíduo direitos a prestações sociais estatais, como assistência social,
saúde, educação, trabalho, etc” (2010, p. 48).
Destaca Sarlet, a característica de certos direitos considerados de segunda
geração dissociados da prestação positiva por parte do Estado, as denominadas
liberdade sociais, “liberdade de sindicalização, do direito de greve, bem como do
reconhecimento de direitos fundamentais dos trabalhadores, tais como o direito a
férias e ao repouso semanal remunerado, a garantia de um salário mínimo e a
limitação de jornada de trabalho” (2010, p. 48).
O vasto rol de direitos de segunda geração e seu caráter de bem estar social
dificultam sua efetivação plena. Assim, enfatiza Paulo Bonavides “que os direitos de
segunda geração passaram por um ciclo de baixa normatividade, tendo inclusive,
sua eficácia posta sob suspeita” (2003, p. 565). A necessidade de recursos
financeiros públicos, por vezes, inviabiliza a efetivação desses diretos.
1.2.3 Direitos fundamentais de terceira geração
Diferentemente dos direitos fundamentais de primeira e segunda geração, os
direitos fundamentais de terceira geração possuem a coletividade humana como
destinatário em detrimento ao indivíduo. Destinam-se, conforme Ingo Wolfgang
Sarlet, “à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizam-se,
consequentemente, como direitos de titularidade coletiva e difusa” (2010, p. 48).
Ainda considerados novos direitos, surgiram em razão dos processos de
industrialização e urbanização do século XX, em que os conflitos não mais eram
adequadamente resolvidos dentro da antiga tutela jurídica do homem-indivíduo.
Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da
terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos
que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um
indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado (BONAVIDES, 2003, p.
596).
São direitos que a coletividade impõe ao Estado, principalmente no que se
refere a realizar ações concretas para garantir-lhes um mínimo de igualdade e de
bem-estar social. Conhecidos também por Direitos de Fraternidade e Solidariedade,
referência ao lema revolucionário francês do século XVIII, “liberdade, igualdade e
fraternidade”, englobam, segundo Ingo W. Sarlet:
Dentre os direitos fundamentais de terceira dimensão consensualmente
mais citados, cumpre referir os direitos à paz, à autodeterminação dos
povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem
como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e
o direito de comunicação (2010, p. 48).
Segundo José Afonso da Silva, os direitos de terceira geração dividem-se em
dois tipos:
Relativos ao homem trabalhador – assim considerado o produtor de bens e
partícipe de uma relação empregatícia. Estes, por sua vez, podem englobar
direitos individuais e direitos coletivos, de participação nas negociações
coletivas de trabalho, de representação classista, de substituição processual
etc.
Relativos ao homem consumidor – referem-se especialmente ao homem
como sujeito que consome bens e serviços públicos, tais como: direito à
seguridade social; direito à educação; direito à habitação; direito a cultura,
direito ao lazer; direito ao meio ambiente; direitos sociais para as crianças e
os idosos (2005, p. 592).
Por serem atuais, o surgimento de novos direitos de terceira geração pode e
tende a ocorrer, principalmente em virtude das novas formas de comunicação que
universalizaram as relações e potencializaram as necessidades.
1.2.4 Direitos fundamentais de quarta geração
Não reconhecidos pela totalidade da doutrina, “a existência de uma quarta
dimensão, que, no entanto, ainda aguarda sua consagração na esfera do direito
internacional e das ordens constitucionais internas” (SARLET, 2010, p. 50), possui
íntima relação com a globalização e o neoliberalismo.
Dessa forma, visam à dissolução do Estado nacional, “afrouxando e
debilitando os laços de soberania e, ao mesmo passo, doutrinando uma falsa
despolitização da sociedade” (BONAVIDES, 2003, p. 571).
Por se tratar de direitos de caráter internacional, conforme refere Gisela Maria
Bester:
“[...] constituem-se na condição de possibilidade do surgimento das
Declarações, Pactos e Cartas Internacionais para a proteção da
humanidade fora do âmbito dos Estados Nacionais e tem como marco o ano
de 1948, sendo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada
pelas Nações Unidas naquele final da primeira metade do século XX o mais
importante documento dentro desta categoria de direitos (2005, p. 593).
Portanto, possuem caráter supranacional, tendo como destinatário não
somente o cidadão de um país, mas o gênero humano como um todo, incluindo-se o
direito à democracia, à informação e ao pluralismo.
Segundo Bester, os direitos de quarta geração compreendem:
Direito ao desenvolvimento – é uma conquista bastante recente, referindose ao fenômeno contemporâneo denominado subdesenvolvimento, sendo
este justamente um dos maiores entraves ao reconhecimento e ao respeito
pelos direitos humanos, notadamente dos econômico-sociais, eis que gera,
por um lado, uma legião de excluídos e marginalizados e, por outro, um
Estado geralmente autoritário, ineficaz e dependente de países ricos. Direito
ao meio ambiente sadio – necessário porque o crescimento urbano e o
desenvolvimento tecnológico têm causado profundos danos ao habitat
natural dos seres humanos, a ponto de podermos falar inclusive em uma
espécie de vingança da tecnologia. [...] Esse direito é recente, passando a
ser reconhecido a partir da década de 1960. Direito à paz – quanto à paz,
todos a queremos e todos sabemos o que ela significa, mas todos temos
também o conhecimento a respeito da dificuldade de se fazer respeitar este
direito amplamente reconhecido em vários textos jurídicos internacionais [...]
Direito à descolonização – intimamente associado ao direito à
autodeterminação dos povos, pleiteado para evitar que alguns países, de
forma reiterada, interfiram nas políticas internas dos demais, como o fizeram
os Estados Unidos em relação ao Brasil e a muitos outros países na década
de 1990, com seu Consenso de Washington (2005, p. 594).
Além destas quatro gerações de direitos, há ainda um grupo de direitos
recentes, classificados de Novíssimos Direitos. Também conhecidos por direitos
fundamentais de quinta geração, não são reconhecidos pela totalidade dos autores.
Encontram-se em fase de reivindicações, como os direitos relativos à inteligência
artificial e à informática; à bioética, posse de patrimônio genético de pessoas,
clonagem etc.
1.3 Os direitos fundamentais e a Constituição Federal de 1988
O retorno do Brasil ao Estado Democrático de Direito após a ditadura militar,
que perdurou de 1964 a 1985, influenciou diretamente a elaboração da Constituição
Federal de 1988. O movimento legislativo constitucional que desencadeou no vasto
rol de direitos e garantias fundamentais preconizados por esta Carta Constitucional
possui semelhança ao ocorrido no pós Segunda Guerra Mundial com a edição de
inúmeros tratados internacionais para proteção dos direitos humanos. Conforme
destaca Ingo Wolfgang Sarlet:
No que concerne ao processo de elaboração da Constituição de 1988, há
que fazer referência, por sua umbilical vinculação com a formatação do
catálogo dos direitos fundamentais na nova ordem constitucional, à
circunstância de que esta foi resultado de um amplo processo de discussão
oportunizado com a redemocratização do País após mais de vinte anos de
ditadura militar (2010, p. 63).
Neide Maria Carvalho de Abreu destaca a influência exercida pelo pós
Segunda Guerra na elaboração das declarações de direitos e também nas cartas
constitucionais.
Os direitos fundamentais foram inseridos de maneira explícita nas
constituições, há bem pouco tempo, precisamente após a 2ª Guerra
Mundial, quando todos os povos intuíram que a preocupação internacional
deveria estar voltada para uma proteção aos direitos da pessoa humana,
após as violências cometidas pelos regimes fascista, stalinista e nazista,
como também pelo perigo de ameaça à tranquilidade universal decorrente
da instabilidade das relações entre diversos países (2006, p. 09).
Porém, importante enfatizar que a Constituição Federal de 1988, apesar de
inovadora ao tratar dos “direitos fundamentais antes de tratar da organização do
próprio Estado, bem como ao incorporar junto à proteção dos direitos individuais e
sociais a tutela dos direitos difusos e coletivos” (PINHO, 2005, p. 72), não pode ser
considerada pioneira e tampouco exclusiva ao tratar de direitos individuais, conforme
relembra Rodrigo César Rebello Pinho:
Todas as Constituições brasileiras contiveram enunciados de direitos
individuais. A de 1824, em seu art. 179, garantia “a inviolabilidade dos
Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a
liberdade, a segurança individual, e a propriedade”. A Constituição de 1891
destinava uma seção à declaração de direitos, assegurando a “brasileiros e
a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes
á liberdade, á segurança individual e á propriedade” (art. 72). A de 1934,
editada após a Constituição alemã de Weimar, continha, ao lado de um
título denominado “Das Declarações Direitos”, um outro dispondo sobre a
ordem econômica e social, incorporando ao Texto Constitucional diversos
direitos sociais. A tutela a essa nova modalidade de direitos, os sociais,
permaneceu em todas as demais Constituições. A Carta de 1937
consagrava direitos, mas o art. 186 declarava “em todo o país o estado de
emergência”, com a suspensão de diversas dessas garantias. [...] A
Constituição de 1946 destinou o Título IV à declaração de direitos. Esse
enunciado permaneceu nas Constituições de 1967 e 1969 [...] (2005, p. 71).
No entanto, inegáveis as inovações trazidas pela Constituição Federal de
1988, resultado de um período de amadurecimento e de consolidação do direito
constitucional em âmbito nacional e internacional, representando o marco do
processo de redemocratização do Estado. “Traçando-se um paralelo entre a
Constituição de 1988 e o direito constitucional positivo anterior, constata-se, já numa
primeira leitura, a existência de algumas inovações de significativa importância na
seara dos direitos fundamentais” (SARLET, 2010, p. 63).
A inclusão de um vasto rol de direitos e garantias fundamentais
preconizados pela Constituição Federal de 1988 foi o meio adotado pelo legislador
na proteção contra o retorno de períodos de desrespeito democrático.
Três características consensualmente atribuídas à Constituição de 1988
podem ser consideradas como extensivas ao título dos direitos
fundamentais, nomeadamente seu caráter analítico, seu pluralismo e seu
forte cunho programático e dirigente. [...] Este cunho analítico e
regulamentista reflete-se também no Título II (dos Direitos e Garantias
Fundamentais), que contém ao todo sete artigos, seis parágrafos e cento e
nove incisos, sem se fazer menção aqui a diversos direitos fundamentais
dispersos pelo restante do texto constitucional (SARLET, 2010, p. 64).
Merecem destaque as inegáveis conquistas alcançadas a partir da
Constituição Federal de 1988 no que se refere à construção da cidadania e à
preservação da dignidade da pessoa humana. Méritos alcançados a partir das
inovações legislativas que concederam aos direitos fundamentais tratamento
especial.
O texto constitucional de 1988 incluiu um rol de direitos fundamentais os
direitos civis, políticos e sociais, sendo os últimos a grande inovação, já que
as constituições anteriores tratavam dos direitos sociais dentro da ordem
econômica e social e esses não eram, até então, consagrados como direitos
e garantias fundamentais (BRAUN, 2002, p. 101).
Ingo Wolfgang Sarlet destaca características da Constituição Federal 1988
responsáveis pelo êxito na proteção dos direitos fundamentais. Em primeiro lugar,
destaca a amplitude do catálogo dos direitos fundamentais, tendo o artigo 5º 78
incisos, sendo que o art. 7º consagra, em seus 34 incisos, um amplo rol de direitos
sociais dos trabalhadores. Porém, ressalta o autor que a inovação mais significativa
está inserida no art. 5º, § 1º, da CF, de acordo com a qual as normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais possuem aplicabilidade imediata, apesar da
efetivação prejudicada pela própria amplitude do catálogo (2010, p. 66).
No entanto, apesar de todas as características positivas que acompanham os
direitos fundamentais no âmbito da Constituição Federal de 1988, a inclusão no rol
das “cláusulas pétreas” (ou “garantias de eternidade”) do art. 60, § 4º, da Carta,
expressa a grandeza e a importância destes direitos, responsáveis pelo virtuoso
cognome de Constituição Cidadã.
2 A DITADURA MILITAR E OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
O histórico de violações aos direitos e garantias fundamentais durante a
ditadura militar de 1964 confirma a dificuldade de um governo totalitário em manter o
respeito pelas normas constitucionalmente protegidas. A deposição de João Goulart,
presidente legalmente constituído durante a vigência da Constituição Federal de
1946, confirma esta situação.
A própria Constituição Federal de 1967, semioutorgada por um Congresso
Nacional composto por políticos filiados ao Exército, apesar dos retrocessos
democráticos, trazia um singelo rol de direitos e garantias fundamentais. A
controvertida Emenda Constitucional de nº 1, também conhecida por Constituição
Federal de 1969, outorgada por uma Junta Militar fortemente influenciada pelo Ato
Institucional nº 5, apesar de ter ampliado as restrições da Constituição de 1967,
manteve certos direitos e garantias fundamentais e direitos sociais.
Tais contradições evidenciam o fato de que as Constituições que vigoraram
durante a ditadura militar não resultaram de uma verdadeira revolução social, o que
esclarece a não efetividade das normas de caráter voltado ao desenvolvimento e
bem-estar do cidadão.
A história das nossas Cartas Magnas resulta da alternância cíclica no poder
de setores autoritários ou liberais do capitalismo. Em todos os casos, as
forças dominantes geraram Constituições que visavam ou manter o sistema
sócio-político-econômico, ou modificar aspectos dele a fim de mantê-lo
como um todo (CALDEIRA; ARRUDA, 1986, p. 4).
Em períodos de consolidação constitucional de um Estado Democrático de
Direito, a simples inserção de normas de direitos e garantias fundamentais em uma
Constituição não significa sua efetividade. Durante um período de ditadura militar
ocorre o distanciamento ou mesmo a ruptura entre a efetividade e o rol de direitos
formalmente positivados. No Brasil, de 1964 a 1985, o poder constituinte teve o
cuidado de elencar ou manter direitos que somente convenciam a opinião pública
internacional e os órgãos de proteção aos direitos humanos vinculados à
Organização das Nações Unidas (ONU), internamente, a efetividade de tais direitos
jamais fora prioridade dos militares.
2.1 O contexto histórico que precedeu a ditadura militar
A queda do nazismo alemão e o fim da Segunda Guerra Mundial originaram a
bipartição do globo terrestre em Socialistas e Capitalistas. Respectivamente
liderados pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e pelos Estados Unidos
da América, proporcionaram ao mundo uma forma de disputa não declarada entre si,
oficialmente intitulada de “Guerra Fria”. Resultou na hegemonia capitalista como
forma econômica, social e cultural a ser seguida pelos países ocidentais, além da
dissolução em 1991 da União Soviética em diversos países independentes
(COTRIM, 1999, p. 443).
Estavam ao lado dos Estados Unidos na Guerra Fria e concordavam com
as bases filosóficas do seu capitalismo. Supunham ter um parceiro no
aliado, mas não conheciam a extensão do seu interesse pela expansão
industrial brasileira. Capturado pelo conflito ideológico, esse pensamento
associou-se a um projeto americano que lhes oferecia qualquer tipo de
solidariedade, menos a industrialização acelerada (GASPARI, 2003, p. 131).
Influenciado pelo capitalismo norte-americano, o Brasil manteve-se como um
importante parceiro nessa campanha contra o socialismo/comunismo. Porém, com a
inesperada renúncia de Jânio Quadros, subiu ao mais importante cargo político do
país o Sr. João Belchior Marques Goulart. Gaúcho de São Borja, que tinha no seu
currículo o título de “líder da república sindicalista”, o que imediatamente alarmou a
classe empresária e também os americanos (BUENO, 2010, p. 371).
Apesar de Jânio Quadros já ter adotado postura independente com relação à
política externa, com João Goulart o Brasil “reatou relações diplomáticas com a
União Soviética, ainda em 1961, e na reunião da Organização dos Estados
Americanos, em janeiro de 1962, divergiu da posição norte-americana, abstendo-se
na votação que aprovou a expulsão de Cuba da organização” (ABREU, 1988, p.
202).
Conforme refere Eduardo Bueno, tais características o aproximavam das
teorias comunistas, inclusive sendo este um dos motivos apontados pela doutrina
como estratégia de renúncia de Jânio Quadros:
Como se não bastasse as acusações que militares e udenistas havia anos
lhe faziam, no momento em que Jânio Quadros renunciou, o então vicepresidente João Goulart estava na China Comunista. Embora se tratasse de
uma viagem oficial, eram tempos de guerra fria e Jango sempre fora visto
como o “líder da república sindicalista”, um comunista travestido de
democrata. O próprio Jânio parecia compartilhar dessa opinião e tentou o
blefe da renúncia por achar que nem os militares nem o Congresso
entregariam o país “a um louco que iria incendiá-lo” (2010, p. 371).
Porém, ao retornar da China, em 05 de setembro 1961, João Goulart
deparou-se com uma crise política, pois a sociedade civil manteve-se inerte a tal
situação, não esboçando a reação almejada e esperada por Jânio Quadros. A
expectativa com a posse do vice-presidente gerou o imponderável encontro entre
Jango e o general Ernesto Geisel, futuro presidente militar, que, à época, exercia o
cargo de chefe do Gabinete Militar da Presidência da República. Responsável pela
segurança do então presidente no retorno do aeroporto até a Granja do Torto, em
diálogo informal, estimulou o presidente a assumir pelo bem da paz nacional,
encontro minuciosamente narrado por José A. Fogaça de Medeiros:
Quando entraram no carro que os levaria à Granja do Torto, Rainieri Mazzilli
perguntou a João Goulart sobre o horário em que gostaria de ser
empossado no dia seguinte, ao que Jango respondeu com indisfarçada
hesitação: “Não sei de devo assumir. É um momento difícil para mim.
Precisamos conversar”. No mesmo automóvel, viajava um militar graduado,
que imediatamente levou a sua mão crispada ao braço do vice-presidente e
disse com uma voz grave e severa: “Este é um momento difícil para todos
nós e para todo o país. Já enfrentamos inúmeras dificuldades para V. Exa.
assumir, mas esse é o único modo de conduzir o país pacificamente”.
Em dois dias, no dia 7 de setembro de 1961, Jango era empossado perante
o Congresso Nacional. E o homem que o havia convencido tão
energicamente a assumir o governo em nome da paz nacional era o general
Ernesto Geisel, então chefe do Gabinete Militar da Presidência da
República (1978, p. 31).
Apesar do repúdio ao nome de João Goulart, Jango, como também era
chamado, com apoio de seu cunhado e governador do Rio Grande do Sul, Leonel
Brizola, e do general Augusto Lopes, chefe do 3º Exército (com sede no Rio Grande
do Sul), declaram-se dispostos à guerra armada pelo cumprimento da Constituição
vigente, movimento que ficou conhecido de “Campanha da Legalidade”.
Porém, apesar de empossado e seguindo os ditames da Constituição de
1946, de setembro de 1961 a janeiro de 1963 a República viveu o seu mais longo
período de indefinição política desde o início da década de 1890, com
consequências paralisantes do ponto de vista da tomada de decisões no terreno
econômico (ABREU, 1990, p. 200). A disputa política somente teve fim com a
criação de uma comissão no Congresso que propôs a diminuição de poderes do
presidente, numa forma indireta de alteração do sistema de governo, retornando o
Brasil ao parlamentarismo, fato anteriormente ocorrido na fase final do Império
(1847-1889). Esta situação expôs o repúdio ao nome de João Goulart, que, apesar
de Presidente da República, teve seus poderes limitados pela presença de um
primeiro ministro, no caso Tancredo Neves.
A implantação do parlamentarismo em boicote ao nome de Jango ocorreu por
meio de emenda constitucional parlamentarista (Emenda Constitucional nº 4, de 2 de
setembro de 1961), perdurou somente até 23 de janeiro de 1963, quando a Emenda
Constitucional nº 6 estabeleceu um plebiscito que reconduziu o país ao
presidencialismo, devolvendo os amplos poderes a João Goulart (BARROSO, p. 30,
1996).
Em julho de 1962, Tancredo renunciou e houve nova crise quando Jango
quis nomear San Tiago Dantas (favorável ao afastamento dos Estados
Unidos e à aliança com nações socialistas). No final, o gaúcho Brochado da
Rocha, do PSD, assumiu o cargo. Em janeiro de 1963, um plebiscito deu
ampla vitória ao presidencialismo (9 milhões de votos) sobre o
parlamentarismo (2 milhões). Só então João Goulart virou presidente de
verdade (BUENO, 2010, p. 372).
A experiência parlamentarista não foi bem sucedida, conforme relembra Hélio
Silva:
Frente ao dilema de desobedecer à Constituição, não empossando o
substituto legal do Presidente renunciante, ou dar posse sob a ameaça da
guerra civil, que seria outra forma de desrespeito à Constituição, achou-se
uma fórmula de modificar o texto constitucional, implantando o
Parlamentarismo que nunca funcionou, com um plebiscito – que restaurou
as condições do impasse inicial (1978, p. 199).
O retorno ao presidencialismo com a recondução de João Goulart ao cargo de
presidente da República contrariou a oposição. Porém, outro não poderia ser o
desfecho para a situação, acalmando a população e afastando o perigo de uma
possível guerra civil.
Após o plebiscito, Goulart assumiu plenamente o poder presidencial,
reforçando, a partir de então, sua linha de governo nacionalista e a política
externa independentemente. Sua estratégia socioeconômica foi formalizada
através do Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social,
organizado por Celso Furtado, ministro do Planejamento. Esse plano tinha
como objetivos:
a) promover melhor distribuição das riquezas nacionais, atacando os
latifúndios improdutivos para defender interesses sociais;
b) encampar as refinarias particulares de petróleo;
c) reduzir a dívida externa brasileira.
d) diminuir a inflação e manter o crescimento econômico sem sacrificar
exclusivamente os trabalhadores (COTRIM, 1999, p. 433).
1963 seria um ano de agonia. Iniciara-se com o Referendo, que devolvera a
Goulart os poderes do presidencialismo, e daí por diante se desconhecera um
período de calma (FILHO, 1975, p. 12). O resultado do plebiscito acabou
aproximando a oposição vencida nas urnas, composta principalmente por grandes
empresários que seriam atingidos pelas reformas idealizadas pelo presidente
através do Plano Trienal, aos militares, temerosos de uma possível guinada à
esquerda nos rumos do país.
A partir daquele momento passaram a arquitetar um projeto de revolução
política que culminaria na queda de João Goulart. Até então a idéia de uma ditadura
militar não era o objetivo dos opositores, imaginando os revoltosos, tanto civis
quanto militares, que a manutenção da democracia era algo indiscutível, apesar da
clara intenção de desrespeitarem a Constituição de 1946, vigente naquele período.
A situação política passou a chamar a atenção dos Estados Unidos que,
objetivando a manutenção e consolidação do capitalismo, passaram a investir
milhares de dólares na campanha contra o governo. Com esse objetivo foram
criadas diferentes associações políticas de oposição, como o Instituto Brasileiro de
Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de Pesquisas Sociais (IPES), financiados
pelos empresários e pelo governo americano. Porém, o principal órgão articulador
do golpe contra o constitucionalismo em vigor foi a Escola Superior de Guerra (ESG)
(ALVES, 1984, p. 35).
Localizada no Rio de Janeiro, a ESG foi criada pela Lei nº 785/49 como um
Instituto de Altos Estudos de Política, Estratégia e Defesa. Integrante da estrutura do
Ministério da Defesa, tornou-se importante aliado americano em solo brasileiro no
combate ao suposto viés de esquerda que o governo João Goulart externava
através de sua plataforma de governo.
Não obstante tudo isso, a ESG permaneceu a instituição-chave responsável
pela sistematização, reprodução e disseminação do corpus oficial da
Doutrina de Segurança Nacional e seu relacionamento com a polis. Assim,
embora não fosse um centro de iniciativa, era a fonte autorizada da
ideologia militar para os militares enquanto instituição. Torna-se, portanto,
extremamente importante estudar a evolução da doutrina da ESG durante a
abertura, porque todo o sistema de ensino e socialização militar, as
agências estatais, como o SNI, e o sistema legal, dominado pelos militares,
que produziu as Leis de Segurança Nacional usaram os documentos oficiais
da ESG como base doutrinária (STEPAN, 1984, p. 58).
A sistematização, reprodução e disseminação da Doutrina de Segurança
Nacional sofreu forte influência da doutrina americana de combate ao comunismo.
Surgida durante a Guerra Fria, foi inserida nos países neutros e aliados ao
capitalismo por meio do financiamento de áreas estratégicas.
A Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento foi formulada pela
ESG, em colaboração com o IPES e o IBAD, num período de 25 anos.
Trata-se de abrangente corpo teórico constituído de elementos ideológicos
e de diretrizes para infiltração, coleta de informações e planejamento
político-econômico
de
programas
governamentais.
Permite
o
estabelecimento e avaliação dos componentes estruturais do Estado e
fornece elementos para o desenvolvimento de metas e o planejamento
administrativo periódico (ALVES, 1984, p. 35).
Num clima extremamente desfavorável, João Goulart e o seu partido PTB
presidiram o país do dia 07 de setembro de 1961 ao 01 de abril 1964, apenas 02
anos 06 meses e 25 dias à frente do Poder Executivo nacional. Durante esse
período, Jango foi fortemente acusado de comunista, inclusive tendo seu nome
associados aos partidos políticos de esquerda da época.
As críticas sofridas aproximaram a imagem do presidente ao comunismo.
Apesar dessa repercussão negativa, João Goulart jamais se empenhou em mudar
este rótulo, mesmo quando acusado de ser um agente enviado pela URSS como
forma de difusão do comunismo.
O poder continua sólido, e tê-lo-ia sido desde a reação de 1935, quando da
intentona comunista, não fosse o presidente João Goulart um agente de
Moscou instalado, pelo voto popular, no poder, que só não transferiu para
seus mestres soviéticos, por não contar ele com as forças armadas
(SCATIMBURGO, 1971, p. 367).
Com o fracasso do Plano Trienal, o presidente acompanhado por aliados
políticos e por sua esposa Teresa Goulart, subiu ao palanque e anunciou em um
grande comício no Rio de Janeiro em frente à Estação de Ferro Central do Brasil,
em 13 de março de 1964, suas “reformas de base”. Transmitido pela televisão e
acompanhado in loco por cerca de 300 mil pessoas, tal evento ficou marcado na
história política do país como o “início do fim” do governo de Jango (BUENO, 2010,
p. 376).
O governo de Goulart promovera uma série de restrições aos investimentos
multinacionais, configurados, entre outras medidas, numa severa política de
controle das remessas de lucros, de pagamentos de royalties e de
transferências de tecnologia, assim com em legislação antitruste e em
negociações para a nacionalização de grandes corporações estrangeiras.
Adotou também uma política nacionalista de apoio e concessão de
subsídios diretos ao capital privado nacional, sobretudo aos seus setores
não vinculados ao capital estrangeiro (ALVES, 1984, p. 21).
Com o objetivo claro de demonstrar a força política do presidente contra o
suposto golpe que já se sabia em andamento, a estratégia populista, herança do
“padrinho político Getúlio Vargas”, de favorecimento às classes menos abastadas,
conforme evidenciado nas “reformas de base” parecia o suficiente para sua
manutenção no poder. Além da necessidade dos opositores em respeitar a
Constituição em vigor, respaldando o plebiscito que reconduziu o país ao
presidencialismo (GASPARI, 2002).
Ancorado por políticos de respaldo social, como Leonel Brizola (Governador
do Rio Grande do Sul) e Miguel Arraes (Governador de Pernambuco), João Goulart
subestimou a força dos opositores, que, em repúdio aos ditames comunistas e
principalmente às reformas que se apresentavam extremamente prejudiciais aos
seus interesses, realizaram uma pacífica passeata em 19 de março de 1964, com a
participação de cerca de 500 mil pessoas, organizada pela União Cívica Feminina
(UCF) e pela Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), ambas patrocinadas
pelo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), anteriormente referido como
importante instituto de oposição ao governo.
A importância das mulheres neste evento, que restou intitulado de Marcha da
Família com Deus pela Liberdade, deveu-se também à participação das esposas e
das empregadas domésticas dos empresários contrários as idéias de Jango. Aliadas
ao grande contingente de oposição, foram às ruas munidas de faixas com dizeres
contrários ao governo de Jango.
Comparação feita por Eduardo Bueno expôe a importância desses dois
eventos, até então democráticos, no curso do golpe que estava prestes a ocorrer:
Se o Comício das Reformas fora uma poderosa manifestação de força do
movimento sindical, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi um
sinal ainda mais impressionante de que a classe média e as “forças
reacionárias” estavam unidas, temerosas e, acima de tudo, prontas para a
ação (...).
Organizada pela União Cívica Feminina e pela Campanha da Mulher pela
Democracia, com apoio do deputado conservador Cunha Bueno e do
governo de São Paulo, a Marcha da Família reuniu em torno de 500 mil
pessoas, no dia 19 de março. A manifestação saiu da praça da República e,
duas horas depois, chegou à Praça da Sé, onde foi rezada uma missa “pela
salvação da democracia” (2010, p. 377).
Após a grande passeata realizada pelas ruas de São Paulo, os opositores
rezaram na Praça da Sé uma missa organizada pelo padre americano Patrick
Peyton, considerado um dos braços religiosos de apoio aos militares. O sucesso do
evento acabou por convencer a cúpula do Exército de que a sociedade civil
brasileira seria, no mínimo, condescendente com a deposição do presidente eleito
(BUENO, 2010, p. 378).
Sabedor dos trâmites de um golpe em seu desfavor, João Goulart passou a
tomar atitudes que buscavam desmoralizar e enfraquecer o poder político dos
militares. Conforme relata Eduardo Bueno, Jango acabou por soltar e anistiar
marinheiros que, reunidos no Rio de Janeiro, reivindicavam melhores salários e,
principalmente, elegibilidade. Esse fato provocou a revolta dos militares, que viram
nessa atitude a tentativa de quebra de hierarquia de poder por esses militares não
integrarem o corpo de oficiais (SILVA, 1978).
Outro fato marcante na controversa estratégia adotada pelo presidente na
tentativa de manutenção do poder, ocorreu nas dependências do Automóvel Clube
do Brasil no dia 30 de março de 1964, véspera do dia do golpe militar.
Depois de desafiar abertamente o comando militar ao anistiar, em 27 de
março de 1964, os participantes da Revolta dos Marinheiros, Jango decidiu
– apesar dos conselhos contrários – discursar numa assembléia de
sargentos, no Automóvel Clube do Brasil, no dia 30. O movimento lutava
pela elegibilidade dos sargentos. Ao contrário do tenentismo – um dos
pilares da Revolução de 30 -, a reivindicação dos sargentos era vista como
uma quebra da hierarquia militar (já que dava igualdade política a não
oficiais) (BUENO, 2010, p. 377).
Alguma dissonância existe na delimitação da data do efetivo golpe militar.
Apesar de considerado pela doutrina o dia 30 março a véspera do golpe, a imprensa
nacional, grande vítima dos “anos de chumbo”, expressão cunhada pela truculência
dos atos de poder e limitação dos direitos à liberdade de imprensa, batizou o
nascimento do golpe/revolução militar como sendo o dia 01 de abril de 1964,
fazendo clara alusão ao peculiar “dia da mentira”.
Embora a irônica tentativa de diminuir ou ridicularizar a atitude dos militares,
importante destacar que, após o pretensioso discurso realizado nas dependências
do Automóvel Clube do Brasil, no qual o presidente saíra do texto escrito e
moderado que a parte não radical de sua assessoria havia preparado, os militares
passaram a efetivamente a pôr em prática o golpe que culminou com a deposição do
Presidente João Goulart (CHAGAS, 1985, p. 14).
Apesar de conhecidos, jamais houve consenso quanto ao local e ao mentor
das estratégias adotadas pelos revolucionários militares na tomada de poder, porém
os conspiradores civis que articulavam contra o presidente, agiam abertamente.
Evidentemente almejavam cargos políticos de destaque em um futuro governo
militar.
Neste sentido, esclarece Eduardo Bueno:
Apesar de vários segmentos da sociedade civil – dos quais faziam parte
empresários do Rio de Janeiro e São Paulo, uma boa parcela das classes
médias urbanas e a maioria do patronato rural – estarem dispostos a apoiar
um complô para derrubar o governo constitucional de Jango, foi o
governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, quem se escalou para
“assumir a liderança civil do movimento anti-Goulart”. No dia seguinte à
Revolta dos Marinheiros, três representantes do governador mineiro
procuraram o general Humberto Castelo Branco – cientes de que ele era o
“coordenador-geral dos grupos militares da conspiração” – para comunicar a
decisão de Magalhães Pinto (2010, p. 379).
A movimentação iniciada pelos militares após o discurso proferido por Jango
contou com a intensa troca de informações entre as cidades do Rio de Janeiro, São
Paulo, Minas Gerais e Brasília. “Era a conspiração em marcha para se tornar
sedição ou revolução, nas barbas do governo, ainda desconhecida da opinião
pública” (CHAGAS, 1985, p. 13).
Além da comunicação telefônica entre os grandes centros do poder nacional,
passou a haver a movimentação de tropas militares, conforme relata Eduardo
Bueno:
Às 3 horas da manhã de 31 de março, porém, depois de passar noite em
claro, Olímpio Mourão Filho partiu com suas tropas de Juiz de Fora rumo ao
Rio de Janeiro. [...] Supreendido pelo golpe no Rio, Goulart voara para
Brasília na tarde do dia 1º. Seguiu para o Rio Grande do Sul na mesma
noite, deixando o chefe do Gabinete Civil, Darcy Ribeiro, com a
incumbência de comunicar ao Congresso o fato de que o presidente
permanecia em território nacional (2010, p. 382).
Apesar de ainda encontrar-se em solo nacional, o Congresso Nacional, de
forma inédita e inconstitucional, declarou vaga à Presidência da República. Não
havendo vice-presidente para assumir, condição ocupada por Jango quando da sua
chegada ao poder, restou empossado Presidente da República o Deputado Federal
e Presidente da Câmara, Rainieri Mazzili. Intimidado com a situação, João Goulart
refugiou-se em Porto Alegre, desistindo de qualquer “contragolpe”, exilando-se, em
04 de abril de 1964, no Uruguai.
Duvida-se, hoje, de como foi possível que tudo aquilo acontecesse nas
barbas do governo e o governo nada fizesse, primeiro para abortar a
conspiração, depois para tentar esmagar os revoltosos, eles mesmos
duvidando do sucesso final. Terão contribuído a perplexidade e a hesitação
do presidente João Goulart, como a ausência de um ministro de Guerra,
mais o despreparo das forças sindicais, boas de discurso mas ineficazes em
tática. Perdera a classe média e não soubera arregimentar a classe
proletária, a não ser retoricamente. Radicalizara mas se vira radicalizado
em grau muito superior (CHAGAS, 1985, p. 35).
O apoio americano aos militares foi fundamental para o sucesso do golpe.
Desde a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a aproximação entre os
dois países passou a ocorrer, fato evidenciado na parceria firmada durante a Guerra
Fria. Segundo afirma Hélio Silva, “não foi a primeira vez que se ligou um fato político
brasileiro à influência dos Estados Unidos. Quando Vargas se suicidou, a mesma
acusação foi feita” (1978, p. 27).
A deflagração do golpe, apesar de parecer atabalhoada, foi eficiente e
rápida. Tudo havia sido previsto e funcionou de modo a não permitir a
resistência. O apoio dos EUA foi dado de forma prática, com aproximação
de navios da Frota do Atlântico Sul, com desembarque de armas nas costas
de Santa Catarina com submarinos sem identificação e com o fornecimento
de informações do serviço secreto aos golpistas (SILVA, 2009, p. 39).
Às 12h30min daquele longo dia 1º de abril, e a cinco minutos a pé de onde
reside o governador carioca, está o presidente da República, ou melhor, está
deixando de estar. João Goulart abandona o palácio Laranjeiras sem avisar ninguém
(CHAGAS, 1985, p. 46). Naquele momento o Brasil adentrava formalmente em um
período de exceção, iniciado por um golpe militar que destitui o poder
constitucionalmente eleito. Derivou rapidamente a uma ditadura militar com a
cassação e suspensão de importantes direitos e garantias fundamentais do cidadão,
e perdurou por 21 anos até o retorno do país à democracia em 15 de janeiro de
1985, data da eleição indireta de Tancredo Neves à Presidência da República.
2.2 As Constituições Federais que vigoraram durante a ditadura militar
O número de Constituições Federais que vigoraram durante a ditadura militar
não possui definição uníssona da doutrina. A democrática Constituição de 1946
manteve-se em vigor durante os três anos iniciais da ditadura militar, quando em
1967 restou derrogada pela Constituição semi-outorgada pelo governo dos militares.
Porém, a divergência reside no reconhecimento da Emenda nº 1, de 17 de outubro
de 1969, como simples Emenda Constitucional ou como a Constituição Federal de
1969.
Apesar da não compreensão pacífica, convergem os doutrinadores na opinião
de que as normas constitucionais foram hierarquicamente inferiores às normas
editadas
pelos
militares,
intituladas
de
Atos
Institucionais
e
Emendas
Complementares. Essas ferramentas jurídico-políticas foram adotadas pelo governo
para adequar as Cartas Constitucionais em vigor às reais intenções de manutenção
e usurpação do poder.
2.2.1 A Constituição Federal de 1946
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil promulgada em 18
de setembro de 1946 sofreu forte influência das correntes liberalizantes do pós
Segunda Guerra Mundial. O retorno dos combatentes brasileiros (pracinhas) em
julho de 1945, os quais, juntamente com os aliados, combateram e derrubaram os
regimes ditatoriais da Alemanha e da Itália, evidenciou a contradição pelo fato de
terem defendido a democracia, porém, em seu país ainda estavam sob a égide do
regime ditatorial de Getúlio Vargas desde o golpe de Estado de 1937.
José Afonso da Silva relembra o momento constitucional pelo qual Brasil e
outros países passaram com o fim da Segunda Guerra Mundial:
Terminada a II Guerra Mundial, de que o Brasil participou ao lado dos
Aliados contra as ditaduras nazi-fascistas, logo começaram os movimentos
no sentido da redemocratização do país: Manifesto dos Mineiros, entrevista
de José Américo de Almeida etc. Havia, também, no mundo do pós-guerra,
extraordinária recomposição dos princípios constitucionais, com
reformulação de constituições existentes ou promulgação de outras (Itália,
França, Alemanha, Iugoslávia, Polônia, e tantas outras), que influenciaram a
reconstitucionalização do Brasil (2003, p. 85).
Diferentemente das cartas constitucionais de 1824, 1891 e 1934, a
Constituição Federal de 1946 não importou projetos de outros países. Adotou como
texto-base a Constituição de 1934 e subsídios da Constituição de 1891, o que
permitiu progredir rapidamente e submeter à votação final do plenário um projeto
que, aprovado em 18 de setembro desse mesmo ano, veio a ser a nossa quarta
constituição republicana (COELHO, 2009, p. 195).
Apesar da não importação externa de projetos, inegavelmente a Constituição
Federal de 1946 sofreu forte influência da Constituição norte-americana para a
moldagem do federalismo; da Constituição francesa de 1848 na rigidez
presidencialista; e da Constituição de Weimar, que inspirou a inclusão de princípios
afetos à ordem econômica e social (BARROSO, 1996, p. 24).
Considerada avançada e inovadora para a época, principalmente no que se
referia às declarações de direitos e diretrizes econômicas e sociais, continha ampla
e moderna enunciação de direitos e garantias fundamentais. As principais inovações
foram: a introdução no texto constitucional da obrigação do Poder Judiciário de
apreciar qualquer lesão de direito individual (art. 141, §4º); a instituição da
obrigatoriedade do ensino primário (art. 188, I); a repressão ao abuso do poder
econômico (art. 148); condicionou o uso da propriedade ao bem-estar social (art.
147) e consignou o direito dos empregados à participação no lucro das empresas
(art. 157, IV), dentre outras medidas de caráter social (BARROSO, 1996, p. 25).
Promulgada no governo de Eurico Gaspar Dutra, após o período do Estado
Novo, restabeleceu os direitos individuais e extinguiu a censura e a pena de morte.
Instituiu eleições diretas para presidente da República, com mandato de cinco anos.
Restabeleceu o direito de greve e o direito à estabilidade de emprego após 10 anos
de serviço. Retomou a independência dos três poderes (Executivo, Legislativo e
Judiciário) e a autonomia dos estados e municípios. Retomou o direito de voto
obrigatório e universal, sendo excluídos os menores de 18 anos, os analfabetos, os
soldados e os religiosos (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009).
O momento pelo qual passava o país, saindo de uma ditadura e adentrando
em um período de pós guerra, exigia uma Constituição de cunho restaurador, que
aproximasse o legislador e a sociedade, garantindo direitos sociais e individuais,
desprezados anteriormente. Neste sentido, ponderaram Paulo Bonavides e Paes de
Andrade:
A constituição de 1946 teve caráter manifestamente restaurador. Ficou
contudo aquém da de 1934 na introdução de novidades institucionais. Mas
o que ali se colocou como renovação foi basicamente preservado pelos
nossos primeiros constituintes do pós-guerra, sem embargo de todas as
cautelas e reservas conservadoras de que se rodeou a lei maior,
revogadoras da ordem ditatorial estabelecida com o golpe de Estado de
1937 (1991, p. 418).
As virtudes e qualidades da Constituição Federal de 1946 não impediram que
a oposição almejasse o poder pelas vias não formais. Com a renúncia de Jânio
Quadros em 25 de agosto de 1961, os ministros militares vetaram a posse do vicepresidente João Goulart, conforme preconizava a Carta em vigor. A defesa da
legalidade constitucional restou encabeçada por setores trabalhistas e por diversos
governadores estaduais, principalmente o governador do Rio Grande do Sul, Leonel
Brizola, que, com o apoio do III Exército, conduziu a alteração do sistema de
governo por via de uma emenda constitucional parlamentarista (Emenda
Constitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961, intitulada Ato Adicional). Goulart
ascende à presidência destituído, contudo, de parcela considerável de poderes
inerentes ao cargo (BARROSO, 1996, p. 30).
A
adoção
do
sistema
parlamentarista
por
pressão
oposicionista
inegavelmente enfraqueceu a constituição em vigor, expondo, de acordo com Élio
Gaspari, o então presidente a um “humilhante regime parlamentarista, cuja essência
residia em permitir que ocupasse a Presidência desde que não lhe fosse entregue o
poder” (2002, p. 46). Esse regime vigorou por apenas dois anos, quando em janeiro
de 1963, um plebiscito deu ampla vitória ao presidencialismo, retornando o país ao
sistema presidencialista, e João Goulart ao cargo de Presidente da República.
Sua Biografia raquítica fazia dele um dos mais despreparados e primitivos
governantes da história nacional. [...] Tinha 15 mil hectares de terra em São
Borja e um rebanho de 65 mil animais. [...] Introvertido e tolerante, era um
homem sem inimigos. Os ódios que despertou vieram todos da política,
nunca da pessoa. Sua presença no palácio do Planalto era um absurdo
eleitoral a serviço de um imperativo constitucional. Em 1960, 5,6 milhões de
brasileiros haviam votado em Jânio Quadros, um demagogo que fizera a
campanha eleitoral usando a vassoura como símbolo. Jânio prometera
varrer a ordem política de que Jango era produto. Pelo Constituição de
1946, a escolha do presidente e a de seu vice não estavam vinculadas.
Assim elegeram-se ao mesmo tempo Jânio, com sua vassoura, e Jango,
que a juízo dos seguidores do novo presidente, encarnava o lixo a ser
varrido (GASPARI, 2002, p. 47).
No que tange às formas de alteração constitucional, diferentemente da
anterior, a Constituição de 1946 aboliu a rigidez discriminatória de 1934, emenda e
reforma passaram a ser sinônimos. Bastava a aprovação pelo voto maioria absoluta
da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em duas sessões legislativas
ordinárias e consecutivas, para aprovar-se a emenda (BONAVIDES; ANDRADE,
1991, p. 423).
Por ser posterior a uma constituição autoritária, restabeleceu os direitos civis
e políticos restringidos anteriormente, conforme afirmam César Caldeira e Marcos
Arruda:
São restabelecidos os direitos civis e políticos. Introduz-se o princípio da
inafastabilidade do controle judicial: “a lei não poderá excluir da apreciação
do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”. Não é aprovado o
fim da censura ao teatro, nem o “direito ao desfile”, garantia de
manifestação pública nas ruas. Por outro lado, a nova Constituição garante
e amplia algumas importantes conquistas dos trabalhadores e dos cidadãos
em geral, com; o direito à greve (ainda que após exame pela Justiça do
Trabalho); eleições livres (ainda que excluindo analfabetos e soldados,
cabos e marinheiros); salário mínimo capaz de atender às necessidades do
trabalhador e de sua família (este direito do trabalhador, na verdade, nunca
saiu do papel); estabilidade do trabalhador na empresa; liberdade de
associação profissional e sindical; criação da Justiça do Trabalho como
ramo do Poder Judiciário (1986, p. 32).
Apesar da orientação social-democrata, o vasto rol de direitos individuais
jamais foi efetivado na sua plenitude. Porém, a principal evidência de desrespeito
constitucional à Carta de 1946 ocorreu com o golpe desferido pelos militares, que,
em 01 de abril de 1964, depuseram o governo de João Goulart e tomaram o poder.
Apesar de manterem a Constituição em vigor mesmo depondo um presidente
constitucionalmente eleito, a violação de seus preceitos iniciou de imediato, quando
o presidente do Congresso declarou vaga a Presidência da República, mesmo tendo
João Goulart enviado um comunicado de que ainda se encontrava em solo
brasileiro.
O comunicado, lido numa sessão tumultuada, foi ignorado pelo presidente
do Congresso, senador Auro de Moura Andrade. Às 3h45 da madrugada do
dia 2, Andrade declarou vaga a Presidência da República e, numa
cerimônia apressada, empossou o presidente da Câmara, Raineri Mazzili,
como novo presidente do país. Foi após esse “golpe” de interpretação da
lei, dado por Moura Andrade, com aprovação ou silêncio do Congresso, que
Jango – embora ainda contasse com o apoio do general Ladário e o
estímulo de seu cunhado Leonel Brizola – desistiu de tentar articular
qualquer reação ao golpe, só então concretizado (BUENO, 2010, p. 383).
Com a instituição da ditadura militar a partir de 01 de abril de 1964,
sucederam-se episódios de desrespeito à Constituição Federal de 1946. Os direitos
e garantias fundamentais amplamente defendidos pelo legislador passaram a ser
constantemente violados. Diante da dificuldade dos militares em imporem suas
doutrinas e filosofias de governo, baseadas na repressão e na concentração de
poder, acabaram por editar, em 09 de abril de 1964, o primeiro de 17 Atos
Institucionais, além de 104 Atos Complementares, que redefiniram as normas
constitucionais a serem respeitadas pela sociedade, facilitando a aplicação da
Doutrina de Segurança Nacional e com isso a imposição de suas diretrizes.
O golpe militar e a posterior edição dos Atos Institucionais prenunciaram o
arquivamento definitivo da Constituição Federal de 1946, que acabou sendo
sucedida formalmente com a semioutorgação da Carta Constitucional de 1967, que
passou a vigorar a partir de 15 de março desse mesmo ano.
2.2.2 A Constituição Federal de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969
Após tantas alterações em decorrência dos Atos Institucionais e Emendas
Complementares no texto original da Carta Constitucional de 1946, necessária se
mostrou a edição de uma Carta Constitucional coadunada com os preceitos
defendidos pelos militares. A manutenção de normas favoráveis à democracia e aos
direitos individuais perdeu seu objeto, restando ao Governo militar a decretação da
Lei nº 58.198, de 15 de abril de 1966. Para isso, relembra Luis Roberto Barroso,
“constitui-se uma Comissão Especial integrada pelos juristas Levi Carneiro,
Temístocles Cavalcanti e Seabra Fagundes para elaborar um anteprojeto de
Constituição” (1996, p. 34).
Apesar de regularmente elaborado, um novo anteprojeto acabou sendo
redigido pelo Ministro da Justiça, Carlos Medeiros Silva. Votada pelo Congresso
Nacional em 24 de janeiro de 1967, passou a reger constitucionalmente o país a
partir do dia 15 de março de 1967.
A primeira votação do Congresso Nacional de um projeto de lei para a edição
de nova Constituição Federal ocorrida na recém inaugurada capital federal, Brasília,
aconteceu de forma apartada da democracia. Pressionando as Casas Legislativas,
inclusive com as Forças Armadas e sob a égide do Ato Institucional nº 4, coube ao
Congresso Nacional homologar os interesses formalizados pelos militares.
Produto da Revolução de 1964, e com a pretensão de consolidar seus
“ideais e princípios”, tivemos a Constituição de 1967, que foi aprovada pelo
Congresso Nacional, para tanto constrangido a deliberar em sessão
extraordinária de apenas quarenta e dois dias – de 12.12.1966 a 24.1.1967,
com base em proposta literalmente enviada “a toque de caixa” pelo
Presidente da República, que para tanto dispunha do apoio das Forças
Armadas, se necessário até mesmo para o fechamento das Casas
Legislativas, àquela altura em recesso forçado e já desfalcadas dos
principais líderes oposicionistas, cujos mandatos e direitos políticos tinham
sido cassados pelos chefes da insurreição militar vitoriosa (COELHO, 2009,
p. 197).
A Constituição de 1967 foi severamente criticada por constitucionalistas.
Conforme Paulo Bonavides e Paes de Andrade, em 1966/1967 não houve
propriamente uma tarefa constituinte, mas uma farsa constituinte. Os parlamentares,
além de não estarem investidos de faculdades constitucionais, encontravam-se
também cerceados pelos atos institucionais (1991).
Em evidente crítica aos militares, César Caldeira e Marcos Arruda afirmam
que os constituintes de 1967 elaboraram uma Constituição em benefício exclusivo
de seus próprios interesses:
Os autores da Constituição de 1967 são os golpistas, que usurparam o
poder do Estado. Eles são militares e civis de diferentes colorações
conservadoras e antipopulares. No cenário do poder econômico, a força
dominante é o grande capital nacional e transnacional. A influência dos
Estados Unidos, através do Embaixador Lincoln Gordon, de agentes da CIA
e de empresas norte-americanas na preparação e realização do golpe
militar dá destaque aos interesses desse país no novo regime. Os setores
populares estão praticamente marginalizados e excluídos da nova
Constituição. Ela é elaborada contra os seus interesses (1986, p. 35).
Em destaque a surpreendente manutenção formal do capítulo referente aos
Direitos e Garantias Individuais, conforme expresso no seu art. 150: “A Constituição
assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos
direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:” inclusive garantindo o direito ao habeas corpus: § 20 - Dar-se-á habeas
corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou
coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas
transgressões disciplinares não caberá habeas corpus. Porém, tais direitos ficaram
condicionadas à edição de leis ordinárias que estabeleceriam as formas de
regulamentação, o que restou severamente prejudicada com a frequente edição dos
Atos Institucionais e dos Atos Complementares (BONAVIDES; ANDRADE, 1991, p.
443).
Apesar da utilização de normas constitucionais trazidas pela Constituição
Federal de 1946, a influência principal na Constituição de 1967 ocorreu por parte da
Carta de 1937, ambas de cunho autoritário e editadas no âmbito de ditaduras,
conforme destaca José Afonso da Silva:
Sofreu ela poderosa influência da Carta Política de 1937, cujas
características básicas assimilou. Preocupou-se fundamentalmente com a
segurança nacional. Deu mais poderes à União e ao Presidente da
República. [...] Reduziu a autonomia individual, permitindo suspensão de
direitos e de garantias constitucionais, no que se revela mais autoritária do
que as anteriores, salvo a de 1937. Em geral, é menos intervencionista do
que a de 1946, mas, em relação a esta, avançou no que tange à limitação
do direito de propriedade, autorizando a desapropriação mediante
pagamento de indenização por títulos da dívida pública, para fins de reforma
agrária. Definiu mais eficazmente os direitos dos trabalhadores (2003, p.
89).
Os retrocessos em termos de direitos e garantias individuais nesta Carta
redigida pelo jurista Afonso Arinos se evidenciam com a supressão da liberdade de
publicação de livros e periódicos considerados como propaganda de subversão,
restrição ao direito de reunião e o estabelecimento do foro militar aos civis. Com a
edição do Ato Institucional nº 5 a supressão de direito se amplia, aumentando o
poder intervencionista, centralizador e concentrador de poder da Constituição
Federal de 1967 (CALDEIRA; ARRUDA, 1986).
Sexta Carta Constitucional do Brasil e quinta do período Republicano,
institucionalizou e regulamentou a ditadura militar no país. Vigorou até 17 de outubro
de 1969, quando uma Junta composta de Ministros Militares outorgou a Emenda
Constitucional nº 1. Antecedida pelo Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro do
mesmo ano, deu nova redação ao Colégio Eleitoral para a eleição indireta de
presidente e vice-presidente da República prevista na Constituição de 1967
(BONAVIDES; ANDRADE, 1991, p. 443).
Apesar de não pacificado pelos historiadores, a Emenda nº 1, ao substituir a
Constituição de 1967, tornou-se de fato a nova Carta Constitucional do país,
adaptando os vários atos institucionais e complementares.
Assim é que Pontes de Miranda, examinando o texto de 1967 e a Emenda
de 1969, manteve o título de seu importante estudo jurídico “Comentários à
Constituição de 1967, com a Emenda nº 1 de 1969”. Isto é, a Constituição
permaneceu como a de 1967 (BONAVIDES; ANDRADE, 1991, p. 444).
A opinião dos constitucionalistas consolidou-se no sentido de negar a
existência de uma Constituição de 1969, e sim modificações no texto original da
Carta Constitucional de 1967, as quais ocorreram através da Emenda nº 1. A própria
vigência da Emenda nº 1 restou questionada juridicamente pelo Supremo Tribunal
Federal que, ao reconhecer a limitação do poder de revisão ou emenda da recém
outorgada Emenda, decidiu por unanimidade que a vigência era a da Carta de 1967,
e não da Emenda nº 1 de 1969 (BONAVIDES; ANDRADE, 1991, p. 444).
Ainda assim, autores a classificaram como uma verdadeira Constituição
Federal outorgada na forma de uma profunda emenda constitucional. Possuía
semelhanças com a Constituição de 1967 nas restrições aos direitos e garantias
fundamentais e direitos sociais, tendo inovado negativamente ao admitir a pena de
morte, prisão perpétua, banimento ou confisco, para os casos de “guerra
revolucionária, subversiva ou psicológica adversa” (CALDEIRA; ARRUDA, 1986, p.
42).
Esta configuração político-jurídica perdurou até a promulgação da atual
Constituição Federal do Brasil em 05 de outubro de 1988, fato que recolocou o país
no rol dos Estados Democráticos de Direitos, consolidando o fim da ditadura militar
iniciado com o golpe de 01 de abril de 1964.
2.3 Os Atos Intitucionais e a autoconcessão de poder
Entre os anos de 1964 e 1969 os militares serviram-se de Atos Institucionais e
de Atos Complementares, instrumentos político-jurídicos utilizados para legitimar
suas ações e interesses. Equivaliam a decretos e garantiam direitos políticos
invalidados pela Constituição de 1946, que até então vigorava no país.
Ao todo foram editados 17 Atos Institucionais e 104 Atos Complementares.
Todos tinham por objetivo aplicar as idéias que embasavam a Doutrina de
Segurança Nacional, com a “restauração da legalidade”; reforçar as “instituições
democráticas ameaçadas”; e restabelecer a “composição federativa da nação”,
rompendo o poder excessivamente centralizado do governo federal e devolvendo
poderes aos Estados. Prometiam, sobretudo, “eliminar o perigo da subversão e do
comunismo” e punir os que, no governo, haviam enriquecido pela corrupção
(ALVES, 1984, p. 52).
Durante a ditadura militar e principalmente sob a égide dos Atos Institucionais,
o Brasil foi governado sem o respeito aos pilares de sustentação do Estado
Democrático de Direito, principalmente o Princípio da Separação dos Poderes. Os
poderes legislativo e judiciário sofreram sérias restrições às suas autonomias,
principalmente com a decretação do Ato Institucional nº 5 e o Ato Complementar nº
38, de 13 de dezembro de 1968:
Quando o AI-5, verdadeiro golpe de Estado dentro do Golpe Militar,
eliminou o habeas corpus do ordenamento jurídico ditatorial então
vigente, a reação inicial de muitos advogados foi um misto de
incredulidade e perplexidade. Oswaldo Mendonça, um dos grandes
advogados atuantes no período, disse a Modesto que não iria mais
advogar para presos políticos, pois não havia mais o que fazer. Em
resposta, Modesto disse que os advogados inventariam um habeas
corpus: segundo ele, eram o único respiradouro do preso e iriam
denunciar as arbitrariedades cometidas e colaborar para a aceleração do
fim da ditadura (MOREIRA, 2010, p. 53).
Em
contrapartida,
o
poder
executivo
concentrou
poderes sob
sua
responsabilidade, passando os militares a impor seus projetos segundo as linhas
traçadas na Grande Estratégia da Doutrina de Segurança Nacional. Para além da
mobilização geral das forças repressivas do novo Estado, tal política tinha em mira
áreas específicas e estrategicamente sensíveis de possível oposição: política,
econômica, psicossocial e militar (ALVES, 1984, p. 56). Esse conjunto de medidas
que os militares impuseram à sociedade foi batizado de “Operação Limpeza”,
fazendo clara alusão aos supostos comunistas que anteriormente estavam no poder.
2.3.1 O Ato Institucional nº 1 e as condições para impor o novo regime
O golpe militar e a consequente deposição de João Goulart da Presidência da
República geraram um período de vacância deste cargo. Este fato pode ser
considerado como o primeiro ato de violação à Constituição Federal de 1946 no pós
golpe militar. Jango, apesar de acuado e prestes a exilar-se no Uruguai, ainda
permanecia em território nacional quando o presidente do Congresso Nacional,
Senador Auro de Moura Andrade, declarou vago o principal cargo político do país. A
figura não existia, propriamente, no Direito Constitucional, especialmente com o
titular voando sobre o território nacional, mas foi a fórmula adotada para dar fim à
crise, em seu aspecto político (CHAGAS, 1985, p. 51).
Supreendido pelo golpe no Rio, Goulart voara para Brasília na tarde do dia
1º. Seguiu para o Rio Grande do Sul na mesma noite, deixando o chefe do
Gabinete Civil, Darcy Ribeiro, com a incumbência de comunicar ao
Congresso o fato de que o presidente permanecia em território nacional.
O comunicado, lido numa sessão tumultuada, foi ignorado pelo presidente
do Congresso, senador Auro de Moura Andrade. Às 3h45min da madrugada
do dia 2, Andrade declarou vaga a Presidência da República e, numa
cerimônia apressada, empossou o presidente da Câmara, Rainieri Mazzilli,
como novo presidente do país (BUENO, 2010, p. 383).
A presença de Rainieri Mazzilli na Presidência da República não possui
maiores registros, servindo o então Deputado Federal como “testa de ferro” dos
militares. O poder, na prática, estava nas mãos do Alto Comando da Revolução.
Composta pelo General Arthur da Costa e Silva, o Almirante Augusto Rademaker e
o Brigadeiro Correia de Mello. Esta Junta Militar, em pronunciamentos públicos,
convenceu parcelas importantes da sociedade do interesse democrático dos
militares.
Aparentemente, Mazzilli herdara o Poder. De fato, porém, um Comando
Revolucionário, composto do general Costa e Silva, do Almirante
Rademaker, composto e do Brigadeiro Correia de Melo, do qual o primeiro
era o chefe virtual, dominava o país. Restava cumprir-se a Constituição, que
determinava a eleição, pelo Congresso, do Presidente e do Vice-Presidente,
dentro de trinta dias (FILHO, 1975, p. 46).
Porém, a parceria entre civis e militares não estava claramente formulada
pela Doutrina de Segurança Nacional. A cartilha fielmente seguida pelos militares na
conquista e manutenção do poder apresentava contradições. As supostas intenções
democráticas eram repelidas pela crescente necessidade de repressão social
(ALVES, 1984, p. 52).
Redigido em segredo e assinado na tarde de 9 de abril de 1964 pela Junta
Militar composta pelo general do exército Artur da Costa e Silva, tenente-brigadeiro
Francisco de Assis Correia de Melo e o vice-almirante Augusto Hamann Rademaker
Grünewald, apenas oito dias depois do golpe, o Ato Institucional nº 1 demonstrou à
sociedade a necessidade de institucionalizar-se um novo aparato político que
apoiasse a “revolução” (ALVES, 1984, p. 54).
Já no preâmbulo os legisladores militares didaticamente expuseram suas
intenções:
À NAÇAO
[...] O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se
tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a
assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra
de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil [...]. A
revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar [...].
Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que
deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela
revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do
novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe
assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do País.
Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo
revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a
modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da
República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil
a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a
drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na
cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para
reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução
vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as
reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato
Institucional.
Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do
Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do
exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua
legitimação (AI-1, 1964).
O primeiro ato institucionalizado pelos militares impactou os opositores que
ainda criticavam o recente golpe militar. Desconhecida do grande público, a Doutrina
de Segurança Nacional estava sendo fielmente seguida pelos revolucionários, que
mantinham até aquele momento uma alegada intenção democrática.
A imprensa nacional reagiu de forma imediata contra os poderes
autoconcedidos pelo Poder Executivo. Já a população em geral, distante e
descrente da classe política, não se sentiu atingida pelos ditames proferidos pelos
então detentores do poder. Não houve revolta social contra os militares, que
decidiram manter a Constituição de 1946 e o Congresso Nacional. No entanto,
limitaram drasticamente a garantia de direitos ao cidadão.
Afirmam certos políticos que somente uma parcela mínima da população
brasileira, composta de intelectuais, tem aspirações liberalizantes. A
afirmação, antes de desinteligente, é desonesta. De fato, em oposição a
essa parcela mínima que tem aspirações liberalizantes, existe um segmento
insignificante de políticos com aspirações não-liberalizantes. São os
políticos profissionais, um pouco prostibulares, da periferia do poder,
indivíduos em número extremamente mais restrito do que a inteligência e os
intelectuais brasileiros. E nesse caso, eles, minoria de uma minoria, criticam
essa outra minoria (LIMA, 1978, p. 15).
O desrespeito ao Estado Democrático de Direito ocasionou o rompimento
definitivo da parceria entres os golpistas militares e parcelas importantes da
sociedade civil. O Ato Institucional nº1 foi redigido por Carlos Medeiros, que à época
declarou que “sem ele o movimento civil e militar de março se confundiria com um
golpe de Estado ou uma revolta destinada apenas a substituir ou afastar pessoas
dos postos de comando e influência no governo” (ALVES, 1984, p. 56).
Na prática, os onze artigos do Ato Institucional nº 1, que também era
conhecido apenas por Ato Institucional, por não se imaginar houvesse continuidade,
serviu como preparação à “Operação Limpeza”, projeto inserido pela Doutrina de
Segurança Nacional. Seu objetivo principal foi a limitação dos poderes do Congresso
Nacional, transferindo-os ao Executivo. Houve a inserção da figura legislativa do
decurso de prazo para aprovação de projetos considerados “urgentes”. A
competência para legislar em matéria financeira ou orçamentária e o poder de
suspender e cassar mandatos passaram a ser exclusivos da Junta Militar (ALVES,
1984, p. 55).
Graças ao retardamento da listas de cassações da Marinha e da
Aeronáutica, o Ato institucional, previsto para o dia 9 ao meio-dia, somente
no fim da tarde foi editado e divulgado. Acompanhava-o a relação dos
cassados, naturalmente encabeçada por João Goulart. Nela se incluia
quarenta parlamentares. E, após um período de tensão e incerteza, o Ato
representaou alívio, ao qual ninguém pensou em opor embargos. A Câmara
dos Deputados, cientificada pelo Conselho de Segurança Nacional,
convocou imediatamente os suplentes dos que perdiam mandatos. Nem do
Supremo Tribunal Federal partiu qualquer restrição (FILHO, 1975, p. 57).
O Poder Judiciário e os cidadãos também foram atingidos pelas normas do
Ato Institucional, já que o artigo 7º destinava-se à suspensão de direitos individuais,
com a suspensão por seis meses das garantias constitucionais e legais de
vitalicidade e estabilidade. As demissões, dispensas e aposentadorias atemorizavam
tanto civis quanto militares contrários às novas políticas ou ainda ligados ao governo
anterior.
Na busca por condições de impor os projetos de governo, os militares
passaram a remover os obstáculos que a Constituição de 1946 impunha ao novo
regime. Foi o caso da eleição indireta do General Humberto de Alencar Castelo
Branco à presidência da República em 11 de abril de 1964, desrespeitando a
exigência de três meses de desincompatibilização antes do pleito, já que este
exercia a função de chefe do Estado-Maior.
Destaca-se a crítica feita por Carlos Chagas:
Foi o primeiro casuísmo de uma longa fileira estendida por vinte anos, a
demonstrar que quando os detentores do poder se encontram em vias de
perder o jogo, mudam com desfaçatez e obscuridade as suas regras,
mesmo aquelas por eles criadas (1985, p. 76).
As eleições contaram com três candidatos, restando eleito, de forma quase
que unânime, o General Castelo Branco, que deveria governar o país até 30 de
janeiro de 1966, completando o mandato iniciado por Jânio Quadros e sucedido por
João Goulart.
Sob a presidência de Auro de Moura Andrade, cada deputado e cada
senador presente, ao ser nomeado, levantou-se e disse o seu voto em voz
alta. Havia um único candidato, Castelo Branco, que terminou eleito com
361 votos e o ex-presidente Eurico Dutra, 2 (CHAGAS, 1985, p. 76).
Apesar da vitória nas eleições, a intenção de Castelo Branco jamais foi a de
assumir o cargo de Presidente da República, conforme afirma Eduardo Bueno:
Se já hesitara em assumir a chefia da conspiração contra Goulart, o general
Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967) vacilara ainda mais antes
de aceitar a Presidência do país sob o novo regime, mesmo porque não era
o único candidato. Dutra, Kruel, Mourão Filho e Magalhães Pinto também
estavam cotados, embora o general Costa e Silva – falando em nome da
linha dura – fosse favorável a manutenção do poder nas mãos do Comando
Supremo da Revolução, que ele próprio chefiava (2010, p. 386).
Ao assumir o cargo de Presidente da República, Castelo Branco discursou
afirmando suas intenções democráticas, retornando gradativamente o país à
democracia. Dessa forma, garantiu a realização das eleições em 03 de outubro de
1964 para governador e vice de onze Estados da nação, conforme preconizava a
Constituição Federal de 1946 e também o artigo 9º do primeiro Ato Institucional.
Assim esclarece Carlos Chagas: “Não em todos, porque, pela Carta de 46, os
Estados eram soberanos para fixar os mandatos de seus governadores. Nuns, 4
anos. Em outros, 5” (1985, p. 85).
Para tranquilizar a opinião pública quanto a suas intenções democráticas o
governo Castelo Branco prometeu cumprir o calendário. Além disso, à
medida que se aproximava o fim do período de poderes extraórdinários
estebelecido pelo Ato Institucional nº 1, o governo encetou uma política de
“retorno à normalidade”, acenando com o fim da “Operação Limpeza” e dos
IPMs com
uma gradual abertura política. Seriam restabelecidos a
democracia representativa e o equilíbrio entre os três poderes do governo
(ALVES, p. 80, 1984).
Porém, as eleições que se aproximavam trouxeram a força da oposição
consigo. Revoltados com as limitações impostas às liberdades individuais pelo Ato
Institucional nº 1, a população passou a reorganizar-se politicamente, ameaçando,
por meio das pesquisas de opinião, a soberania dos militares nas eleições aos
governos estaduais. Diante da possibilidade de derrota no pleito de outubro,
militares “linha dura” passaram a pressionar o governo pela não realização desse
pleito.
Apesar da vitória dos militares na maioria dos Estados onde ocorreram as
eleições, as derrotas nos Estados da Guanabara, Minas Gerais, Santa Catarina e
Mato Grosso expuseram os militares a uma situação de desconforto e
enfraquecimento do poder, pois se tratava dos Estados mais importantes e
industrializados dentre os submetidos às eleições. Esta situação passou a favorecer
a ocorrência de um novo ato institucional, mantendo os poderes garantidos até
então. Intenção amplamente defendida por militares de “linha dura”, e que
mantinham estreitas relações com o poder.
No entanto, a reedição de um ato institucional não era o objetivo do
Presidente da República, que sempre defendera o retorno à democracia como
princípio a ser seguido. Porém, diante das pressões e da tentativa frustrada de
enfraquecimento dos poderes aos governadores recentemente eleitos, Castelo
Branco, mesmo contrário às suas convicções, decretou o Ato Institucional nº 2.
2.3.2 O Ato Institucional nº 2 e o fim da Constituição Federal de 1946
Em 27 de outubro de 1965, apenas 24 dias após as eleições para
governadores que ameaçaram o poder militar, o Ato Institucional nº 2 restou editado
pelo Presidente. Severo crítico à reedição deste instrumento jurídico-político de
autoconcessão de poderes, Castelo Branco, devido às pressões sofridas pelos altos
escalões do Exército, editou o segundo Ato Institucional, formalizando a ditadura
militar no Brasil.
A idéia de ser forçado a editar novo Ato Institucional o angustiava. [...] O
Presidente, que nisso tinha o apoio de Pedro Aleixo, resistiria até o último
momento. Custava-lhe assinar o Ato, que representava violência à sua
formação e sentimentos. Era o irremediável (FILHO, p. 353, 1975).
Composto por 33 artigos, iniciava-se de forma semelhante ao anterior, ou
seja, através de um manifesto “À Nação.” Em seu preâmbulo os militares
justificavam a necessidade de novo Ato Institucional, repassando ao povo brasileiro
a condição de inspirador de suas normas.
ATO INSTITUCIONAL Nº 2
À NAÇÃO
A Revolução é um movimento que veio da inspiração do povo brasileiro
para atender às suas aspirações mais legítimas: erradicar uma situação e
uni Governo que afundavam o País na corrupção e na subversão.
No preâmbulo do Ato que iniciou a institucionalização, do movimento de 31
de março de 1964 foi dito que o que houve e continuará a haver, não só no
espírito e no comportamento das classes armadas, mas também na opinião
pública nacional, é uma autêntica revolução. [...] Democracia supõe
liberdade, mas não exclui responsabilidade nem importa em licença para
contrariar a própria vocação política da Nação. Não se pode desconstituir a
revolução, implantada para restabelecer a paz, promover o bem-estar do
povo e preservar a honra nacional.
Assim, o Presidente da República, na condição de Chefe do Governo
revolucionário e comandante supremo das forças armadas, coesas na
manutenção dos ideais revolucionários (AI-2, 1965).
Os pontos principais do segundo Ato Institucional eram a eleição do
Presidente pela maioria absoluta do Congresso; a decretação do estado de sítio,
pelo Presidente para “prevenir ou reprimir a subversão da ordem interna”; a
suspensão das garantias de vitalicidade, inamovibilidade e estabilidade; extinção
dos partidos políticos; a possibilidade de o Presidente decretar o recesso do
Congresso, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores; a
suspensão dos direitos políticos pelo prazo de dez anos e a cassação de mandatos
legislativos, acarretando importantes restrições. O Ato vigeria até 15 de março de
1967 (ALVES, 1984).
A reedição desta ferramenta normativa de controle coercitivo da sociedade
sepultou os preceitos democráticos da Constituição Federal de 1946.
Logo após a vitória do golpe de 1964, seus líderes se apressaram em definilo como um “movimento legalista”. O general Mourão Filho declarou que
Jango fora afastado do poder, “de que abusava”, para que, “de acordo com
a lei, se opere sua sucessão”. Já o general Kruel garantiu que o Exército iria
“se manter fiel à Constituição e aos poderes constituídos”. Porém, quando
Castelo baixou o AI-2, reduzindo a farrapos a Constituição de 1946, o
movimento de 1964 se tornou uma ditadura militar de fato (BUENO, 2010, p.
388).
Segundo entendimento de Maria Helena Moreira Alves, as medidas adotadas
no Ato Institucional nº 2 podiam dividir-se em três categorias: aquelas destinadas a
controlar o Congresso Nacional, com o consequente fortalecimento do poder
Executivo; as que visavam especialmente o Judiciário; e as que deveriam controlar a
representação política (1984, p. 91).
Na prática, o Ato Institucional nº 2 ficou marcado na história do país
principalmente pelas restrições políticas que impôs. Segundo preconizava o seu
artigo 9º, o Presidente e Vice-Presidente da República não mais seriam escolhidos
pelo voto popular direto, mas eleitos indiretamente por um Colégio Eleitoral
composto de maioria absoluta de membros do Congresso Nacional. Além disso, o
voto não seria secreto, ampliando a margem de controle militar sobre os delegados
que escolheriam o presidente.
No entanto, o artigo 18 do Ato Institucional nº 2 mereceu importante destaque
tal a mudança desencadeada a partir da sua publicação. Sua redação permitiu a
extinção de todos os partidos políticos então existentes. O surgimento de novos
partidos passou a ser rigorosamente controlado pela Lei nº 4.740 (Estatuto dos
Partidos, de 15 de junho de 1965), lei elaborada pelo próprios militares, e, por isso,
em prol de seus interesses.
Naquele
momento,
a
democracia
representativa
deixava
de
existir,
aumentando consideravelmente a oposição civil contra o regime militar. A intenção
do governo, porém, não era a de um sistema unipartidário, ou seja, com a extinção
das legendas como em outras ditaduras, e sim pluripartidário, com uma oposição
controlada, à qual caberia oferecer críticas construtivas. Tal estratégia garantiu certa
legalidade ao regime militar brasileiro, gerando em 1966 a associação de vários
partidos de oposição na formação do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
Composto por políticos de posições divergentes, acabaram unidos na campanha
pela redemocratização. Já o partido de apoio ao governo militar foi denominado
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), composto basicamente por militares e civis
filiados ao regime (ALVES, 1984).
A peculiaridade de os atos institucionais terem data para o fim de suas
vigências traquilizava a população. Porém, ao final do Ato Institucional nº 2 em 15 de
março de março de 1967, data final do mandato de Castelo Branco, o governo
editou o terceiro, que alguma notoriedade recebeu por corrigir o anterior. A partir do
Ato Institucional nº 3, também governadores e vice-governadores passaram a ser
eleitos pelo voto indireto, afastando totalmente a população do direito constitucional
ao voto garantido pela Constituição Federal de 1946.
2.3.3 O Ato Institucional nº 5 e a consolidação de uma ditadura
Promulgado em 13 de dezembro de 1968, um dia após a sua votação no
Congresso Nacional, o Ato Institucional nº 5 possuia semelhanças com os dois
primeiros Atos. Assim como os anteriores, concedia poderes ao Executivo que
garantiam o controle do país através do poder de polícia. As diferenças principais
recaíam na inexistência de prazo para sua vigência e na suspensão da garantia de
habeas corpus em todos os casos de crimes contra a Segurança Nacional,
caracterizando-o como instrumento permanente de controle e suspensão de
garantias constitucionais.
Em 13 de dezembro de 1968 foi decretado o Ato Institucional nº 5, cujo
preâmbulo explicitava de modo inequívoco a radicalização da ditadura:
invocando o “poder revolucionário” exercido pelo presidente da República e
argumentando que “os instrumentos jurídicos, que a revolução vitoriosa
outorgou à nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu
povo” estavam sendo colocados a favor de “atos nitidamente subversivos,
oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais”, o AI-5 legitimou
algumas das mais duras ações do regime militar (PIERANTI et al., 2010, p.
142).
O Brasil estava sob a presidência do Marechal Artur da Costa e Silva, que
havia sido escolhido por um colégio eleitoral a 3 de outubro de 1966, tendo
assumido em 15 de março de 1967. Segundo refere Maria Helena Moreira Alves,
contraditoriamente o Presidente da República “comprometia-se com a política de
liberalização que lentamente dissipasse as tensões, chamando a oposição para
dialogar com o governo” (1984, p. 112). A aproximação entre as partes efetivamente
ocorreu, no entanto, de forma simultânea a repressão policial contra manifestantes,
prinicipalmente estudantes, atingia o seu ápice, anulando a legitimidade que se
esperava obter com a promessa de liberalização.
A UNE continuou a contar com o amplo apoio dos estudantes, mobilizandoos em número cada vez maior para as várias atividades que patrocinava. A
primeira tática adotada foi a de promover pequenos e rápidos comícios
conhecidos como “comícios-relâmpago” para mostrar à população que o
movimento subsistia e evitar confronto direto com as forças de segurança
(ALVES, 1984, p. 116).
A própria edição do Ato Institucional nº 5 foi precedida da morte de um
manifestante de oposição ao regime, Edson Luís Souto, morto pela Polícia Militar no
restaurante estudantil Calabouço, no Rio de Janeiro. As manifestações de repúdio à
morte do estudante desencadearam uma passeata que reuniu mais de cem mil
pessoas pelas ruas do Rio de Janeiro.
Mas o AI-5 era necessário para o governo superar as manifestações em
algumas capitais onde estudantes e a polícia se confrontavam, no que se
convencionou chamar na época de “guerrilha urbana”? [...] Ou seja: naquele
momento, as próprias Forças Armadas foram usadas como escudo pelos
que pretendiam não a continuidade do processo de normalização
institucional do país, mas sim o endurecimento do regime (CONTREIRAS,
2010, p. 58).
Porém, a justificativa histórica adotada pelos militares para a edição desse
severo ato de controle da população foi o discurso no Congresso Nacional do
deputado Márcio Moreira Alves, do MDB. Segundo Eduardo Bueno, os militares
utilizaram o Ato Institucional nº 5 como pretexto para “pisotear” a Constituição
Federal 1967, decretando o fechamento do Congresso, autorizando o Executivo a
legislar “em todas as matérias previstas nas Constituições”, suspendendo as
“garantias constitucionais ou legais de vitalicidade, inamovibilidade e estabilidade” e
permitindo ao presidente “demitir, remover, aposentar, transferir” juízes, empregados
de autarquias e militares (BUENO, 2010, p. 391).
No início de setembro, depois de a PM ter invadido a Universidade de
Brasília, o deputado carioca Márcio Moreira Alves, do MDB, em discurso no
Congresso, sugeriu que a população boicotasse o desfile do 7 de Setembro
e as mulheres se recusassem a namorar oficiais que não denunciassem a
violência. O discurso foi considerado uma ofensa às Forças Armadas e os
ministros militares decidiram processar o deputado (BUENO, 2010, p. 391).
A campanha pelo boicote e repúdio aos militares despertou o interesse em
processar o deputado Márcio Moreira Alves. Para tanto, requereram ao Sumpremo
Tribunal Federal o julgamento do parlamentar, por ter gravemente ofendido a honra
e a dignidade das Forças Armadas. No entanto, em se tratando de Deputado
Federal, havia a necessidade de o Congresso Nacional suspender a imunidade
garantida
constitucionalmente,
pedido
que foi corajosamente
negado
pelo
Congresso. A derrota no episódio serviu de pretexto para, no dia seguinte, os
militares decretarem o Ato Institucional nº 5 e fechar o Congresso Nacional.
Como ainda estava em vigência a Constituição de 1967, não era possível
punir sumariamente um deputado por discurso feito na tribuna da Câmara.
Era necessário seguir os trâmites legais. O requerimento foi encaminhado à
Comissão de Justiça da Câmara, que poderia rejeitá-lo por dois terços dos
votos. [...] Desnecessário frisar que os membros do Congresso tinham todo
interesse em preservar a imunidade parlamentar. A lembrança dos
expurgos ainda estava dolorosamente viva na memória de cada um. A
decisão de suspender a imunidade de um deputado para que fosse
processado por traição redundaria em ameaça direta a todos os
parlamentares. Foi o que o próprio Márcio Moreira Alves deixou claro nos
discursos que pronunciou em sua defesa (ALVES, 1984, p. 130).
Apesar da relevância do fato envolvendo o deputado carioca, este episódio
acabou por ofuscar os reais motivos que levaram os militares a decretarem o mais
severo dos atos institucionais. O Brasil do período anterior ao AI-5 mostrava sinais
de que o retorno à democracia era o caminho almejado pela oposição que se
organizava. Esta situação evidentemente provocou o interesse dos militares mais
radicais em se manterem no poder, dentre os quais o Presidente Costa e Silva.
O Ministro da Justiça tirou da pasta um outro rascunho de ato que passou a
ler. O Presidente interrompeu, dizendo: “Vamos ver o que nós queremos”.
Lançou mão daquelas anotações que fizera na véspera, e passou a discutir
com os presentes os itens importantes que havia escrito. Virou-se para o Dr.
Rondon Pacheco e disse-lhe para ir anotando o que ele queria que
figurasse no Ato (RANGEL, 1978, p. 20).
Realizando o que ficou intitulado de “golpe dentro do golpe”, radicais da área
de informações e de outros setores e políticos que defendiam a continuação
indefinida do regime estavam sempre dispostos a usar qualquer recurso para
queimar os que pretendiam a normalização do país [...] (CONTREIRAS, 2010).
A característica diferenciadora do Ato Institucional nº 5 para com os demais
estava expresso no seu artigo nº 10; “Fica suspensa a garantia de habeas corpus,
nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e
social e a economia popular.” A partir da entrada em vigor desta norma, o cidadão
perdeu o direito à liberdade, direito fundamental originado na Magna Carta de 1215,
e garantido constitucionalmente no Brasil desde a Constituição Federal de 1891.
Talvez as medidas mais emblemáticas de abandono de um Estado de
Direito promovidos pelo AI-5 tenham sido a suspensão da garantia de
habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional,
a ordem econômica e social e a economia popular, e a exclusão de
qualquer apreciação judicial de todos os atos praticados de acordo com o
AI-5 e seus atos complementares, bem como os respectivos efeitos
(PIERANTI et al., 2010, p. 142).
Com a suspensão do habeas corpus, a atuação dos advogados na defesa de
presos políticos passou a ser seriamente dificultada. Com a liberdade de prender os
suspeitos de oposição ao regime sem o receio de serem rapidamente libertados pelo
poder Judiciário, passaram os militares a torturar seus presos. Segundo Verônica
Dalcanal, “os anos 1970 foram os mais difíceis para advocacia, muita gente foi
torturada e morreu, [...] Aos poucos, no entanto, o próprio regime foi se abrindo e os
advogados conseguiram melhores resultados na defesa dos presos políticos” (2010,
p. 204).
Mesmo com a suspensão da garantia constitucional do habeas corpus, os
familiares das vítimas da ditadura recorriam aos profissionais da advocacia,
conforme explica Criméia Schmidt:
Os familiares recorriam aos advogados, estes apelavam para o habeas
corpus, mesmo sabendo de sua supressão desde a edição do AI-5. Esse foi
um recurso bastante utilizado na tentativa de preservar a vida dos presos,
embora os juizes militares nunca aceitassem. Era uma forma de pressão,
tanto para avisar aos órgãos de repressão sobre o conhecimento das
prisões, como para repudiar a suspensão desse direito. Ao apresentar o
pedido de habeas corpus para a pessoas consideradas desaparecidas
políticas, a resposta era invariavelmente: “encontra-se foragido” (2010, p.
22).
Dalmo Dallari exemplifica as violações aos direitos fundamentais ocorridas a
partir da edição do Ato Institucional nº 5:
O que ocorreu a partir daí foi um recrudescimento das arbitrariedades e
violências, como prisões arbitrárias, tortura, desaparecimento de pessoas,
invasões de domicílios, cassações de direitos e ampla corrupção, tanto
quanto ao uso das instituições públicas quanto relativamente aos desvios de
recursos públicos (2010, p. 9).
Os próprios advogados passaram a ser vítimas do Ato Institucional nº 5, não
tendo a Ordem dos Advogados do Brasil meios de proteger seus filiados. “Não
apenas militantes foram sequestrados como também muitos advogados que
atuavam na defesa deles. Como já dito, quase todos os advogados da área sofreram
pressão, pois era necessário amendrontá-los para que parassem de defender os
perseguidos políticos” (MOREIRA, 2010, p. 57).
Porém, as principais vítimas das violações aos direitos e garantias
fundamentais eram os opositores políticos, a quem, em certas localidades, sequer
era concedido o direito a representação por advogado legalmente constituído,
conforme relata Luciana Bertoldo em livro escrito sobre a perseguição sofrida por
seu pai “Genir José Bertoldo”, durante a ditadura militar na cidade de Ijuí:
No dia do julgamento, ele chegou sozinho. Foi apresentado ao advogado
nomeado de ofício pela 3ª Auditoria, que estaria encarregado da defesa. Ele
ousou perguntar ao advogado se estaria correto ser defendido pelo próprio
advogado do Exército. A resposta foi para que ficasse tranquilo, porque de
qualquer forma ele seria a sua única opção (já que não teria direito a um
advogado civil em função do AI-5) (2010, p. 63).
A prática de torturas era repudiada também por grupos de militares contrários
aos abusos de poder, expondo diferentes opiniões entre os próprios integrantes do
governo. O militares contrários ao regime eram perseguidos e seguidamente
expulsos das Forças Armadas. Afirma Hélio Contreiras: “a prática da tortura foi
repudiada por vários militares. [...] Os que recorrem à tortura, não importam as
circunstâncias, não representam a instituição militar” (2010, p. 180).
Apesar de amplamente utilizada como forma de coação e controle da
oposição, o governo militar jamais assumiu a autoria de atos de tortura. A
controvérsia entre os relatos da história e a opinião dos militares ainda hoje revoltam
as vítimas submetidas aos cárceres das delegacias de polícia e quartéis militares da
época.
Ainda assim, há uma estranha fragilidade no embuste. De um lado, é certo
que se trata de uma mentira, pois o governo condena a tortura, nega sua
existência, mas não aceita investigar as denúncias que saem dos porões.
De outro – o lado pelo qual ela entra no mundo do torturador – é possível
que a própria mentira seja mentirosa. Ou seja, a qualquer momento a
condenação dos torturadores pode se tornar verdade. Para o torturador, o
hierarca de discurso humanitário é um mentiroso que pode fritá-lo numa
eventual mudança do clima político. Isso faz com que a conduta da “tigrada”
se torne potencialmente adversária do governo. Ela suspeita que a vêem
como um bando de bobos descartáveis, metidos num serviço sujo
(GASPARI, 2002, p. 23).
Em entrevista concedida em 1996, o ex-Presidente da República João Batista
Figueiredo questionou a ocorrência de torturas, não acreditando que um General
fosse capaz de ato de tal repugnância, culpando os militares de baixa patente, ou
mesmo os agentes civis a serviço do regime como culpados pela aplicação de
métodos de confissão forçada (GASPARI, 2002, p. 23).
Os métodos de imposição de dor física e psicológica adotados pelos militares
variavam. Porém, a crueldade e o abuso de poder relatados pelas vítimas que
suportaram com vida às sessões de tortura assemelhavam-se, expressando a
intenção do regime em punir os considerados subvertores.
Em 5 de maio, foi retirado da cela e conduzido à sala de torturas, onde
permaneceu por mais de seis horas. Na volta, os companheiros de cela de
Olavo ouviram dele o relato das torturas sofridas: obrigado a despir-se,
sofreu queimaduras com cigarros e charutos, palmatória nos pés e nas
mãos, espancamentos, pau-de-arara, afogamentos e choques elétricos,
agora aplicados por um aparelho mais sofisticado e conhecido como pianola
Boilsen (este instrumento leva o nome de seu criador, o então presidente da
Ultragás e diretor da FIESP, Albert Henning Boilsen, fundador e financiador
da Operação Banderiante, posteriormente reorganizada como DOI-CODI.
Ele foi executado por militantes da ALN e MRT em 15 de abril de 1971)
(DOSSIÊ DITADURA, 2010, p. 193).
A imprensa nacional também foi vitimada severamente pelas violações de
direitos. Antes mesmo da edição do AI-5 em 1968, houve a promulgação da Lei de
Imprensa de 1967, e posteriormente a edição da nova lei de Segurança Nacional em
1969. Destaca Eduardo Bueno que “a partir delas, a presença dos censores nas
redações dos principais jornais, revistas e TVs tornou-se fato corriqueiro, e a lista de
assuntos “proibidos”, progressivamente abrangente” (2010, p. 412).
O Ato Institucional nº 5 vigorou até o ano de 1978; passou por três
presidentes da República e acabou extinto por Ernesto Geisel, que, imediatamente,
restaurou o direito ao habeas corpus. Porém, a herança de graves violações aos
direitos e garantias fundamentais, dentre as quais suspensão do estado democrático
de direito, adoção da censura à imprensa, torturas em interrogatórios, rompimento
da autonomia do Judiciário, quebra da privacidade de funcionários públicos e
ministros de Estado e o envolvimento dos militares com a atividade policial fizeram
do período iniciado em 13 de dezembro de 1968 o período considerado mais cruel e
excludente da história brasileira. Fatos que culminaram no rebaixamento do país à
condição de Estado de exceção, não garantidor dos Direitos Humanos, declarados
universais em 1948 pela Organização das Nações Unidas.
2.4
As principais violações aos direitos fundamentais durante a ditadura
militar
A notoriedade negativa conquistada pelo Ato Institucional nº 5 mascara a
maior das violações aos direitos fundamentais ocorrida durante a ditadura militar.
Editado em 05 de setembro de 1969 pelos Ministros do Estado da Marinha de
Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, o Ato Institucional nº 14 alterou a
redação do § 11 do artigo 150 da Constituição Federal de 1967, subjetivamente
permitindo a pena de morte aos revolucionários ou subversivos opostos ao regime
militar.
Apesar da subjetividade da norma, a alteração normativa expressava a
severidade da intenção do legislador.
§ 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, nem
de confisco. Quanto à pena de morte, fica ressalvada a legislação militar
aplicável em caso de guerra externa. A lei disporá sobre o perdimento de
bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento ilícito no
exercício de função pública (CF/1967).
§ 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou
confisco, salvo nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou
revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar. Esta disporá
também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no
caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na
Administração Pública, Direta ou Indireta (AI-14).
Ainda que permitido pela legislação em vigor, não há registros da aplicação
da pena morte por parte do governo entre os anos de 1964 e 1985, excluindo-se
dessa estatística as mortes patrocinadas sem o amparo da lei. A severidade do Ato
Institucional nº 14, corroborada pela Nova Lei de Segurança Nacional e a Emenda
Constitucional nº 1 (ou Constituição outorgada de 1969), influenciou diretamente a
reformulação pertinente à Justiça Militar, ao Código Militar, ao Código de Processo
Penal Militar e à Lei da Organização Judiciária Militar (MOREIRA, 2010).
Significativamente mais rigorosos, concederam amplos poderes aos tribunais
militares para o julgamento de casos envolvendo civis.
A não aplicação da pena de morte não impediu a cruel e disseminada prática
da tortura, forma letal utilizada pelos militares e seus agentes na busca por
informações que julgavam importantes. Diversas foram as modalidades aplicadas, e
centenas os casos confirmados, muitos ocasionando sequelas físicas e psicológicas
irreversíveis, quando não redundando na morte dos interrogados após infindáveis
sessões.
O auge da prática da tortura como meio inquiritório e também punitivo se deu
após a edição do Ato Institucional nº 5, embora repudiada também por militares. “De
fato, se, após as primeiras semanas posteriores ao golpe, a tortura fora reprimida
pelos chefes militares, recomeçou a todo vapor com a edição do AI-5” (MOREIRA,
2010, p. 275). As críticas à prática da tortura ocorreram frequentemente durante a
ditadura, motivadas principalmente por vítimas e seus familiares. Porém, sem jamais
cessar sua aplicação.
A suspensão formal do estado democrático de direito a partir do AI-5
estimulou violações aos direitos e garantias fundamentais, já enfraquecidos pela
Constituição Federal de 1967. Segundo Adriano de Freixo e Taís Ristof, “a partir
daquele momento, intensificaram-se o arbítrio e as violações dos direitos e da
dignidade da pessoa humana no Brasil, que, embora já presentes antes de 1968,
são levados ao extremo nos anos seguintes” (2010, p. 148).
A prática de tortura foi repudiada por vários militares. Um dos que atacaram
mais duramente a violência contra os presos políticos foi o coronel Luiz
Henrique Pires, ex-chefe da Seção de Doutrina da Escola de Comando e
Estado-Maior do Exército (Eceme), e um dos fundadores do Curso de
Política e Alta Administração do Exército (CPAEx) (CONTREIRAS, 2010, p.
180).
Mesmo não possuindo respaldo jurídico, a prática de tortura foi o resultado de
diferentes violações a direitos e garantias fundamentais decorrentes do AI-5. A
suspensão do habeas corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança
nacional, a ordem econômica e social e a economia popular (art. 10); a exclusão da
apreciação judicial dos atos praticados com base no Ato Institucional que se editava,
bem como de seus Atos Complementares, aliados ao regime de incomunicabilidade
estabelecido pela Lei de Segurança Nacional, permitiu aos militares investigar,
prender, interrogar e punir seus opositores, não havendo instância superior que
exercesse alguma forma de controle.
As mortes do jornalista Wladimir Herzog e do metalúrgico Manoel Fiel Filho
simbolizaram as violações aos direitos e garantias fundamentais, constrangendo o
poder militar pela grande exposição negativa que se seguiu. Porém, os casos não
deixaram de ocorrer, culminando em outras mortes ou sequelas nas vítimas e seus
familiares.
Durante os vinte e um anos de ditadura militar, muitos outros direitos e
garantias fundamentais restaram violados ou ignorados, situação que ainda se
reflete no desenvolvimento social do país, e que expuseram o Brasil à recente
condenação perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão que
compõe a Convenção Americana de Direitos Humanos.
3 OS REFLEXOS DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DURANTE A DITADURA MILITAR
E
GARANTIAS
Os reflexos das violações aos direitos e garantias fundamentais iniciaram-se
tão logo as violações passaram a ocorrer. O Brasil anterior ao golpe militar estava
sob a égide da democrática Constituição Federal de 1946, influência sofrida pelo
processo de redemocratização posterior à queda de Getúlio Vargas. Vigorou por 18
anos, sendo interrompida bruscamente por um período de 21 anos de constantes
violações de direitos, transformando a história de um país e de gerações de
brasileiros.
Com o fim da ditadura e a promulgação da Constituição Federal de 1988,
intensificaram-se as tentativas de responsabilização civil e criminal dos agentes
militares. Seguindo os moldes sul-americanos, as vítimas e seus familiares
passaram a pressionar por medidas que reparassem as violações ocorridas.
Em setembro de 2006, foi aceita no Brasil uma ação inédita de
responsabilização de um torturador do período ditatorial. O juiz Gustavo
Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, acolheu Ação Declaratória
impetrada em 2005 pela família Almeida Teles contra Carlos Alberto
Brilhante Ustra – comandante do DOI-CODI/SP entre 1970 e 1974 – por
entender que a ofensa aos direitos humanos não está sujeito à prescrição
(DOSSIÊ DITADURA, 2010, p. 46).
Entretanto, somente em 2010 medidas mais contundentes foram tomadas no
sentido de punir efetivamente os autores dessas violações. Com destaque para a
tentativa de revisão da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79) através da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 (ADPF), ação ajuizada pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil perante o Supremo Tribunal
Federal, e o julgamento do caso Gomes Lund (Caso nº 11.552), crimes ocorridos
durante a Guerrilha do Araguaia, perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Esses processos inauguraram um novo período de reparação aos direitos
humanos violados no Brasil, contribuindo para a consolidação da democracia e a
reparação dos danos sofridos.
Apesar do insucesso da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental julgada pelo plenário do STF em 29 de abril de 2010, a negativa da
possibilidade de revisão da controvertida Lei de Anistia brasileira, que, segundo
Fábio Konder Comparatto, procurador do Conselho Federal da OAB, tinha por
objetivo “recuperar a honorabilidade das Forças Armadas, após os atos de
arbitrariedade – terrorismo, sequestro, assalto, tortura e atentado pessoal –
praticados por integrantes da corporação contra opositores do regime militar”, expôs
o desejo da sociedade em sepultar qualquer resquício das violações anteriormente
praticadas.
A demanda tinha por escopo punir tão somente os agentes públicos que, sob
a égide do Estado, cometeram crimes contra o cidadão. Segundo Comparato, “se a
lei tivesse anistiado os agentes públicos que cometeram milhares de atos de tortura
durante o regime militar, esta anistia teria sido recepcionada no texto da Constituição
Federal de 5 de outubro de 1988. Mas isto não ocorreu.”
Importante destacar o exposto pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal,
Eros Roberto Grau, relator do julgamento da ADPF/153 em seu voto contrário à
revisão da Lei de Anistia:
O arguente alega ser notória a controvérsia constitucional a propósito do
âmbito de aplicação da “Lei de Anistia”. Sustenta que “se trata de saber se
houve ou não anistia dos agentes públicos responsáveis, entre outros
crimes, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de
autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra
opositores políticos ao regime militar” (ADPF 153, 2010).
Na prática, a procedência da demanda traria consigo a possibilidade de, no
âmbito nacional, reabrir investigações e processos por abusos cometidos durante os
“anos de chumbo”, punindo os envolvidos pelos crimes cometidos.
É necessário dizer, por fim, vigorosa e reiteradamente, que a decisão pela
improcedência da presente ação não exclui o repúdio a todas as
modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou
delinquentes (GRAU, ADPF 153, 2010).
Em âmbito internacional, a busca pela punição aos agentes criminosos de
ditaduras militares tem ocorrido de forma incisiva. A Corte Interamericana de Direitos
Humanos já proferiu cinco acórdãos contra diferentes países considerando inválidas
suas leis de autoanistia. Nesta situação se encontra o Brasil, que, em 24 de
novembro de 2010, teve julgado contra si demanda referente às atrocidades
cometidas durante a Guerrilha do Araguaia (Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil),
fato ocorrido entre os anos de 1972 e 1975, no qual cerca de 70 pessoas, entre
membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região, foram torturadas
e assassinadas. Desses, vários corpos jamais foram localizados.
Os peticionários entendem que a indenização não é uma reparação
completa da violação e alegam que o Estado não pode com a indenização
pretender ter reparado a totalidade da violação, pois ainda falta identificar e
punir os responsáveis pela mesma. O Estado alega, por sua vez, que em
virtude da Lei de Anistia não é possível investigar a responsabilidade
individual e sancionar os agentes públicos envolvidos no caso. A Comissão
considera no presente caso que deve considerar se a Lei de Anistia
aprovada, no tocante aos fatos em que se enquadram os denunciados,
estabelece um regime de impunidade, que impediria que os tribunais
competentes julguem e estabeleçam uma condenação aos eventuais
responsáveis das violações denunciadas (CIDH, Relatório nº 33/01, Caso nº
11.552).
Os argumentos defensivos não foram aceitos, ocasionando a condenação de
forma unânime do Brasil pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação
dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade
pessoal, liberdade pessoal e liberdade de pensamento. Entenderam os juízes da
Corte que o Estado brasileiro descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno
à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, incluindo neste item a controversa
Lei de Anistia.
O Brasil restou condenado também a conduzir eficazmente as investigações
penais dos fatos que ensejaram a presente demanda, determinando o paradeiro das
vítimas desaparecidas, identificando e entregando os restos mortais a seus
familiares, além de oferecer tratamento médico e psicológico/psiquiátrico às vítimas
que o requeiram. Dentre as diversas condenações trazidas, o Estado ainda deverá
realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a
respeito dos fatos do caso Araguaia, tudo supervisionado pela Corte e sem a
possibilidade de recurso.
De forma conclusiva, entenderam os juízes que compõem a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, órgão integrante da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, que as medidas adotadas pelo Brasil, como a Lei de Anistia e
a política de indenizações e benefícios, não se constituíram em uma "reparação
suficiente" das violações alegadas pelas vítimas.
Segundo consta no Relatório nº 33/01, Caso nº 11.552 da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos:
No presente caso, não seria possível à Comissão definir o que é uma
reparação suficiente das violações, sem antes determinar a existência e a
natureza das eventuais violações, o que só pode ser determinado na fase
de mérito. Por estas razões, a Comissão entende desestimar a alegação do
Estado de que devem se aplicar as hipóteses dos artigos 48(b)(e)(c) da
Convenção.
Os fatos alegados na petição, se comprovados, caracterizariam violações
dos artigos I, XXV e XXVI da Declaração Americana, assim como dos
artigos 1(1), 4, 8, 12, 13 e 25 da Convenção Americana. A Comissão
considera que a exceção do artigo 47(b) não se aplica ao presente caso
(CIDH, nº 11.552).
A possibilidade de divergências entre os julgados externos e internos, à
semelhança do ocorrido nos países latino-americanos vítimas de ditaduras militares,
pressionou o Supremo Tribunal Federal a pacificar seu entendimento no sentido de
proteção aos direitos humanos.
Frise-se de antemão que o STF, no dia 3 de dezembro de 2008, decidiu
(historicamente) que os tratados internacionais de direitos humanos valem
mais do que a lei e menos que a Constituição, estando no nível supralegal
no país (cf. RE466.343/SP). Ainda que não tenha a Suprema Corte
atribuído nível constitucional aos tratados de direitos humanos (por um voto
faltante apenas), o certo é que trilhou o STF o caminho juridicamente
correto (de respeito ao direito internacional dos direitos humanos, tal como
vem sendo construído e seguido por todos os países civilizados) (GOMES;
MAZZUOLI, 2011, p. 51).
No entanto, este entendimento encontra-se em cheque. A recente decisão
proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos obrigou o país a revisar
sua Lei de Anistia, decisão anteriormente negada pelo STF e que deverá trazer
mudanças drásticas nos rumos políticos e jurídicos do Brasil.
3.1 A abertura política e a Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79)
Imediatamente após a edição do primeiro Ato Institucional, a oposição iniciou
sua campanha pela anistia dos atingidos pelo golpe militar. Ainda de forma
desordenada, Alceu Amoroso Lima, mais conhecido pelo cognome “Tristão de
Athayde”, foi o primeiro a reivindicá-la. Ignorada pela Junta Militar que governava o
país naquele momento, foi reiterada posteriormente ao então Presidente da
República Castelo Branco, que igualmente a desprezou. Outras tentativas também
restaram frustradas, como relembra Glenda Mezarobba.
Em seguida foi a vez do general Pery Constant Bevilacqua, ministro do
Superior Tribunal Militar (STM), defender a adoção do expediente. Três
anos mais tarde, reclamando “anistia geral, para que se dissipe a atmosfera
de guerra civil que existe no país”. a Frente Ampla organizada por líderes da
oposição como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitchek e João Goulart, lançou
um manifesto com o mesmo objetivo (2003, p. 157).
Somente em 1975 a oposição conseguiu, de modo ordenado, estabelecer a
luta pela anistia ampla, geral e irrestrita aos presos políticos no Brasil. Influenciados
pelo decreto-lei assinado por Getúlio Vargas, que em 1945 havia concedido a anistia
aos presos e exilados do Estado Novo, alguns movimentos de oposição passaram a
se destacar nas campanhas pela redemocratização. Dentre os mais relevantes, o
Movimento Feminino pela Anistia e Liberdades Políticas (MPFA) e, em 1978, os
Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA), espalhados em vários estados. O cidadão
passou a externar sua oposição ao regime somente a partir de 1977, quando, com o
apoio de artistas, sindicatos e do movimento estudantil (UNE), foi às ruas para
protestar (DOSSIÊ DITADURA, 2010, p. 23).
Os movimentos de oposição ao regime estavam fortalecidos, as lideranças
sindicais, principalmente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo
e Diadema, demonstravam sua força através das greves.
Com a greve dos metalúrgicos de 1978, o movimento trabalhista surgiu
como força de primeiro plano na cena política. Pelos padrões brasileiros, os
metalúrgicos estavam entre os trabalhadores melhor pagos do país, em
1978. [...] Os metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema sabiam
que ocupavam uma posição privilegiada no quadro produtivo brasileiro, e
estavam perfeitamente conscientes de sua capacidade de “paralisar o
sistema” (ALVES, 1984, p. 247).
No final da década de 1970, o Brasil encontrava-se em delicada situação
econômica. Comparativamente, afirma Eduardo Bueno “se, durante o governo
Médici, a economia ia bem e o povo mal, durante os seis longos anos do governo
Figueiredo tanto a economia quanto o povo foram tremendamente mal”. A crise do
petróleo, a inflação e a dívida externa prejudicavam a imagem dos militares,
fortalecendo o discurso da oposição, que, destemida desde a revogação do Ato
Institucional nº 5 em 31 de dezembro de 1978, passou a deflagrar a campanha pelas
“Diretas Já” (2010, p. 400).
Mais euforia seria trazida pelo “milagre econômico”. De 1969 a 1973, de fato
ocorreu um extraordinário crescimento econômico no país. O PIB cresceu
na espantosa média anual de 11% (chegando a 13% em 1973). Houve uma
febre de investimentos, grandes obras (muitas delas faraônicas e muito
dinheiro vindo do exterior, com juros baixos). O ministro Delfim Netto foi o
articulador do “milagre”. Logo o processo de crescimento se revelaria mais
terreno do que “milagroso”. Com a crise do petróleo, iniciada em 1974, e a
consequente retração do capitalismo internacional, o “milagre” mostrou sua
face real: o que ocorreu no Brasil durante o governo Médici foi um brutal
processo de concentração de renda e o crescimento desmedido da dívida
externa e do fosso social que separava ricos de pobres. O país ia bem, e o
povo, de mal a pior (BUENO, 2010, p. 393).
Entretanto, o marco inicial da campanha pelo retorno da democracia, ou ao
menos com o objetivo de modificar os rumos iniciados com golpe de 1964, ocorreu
com a morte do jornalista Vladimir Herzog em 24 de outubro de 1975. Nascido na
Iugoslávia (atual Croácia) era chefe do Departamento de Jornalismo da TV Cultura
(SP) e editor de cultura da revista Visão. Intimado pelas forças de segurança que
realizavam
a
“Operação
Jacarta”,
compareceu
espontaneamente
para
o
interrogatório.
Na
mesma
tarde
morreu
nas
instalações
do
DOI-CODI
(Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa
Interna). A versão oficial foi de suicídio em sua cela, enforcando-se com sua própria
gravata, seu corpo foi enviado à viúva em caixão lacrado e sem maiores explicações
(CHAGAS, 1985, p. 228).
Herzog era um jornalista conhecido e estimado. O estado de São Paulo foi
subitamente tomado de maciça indignação popular com sua morte.
Assistida por advogados da Ordem dos Advogados do Brasil e da Comissão
Arquidiocesana de Justiça e Paz, sua viúva, Clarice Herzog, contestou a
versão de suicídio e entrou com ação contra o governo federal,
responsabilizando-o pela morte do marido. O caso obteve o apoio de
jornalistas de todo o país. A imprensa promoveu aprofundada investigação
paralela, demonstrando que na realidade Vladimir Herzog fora morto por
tortura na sede do DOI-CODI do Segundo Exército. A Associação Brasileira
de Imprensa reuniu assinaturas de 1.000 destacados jornalistas num
abaixo-assinado pedindo investigação das atividades do DOI-CODI
(ALVES, 1984, p. 205).
Apesar da comoção causada e da repercussão negativa que o fato trouxe
para o governo, menos de três meses depois, no dia 17 de janeiro de 1976, o
metalúrgico Manoel Fiel Filho morreu nos porões da mesma instituição. Conforme
relata Eduardo Bueno, “a versão oficial novamente falava em enforcamento: dessa
vez, o detento teria usado “as próprias meias” (2010, p. 399).
Esses fatos fortaleceram a oposição, que, a partir do ocorrido passou a contar
com o apoio do Cardeal Paulo Evaristo Arns, que pessoalmente solicitou o apoio dos
bispos presentes à Conferência Regional dos Bispos em Itaici, São Paulo. Além da
Igreja Católica, a União Nacional dos Estudantes (UNE), que se reorganizava
politicamente, aderiu à campanha, como relembra Maria Helena Moreira Alves:
Após a morte de Manoel Fiel Filho, o governo Geisel viu-se sob forte
pressão para acabar com a repressão em São Paulo. Os chefes das forças
de segurança de São Paulo – o comandante do Segundo Exército, Ednardo
D´Ávila Mello, e o Coronel Erasmo Dias – integravam o setor linha-dura
contrário a política de “distensão”. Estimou-se que suas atividades em São
Paulo redundavam no exercício de um poder paralelo que poderia ameaçar
a autoridade do Executivo central e do próprio Estado de Segurança
Nacional. O Presidente Geisel agiu com rapidez para recuperar o controle
da situação. Dois dias depois da morte de Manoel Fiel Filho, ele afastou o
General D’Ávila Mello, substituindo-o, no comando do Segundo Exército,
pelo General Dilermando Gomes Monteiro. [...] Embora o General
Dilermando Gomes Monteiro, considerado um “militar liberal”, mantivesse a
sua promessa de acabar com a tortura nas dependências do DOI-CODI de
São Paulo, não pode evitar novos atos de repressão em São Paulo, desta
vez contra estudantes universitários que tentavam reorganizar a extinta
UNE (1984, p. 207).
A morte do jornalista Vladimir Herzog, apesar de considerada “o marco da
virada” da oposição contra o regime militar, sobretudo no que diz respeito às lutas
pelos direitos humanos, teve importância inferior ao primeiro evento que demonstrou
a rearticulação da sociedade civil e significou a primeira manifestação abertamente
política de oposição à ditadura, que foi a vitória do Movimento Democrático
Brasileiro (MDB) nas eleições de 1974 (DEL PORTO, 2002).
As eleições gerais de 15 de novembro de 1974, já com Geisel no poder,
revelaram-se desastrosas para a revolução. A anticampanha do
anticandidato Ulysses Guimarães, pelo MDB, no interior, surtiria efeitos
magníficos. O eleitorado, exausto de tanta revolução, começando a
enfrentar os efeitos da crise econômica, dera destino à sua exaustão,
através das urnas. A lei eleitoral permitia a propaganda gratuita pelo rádio e
a televisão, e os candidatos oposicionistas lavaram a alma. “Sem ódio e
sem medo”, como dizia Marcos Freire, eleito para o Senado, por
Pernambuco, o MDB cresceu avassaladoramente. Tivessem sido diretas as
eleições de governador e o partido dominaria nada menos do que 16
Estados, pois elegeu 16 senadores (CHAGAS, 1985, p. 226).
Porém, o resultado das urnas não sensibilizou os militares, que, na pessoa do
Presidente da República Ernesto Geisel, se mantiveram distantes dos opositores
eleitos. Todavia, o Presidente manteve a palavra no sentido de buscar uma
democratização efetiva, conforme havia prometido. Contraditoriamente, no ano
seguinte às eleições houve as emblemáticas mortes de Herzog e Fiel Filho, o que,
segundo Fabíola Brigante Del Porto, foram “acontecimentos que desnudaram o fato
de que a repressão não discriminava classes e foi importante para que os setores da
classe média e da elite aderissem às forças de oposição ao regime” (2002, p. 60).
As conquistas políticas da oposição se mantiveram nas eleições seguintes.
Contando com o apoio de importantes setores da elite que aos poucos deixava de
lucrar com a repressão, passaram também a pressionar o governo pela
liberalização. Mesmo com o bem sucedido Pacote de Abril e a instituição de
senadores biônicos na eleição de 1978, a oposição evidenciava sua organização e
repúdio ao sistema ainda em vigor.
O MDB continuou o partido mais forte nas disputas para o Senado,
conquistando quase 4,3 milhões de votos a mais que o partido do governo.
A ARENA manteve maioria na Câmara dos Deputados, mas por menor
margem que em eleições anteriores. A mesma tendência verifica-se nas
eleições para as assembléias estaduais. Por obra do Pacote de Abril, no
entanto, havia significativa discrepância entre o voto popular e o resultado
eleitoral. Nas eleições para o Senado, o MDB, apesar de ter recebido 56,9%
dos votos válidos, ficou com apenas 9 cadeiras, enquanto a ARENA obteve
36. Dessas 36, 21 foram ganhas nas eleições indiretas dos colégios
eleitorais aumentados nos estados. [...] Com o Pacote de Abril, no entanto,
231 cadeiras foram para o partido do governo, e apenas 189 para a
oposição (ALVES, 1984, p. 197).
Neste cenário de conquistas da oposição política, o Movimento Feminino pela
Anistia (MPFA) surgido em 1975 passou a expandir-se pelo país. Sob a liderança da
advogada Therezinha Zerbine, esposa de um general cassado pelo regime, reuniu
16 mil assinaturas para o “Manifesto da Mulher Brasileira”, que reivindicava a anistia
política. A partir desse momento, o tema da anistia política cresceu na cena pública
como palavra de ordem. Apesar de o termo e as ideias de uma anistia não serem
novidades naquele momento, o movimento organizado pelo Movimento Feminino
pela Anistia foi pioneiro por ser um movimento legalmente constituído para o
enfrentamento direto com os militares (DEL PORTO, 2002).
Em âmbito político-jurídico, o precursor de um projeto de anistia aos crimes
cometidos na ditadura militar de 1964 foi o deputado Paulo Macarini (MDB-SC), que
em 1968 foi derrotado no Congresso. Porém, mostrou que a anistia já encontrava
ecos na sociedade brasileira.
Além disso, no plano do poder instituído, em 1967, formara-se no
Congresso Nacional a “Frente Ampla”, que exigia a redemocratização, a
revogação da legislação de controle e a realização de eleições livres e
diretas. Em seu manifesto de lançamento, a Frente reclamava também
“Anistia Geral, para que se dissipe a atmosfera de guerra civil que existe no
país”. Pouco depois, em agosto de 1968, o deputado Paulo Macarini (MDBSC) apresentava o primeiro projeto de anistia, que anistiaria todos os
punidos em decorrência do envolvimento nas manifestações em razão da
morte do estudante Edson Luís. Mesmo derrotado no Congresso, mostraria
que a demanda da anistia já encontrava ecos na sociedade brasileira (DEL
PORTO, 2002, p. 61).
Apesar da contribuição dada pelos movimentos já constituídos, em 14 de
fevereiro de 1978, no Rio de Janeiro, foi fundado o Comitê Brasileiro pela Anistia
(CBA). Teve por característica a capacidade de unificar os diferentes grupos de
oposição, reunindo militantes de diferentes categorias na busca pela anistia. Esse
comitê era composto por integrantes do MFPA, estudantes, advogados, artistas,
membros da Igreja Católica, e estabeleceu uma articulação com as oposições
sindicais e representantes de movimentos de bairros.
Com a revogação do AI-5, a campanha pela anistia passou a ter maior
visibilidade. Os opositores puderam expressar seu desejo em rever familiares e
amigos há anos exilados fora do país.
Nas ruas e nos campos de futebol era possível ver cartazes e faixas
defendendo a adoção do expediente. Carros também exibiam adesivos
plásticos nos vidros, panfletos eram distribuídos nas esquinas e comícios
buscavam sensibilizar a opinião pública a respeito do assunto. A orientação
dos movimentos de anistia era de que a bandeira fosse estendida à prática
dos sindicatos, das associações de bairro, das entidades profissionais e nos
meios estudantis (MEZAROBBA, 2003, p. 160).
A fundação de comitês estaduais fortaleceu e divulgou o ideário de uma
Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, conforme relembra Maria Auxiliadora de Almeida
Cunha Arantes:
Os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs) surgem como uma organização
independente, reunindo homens e mulheres dispostos a levar à frente um
programa político mínimo e de ação que ia além do esquecimento e exigia a
libertação imediata de todos os presos políticos; a volta de todos os
exilados, banidos e cassados; a reintegração política, social e profissional
dos funcionários públicos ou privados demitidos por motivos políticos em
consequência dos efeitos dos Atos de Exceção; o fim radical e absoluto da
tortura; a revogação da Lei de Segurança Nacional; o desmantelamento do
aparato repressivo; o esclarecimento das mortes e dos desaparecimentos
por motivação política; a denúncia sistemática da tortura e dos casos de
mutilação; o julgamento e punição dos responsáveis (2009, p. 84).
Também no exterior foram criados comitês de anistia. Compostos por
exilados políticos e estrangeiros contrários aos regimes ditatoriais, expuseram ao
mundo a situação repressiva pela qual o Brasil estava passando. Pode-se ousar
dizer, conforme palavras de Heloísa Amélia Grecco, “que o movimento chegou a
assumir caráter de massa, ao menos na medida em que isso seria possível naquele
momento” (2003, p. 200).
Os comitês de anistia foram brotando em quase todas as capitais da
Europa. Aqui na Suécia não se restringiram a Estocolmo mas existem em
Upsalla, Lund e Gotemburgo, todas cidades importantes. Em Paris, onde se
fez uma noite pela anistia, mais de cinco mil pessoas apareceram para ver
os filmes, as exposições. Inúmeras personalidades se comprometeram com
a luta pela anistia no Brasil. A própria Amnesty Internacional passou a
encarar a possibilidade de uma ofensiva no caso específico do Brasil. Saiu
daqui o Thomas Hamamberg, saiu a representante de Londres e todos
foram para aí, para dar uma olhada (GABEIRA, 1980, p. 14).
Diante da forte pressão exercida pelos diferentes segmentos da sociedade
civil, os parlamentares passaram a elaborar projetos de lei que tratavam do assunto.
Porém, a Constituição (Emenda Constitucional nº 1) outorgada em 1969, antevendo
os fatos, havia tornado privativo do presidente da República o ato de anistia, o que
resultou nas seguidas derrotas dos projetos apresentados pelos deputados de
oposição.
Em 22 de agosto de 1979, o projeto de anistia mais ampla, o MDB, foi
derrotado por 209 votos contrários e 194 a favor. Em seguida, ocorreu a
votação da emenda Djalma Marinho, cuja redação era mais clara e
possibilitava uma anistia mais abrangente, mas foi derrotada por 206 votos
contrários contra 201 a favor. Dessa forma, apesar da pequena margem de
votos entre as propostas, o Congresso aprovou o projeto de anistia proposto
pelo presidente, general João Figueiredo (DOSSIÊ DITADURA, 2010, p.
23).
Nesse clima de cobranças democráticas, o Presidente da República João
Figueiredo, eleito de forma indireta em 15 de outubro de 1978 e empossado em 15
de março de 1979, encaminhou ao Congresso Nacional em junho de 1979 o projeto
da Lei de Anistia. Severamente criticado por seu caráter de autoanistia, teve a clara
intenção de garantir a inimputabilidade daqueles que perpetraram torturas,
assassinatos e desaparecimentos forçados a serviço da ditadura militar, além de
anistiar os exilados políticos e demais opositores ao regime.
A Lei nº 6.683, aprovada no Congresso a 22 de agosto e promulgada a 28
de agosto de 1979 – Lei de Anistia parcial (a anistia de agosto) – é a
representação da anistia-amnésia, logo, da estratégia do esquecimento e da
produção do silenciamento. Ela reflete exemplarmente a lógica interna de
sua matriz – a Doutrina de Segurança Nacional – sobretudo através de três
dos seus dispositivos, expressos nos dois primeiros parágrafos do art. 1º e
no art. 6º, respectivamente, todos eles voltados para o ocultamento da
verdade e a interdição da memória: a pretensa e mal chamada
reciprocidade atribuída à inclusão dos crimes conexos; a exclusão dos
guerrilheiros, aqueles que praticaram crime de sangue, no jargão dos
militares; e a declaração de ausência a ser concedida aos familiares dos
desaparecidos políticos (GRECO, 2003, p. 211).
Aos opositores exilados a Lei de Anistia representou a conquista do direito de
retornar ao Brasil; aos cassados, o retorno aos seus empregos. Já aos presos
políticos não envolvidos em crimes comuns, também chamados de “crimes de
sangue”, a concessão do direito à liberdade.
Os presos políticos condenados pelos chamados “crime de sangue” –
considerados na lei crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado
pessoal – não foram beneficiados pela anistia, permaneceram nos cárceres
e somente foram libertados em função da reformulação da Lei de
Segurança Nacional ocorrida em 1978, que atenuou suas penas. Eles foram
soltos em liberdade condicional, vivendo nessa condição durante muitos
anos após a anistia (DOSSIÊ DITADURA, 2010, p. 24).
O período imediatamente posterior à entrada em vigor da Lei nº 6.683/79 foi
marcado pelo retorno de artistas e políticos que haviam sido forçados a abandonar o
país, dentre os quais; Leonel Brizola, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Professores
universitários e cientistas que não fixaram residência permanente no exterior aos
poucos retornaram ao Brasil, e os que deixaram de retornar contabilizaram um
prejuízo sem precedentes à educação e ao desenvolvimento do país.
Premeditadamente os nomes dos anistiados eram divulgados no Diário Oficial
da União, algumas listas foram reproduzidas em jornais de grande circulação. A
justificativa da publicização era de que a anistia havia sido concedida
individualmente, porém, o real objetivo era o de manter a ordem e também o
controle sobre os autores de crimes comuns que, segundo os militares não deviam
ser anistiados.
No entanto, a principal controvérsia gerada pela Lei de Anistia se deu com a
não individualização e responsabilização dos mandantes ou responsáveis pelas
torturas, assassinatos ou desaparecimentos forçados. Esses agentes do governo
sequer foram julgados ou indiciados em processos criminais. Serviram-se da
bilateralidade da lei para garantirem o próprio salvo-conduto.
Visando influenciar a elaboração de uma lei sem normas ambíguas ou
desfavoráveis aos já combalidos opositores, mas também aventando a possibilidade
de punição aos criminosos a serviço do sistema, os movimentos organizados
fizeram suas reivindicações e sugestões. Conforme ressalta Larissa Brizola Brito
Prado.
Em razão do alcance que essa medida teria, foram muitas as reivindicações
dentro da sociedade civil, especialmente por parte do Movimento Feminino
pela Anistia – capitaneado por Terezinha Zerbine -, da OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil), da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), da
Igreja, dos sindicatos – dos metalúrgicos, dos bancários, dos médicos, entre
outros – e dos estudantes (2004, p. 174).
Relembra Glenda Mezarobba que “durante a tramitação do projeto de anistia
do governo, houve quem, como o Deputado Octacílio Queiroz (MDB-PB),
propusesse emendas prevendo o pagamento de pensões mensais a todas as mães,
viúvas, menores órfãos, esposa e filhos de pessoas desaparecidas [...]” (2003, p.
162).
Porém, a pressão mais contundente por parte da oposição que visava à
inclusão de artigos que possibilitassem a punição dos militares não demoveu o
Presidente da República João Figueiredo. Para preservar seus aliados que a serviço
do sistema cometeram abusos no exercício de suas funções, fatos sempre
rechaçados pelo presidente, e também preservar a imagem das Forças Armadas
como instituição, não houve a inclusão na Lei de Anistia de normas que imputassem
crimes aos atos que violaram os direitos e garantias fundamentais durante o regime.
A redação da Lei de Anistia visava tão somente evitar a possibilidade de
interpretações desfavoráveis aos militares. O artigo primeiro e seus dois primeiros
parágrafos
expressam
claramente
os
fundamentos
e
objetivos
de
seu
sancionamento.
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre
02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes
políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus
direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e
Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos
Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e
Complementares.
§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer
natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação
política.
§ 2º Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela
prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal (Lei
nº 6.683/79).
A redação do artigo 1º da Lei de Anistia evidenciou a intenção dos militares de
desvincular os atos de tortura cometidos por seus agentes de qualquer possibilidade
de punição futura. A delimitação de um prazo iniciado exatamente no dia 02 de
setembro de 1961 fez retroagir o direito à anistia aos militares responsáveis pela
instituição do parlamentarismo em detrimento ao presidencialismo legalmente
constituído, fato que possibilitou a posse de João Goulart nessa mesma data.
Manobra política somente possível através do desrespeito à Constituição Federal de
1946, o que poderia ser interpretado como crime político cometido pelos militares.
A inserção da expressão “crimes conexos”, termo jurídico que conecta um
delito a outro, seja na sua realização ou ocultação, significou a anistia ampla, geral e
irrestrita aos agentes do governo. Militares ou civis que no exercício de suas funções
cometeram crimes comuns, como torturas, estupros, assassinatos e ocultação de
cadáver.
O objetivo do retorno ao tão almejado regime democrático, que permitiria o
retorno de familiares exilados, fez com que a oposição concordasse com a redação
apresentada, formalizando na lei o interesse de ambas as partes.
A anistia representou o silêncio e o esquecimento sobre os envolvidos nas
ações repressivas após o golpe de 1964. Na prática, os torturadores foram
anistiados graças à interpretação de que a abertura política poderia
retroceder caso as oposições reivindicassem justiça. O termo “revanchismo”
tem sido utilizado para denominar de forma pejorativa a posição daqueles
que insistem em investigar os casos dos mortos e desaparecidos pela
repressão política e exigem o julgamento dos responsáveis por tais crimes.
A anistia, porém, segundo o Direito Internacional de Direitos Humanos, não
pode ser um impedimento ao direito à verdade, que pressupõe a ampla
investigação sobre a atuação dos órgãos de repressão durante a ditadura. A
investigação é a medida fundamental para aprofundar e fortalecer a
democracia, e o combate à impunidade é necessário para coibir a prática de
tortura no país (DOSSIÊ DITADURA, 2010, p. 24).
O significado da palavra anistia, expresso no Dicionário Jurídico, traduz de
forma categórica o objetivo do governo militar e da oposição com a edição da Lei de
Anistia.
Anistia. Ato de soberania de competência do Congresso Nacional pelo qual
o poder público declara extinta a culpa, por motivo de utilidade social, de
todos quantos, até certo dia, perpetraram determinados delitos, em geral
políticos, pelo ato de fazerem cessar as diligências persecutórias, e se
tornam nulas e de nenhum efeito as condenações; pode ser absoluta,
condicional, geral, plena (DE PAULO, 2004, p. 39).
Embora a Lei de Anistia haver sido promulgada em 28 de agosto de 1979, o
retorno dos exilados políticos não ocorreu de forma imediata. “Na década de 1980, a
anistia conquistada ainda não havia beneficiado muitos dos exilados, sindicalistas,
banidos, marinheiros e trabalhadores de uma maneira geral” (DOSSIÊ DITADURA,
2010, p. 24). Os benefícios da anistia não foram sentidos no primeiro momento,
porque ainda se estava sob o domínio militar. Mesmo que as intenções
democráticas partissem do próprio governo, sua natureza era ditatorial, prejudicando
a efetividade da lei.
Tempos depois da promulgação da Lei de Anistia Marcelo Cerqueira
sustentou no tribunal a primeira ação declaratória no cível por perdas e
danos, para efeito de indenização, a favor de Inês Etienne Romeu, a Alda,
da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). A história de Inês foi escrita e
amplamente divulgada por sua irmã, a jornalista Lúcia Etienne Romeu, por
meio das reportagens “A casa dos horrores” e “A torturada fala com o
médico da tortura”, publicadas na Revisto Isto É. Inês foi mantida em
cárcere privado de maio a agosto de 1971 em uma casa situada na serra de
Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro, que servia de centro clandestino de
tortura. [...] Inês foi julgada por sequestro e condenada à prisão perpétua.
Cumpriu oito anos e três meses de sentença no Presídio Talavera Bruce,
situado na Zona Norte do Rio. Foi beneficiada com a Lei de Anistia, de
1979, mas só foi libertada no ano de 1981 (PESSOA; MELO, 2010, p. 172).
Buscando a reparação das injustiças, a Constituição Federal de 1988, no art.
8º das Disposições Transitórias, estabeleceu o direito ao reconhecimento dos anos
de prisão ou de clandestinidade como tempo de serviço. No entanto, as
controvérsias da Lei de Anistia se mantiveram mesmo após o retorno do país ao
Estado Democrático de Direito. A política de reparações surgida somente por meio
da Medida Provisória 2.151 de 21 de maio de 2001, editada pelo Presidente da
República Fernando Henrique Cardoso, deu início ao pagamento de indenizações
pecuniárias às vítimas da ditadura militar, incluídos os militares anistiados pela Lei
6.683/79.
3.2 A tentativa de revisão da Lei de Anistia através da ação de Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153
A inconformidade com a autoanistia concedida pelos agentes da ditadura
militar perdurou silente até o ano de 1992, quando retornou à pauta de discussão a
morte do jornalista Vladimir Herzog e a responsabilização por este homicídio.
Embora a versão oficial da época tenha confirmado suicídio, em 25 de março de
1992, o Ministério Público de São Paulo requisitou a abertura de inquérito policial
(Inquérito Policial 704/92 – 1.ª Vara do Júri de São Paulo) à Polícia Civil paulista
para apurar as circunstâncias da morte do jornalista. Diligências motivadas por uma
reportagem publicada na Revista IstoÉ, Senhor, trouxe novos elementos de prova ao
confirmar a tese de homicídio, incluindo a própria declaração do investigador de
polícia civil requisitado para atuar no DOI/CODI, investigado como autor do referido
crime (RAMOS, 2011, p. 181).
Porém, através de um habeas corpus, a 4ª Câmara do Tribunal de Justiça de
São Paulo determinou o trancamento do inquérito policial, por considerar que tais
ilícitos criminais teriam sido contemplados pela anistia prevista na Lei nº 6.683/1979.
Apesar do insucesso da demanda, a discussão em torno da possível revisão
da Lei de Anistia e consequentemente a punição dos agentes militares que
cometeram
crimes
comuns,
como,
torturas,
homicídios,
estupros
e
desaparecimentos forçados, proporcionaram um debate mais acurado em torno do
assunto.
Entretanto, somente em 2008, houve, de forma organizada, uma tentativa
formal de revisão ou reinterpretação da Lei de Anistia. Conforme explica André
Carvalho Ramos:
Em outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) interpôs Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF 153) perante o STF, na qual foi pedido que fosse
interpretado o parágrafo único do artigo 1.º da Lei 6.683/1979 conforme a
Constituição de 1988, de modo a declarar, a luz de seus preceitos
fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos e
conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da
repressão (civis ou militares) contra opositores políticos, durante o regime
militar (2011, p. 180).
A ferramenta jurídica adotada pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, intitulada de Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF), disciplinada no § 1º do art. 102 da Constituição Federal de
1988 e regulamentada na Lei nº 9.882 de 03 de dezembro de 1999, de acordo com
Valéria Ribas do Nascimento, “foi um instituto criado a partir da Constituição de
1988, [...], objetivando preservar a obediência às regras e aos princípios
constitucionais que, sendo considerados fundamentais, demandam um mecanismo
próprio para proteção” (2006, p. 56).
Importante destacar a ambígua decisão do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil em fazer uso da ADPF, pois tramita perante o STF Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADIn) ajuizada pela próprio Conselho, questionando a
constitucionalidade da lei que regulamentou a ação de Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental.
Igualmente, por legislação ordinária, foi estabelecida a manipulação dos
efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal. Essa é uma das razões
que levou o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil a
ingressar com a ação direta de inconstitucionalidade, contra a lei que
regulamentou a arguição de descumprimento (NASCIMENTO, 2006, p.
115).
Ação
constitucional
exclusivamente
brasileira,
a
ADPF
não
possui
similaridade no direito internacional, conforme ensina André Ramos Tavares, que
refere haver apenas ferramentas jurídicas aproximadas com o instituto ora em
análise (2001). Tem como característica principal evitar ou reparar lesão a preceito
fundamental, resultante de ato do Poder Público, incluídos os atos anteriores à
Constituição de 1988.
o
o
Art. 1 A argüição prevista no § 1 do art. 102 da Constituição Federal será
proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou
reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito
fundamental:
I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre
lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à
Constituição (Lei nº 9.882/99).
A condição de retroagir e disciplinar controvérsias constitucionais anteriores à
Constituição em vigor capacitou os proponentes dessa ação a discutirem a validade
e a interpretação de lei editada em 1979. De forma sui generis, aplicar o vasto rol de
direitos e garantias fundamentais da Constituição de 1988 ao período da ditadura
militar, ignorando as Constituições Federais e Atos Institucionais vigentes naquele
período.
De posse da prerrogativa de retroagir às violações de direitos anteriores a
CF/88, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, representado pelo
jurista Fábio Konder Comparato, “invocou os preceitos fundamentais constitucionais
da isonomia (art. 5º, caput), direito à verdade (art. 5º, XXXIII) e os princípios
republicano, democrático (art. 1º, parágrafo único) e da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III)” (RAMOS, 2011, p. 180), preceitos elencados pela democrática
Constituição Cidadã de 1988.
No entanto, a ação ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal em 21 de
outubro de 2008 restou julgada improcedente em 28 de abril de 2010, após um
longo debate político-jurídico apartado da sociedade e que expôs diferentes pontos
de vista entre os ministros votantes.
Após o ajuizamento e distribuição da Arguição em 21.10.2008 para a
relatoria do então Min. Eros Grau, foram prestadas as informações, tendo a
Advocacia-Geral da União sustentado o não conhecimento da arguição, em
preliminar, e, no mérito, pela sua improcedência. [...] Na sessão de
julgamento, em 28.04.2010, houve a participação de apenas nove ministros,
pois o Min. Joaquim Barbosa estava licenciado e ainda declarou-se suspeito
o Min. Dias Toffoli. Inicialmente, foram rejeitadas as preliminares, vencido o
Min. Marco Aurélio, que votou pela extinção da ação por falta de interesse
de agir. No mérito, sete Ministros declararam improcedente a arguição (Min.
Eros Grau – relator, Carmen Lúcia, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Cezar
Peluso, Celso de Mello e Gilmar Mendes) e dois votaram pela procedência
parcial (Min. Lewandowski e Carlos Britto) (RAMOS, 2011, p. 181).
Diferentes foram os argumentos apresentados pelos nove Ministros
habilitados a votar, tendo o Ministro Eros Grau, relator do processo, votado pela
improcedência da ADPF por entender que cabia ao Poder Legislativo a revisão da
Lei da Anistia, e não ao STF. Porém, no mérito, a tese que se consolidou e
determinou a improcedência da demanda por 7 (sete) votos a 2 (dois) foi a de que a
revisão da Lei de Anistia romperia com o compromisso firmado entre governo e
oposição, acordo que possibilitou o fim do ditadura militar e o retorno do país ao
Estado Democrático de Direito.
O STF, quando do julgamento da ADPF 153/DF, em que foi relator o então
Min. Eros Grau, afirmou que: “(a) a lei da anistia se deu por solução
consensual das partes (em plena época da ditadura); (b) que não era
aplicável a jurisprudência internacional, porque não seria hipótese de anistia
‘unilateral’, mas sim recíproca, sem questionar, contudo, quem foi que se
autoconcedeu a anistia; e (c) que o cidadão tinha direito à verdade, mas fez
questão de frisar que eventual ‘Comissão de Verdade’ não teria nem
poderia ter qualquer finalidade de persecução penal. Ficaram vencidos
apenas o Min. Lewandowski e o Min. Ayres Britto, ambos com argumentos
distintos” (BALDI, 2011, p. 154).
Apesar de vencidos no julgamento da ADPF/153, importante destacar o teor
dos votos dos Ministros Enrique Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Britto.
Assim sendo, o Min. Lewandowski trouxe ao debate com seus pares o
entendimento desses dois órgãos sobre o objeto da lide. Assim, o voto
expôs o dever brasileiro de investigar, processar e punir criminalmente os
autores das violações graves de direitos humanos na época da ditadura.
Inclusive foi citada parte da Observação Geral 31 do Comitê de Direitos
Humanos, mostrando a verdadeira face do diálogo: o reconhecimento, em
boa-fé, da necessidade de cumprir a interpretação dos direitos previstos no
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em vez de criar uma
estranha “interpretação nacional” e afirmar, posteriormente, estar em linha
com os direitos humanos internacionais (RAMOS, 2011, p. 193).
O Min. Carlos Britto não fez referência aos tratados de direitos humanos ou
às posições assumidas por seus órgãos de controle. Assim, sua
interpretação está baseada na Constituição brasileira que não teria atribuído
caráter “amplo, geral e irrestrito” aceito pelos outros ministros à Lei de
Anistia (RAMOS, 2011, p. 196).
As críticas contra o resultado do julgamento recaíram sobre a manutenção,
por parte dos julgadores, do entendimento de que as torturas, homicídios, estupros e
ocultações de cadáveres cometidos pelos agentes da ditadura foram crimes políticos
ou conexos com estes, conforme a redação do §1º do art. 1 da Lei de Anistia.
Crimes reconhecidamente comuns, que, segundo Ivan Luís Marques “são condutas
tipificadas praticadas sem estar acompanhada de motivação política, ou seja, a
intenção que move o agente para a prática delitiva não diz respeito ao regime
governamental, à ideologia partidária, etc” (2011, p. 146).
Conclui-se, portanto, que os crimes políticos puros possuem características
próprias. Já os crime relativos, quando atingem bens jurídicos caros à
humanidade, perdem sua pureza política e escapam das benesses
concedidas, por exemplo, pela Lei da Anistia. Tornaram-se imprescritíveis e
não anistiáveis (MARQUES, 2011, p. 146).
Por parte dos militares, propagou-se o entendimento de que a revisão da Lei
de Anistia abriria a possibilidade de punição aos “terroristas/subversivos de
esquerda”. Oposicionistas que cometeram assassinatos e sequestros de autoridades
nacionais e internacionais, além de assaltos a bancos e estabelecimentos
comerciais, formas adotadas para custear as campanhas pelo retorno à democracia.
O surto terrorista brasileiro nada teve de incruento. Afora os sequestros,
depois de 1969 faltaram-lhe as sonhadas bases rurais e as ações
espetaculares, mas abundaram as vítimas. [...] Essas organizações
mataram 36 agentes anônimos da ordem. Boa parte deles eram soldados e
cabos das polícias militares. Estavam na base da pirâmide social, mas
sustentavam a ordem da ditadura. O mesmo não se pode dizer de cerca de
quinze guardas de bancos, carros fortes e estabelecimentos comerciais.
Morreram na cena das ações terroristas pelo menos outras dez pessoas
que nada tinham a ver com a segurança dos locais onde estavam. Eram
bancários, comerciantes ou mesmo um cobrador de ônibus (GASPARI,
2002, p. 396).
Os argumentos desestimularam a intenção democrática da revisão da Lei de
Anistia. Alertaram para as possíveis consequências a ambas as partes no caso de
sucesso da ADPF/153. Principalmente no caso de figuras públicas que, após 1985,
passaram a exercer cargos políticos importantes, como o exemplo da Presidente da
República Dilma Roussef, que durante a ditadura militar integrou um grupo de
guerrilheiros de esquerda, tendo participado de sequestros e roubos durante as
campanhas de oposição.
3.3 A condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos
Concomitantemente à tramitação da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 153, tramitou perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos o processo Gomes Lund e Outros vs. Brasil, Caso nº 11.552. A ação
ajuizada em abril de 2009 teve por objeto a apuração dos crimes de detenção
arbitrária, tortura e desaparecimento forçado (ocultação de cadáver) de 70 pessoas,
entre guerrilheiros, moradores da região e camponeses ligados à guerrilha ocorrida
na região amazônica às margens do Rio Araguaia, entre o final da década de 60 e o
ano de 1975. Local que deu nome à Guerrilha do Araguaia e expôs a forma
truculenta e desumana adotada pelos militares para debelar a batalha rural adotada
pelos integrantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), o que, segundo Elio
Gaspari, foram influências das revoluções de esquerda que ocorriam na Albânia, e
não em Cuba ou Moscou (2002, p. 409).
O que se deu no Araguaia foi o paroxismo do choque dos radicalismos
ideológicos que, com seus medos e fantasias, influenciaram a vida política
brasileira por quase uma década. A esquerda armada supusera que estava
no caminho da revolução socialista, e a ditadura militar acreditara que havia
uma revolução socialista a caminho. Até o início do surto terrorista esse
conflito ficara no campo dos receios e planos. Daí em diante, um pedaço da
esquerda mostrara-se disposto ao combate a que julgava ter faltado em
1964. [...] A história brasileira registra confrontos armados sangrentos e
duradouros entre o povo pobre e o poder. Nos maiores, ocorridos no sertão
de Canudos e nas matas do Contestado, contaram-se em poucas dezenas
os combatentes que sabiam ler e escrever. Nas matas perdidas do
Araguaia, o PC do B tornara-se a única – e derradeira – organização política
brasileira a ir buscar na “violência das massas” a energia vital de seu projeto
comunista (GASPARI, 2002, p. 406).
A repressão por parte do estado militar contra a “Guerrilha do Araguaia” se
deu de forma contundente. O envio de numerosas tropas oficiais para combater a
guerrilha rural evidenciou o interesse dos militares em debelar rapidamente o
movimento.
A tropa começou a chegar no dia 12 de abril de 1972. Operava entre
Marabá e Xambioá. Em cada uma dessas cidades acampou um batalhão,
cada um com quatrocentos homens. No interior da floresta instalaram-se
seis bases de combate, cada uma com uma companhia . Em agosto
chegaram a somar 1500 homens (GASPARI, 2002, p. 414).
Os guerrilheiros, compostos basicamente por ex-estudantes universitários e
profissionais liberais, chegaram ao inexpressivo número de 80 componentes, sendo
que 50 deles jamais tiveram seus corpos encontrados. Dos sobreviventes de
expressão política, o ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, José Genuíno,
que foi detido pelo Exército de 1972.
As formas adotadas para executar os guerrilheiros capturados chocaram a
opinião pública, que somente tomou conhecimento das crueldades após a queda da
censura e a divulgação dos testemunhos.
Na tarde de 4 de fevereiro de 1974 Osvaldão estava sozinho, escondido na
floresta, Arlindo Vieira, o Piauí, um jovem camponês que colaborara com os
guerrilheiros, vinha a frente de uma patrulha militar. Viu-o numa capoeira,
sentado num tronco. Matou-o com um só tiro. O corpo enorme e
depauperado do guerrilheiro morto foi pendurado num cabo e içado por um
helicóptero. Despencou. Amarraram-no de novo, e assim o povo da terra viu
que Osvaldão se acabara. Antes de sepultá-lo, cortaram-lhe a cabeça
(GASPARI, 2002, p. 406).
A comprovação das violações ocorridas às margens do Rio Araguaia
permitiram a admissão do Estado brasileiro no polo passivo da demanda, pois
violaram as normas da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969
(CADH), também chamado de Pacto de San José da Costa Rica. Mesmo tendo
entrado em vigor em 18 de julho de 1978, apenas em 25 de setembro de 1992 o
Brasil ratificou sua participação nessa Convenção entre países americanos.
À semelhança da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
adotada e proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Convenção
segue o princípio da imprescritibilidade dos crimes cometidos contra a humanidade,
possibilitando, assim, o processo perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH), órgão que a compõe.
Desta forma, podemos afirmar que o Brasil se submete à Convenção sobre
a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a
Humanidade. O princípio da imprescritibilidade dos crimes contra a
humanidade, localizado no texto da Convenção, tem aplicação imediata e
chega em nosso ordenamento jurídico via §2º do art. 5º da Constituição
nacional (quando feita a leitura pelo jus cogens) e por decisões
condenatórias ao Brasil lastreadas no princípio apresentado, como
aconteceu na condenação do Brasil no Caso Araguaia (MARQUES, 2011,
p. 152).
A prescrição, segundo Ivan Luís Marques, “é a perda do poder-dever de punir
do Estado pelo seu não exercício em determinado lapso de tempo” (2011, p. 136).
Portanto, no caso dos crimes comuns cometidos durante a ditadura militar não
haveria a aplicação deste instituto, possibilitando a punição dos seus agentes e, com
isso, a proteção ampla dos direitos humanos juridicamente defendidos.
A Convenção Americana de Direitos Humanos foi assinada em San José,
Costa Rica, em 1969, no seio da Conferência Especializada de Direitos
Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), mas entrou em
vigor apenas em 1978. Esse tratado, conhecido também como Pacto de
San José da Costa Rica, é hoje o principal diploma de proteção dos direitos
humanos nas Américas por vários motivos: 1) pela abrangência geográfica,
uma vez que conta com 24 Estados signatários; 2) pelo catálogo de direitos
civis e políticos e 3) pela estruturação de um sistema de supervisão e
controle das obrigações assumidas pelos Estados, que conta inclusive com
uma Corte de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, com sede em San José da Costa Rica (RAMOS, 2010, p. 286).
A inclusão definitiva na Convenção Americana de Direitos Humanos somente
ocorreu após o retorno do país à democracia, porém, apenas em 1998 o Brasil
passou a reconhecer a jurisdição obrigatória da Corte, possibilitando o processo e a
punição dos agentes responsáveis por violações aos direitos e garantias
fundamentais na ditadura militar.
O Brasil incorporou definitivamente a Convenção Americana de Direitos
Humanos pelo Decreto Presidencial nº 678, de 11 de novembro de 1992.
Somente em 8 de setembro de 1998 foi encaminhada a Mensagem
Presidencial nº 1.070 ao Congresso, pela qual foi solicitada a aprovação.
[...] Aprovada no Congresso Nacional, foi editado o Decreto Legislativo
89/98, em 3 de novembro de 1998. Finalmente, o Brasil encaminhou nota
transmitida ao secretário-geral da OEA (Organização dos Estados
Americanos) no dia 10 de setembro de 1998, reconhecendo a jurisdição
obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, obrigando-se,
assim, a implementar suas decisões. Tal reconhecimento foi promulgado,
internamente, pelo Decreto 4.463, de 8 de novembro de 2002, quase quatro
anos após o encaminhamento a OEA (RAMOS, 2010, p. 286).
O processo do caso da Guerrilha do Araguaia restou sentenciado em 24 de
novembro de 2010. O julgamento presidido pelo juiz peruano Diego Garcia-Sayán,
tornou-se público após a notificação oficial e através de um comunicado à imprensa.
Postado no site oficial, a Corte confirmou a jurisprudência dos julgados anteriores,
condenando o Estado brasileiro pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas, entre
os anos de 1972 e 1974.
No dia de hoje, a Corte Interamericana de Direitos Humanos notificou o
governo do Brasil, os representantes das vítimas e a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos a respeito da Sentença no caso
Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil. Em sua
Sentença, o Tribunal concluiu que o Brasil é responsável pela desaparição
forçada de 62 pessoas, ocorrida entre os anos de 1972 e 1974, na região
conhecida como Araguaia (www.corteidh.or.cr, 2010).
Conforme formalizado na Convenção Americana de Direitos Humanos, não
cabem recursos contra os julgados da Corte, impossibilitando qualquer forma de
procrastinação ou desídia com a condenação sofrida pelo Brasil.
Art. 67º A sentença da Corte será definitiva e inapelável. Em caso de
divergência sobre o sentido ou alcance da sentença, a Corte interpretá-la-á,
a pedido de qualquer das partes, desde que o pedido seja apresentado
dentro de noventa dias a partir da data da notificação da sentença (CADH,
1969).
A reação dos ministros do STF com o resultado do julgamento foi de
desprezo. Principalmente os votantes contrários à Revisão da Lei de Anistia, que
entenderam que “a punição do Brasil não revoga, não anula, não cassa a decisão do
Supremo” (BALDI, 2011, p. 170).
Iniciando a análise pelo voto do relator, Min. Eros Grau, vê-se que não foi
citada a Convenção Americana de Direitos Humanos – poderia auxiliar a
reflexão sobre a não receptação da interpretação de extensão da anistia a
agentes da ditadura envolvidos em atos bárbaros (RAMOS, 2011, p. 183).
A situação expôs a obrigação do Brasil em cumprir a totalidade da sentença,
que além do episódio referente ao caso Araguaia, responsabilizando o Estado pelo
desaparecimento forçado de opositores durante a guerrilha, condenou o país a
revisar sua Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79). Entenderam os julgadores da Corte ser a
normativa interna incompatível com a Convenção Americana, por impedir a
investigação e sanção de graves violações aos direitos humanos (CIDH, nº 11.552).
Concluíram os julgadores que o réu da demanda foi responsável pelo
sofrimento ocasionado pela falta de investigações efetivas para o esclarecimento
dos crimes. Ordenaram a criação de uma Comissão da Verdade, que cumpra com
os parâmetros internacionais de autonomia, independência e consulta pública para
sua integração, e que esteja dotada de recursos e atribuições adequadas. Processo
que já está em curso no país através do Projeto de Lei nº 7.376/2010.
Reconheceram o esforço do Estado pelas indenizações pecuniárias às vítimas da
ditadura, porém requereram a majoração dos valores fixados e o pagamento das
diferenças (CIDH, nº 11.552).
A soberania da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos se evidencia com a explicação de Marlon Alberto Weichert:
Em outras palavras, para recusar a autoridade da CIDH seria necessário
existir algum vício de inconstitucionalidade – formal ou material – nos atos
de ratificação, aprovação e promulgação da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos ou de aceitação da jurisdição da CIDH. Em especial, para
sustentar a não aplicação de uma sentença da CIDH proferida contra o
Brasil, o STF terá que declarar inconstitucional a promulgação da cláusula
do art. 68.1 da Convenção: “Os Estados-Partes na Convenção
comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem
partes” (2011, p. 228).
A expectativa em torno das medidas a serem tomadas pelo Brasil a partir da
publicação da sentença gerou grande desconforto diplomático. A obrigação de
revisar sua Lei de Anistia expôs a fragilidade do estágio alcançado pelo Estado
Democrático de Direito brasileiro e sua “defasada tutela interna dos direitos
humanos” (GOMES; MAZZUOLI, 2011, p. 61), seja por receio ou por falta de boa
vontade política. Já as demais determinações poderão ser efetivamente cumpridas,
suas diretrizes não comprometem a idoneidade de figuras públicas, mas tão
somente privilegiam o bem-estar das vítimas da Guerrilha do Araguaia.
Consciente das dificuldades práticas para a efetivação do julgado e também
do desinteresse de grande parte da sociedade com a questão, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos comunicou o Estado brasileiro da possibilidade
de sua exclusão da Organização dos Estados Americanos (OEA), caso descumpra o
determinado. Tal procedimento seria severamente danoso às pretensões do Brasil
de adentrar ao seleto rol de países permanentes do Conselho de Segurança da
Organização das Nações Unidas (ONU), além das retaliações imediatas praticadas
pela própria Convenção Americana.
A condenação sofrida pelo Brasil mostrou-se eficaz em outros países sulamericanos, que, por também estarem sob a jurisdição da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, revisaram suas leis e puniram seus agentes que abusaram do
poder durante suas ditaduras militares. Esses exemplos são utilizados como
parâmetro pelos favoráveis ao cumprimento total do julgado, justificando o progresso
democrático ocorrido nestes países.
O Chile, apesar de ter promovido alterações espontâneas em sua lei de
anistia, igualmente favorável aos militares, tal se deu por pressão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o que possibilitou a prisão do ex-chefe da Dina
(polícia civil chilena), Manuel Contreras, por crimes cometidos na ditadura,
encerrada no país em 1990.
Na Argentina, após forte pressão exercida pelas vítimas da severa ditadura
militar que vigorou de 1976 a 1983, revogaram-se em 1995 as Leis Ponto Final
(1986) e Obediência Devida (1987). Similares à Lei de Anistia brasileira, suas
revogações permitiram os processos contra autoridades militares e políticas, como o
general Reynaldo Benito Bignone, último presidente de fato da ditadura argentina.
Condenado em abril de 2010 a 25 anos de prisão pelos crimes de roubo, sequestro
e tortura durante o regime militar no Campo de Mayo, o maior complexo de detenção
e torturas dos anos 70 no país. Casos que servem de parâmetro para os prováveis
processos a serem respondidos pelas autoridades militares brasileiras da época.
Antes de abandonar el poder, los militares produjeron una amnistia sobre
sus propios comportamientos. A través de la “ley” de facto 22.924 la
dictadura busco auto amnistiarse em relación con los delitos que se
cometieron em aquel período.
Al asumir el gobierno democrático del. Dr. Afonsín – representante del
partido Radical – se creó una comisión especial – CONADEP – con el fin de
recopilar toda la información posible sobre el destino de los detenidos
desaparecidos y otros crímenes de la dictadura. Esa informacíon se volcó a
libro “Nunca Más”. Además, mediante la ley 23.040 el Congresso derógo la
ley 22.294 considerandola inconstitucional e insanablemente nula por
pretender el perdón de los crímenes perpetrados por el gobierno militar
desde 1976 a 1983 (YACOBUCCI, 2011, p. 26).
A condenação sofrida pelo Estado brasileiro trará reflexos nos próximos anos,
o que deverá incluir o Brasil no rol de países que revisaram suas leis de anistia e,
com isso, puniram seus agentes da ditadura. Entende-se que assim, em prol de uma
suposta evolução democrática, o país terá cumprido com suas obrigações firmadas
quando ratificou sua participação na Convenção Americana de Direitos Humanos.
3.4 A criação da Comissão da Verdade e a Lei de Acesso à Informação
Concomitantemente à sanção presidencial que criou a Comissão da Verdade
(Lei nº 12.528/2011), a Presidente da República Dilma Roussef sancionou a lei que
permite aos cidadãos o acesso às informações públicas (Lei nº 12.527/2011). A
criação de ambas as leis já havia sido imposta ao Brasil através da sentença
proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do caso da
Guerrilha do Araguaia. Apesar de a condenação se referir aos envolvidos na
Guerrilha, projetos de lei visando à criação de uma Comissão Nacional da Verdade e
de acesso a informações públicas já tramitavam no Congresso Nacional.
Apesar da iniciativa brasileira, os juízes da Corte Interamericana de Direitos
Humanos teceram severas críticas aos moldes adotados pelo legislador nacional,
expressando na sentença a preocupação com a forma adotada para sua
constituição.
Quanto ao projeto de lei que atualmente se encontra no Congresso,
expressaram sua preocupação, entre outros aspectos, por que os sete
membros da Comissão Nacional da Verdade seriam escolhidos
discricionariamente pelo Presidente da República, sem consulta pública e,
portanto, sem garantias de independência e, ademais, que se permitiria a
participação de militares como membros, o que afeta gravemente sua
independência e credibilidade (CIDH, 2010, p. 106).
As críticas quanto à forma de composição da Comissão da Verdade não
modificaram sua configuração, centralizando na Presidente da República este poder.
Esta condição tem explicitado o temor nos meios militares, principalmente entre
aposentados e agentes públicos que faziam parte do governo entre os anos de 1964
e 1985, de serem investigados, processados e julgados por vítimas diretas ou
indiretas de seus crimes.
Segundo palavras da própria Presidente Dilma Roussef, ex-guerrilheira e
vítima das violações de direitos por parte dos militares, estas leis têm o condão de
evitar que “nenhum ato nem documento que atente aos direitos humanos possa ficar
sob sigilo, o sigilo não oferecerá nunca mais guarida ao desrespeito aos direitos
humanos no Brasil”.
Em defesa dos militares, a Lei de Anistia afasta qualquer possibilidade de
punição atual para eventos do período investigado, porém, apesar da improcedência
da ADPF 153, a Corte Interamericana de Direitos Humanos destinou espaço na
sentença para, de forma incisiva, questionar sua manutenção.
135. Em virtude dessa lei, até esta data, o Estado não investigou, processou
ou sancionou penalmente os responsáveis pelas violações de direitos
humanos cometidas durante o regime militar, inclusive as do presente caso
173. Isso se deve a que “a interpretação [da Lei de Anistia] absolve
automaticamente todas as violações de direitos humanos que tenham sido
perpetradas por agentes da repressão política”174 (CIDH, 2010, p. 50).
Assim sendo, a coexistência de uma Comissão da Verdade com a lei que
concede a anistia aos investigados representa a falta de convicção do governo
brasileiro quanto ao melhor caminho a ser seguido. Significa a imposição da decisão
estrangeira proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que, ao aplicar
decisões análogas em outros países, constatou o progresso democrático através da
prestação de contas com o passado e suas vítimas.
A Comissão da Verdade poderá pedir à Justiça acesso a documentos
privados, investigar violações aos direitos humanos, com exceção dos
crimes políticos, de motivação política e eleitorais abrangidos pela Lei da
Anistia, "promover a reconstrução da história dos casos de violação de
direitos humanos" e disponibilizar meios e recursos necessários para a
localização e identificação dos restos mortais de desaparecidos políticos
(ALCÂNTARA, 2011).
As pressões externas sofridas pelo Brasil no sentido de revisar a Lei de
Anistia tem ameaçado a soberania do Supremo Tribunal Federal. Este, ao julgar
improcedente a revisão da referida lei, refletiu a importância dada pela maioria da
sociedade brasileira ao caso. Porém, sua revisão se mostra inevitável, aproximando
os militares ainda vivos, de condenações por seus crimes cometidos durante o
regime militar.
Entretanto, de forma abrangente, a Comissão da Verdade está sendo criada
para a investigação, em apenas dois anos, das violações aos direitos humanos
ocorridos entre os anos de 1946 e 1988. A comissão não terá poder de julgar,
apenas de emitir relatórios sobre as investigações, sendo destituída ao final do
segundo ano.
As condições impostas para criação da Comissão da Verdade serão
facilmente subjugadas a partir da revisão da Lei de Anistia, expondo militares às
condenações já aplicadas em países vizinhos. Punições que não representam o
interesse nacional, que espera das autoridades a solução de problemas imediatos e
que reflitam na qualidade suas vidas.
CONCLUSÃO
A condenação sofrida pelo Estado brasileiro perante a Corte Interamericana
de Direitos Humanos já começou a repercutir nos meios políticos do país. O fato de
muitos agentes militares da época da ditadura ainda fazerem parte do poder dificulta
a efetivação plena do julgado. Recentemente o deputado federal e militar da reserva
Jair Bolsonaro (PP-RJ) criticou veementemente a forma adotada pelo Legislativo
brasileiro para a implantação da Comissão da Verdade, um dos itens que compõe a
decisão imposta pela Corte.
Os representantes solicitaram ao Tribunal que ordene ao Estado a criação
de uma Comissão da Verdade, que cumpra com os parâmetros
internacionais de autonomia, independência e consulta pública para sua
integração e que esteja dotada de recursos e atribuições adequados (CIDH,
2010, p. 106).
Afirmando falar em nome dos oficiais generais do Exército, Jair Bolsonaro
condenou a iniciativa do Palácio do Planalto de aprovar o grupo de trabalho que terá
por função examinar as violações de direitos humanos durante os anos de 1946 e
1988. Tentando preservar a imagem dos militares aposentados e falecidos que
prestaram serviços entre os anos de 1964 a 1985, questiona a intenção do governo
de "efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação
nacional", através desses meios.
Contraditoriamente, na fundamentação da sentença os juízes da Corte
expressaram a preocupação com a possibilidade de nomeação discricionária da
Presidente da República dos membros desta Comissão. Receiam os julgadores que
haja nomeações de cunho político, ou mesmo de pessoas ligadas aos interesses
dos militares da época, ou mesmo de opositores revanchistas. Situação não
verificada até o momento, mesmo se tratando de uma Presidente ex-integrante dos
movimentos de oposição ao regime militar.
A implantação da Comissão da Verdade tem por finalidade a individualização
da conduta dos agentes militares, o que futuramente desencadeará nas punições de
suas condutas. Objetivo não alcançado através da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental interposta pela Ordem dos Advogados do Brasil perante o
Supremo Tribunal Federal, a qual buscava a revisão da Lei de Anistia. Resultado
que somente o futuro poderá esclarecer se positivo ou negativo ao país.
A inquestionável evolução brasileira ocorrida após 1985 selou o fim de uma
era, culminando na promulgação da Constituição Federal de 1988 e seu exaustivo
rol de direitos e garantias fundamentais. A busca pela efetividade dessas normas
reflete a consolidação da democracia no Brasil, não parecendo ser determinante
nesse processo a ocorrência de punições àqueles cidadãos brasileiros que,
decorridos quatro décadas de seus crimes, afirmarão terem agido em nome da
pátria.
Independentemente das possíveis consequências, a obrigação do Estado
brasileiro de adequar seu direito interno à Convenção Americana de Direitos
Humanos deverá ocorrer de forma pública e livre de questões políticas,
prenunciando uma nova revolução nos meios políticos do país, caçando-se direitos
adquiridos pela Lei de Anistia.
O respeito às vítimas daquele período histórico se demonstra através da
indenização pecuniária às vítimas e seus familiares, forma que deve ser
aperfeiçoada e encerrada quando do seu alcance pleno. As condenações penais no
Brasil jamais tiveram a capacidade de ressocializar criminosos, o que se contrapõe
ao objetivo das medidas que serão adotadas após longos anos de consolidação
democrática, expondo os agentes ainda vivos da ditadura ao retrocesso da Lei de
Talião, “olho por olho, dente por dente”.
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