Maio de 2011
nº 52
Análise de conjuntura sobre fatos da atualidade nacional e
internacional.
Bom Senso Comum
G
ramsci, em seu laboratório
conceitual, desenvolveu com
especial
atenção a
idéia
de "senso comum" - conceito que
tornou-se central em sua filosofia
política para explicar a manutenção
de hegemonias político-sociais.
Um bom exemplo brasileiro-carioca,
do nosso senso comum tupiniquimmaravilhoso, pode ser visto na
postura – os pós-modernos diriam
no “discurso” - que temos em
relação aos mendigos1
Sejam crianças ou adultos, meninos
ou meninas, que se drogam,
roubam, comem lixo e se prostituem
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http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2010/4/e
ntorno_do_maracana_largado_as_tracas_76961.
html
Invariavelmente, terminamos por
culpar as vítimas por sua própria
desgraça. Não entendemos como
eles insistem em sobreviver em
condições tão degradantes e sujas,
ao passo que o resto das pessoas
“normais” não apenas sobrevive,
mas vive também.
Assim
como
o
liberalismo
neoclássico - tudo a ver com essa
história, por sinal - entende que só
existe desemprego voluntário ou
friccional (haja fricção então!), o
liberalismo político do senso comum
brasileiro (ambos
altamente ideológicos) culpa esses
objetos humanos por obrigarem o
1
Historiador, Pacs /Rede Jubileu Sul
nas ruas, parques, viadutos. "Que
horror"; "degradação"; "não vou dar
dinheiro porque podem comprar
drogas"; "por que não vão arrumar
trabalho?"; "darei um real por
pena, porque faz mais falta pra ele
do que pra mim" etc.
Página
Miguel Borba de Sá
"Por que eles não param de cheirar
cola e vão estudar, para depois
trabalhar, que nem todo o
mundo?",
pergunta o sub-texto desse discurso
burguês-tupiniquim,
constitutivo
das práticas sociais que tornam
possível ignorar, silenciar, fingir não
ver a realidade, mesmo que ela
insista em diariamente invadir seu
Se ao menos a pergunta fosse
sincera e não apenas cínica... O
cinismo, aliás, é uma das formas
mais usuais de expressão formal
da ideologia, como
nos
lembra Zizek.
Mas a pergunta não é sincera. Caso
fosse, rapidamente estaríamos
diante de um novo objeto de
investigação na academia e de
debate sócio-político nos mais
diferentes espaços, desde a grande
mídia até a conversa de botequim,
passando pelas mais diversas formas
de expressões estéticas da cultura
nacional. Mas não. Atualmente,
trata-se de um tema marginal tanto
nas pesquisas acadêmicas dos
nossos cientistas sociais, quanto nas
políticas públicas, vide a distribuição
da fatia orçamentária que tal
população recebe: arrisco dizer que
deve ser próximo do 0%. Nada mais
natural – naturalizado, na verdade para um tipo de gente que, se tudo
corresse bem, deveria ser invisível
mesmo. Ninguém se interessa em
perguntar um verdadeiro “por quê”
em relação a duas questões: por que
aquelas pessoas estão ali?; e por
que continuam ali, depois de tanto
tempo?
2
É fascinante! Ou melhor, assustador.
Por um lado retira-se todas as
condições - todas! - possíveis para
que uma pessoa possa tornar-se um
sujeito (social) digno do nome.
Através de uma violência incrível, ao
mesmo tempo estrutural e diária,
reduz-se este indivíduo a puro
objeto, mero corpo ("vida nua", nos
termos de Agambem, em sua mescla
de Schmidt e Foucault). Por outro
lado, e ao mesmo tempo, cobra-se
impiedosamente
esse
homo
sacer por
estar
encarnando
o fracasso deste objeto que não
virou sujeito!
campo de visão e estragar o deleite
estético-paisagístico
da
cidade
maravilhosa.
Página
cidadão de classe média - ou seja,
"a sociedade", também chamada
de "opinião pública" que, em nossos
termos, exerce a função de portavoz do senso comum - a ter
um contato desagradável; a passar e
ter de olhar isso - não esses - todos
os dias, estragando uma parte de
sua
manhã
ou
tarde,
e
amedrontando-o à noite.
M
Não, definitivamente bom-senso
nada tem a ver com senso-comum.
O dia em que eles estiverem juntos,
quem sabe num bom-senso-comum,
as coisas comecem a ficar melhores.
Ou, pelo menos, menos cínicas.
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Utilidade Pública Estadual – Diário Oficial de
02/06/2003 – Lei nº 4.108.
Utilidade Pública Municipal – Diário da Câmara
Municipal do Rio de Janeiro de 13/09/2004 –
Lei nº 3832 de 09/09/2004
Inscrição nº 620 no Conselho Municipal de
Assistência Social – CMAS, processo nº
08/015202/03, publicado no Diário Oficial do
Município de 28/10/2003
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No entanto, é inegável que qualquer
criança não se satisfaria com essa
resposta do senso comum. Dentre
outras coisas por que falta bomsenso a essa explicação. Quase
chega a ser uma provocação, na
verdade. Já que culpar a vítima por
sua própria desgraça deveria ser
imoral até para o senso comum
burguês. Certamente soa como
imoral e perversa para os mais
jovens. Aliás, as crianças muitas
vezes são as maiores desafiadoras
do senso comum, mesmo que
involuntariamente.
Elas
ainda
estranham
a
transformação
ideológica do absurdo em natural,
em normal, em inevitável ou,
simplesmente, em real.
uitas vezes cometem gafes por
questionar de modo direto
aquilo que nos esforçamos
diariamente para esconder
embaixo do tapete - ou dos viadutos.
Como é difícil responder às crianças
nessas horas! Seu bom-senso ao
questionar a desigualdade, a injustiça e
a indiferença é capaz de perturbar
nosso senso comum. Não raro
perdemos a paciência e respondemos:
"Isso é assim por que é! Um dia você
vai entender". E vão mesmo, assim que
forem socializadas pela ideologia
oficial, que nos permite considerar
tudo isso normal, natural ou impossível
de mudar.
Página
Não
nos
interessamos
em
perguntar pois a resposta já nos foi
dada – e aceita – antes mesmo de
formularmos a pergunta: estão lá
porque não estudam nem trabalham
– ou qualquer outra derivação da
ideologia-resposta do nosso senso
comum carioca. Simples e rasteiro,
como toda ideologia que é bem
sucedida em tornar-se senso
comum. Eficiente em manter tudo
como está, dentre outras formas, a
partir dessa habilidade em nos
impedir
de
nos
indagarmos
seriamente sobre os temas mais
óbvios, porém de resolução
complicada,
que
envolvem
interesses poderosos.
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Bom Senso Comum