A PROMOÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NOS DISCURSOS OFICIAIS DO MINISTÉRIO DA CULTURA DO
BRASIL*
Diego Barbosa da Silva**
Introdução
A globalização e os avanços científicos e tecnológicos diminuíram as distâncias espacial e
temporal entre os homens, conectou culturas, possibilitou trocas, promoveu profundas
transformações no comportamento humano e aumentou o abismo sócio-econômico que divide
ricos e pobres. Nesse novo ambiente sócio-cultural, o campo linguístico também foi afetado e
hoje convive-se com a competição, cooperação, interação entre línguas num contexto/enfoque
global.
Nesse ambiente multilíngue global transitam línguas com diversos stati e esferas de
atuação, entre eles, línguas locais, de imigrantes, minoritárias, frente às tais línguas nacionais,
internacionais e apenas uma global: o inglês. Língua imperial, o inglês se impõe hegemonicamente
como expressão dessa globalização e sem a necessidade de uma lei ou políticas que garantam seu
espaço. A língua inglesa para chegar onde está hoje, acompanhou a expansão do império
britânico nos séculos XIX e XX e a ascensão dos Estados Unidos como superpotência,
principalmente depois da Guerra Fria (1989/1991).
Contudo, no mesmo ambiente,, ao lado do inglês,, diversas línguas com importante peso
econômico, cultural, político e/ou demográfico se destacam, como é o caso do francês, do
espanhol, do alemão, do chinês, do russo, do árabe. E por que não do português? Afinal, nesta
última década é facilmente perceptível a intensificação de uma política de promoção e difusão do
português pelo mundo. Mas que língua é essa que busca internacionalizar-se? Qual o sentido da
língua portuguesa nesse processo dentro de um contexto global e amplo, que envolve também um
passado colonial, que opõe uma ex-metrópole e sete ex-colônias?
Neste artigo, busco através de conceitos da análise de discurso de base francesa (PÊCHEUX,
1988; MAINGUENEAU, 1997), independente das divergências internas, identificar o sentido da
*
Parte desta pesquisa foi apresentada no X Encontro de Ciência Empírica em Letras, entre os dias 17 e 18 de setembro
de 2009 na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
*
Mestrando em Linguística do Programa de Pós-graduação em Letras da UERJ.
língua portuguesa em discursos oficiais brasileiros, referentes às últimas políticas para a
promoção do português. Esses discursos se inserem em um contexto ainda maior de política
linguística da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em que o Brasil é apenas um
componente.
Língua portuguesa: da colonização ao cenário global
Segundo o Summer Institute of Linguistics (SIL) e Lewis (2009), que valorizam o peso das
línguas minoritárias, o português é falado atualmente por 233 milhões de pessoas.. Dessas, 89,9%
como língua materna (LM) e 10,1%, ou seja, 23,5 milhões como segunda língua (L2) , o que torna a
quinta língua mais falada no mundo (SILVA, 2009). Já de acordo com o Ministério das Relações
Exteriores do Brasil (2010) e a CPLP (2010) há no mundo 245 milhões de lusofalantes. Dentre
todas as fontes é certo afirmar que o português é falado por 230 a 250 milhões de pessoas
atualmente (2010).
Embora língua oficial em nove países – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné
Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé Príncipe e Timor Leste – o português atinge
praticamente como língua falada a totalidade dos habitantes em apenas dois deles, Brasil e
Portugal. Nos países africanos e no Timor Leste atua como língua de unificação na forja de uma
identidade nacional que represente as dezenas de grupos étnicos, mas ainda não é falada por uma
maioria expressiva sequer como segunda língua1. Assim, o português está em plena expansão,
pois ainda há nesses países, segundo os cálculos do SIL (2009), 25,8 milhões de pessoas que não
falam português.
Por esses motivos, pode-se inferir que a política linguística internacional do português se
resume ao somatório2 de duas políticas nacionais, a de Portugal e a do Brasil. Não se trata aqui de
apagar a contribuição, a identidade ou a memória dos angolanos, moçambicanos, caboverdianos,
são-tomenses, guineenses e timorenses na construção da língua portuguesa. Mas apenas de
considerar metodologicamente somente os dois países referidos onde o português está
1
Segundo o Ethnologue (2009), em Moçambique, apenas 27% da população e em Angola, 40% da população
dominam a língua portuguesa como LM e L2. Em Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe a maioria da população
tem como língua materna crioulos de base portuguesa e no Timor Leste, a língua principal é o tetum, que, inclusive, é
oficial ao lado do português. Já na Guiné Equatorial, o português tornou-se em 2007 a terceira língua oficial do país, ao
lado do francês (oficial desde 1998) e do espanhol (desde a independência em 1968).
2
Nota-se que somatório aqui não necessariamente indica que as políticas se complementam ou estão em
cooperação, mas que podem tanto se complementar, estar em oposição, quanto em aparente neutralidade.
consolidado político-nacionalmente. Essa característica específica ao Brasil e a Portugal justifica
um maior interesse e a maior quantidade de políticas, executadas pelos dois na expansão do
português externamente3. Enquanto, que os demais países lusófonos passam por um processo de
aportuguesamento com as especificidades de cada país, ou seja, por um processo de ampliação da
atuação do ensino e do poder da língua portuguesa. Isso graças à recente independência e ao
processo, ainda em curso, de construção de uma identidade nacional, a partir da língua europeia
alóctone ressignificada.
Observando a trajetória da língua portuguesa, notam-se duas características que marcam
toda a sua história. A primeira é o fato de ter sido uma língua em expansão desde o seu
surgimento. Do condado Portucalense ao Algarve, na expulsão dos árabes do solo europeu, às
grandes navegações e à conquista da África no século XV e do Brasil e Ásia no século XVI até a
expansão mais recente em solo africano e no Timor Leste pós-independência.
A segunda é o fato de ter sido língua colonizadora em três continentes. Basta sobrepor o
mapa das conquistas e das colônias portuguesas ao mapa atual dos países, das regiões que
concentram falantes do português ou crioulos de base portuguesa para perceber que a língua
europeia permaneceu no seu papel de língua oficial. Assim, o colonialismo está enraizado no
português e por isso deixou marcas profundas, seja no contato com outras línguas na dominação
de terras “desconhecidas”, seja no silenciamento dessas línguas autóctones ou ainda no papel que
coube ao português como sinônimo da nação e do povo de Portugal. Afinal, os três – língua, nação
e povo – carregam o mesmo nome, utilizam a mesma denominação – português/portuguesa.
Dessa
forma,
a
memória
da
língua
portuguesa
está
marcada
pelo
expansionismo
e
consequentemente pelo colonialismo.
Colonizar supõe o contato, o encontro, entre povos e culturas, “entre dois imaginários
linguísticos constitutivos (...) línguas com memórias, histórias e políticas de sentidos desiguais”
como afirma Mariani (2004, p. 28). Difícil, porém, é imaginar que esse contato entre culturas tão
diferentes, esse contato com o “desconhecido”, possa ser feito sem conflitos, ainda mais entre
3
Após o fim da guerra civil (2002) Angola tem apresentado políticas para a expansão do português na África, para
assim aumentar sua influência no continente. O ministro de Zâmbia para os Assuntos da Presidência, Ronald Mukuma, em
visita a Angola em 16 de abril de 2009, demonstrou interesse em adotar o português como língua estrangeira no ensino
primário do país localizado entre Angola e Moçambique. Ele argumentou que um maior conhecimento das línguas oficiais
fará com que a comunicação "não se torne barreira para o alcance das metas desejadas pelos dois Estados, viradas para o
incremento da cooperação e das relações de irmandade entre os respectivos povos" (Jornal África 21 de 17 de abril de
2009).
povos com modos de produção econômica tão distintos.
Dessa forma, a colonização europeia na América, África, Ásia e Oceania impôs não apenas
uma exploração brutal, mas também uma visão de mundo, imposição de valores, religião, modo
de pensar, imposição da língua, uma violência simbólica, marcada por uma ideia valorativa de
superioridade europeia, em oposição a uma inferioridade e incapacidade dos povos autóctones
(SILVA, 2009).
Destarte, os europeus estavam nesses continentes, em sua visão, também para civilizar. E
nesse processo civilizatório, a língua portuguesa seria essencial, pois “impõe-se com força
institucionalizadora de uma língua escrita gramaticalizada, que já traz consigo uma memória, a
memória do colonizador sobre a sua própria história e sobre a sua própria língua” (MARIANI,
2004, p. 24).
No entanto, a colonização não foi feita pacificamente, afinal é um ato de violência e se
exerce na força. Os povos ameríndios, bantus, malaios e mauberes não aceitaram todas as
imposições europeias. Eles resistiram de todas as formas possíveis, seja física, cultural, ou mesmo
silenciosa. Essa resistência também se percebe na língua:
o português que se passou a falar aqui (no Brasil, por exemplo) traz uma memória europeia,
mas historicizou-se de modo diferente em função do contato com as demais línguas e em
função da própria formação histórico-social e posterior transformação política da colônia em
nação independente (MARIANI, 2004, p. 22).
Por isso, mesmo após a independência da primeira colônia portuguesa em 1822 (Brasil) e
das demais colônias em 1974 (Guiné-Bissau), 1975 (Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé
e Príncipe) e 2002 (Timor Leste), a questão colonial continua opondo dentro do universo
discursivo da língua portuguesa a ex-metrópole, Portugal e as ex-colônias, ao mesmo tempo que
aproxima os países, formando um jogo discursivo complexo de interações histórico-ideológicas.
Constitui-se, assim, uma língua que carrega, por não dizer representa a memória nacional e
imaginária portuguesa, mais as memórias das línguas silenciadas pela primeira que resistiram
durante a colonização, para juntos constituir/construir as novas memórias nacionais cisatlânticas
na América, África e Ásia.
É justamente nessa construção histórica que se insere a atual política linguística do
português, impulsionada pela criação em 1996 da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP), que assumiu também a tarefa de expansão da língua portuguesa pelo mundo. Missão,
essa, antes executada apenas por Portugal e pelo Brasil. Pelo primeiro, desde a criação da Junta da
Educação Nacional em 1929, que foi sucedida pelo Instituto para a Alta Cultura (1936-1952),
depois Instituto de Alta Cultura (1952-1976), Instituto de Cultura Portuguesa (1976-1980) e
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (1980-1992), para finalmente dar lugar à criação do
Instituto Camões em 1992 e pelo segundo, a partir da criação em Montevidéu do Instituto Cultural
Uruguaio-Brasileiro em 22 de agosto de 1940. Depois o governo brasileiro fundou mundo a fora
os Centros de Estudos Brasileiros (CEB´s), que posteriormente foram sucedidos pelos Centros
Culturais Brasileiros, mantidos pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) e os Institutos
Culturais, privados, mas com o apoio do MRE.
Porém, embora seja um dos objetivos-pilares da CPLP4, nos primeiros anos da
organização, a língua em comum era vista mais como uma oportunidade de aproximar e unir
países tão distantes, de culturas tão diferentes para cooperação também na área econômica, mas
principalmente na educacional e cultural, a um instrumento de ampliação do poder dos países
membros no mundo. Portanto, o Brasil seria porta de entrada de Portugal e dos países africanos
na América Latina, assim como os africanos lusófonos seriam para brasileiros e portugueses na
África e Portugal porta de entrada para o Brasil e os africanos na União Européia, aumentando,
desse modo o intercâmbio entre o três continentes (SILVA, 2009). Foi apenas nesta última década
que o interesse e a necessidade de uma política pela promoção da língua portuguesa têm-se
mostrado mais presentes nos encontros da organização.
A CPLP reuniu, assim, no objetivo de promover o português, os dois países que apresentam
há décadas políticas próprias para a difusão da língua portuguesa no exterior para uma possível
atuação conjunta, sem desconsiderar a soberania de ambos. De um lado, o Brasil, ex-colônia com
vasta área, maior população, grande difusão e maior apelo cultural no mundo, com telenovelas,
carnaval e futebol e 83,4% dos lusofalantes do mundo. De outro, Portugal, ex-metrópole, de
“civilização milenar”, berço do idioma português, membro da União Européia, mas com apenas
4,5% dos falantes no mundo. Esses parâmetros distintos e por que não dizer discrepantes entre os
países lusófonos, construídos através do colonialismo trazem às políticas de promoção da língua
4
Os objetivos da organização em três pilares: a) a concertação político-diplomática entre seus estados membros,
nomeadamente para o reforço da sua presença no cenário internacional; b) a cooperação em todos os domínios, inclusive
os da educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, agricultura, administração pública, comunicações, justiça, segurança
pública, cultura, desporto e comunicação social; c) a materialização de projetos de promoção e difusão da língua
portuguesa (Estatuto da CPLP, 1996).
uma tensão quase invisível, mas perceptível nos discursos de seus maiores representantes
governamentais.
Entre as políticas linguísticas recentes da CPLP para tal finalidade destacam-se: a criação e
reformulação do Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP) em Cabo Verde (1989/19992005); a inauguração do portal da CPLP (2008); a criação por Portugal do Fundo da Língua
Portuguesa (2008); o lançamento do edital Doc-TV (2008-2009) para financiar documentários nos
países lusófonos; a entrada em vigor do acordo ortográfico de 1990 (2009); a petição para que o
português se torne língua oficial das Nações Unidas; a instituição do dia cinco de maio como dia
da língua portuguesa e da cultura na CPLP (2009); e a proposta de instituir no Rio de Janeiro um
centro de estudos do patrimônio.
Essas políticas implantadas pela CPLP visam, como está expresso na Declaração sobre a
língua portuguesa (2008), “defender o patrimônio comum entre seus membros” em tempos de
globalização e também promover a língua portuguesa pelo mundo global.
Somam-se às ações da CPLP, de Portugal e dos governos de Fernando Henrique Cardoso –
instituição pelo Brasil do Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros
(Celpe-Bras) (1994-1998) – as recentes medidas do Brasil nos governos Lula: criação da Comissão
para Definição da Política de Ensino-Aprendizagem, Pesquisa e Promoção da Língua Portuguesa ou
simplesmente Comissão da Língua Portuguesa (Colip) no Ministério da Educação (MEC) (20042007) composta por dezessete linguistas, um diplomata e um representante do Ministério da
Cultura; a inauguração do Museu da Língua Portuguesa (2006) e a abertura da Universidade
Federal da Integração Luso-Afro-Brasileira (Unilab) em Redenção no Ceará (2010). Além disso,
houve a proposta em 2004 de criação pelo MEC do Instituto Machado de Assis (IMA), semelhante
ao Instituto Camões, que foi duramente criticada pelo Itamaraty e por isso não vingou. Porém, as
ações brasileiras ainda ficam prejudicadas por falta de orçamento e prioridade do governo, além
de ações concorrentes entres os ministérios da Educação (MEC), Cultura (MinC) e Relações
Exteriores (MRE).
Todas essas políticas linguísticas nacionais comprovam que apesar da cooperação na CPLP,
a independência de seus membros mantém vivas as suas vozes, seu poder político e soberania
sobre a língua portuguesa em seus territórios e por extensão em suas ações fora deles, já que
nenhum Estado membro da Comunidade pode intervir em outro. Tanto que o acordo ortográfico
de 1990 só entrará em vigor em cada país, se o seu parlamento, assim, o desejar.
Metodologia e coleta dos corpora de análise
Como o objetivo desta pesquisa é melhor compreender o sentido da língua portuguesa na
política linguística, implantada pelo Brasil para a sua promoção no exterior, consideramos para
fins de análise apenas os discursos com algum caráter oficial em que estivessem expressas a voz
ou vozes do governo federal. Por isso, foram excluídos da análise, discursos da imprensa não
oficial que retrataram as políticas implantadas, pois expressam a voz do governo brasileiro através
de um discurso terceiro ou relatado, ou seja, de forma não direta (MAINGUENEAU, 1997;
SANT´ANNA, 2004).
Como discursos oficiais do governo federal têm-se a legislação ou informativos de sites ou
blogues da presidência e de ministérios. Contudo, o gênero lei, por apresentar poucas marcas
devido ao seu formato padronizado, não foi utilizado como objeto desta análise. Quanto às
informações e textos do governo na internet, três são ministérios que compartilham atualmente as
ações e os interesses diretos pela promoção internacional do português: Ministério das Relações
Exteriores (MRE), Ministério da Educação (MEC) e Ministério da Cultura (MinC), embora a
competência seja apenas do primeiro.
Neste artigo, optamos por analisar as ações do MinC, pois esse ministério, como o MEC
tem apresentado recentemente suas primeiras propostas de políticas a nível internacional para a
expansão da língua portuguesa, ao contrário do MRE, que mantém há décadas projetos do gênero.
Portanto, as ações dos ministérios da Educação e Cultura fazem parte dessa onda de políticas
brasileiras nesta última década. No entanto, as propostas a cargo do MEC, como o IMA e a Colip
não saíram do papel ou estão paralisadas.
Para a coleta de corpora foi escrito no campo busca do site do MinC, acessado no dia 15 de
abril de 2009, a expressão “língua portuguesa”, como podemos ver abaixo.
Depois, foi apresentada uma relação com todos os textos do próprio site relacionados ao
tema: língua portuguesa.
Como limites para o recorte temporal a fim de selecionar as notícias foi utilizada a data de
fundação do Museu da Língua Portuguesa – 20 de março de 2006 - e a data da entrada em vigor
no Brasil do acordo ortográfico de 1990 - 1° de janeiro de 2009.
O Museu da Estação da Luz, ligado à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, planeja
não ser o museu apenas da língua falada no Brasil, mas pretende retratar tanto a história do
surgimento do português desde as Guerras de Resistências (194 a 19 a.C.) na invasão da
Península Ibérica pelo Império Romano, até à difusão internacional do português, com os nove
países e outros territórios de língua portuguesa. Para Silva Sobrinho (2008, p. 497) o Museu da
Língua Portuguesa “pode ser tomado como um instrumento linguístico na medida em que, assim
como a gramática e o dicionário intervém na relação entre língua, sujeito e Estado”. Assim, podese inferir a importância desse museu para o português, pois “como instrumento linguístico no qual
se pode observar o espetáculo da língua, esse museu produz um arquivo da língua e do saber
sobre ela” (SILVA SOBRINHO, 2008, p. 498).
Em relação às recentes políticas de promoção do português, o acordo ortográfico tem-se
mostrado o de maior cobertura pela imprensa, já que afeta diretamente toda a população dos
países lusófonos. Como se pode perceber no site da CPLP, o acordo ortográfico vem aumentar a
partilha de conteúdos no plano internacional para consequentemente aumentar o peso da língua
no mundo:
Existem desvantagens na manutenção desta situação (dupla grafia) e a língua será
internacionalmente tanto mais importante quanto maior for o seu peso unificado. A existência
de dupla grafia limita a dinâmica do idioma e as diferenças criam obstáculos, maiores ou
menores, em todos os incontáveis planos em que a forma escrita é utilizada: seja a difusão
cultural (literatura, cinema, teatro); a divulgação da informação (jornais, revistas, mesmo a TV
ou a Internet); as relações comerciais (propostas negociais, textos de contratos) etc., onde o
Português escrito é utilizado. Isto, se considerarmos apenas as relações intracomunitárias
(nos oito países da CPLP). Nas relações internacionais, recorde-se que existem quatro grandes
línguas (Inglês, Francês, Português e Espanhol) e que o Português é a única com duas grafias
oficiais. Assim, no plano intracomunitário, a dupla grafia dificulta a partilha de conteúdos, no
plano internacional, limita a capacidade de afirmação do idioma, provocando, por exemplo,
traduções quer literárias quer técnicas diferentes para Portugal e Brasil (grifo nosso).
Entre os textos apresentados que se referem à língua portuguesa a partir da busca no site,
têm-se notícias produzidas por jornalistas brasileiros do MinC e também discursos do Ministro da
Cultura em cerimônias oficias. Diante do período mencionado pode-se selecionar oito textos.
Todos estão listados abaixo:
Título do corpus
Data
20/03/06
Discurso do ministro Gilberto Gil no Museu de Língua Portuguesa
16/05/08
Línguas: Fortalecer o uso do português e valorizar as línguas indígenas
10/08/08
Ministros da Cultura brasileiro e português reúnem-se no Rio de Janeiro para tratar
de ações bilaterais
19/08/08
Língua portuguesa
21/08/08
Ministros da Cultura de Brasil e Portugal debatem projetos
02/09/08
Ibero-américa
29/09/08
Solenidade dá largada para acordo ortográfico
15/11/08
CPLP quer o Português como língua oficial da ONU
Neste artigo foram analisados dois discursos. O primeiro do então ministro Gilberto Gil na
inauguração do Museu da Língua Portuguesa, pela questão simbólica que é criar um Museu para o
português, que tem como único equivalente o Afrikaans Language Museum, fundado em 1975 em
Paarl na África do Sul (SILVA SOBRINHO, 2008, p. 496). O segundo, a notícia “Ministros da Cultura
de Brasil e Portugal debatem projetos” de 21 de agosto de 2008, pois ela divulga um encontro
político entre os dois países que apresentam os maiores investimentos financeiros e as principais
políticas para a promoção do português no exterior.
Teoria e análise do discurso
A enunciação do primeiro discurso analisado aconteceu no dia da inauguração do Museu
de Língua Portuguesa na Estação da Luz em 20 de março de 2006. O enunciador é o até então
ministro da cultura Gilberto Gil, cantor de fama internacional, sendo um dos maiores divulgadores
da cultura nacional no exterior e os coenunciadores empíricos no momento da enunciação na
Estação da Luz são os “amigos e amigas de São Paulo e aos amigos e amigas falantes da língua
portuguesa”, diversas autoridades, políticos e empresários dos países lusófonos.
Observando o texto foi possível dividi-lo em cinco partes distintas de análise. Na primeira
delas, do primeiro ao quinto parágrafos, o ministro faz uma saudação e uma exaltação à língua
portuguesa. Para isso utiliza o discurso relatado com citações de escritores como Cecília Meireles
e Manoel de Barros e suas poesias sobre o “poder das palavras”. Ele relaciona a poesia ao papel
que o Museu da Língua Portuguesa irá desempenhar: “a importância da comunicação” e como
“ponto de encontro dos seres humanos”.
Na segunda parte, no sexto parágrafo Gilberto Gil discursa sobre a importância da
linguagem, seja corporal, gestual ou falada e novamente cita um escritor, Monteiro Lobato.
Na terceira, do sétimo ao décimo primeiro parágrafos, ele discorre sobre o lugar escolhido
para ser sede do Museu, a cidade de São Paulo e a Estação da Luz. O ministro utiliza para isso
citações de Mário de Andrade, a quem atribui a ideia de construir o Museu e também lembra a
iniciativa do literato de organizar o 1º Congresso da Língua Nacional Cantada em 1939. Ele
aproveita ainda como justificativa da escolha de São Paulo, a sua tradição literária modernista
citando Oswald de Andrade e Haroldo de Campos. Além disso, lembra os cinquenta anos da obra
Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa, informando a exposição comemorativa que será
inaugurada com o Museu.
A
quarta
parte,
do
décimo
segundo
ao
décimo
terceiro
parágrafos,
apresenta
características do discurso político em que o ministro faz uma prestação de contas e mostra que a
iniciativa de construção do Museu contou com o apoio do Ministério da Cultura e do Governo
Federal. Ele ainda defende uma política para os museus brasileiros.
A quinta e última parte, do décimo quarto ao décimo sétimo parágrafo, em que Gilberto Gil
fala sobre o Museu da Língua Portuguesa foi reproduzida abaixo.
14
A instalação do Museu da Língua Portuguesa nesta antiga estação ferroviária, parte de
uma rede de caminhos de ferro que se espalham pelo Brasil, deve servir para inspirar a sua
vocação. Que esse museu seja um ponto de intensa articulação de uma rede de valorização da
língua portuguesa; que ele seja uma estação de idas e vindas, de chegadas e partidas, local de
troca e irradiação dos movimentos da língua viva, que nos muda e é continuamente por nós
modificada.
15
Um dos desafios desse Museu é tratar a língua portuguesa não apenas como
patrimônio que se transmite de uma geração para outra, mas também como Mátria e Matriz
que une e irmana, no mundo, todos os cidadãos que falam a língua portuguesa. Um povo é
considerado extinto quando sua língua morre. Manter a língua viva é, portanto, manter uma
cultura viva.
16
Segundo pesquisa da Unesco, metade das seis mil línguas do mundo estão em risco de
extinção e, a cada duas semanas, uma língua desaparece. O mesmo estudo aponta o
português como a sexta língua mais falada no planeta e como língua oficial de oito países,
dos quatro continentes. O que mostra como a língua portuguesa é cada vez mais importante
no mundo.
17
A vitalidade de uma língua é a vitalidade de um povo. Se os atos de fala e os atos de
palavra podem ser ações, gerar movimentos e criar realidades, então faço aqui da minha
palavra um voto: que este Museu amplifique e ressoe a voz da Língua Portuguesa no mundo.
(grifo nosso).
Nesse discurso de Gilberto Gil, o que nos chama atenção prontamente é a quantidade de
citações de escritores e poetas empregadas pelo enunciador. Para Horta Nunes (2006, p.24) “o
interdiscurso é a memória do dizer, o horizonte de tudo o que já foi dito antes,
independentemente de um enunciado. Trata-se do fato de que nenhum discurso é uma origem
absoluta, sempre há um já-dito que precede o dizer” e assim
o “interdiscurso incide sobre o
intradiscurso, deixando aí seus efeitos mais ou menos visíveis: citações, evocações, paráfrases”.
Vale ressaltar que “os discursos são constituídos por outros discursos. Não há origem
“pura” do discurso, há sempre uma historicidade, um processo ininterrupto de produção de
sentidos” (NUNES, 2006, p.28). Logo, tais discursos não são ditos sem propósito pelo ministro.
Maingueneau (1997, p. 75) em Novas Tendências em Análise do Discurso apresenta duas
formas de heterogeneidade, isto é, a presença do outro no discurso. Para ele a heterogeneidade
mostrada “incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de
fontes de enunciação”. Já a constitutiva “aborda uma heterogeneidade que não é marcada em
superfície, mas que a Análise do Discurso pode definir, formulando hipóteses, através do
interdiscurso, a propósito da constituição de uma formação discursiva”.
O
ministro
utiliza,
assim,
marcas
de
heterogeneidade
mostrada,
ao
expressar
explicitamente a presença do outro em seu discurso, com citações, inclusive, entre aspas. A
utilização de diversos discursos literários, de autoria de Cecília Meireles, Monteiro Lobato, Haroldo
de Campos, demonstra que está presente na memória discursiva dos enunciados sobre língua
portuguesa, a literatura, através da intertextualidade. Afinal, os literatos uniriam o valorizado
conhecimento da norma culta da língua com a poesia expressa em suas escritas e/ou as epopeias
das conquistas portuguesas, como primeira língua europeia a romper as fronteiras da Europa, a
partir do fascínio dos portugueses pelo “desconhecido”. Surgem, então, referências ao português
como a língua de Camões, Machado de Assis, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa,
Saramago, Craveirinha e tantos outros.
Daí a necessidade da heterogeneidade mostrada – marcar explicitamente o outro - para
resgatar uma memória interdiscursiva, reforçar a compreensão, envolver e aproximar enunciador e
coenunciadores. Aproximá-los num deleite a fim de (re)afirmar e compartilhar, inclusive com os
literatos citados por Gilberto Gil, a poesia, a cultura5, a expressão em português e
consequentemente o orgulho de que a língua portuguesa traz aos seus falantes.
O termo “coenunciadores”, aqui, refere-se tanto àqueles que estiveram presentes na
Estação da Luz no dia da inauguração do museu como também àqueles que leram o discurso
posteriormente no site do ministério.
Bourdieu em A Distinção: Crítica Social do Julgamento (2007) ao estudar a formação e os
efeitos do capital cultural na França mostrou como um interdiscurso mascarado, isto é,
identificável pelo consumidor somente pelo seu conhecimento enciclopédico, é fundamental para
valorizar um produto da indústria cultural e torná-lo o que chamamos hoje de cult. Afinal,
quando o consumidor consegue fazer ligações, produzir uma intertextualidade, ele sente como se
estivesse no mesmo patamar do autor, do diretor, do compositor por ser capaz de captar e
5
O substantivo cultura aqui empregado não se refere à Cultura, conceito antropológico, mas sim tanto à norma culta
quanto ao conhecimento mais valorizado em nossa sociedade, isto é, aquele conhecimento científico ou
conhecimentos gerais, enciclopédico compartilhado entre as pessoas escolarizadas.
decifrar a mensagem subentendida, em meio à multidão, inserindo-se, assim, no seleto grupo da
elite cultural, que esses produtos circunscrevem.
Da mesma forma se daria esse deleite através da literatura, que uniria enunciador e
coenunciador na formação de uma comunidade discursiva, que envolve ambos e legitima o
discurso entre eles. O enunciador pressupõe e de certa forma produz, um coenunciador discursivo
capaz de compreender as intertextualidades exploradas por ele.
Essa marca, essa heterogeneidade mostrada com fontes literárias está presente na maioria
dos discursos sobre a língua portuguesa, coletados para esta pesquisa. Portanto, a língua
portuguesa nesses discursos ganha um sentido de língua literária, culta e de vasto acervo cultural.
Esse caráter literário sócio-histórico dado à língua portuguesa confronta-se, atualmente com a
falsa ideia de restringir algumas línguas a (um) campo(s) discursivo(s), em que ela seria mais
desenvolvida ou exercesse maior domínio. Como por exemplo, o francês como língua da
diplomacia, filosofia e literatura, o alemão como língua da filosofia e ciência ou o inglês como
língua da economia e globalização.
Já a notícia “Ministros da Cultura de Brasil e Portugal debatem projetos” reproduzida
abaixo, em parte, é de autoria do jornalista Marcelo Lucena e relata um encontro do ministro
português da cultura, Pinto Ribeiro com o seu homólogo no Brasil.
4
Na avaliação de Pinto Ribeiro, uma política de articulação causa “maior impacto e
melhor efeito”. “Farei tudo o que puder politicamente para que nós consigamos aprofundar o
conhecimento da língua portuguesa e a sua divulgação enquanto língua de instrução, de
comércio, de contato, de relação, de identidade e de expressão”.
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Questionado sobre as resistências que existem em Portugal em relação ao acordo
ortográfico, o ministro disse que este movimento não é tão forte em seu país.
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“Há resistências de algumas pessoas, e não são muitas, que têm uma relação
emocional, clássica, física e sensorial com a língua. Mas ninguém será abatido, preso ou
punido se não aderir às novas normas. O acordo é uma simplificação da língua”, assinalou.
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“Neste momento, nós percebemos não só que o Brasil é muito maior, mais importante,
mais rico e mais poderoso do que nós, mas que, independentemente das dimensões e dos
tamanhos, somos, todos os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, iguais”,
disse. (grifo nosso).
Como podemos ver, esse discurso do jornalista Marcelo Lucena apresenta marcas de
heterogeneidade mostrada, quando demarca entre aspas a fala do ministro Pinto Ribeiro.
Primeiramente, então, analisaremos o discurso aspeado do governante português, no décimo
primeiro parágrafo, e depois o discurso do jornalista brasileiro, que relata o anterior.
Nesse fragmento, o ministro afirma que neste momento, os portugueses percebem não só
que o Brasil é muito maior, mais importante, mais rico e mais poderoso que Portugal, mas
também que todos os países da CPLP são iguais. Nessa afirmação posta pode-se identificar um
pressuposto.
Segundo Ducrot (1987, p.20), o pressuposto pode ser
apresentado como uma evidência, como um quadro incontestável no interior do qual a
conversação, deve necessariamente inscrever-se” e continua dizendo que ele pertence “ao
domínio comum das duas personagens do diálogo, como objeto de uma cumplicidade
fundamental que liga entre si os participantes do ato de comunicação.
Assim, o pressuposto seria que os portugueses antes daquele momento, não percebiam
dois fatos. O primeiro que o Brasil era muito maior, mais importante, mais rico e poderoso que
Portugal e o segundo que independente das dimensões e dos tamanhos, todos os países da CPLP
eram iguais. Este pressuposto está marcado no uso da locução adverbial de tempo “Neste
momento” com o verbo “percebemos”.
Nesse fragmento, entre o pressuposto e o posto, nota-se a presença de duas formações
discursivas opostas, uma colonial e outra, que aqui chamaremos de multicultural. Apesar dos
nomes, ambas são marcadas profundamente pelo colonialismo. Pêcheux (1988, p. 162) define
formação discursiva “como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma
posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”.
Ele acrescenta ainda que é nas formações discursivas “que se opera o assujeitamento à
interpelação do sujeito como sujeito ideológicos” (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2008, p. 241).
A formação discursiva colonial reflete aspectos ideológicos de superioridade, baseando-se
num discurso fundador em que a sociedade europeia seria mais desenvolvida e civilizada e por
isso teria a missão de civilizar o restante do mundo. Além do mais, essa formação discursiva é
marcada pela busca de poder e exploração de outros povos, primeiramente pelos europeus.
Portanto, sua principal marca é a desigualdade entres os povos. Esta é a formação discursiva do
pressuposto de que anteriormente os portugueses não percebiam que os países eram iguais.
Logo, Portugal reconhece que havia uma desigualdade entre (ex-)metrópole e (ex-)colônias, bem
como a sua superioridade nessa relação.
Na formação discursiva colonial, muitos discursos entrelaçam-se, como aqueles discursos
em que Portugal seria berço da língua portuguesa e nação civilizadora, enquanto o Brasil seria
uma colônia a ser civilizada ou aqueles em que Portugal já civilizou o Brasil. Há também aqueles
discursos em que o Brasil seria vítima da colonização e Portugal, vilão. Ou ainda que o Brasil,
atualmente, em relação a Portugal, seria uma nação mais importante e mais poderosa que
apresenta maior apelo cultural, através do carnaval, da música, do futebol e das telenovelas e uma
economia em ascensão. Assim, todos os discursos estão repletos de nacionalismo e uma espécie
de ressentimento em relação ao colonialismo.
Já a formação discursiva multicultural, por oposição, não demonstra distinção de nação, de
superioridade. Sua principal marca não está na desigualdade/igualdade entre povos e culturas,
mas sim no direito à vida. Nessa formação, todos teriam o mesmo direito de existir, sem importar
a dimensão e o tamanho, pois todas as nações e culturas contribuiriam para a diversidade cultural
da humanidade, que seria positiva.
Partiremos agora a análise do posto - Neste momento, nós percebemos não só que o Brasil
é muito maior, mais importante, mais rico e mais poderoso do que nós, mas que,
independentemente das dimensões e dos tamanhos, somos, todos os países da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa, iguais”.
No fragmento posto analisado, o ministro Pinto Ribeiro afirma que todos os países são
iguais. Porém, tal afirmação se apresenta como ressalva à afirmação anterior que o Brasil é mais
importante e poderoso. Assim, percebemos no dizer posto de Pinto Ribeiro, a presença das duas
formações discursivas em oposição, separadas pela conjunção “mas” que se torna aditiva pela
expressão “não só”. A primeira afirmação, dita com maior ênfase, filia-se também a formação
discursiva colonial de uma nação, povo ou cultura superior – só que desta vez, o Brasil estaria em
posição de superioridade e não mais Portugal – enquanto que a segunda afirma a igualdade entre
os países da CPLP e portanto, dialogaria com a formação discursiva multicultural.
O ministro português apropria-se de outra formação discursiva para modalizar, amenizar o
fato de que o Brasil é hoje mais importante em comparação com seu país, Portugal.
Para Pêcheux
uma formação discursiva não é um espaço estrutural fechado, já que ela é constitutivamente
'invadida' por elementos provenientes de outros lugares (de outras formações discursivas),
que nela se repetem, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo,
sob
a
forma
de
'pré-construídos'
e
de
'discursos
transversos')
(CHARAUDEAU
MAINGUENEAU, 2008, p. 241).
Horta Nunes (2006, p.28) acrescenta que “as formações discursivas não são blocos
&
homogêneos, elas se constituem na relação com outras formações discursivas, incluindo-as,
excluindo-as, absorvendo-as, negando-as etc”. Portanto, o enunciador é atravessado por diversas
formações discursivas.
Vale
ressaltar
que
a
formação
discursiva
multicultural
vem
ganhando
espaço,
principalmente na Europa, depois da II Guerra Mundial e que atualmente os documentos e
discursos da União Europeia apresentam marcas dessa formação. Contudo, na prática, as políticas
multiculturais e multilíngues ainda são menores que as políticas protecionistas, nacionalistas e
imperialistas de alguns países europeus, sobretudo no apoio a políticas linguísticas para o
aumento da presença da sua língua nacional no exterior.
Nos corpora de análise produzidos por jornalistas do ministério da cultura do Brasil
coletados para a pesquisa, nota-se também que a voz atribuída a Portugal, representada pelos
seus governantes é sempre para valorizar a imagem do Brasil, isto é, seu poderio em relação aos
portugueses. Esse fato também ocorre quando o jornalista Marcelo Lucena, autor e enunciador da
notícia analisada neste artigo, “dá voz” ao ministro Pinto Ribeiro quando ele afirma que Portugal
reconhece que o Brasil é mais importante e poderoso, ou seja, um brasileiro diz que um português
disse que o Brasil é mais importante e poderoso. E não é um português qualquer, mas sim um
representante do governo de Portugal. Essa é mais uma marca da formação discursiva colonial,
presente desta vez no discurso produzido pelo jornalista brasileiro que se deixa levar pela
necessidade de destacar, de dizer que o português disse que o Brasil é mais importante.
Nesse discurso do ministro Pinto Ribeiro, percebemos ainda dois sentidos entre as
designações dadas à língua portuguesa. O primeiro de língua literária e cultural, que também está
presente no discurso de Gilberto Gil, quando utiliza os termos “patrimônio”, “Mátria e Matriz que
une e irmana”, além das citações literárias. O ministro português expressa esse sentido de língua,
ao dizer que “algumas pessoas têm uma relação emocional, clássica, física e sensorial com a
língua” ao explicar a resistência ao acordo ortográfico, criticando aqueles que defendem a grafia
portuguesa como um patrimônio. Ele contrapõe, então a outra visão que entende a língua como
“língua de instrução, de comércio, de contato”, ou seja, o sentido de língua econômica. Ele
compartilha desse último sentido para a língua portuguesa atual e utiliza esse entendimento, de
visão econômica da língua, como justificativa ao acordo ortográfico.
Considerações finais
Através de conceitos como formação discursiva, interdiscurso e heterogeneidade
discursiva, pode-se constatar nas primeiras análises dos discursos do ex-ministro Gilberto Gil, do
MinC e tantos outros do mesmo espaço discursivo, que a língua portuguesa nesse processo de
internacionalização ganha um sentido de patrimônio material de grande valor econômico,
impulsionada pelo crescimento do Brasil. Esse sentido é contrário à visão predominante sobre a
língua portuguesa de décadas anteriores, mais relacionada à ideia de idioma literário e símbolo de
cultura. Percebe-se, ainda, nesses discursos uma formação discursiva colonial e outra
multicultural em oposição, relacionadas à colonização.
Quanto à política linguística de internacionalização do português nota-se na própria
constituição da língua a memória expansionista e desafios advindos da história colonial. Nesse
processo constitutivo da língua, a formação discursiva colonial, dominante, opõe ex-metrópole e
ex-colônias, principalmente Portugal e Brasil, tornando a internacionalização mais complexa. Além
disso, o espaço lusófono tem uma particularidade que desafia essa internacionalização da língua,
afinal o português ainda depende e se restringe basicamente ao Brasil, que responde por 83,4% do
número total de falantes no mundo (SILVA, 2009).
Contudo, tais políticas linguísticas são recentes e a língua portuguesa talvez só se torne
uma língua internacional, se superar os conflitos da própria lusofonia, do colonialismo, o que não
será fácil, pois o colonialismo faz parte da história da língua portuguesa. Afinal, o português só é
língua de países dispersos pelo globo, porque foi língua colonizadora. Colonialismo e língua
portuguesa estão unidos discursivamente nas memórias dos além-mares, como afirmou o líder da
independência de Cabo Verde, Amílcar Cabral: “a maior herança do colonialismo é a língua
portuguesa”.
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Recebido em 01/07/2010.
Aceito em 31/07/2010.
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