Universidade Federal do Rio de Janeiro
“UM CANTO HUMANO DE ANIMAL EM CONSONÂNCIA
COM A TERRA PROMETIDA”: ASPECTOS POLÍTICOS DA
OBRA DE MARIA GABRIELA LLANSOL
Por
TATIANA PEQUENO DA SILVA
2011
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“UM CANTO HUMANO DE ANIMAL EM CONSONÂNCIA COM A TERRA
PROMETIDA”: ASPECTOS POLÍTICOS DA OBRA DE MARIA GABRIELA
LLANSOL
Por
TATIANA PEQUENO DA SILVA
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários para
a obtenção do Título de Doutor em Letras
Vernáculas (Literaturas Portuguesa e
Africanas)
Orientador: Professor Doutor Jorge
Fernandes da Silveira
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2011
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“UM CANTO HUMANO DE ANIMAL EM CONSONÂNCIA COM A TERRA
PROMETIDA”: ASPECTOS POLÍTICOS DA OBRA DE MARIA GABRIELA
LLANSOL
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção
do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).
Examinada e Aprovada por:
Presidente: Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira, UFRJ
Professora Doutora Luci Ruas Pereira, UFRJ
Professora Doutora Maria de Lourdes Martins de Azevedo Soares, UFRJ
Professora Doutora Ida Maria Santos Ferreira Alves, UFF
Professor Doutor Luís Claudio de Sant´Anna Maffei, UFF
Professora Doutora Gumercinda Nascimento Gonda, UFRJ
(Membro Suplente)
Professora Doutora Madalena Simões de Almeida Vaz Pinto, UERJ
(Membro Suplente)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2011
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FICHA CATALOGRÁFICA:
Pequeno da Silva, Tatiana.
“Um canto humano de animal em consonância com a terra
prometida”: aspectos políticos da obra de Maria Gabriela Llansol/
Tatiana Pequeno da Silva. Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2011.
xii, 185f. : il., 31 cm.
Orientador: Jorge Fernandes da Silveira
Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras – Programa de pósgraduação em Letras Vernáculas, 2011.
Referências bibliográficas: f. 177-184.
1. Literatura portuguesa contemporânea. 2. Maria Gabriela Llansol I.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Programa de pós-graduação em Letras Vernáculas. III. “Um
canto humano de animal em consonância com a terra prometida”:
aspectos políticos da obra de Maria Gabriela Llansol.
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RESUMO
“UM CANTO HUMANO DE ANIMAL EM CONSONÂNCIA COM A TERRA
PROMETIDA”: ASPECTOS POLÍTICOS DA OBRA DE
MARIA GABRIELA LLANSOL
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção
do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).
De forma geral, esta tese pretende investigar a obra da escritora portuguesa Maria
Gabriela Llansol a partir de uma perspectiva política. Para tanto, desejo levantar e
problematizar algumas questões relativas ao imbricamento e afastamento das
relações entre literatura e política na obra da referida autora, aproveitando para
compreender em que medida as ideias de Comunidade, Ética e Metamorfose
configuram e delineiam os espaços que darão corpo àquilo que nomeei por
neogeografias, isto é, as novas escritas do Mundo. Neste sentido, farei uso de duas
referências teóricas incontornáveis: Hannah Arendt e Giorgio Agamben, cujas
reflexões versarão mais incisivamente sobre tentativas de compreensão do
Mundo no contexto da/ pós Segunda Guerra Mundial. Com efeito, parece ser
necessário procurar, sobretudo nas duas primeiras trilogias de Llansol (“Geografia
de Rebeldes” e “O Litoral do Mundo”), o pólen essencial ou as matrizes deste
projeto de fulgor como alternativa à rarefação e à entropia, cujas presenças
aparentam ocupar os lugares mais evidentes e eloquentes da “Literatura”.
Palavras-chave: Literatura Portuguesa Contemporânea; Maria Gabriela Llansol;
Neogeografias;
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ABSTRACT
“UM CANTO HUMANO DE ANIMAL EM CONSONÂNCIA COM A TERRA
PROMETIDA”: POLITICAL ASPECTS OF THE WORK OF
MARIA GABRIELA LLANSOL
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção
do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).
Basically, this thesis intends to inquire Maria Gabriela Llansol's work through a
political viewpoint. In that order, I aim to raise up and render problematic some
issues concerning both entangle- and untanglement between politics and
literature into her writings, seeking to comprehend insofar notions of Comunity,
Ethics and Metamorphosis set and outline spaces which I named neogeographies,
that is, the World's new writings. I will deal with two unavoidable theoretical
frameworks, Hannah Arendt and Giorgio Agamben, whose thoughts about world
upon the context of The World War II are the most incisive ones. In this sense, it
seems to be necessary looking for essencial pollen or womb of a glow project,
specially into the two very early Llansol's trilogy ("Geografia de Rebeldes" and "O
Litoral do Mundo"), as an alternative to both rarefaction and entropy, whose
appearance holds the most manifest and eloquent places of "Literature".
Key-words: Contemporaneous Portuguese Literature; Maria Gabriela Llansol,
Neogeographies
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RESUMÉE
“UM CANTO HUMANO DE ANIMAL EM CONSONÂNCIA COM A TERRA
PROMETIDA”: ASPECTS POLITIQUES DES TRAVAUX DE
MARIA GABRIELA LLANSOL
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção
do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).
Dans l'ensemble, cette thèse vise à étudier le travail de l'écrivain portugais Maria
Gabriela Llansol à partir d'un point de vue politique. Pour cela, je tiens à soulever
et de discuter de certaines questions liées au chevauchement et à l'éloignement
de la relation entre littérature et politique dans le travail de cet auteur, en
utilisant le temps de comprendre dans quelle mesure les idées de la
communauté, l'éthique et la forme Metamorphosis et de délimiter les espaces qui
donnent corps à ce nommé par neogeography, c'est à dire, les écrits du Nouveau
du monde. En ce sens, je vais faire usage de deux références théoriques
convaincants: Hannah Arendt et Giorgio Agamben, dont les réflexions porteront
avec plus de force sur les tentatives de comprendre le contexte du monde / postSeconde Guerre mondiale. Il semble être recherchées, en particulier dans les deux
premières trilogies de Llansol (« Geografia de Rebeldes » et « O Litoral do
Mundo »), le pollen ou la matrice essentielle de cette conception comme une
alternative à la raréfaction et de l'entropie, dont la présence semblent occuper les
lieux le plus évident et éloquent de la "Littérature".
Mots-clés : Litérature portugaise contemporaine ; Maria Gabriela Llansol ;
néogeographies.
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AGRADECIMENTOS
A Jorge Fernandes da Silveira, que me ensinou a escrever sobre o
mundo e a falar com a minha gagueira, porque de Fiama me faz saber que
“Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, com a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água.”
À Mariana Gonçalves, as palavras camonianas que mais conheço e acerto
nos dias em que o amor real toma a sua distância e os seus cuidados. À ti, baobá
precioso, a “leda mansidão” que, afinal, és
“(...)
Presença serena
Que a tormenta amansa
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.”
A Raphael, jovem centauro, a minha aposta no Novo.
À Fernanda Pequeno, irmã das Belezas e das feridas.
À Maria da Graça, pela Casa da Saudação aberta e a nascente por onde
cheguei a este mundo.
A Marcelo e Alice, pelas memórias do amor fraternal, outra Casa da
Saudação, com o desejo de que nenhum Homem precise abdicar do que o move.
À Maria de Lourdes Soares, por abrir sua casa, ler comigo e me falar da
vida da amiga Maria Gabriela pelo texto que também mudou a sua vida.
À Rhea Willmer, mar com dedos de ternura e afago, tempero doce sobre
o amor fiel de todos os dias.
A Sebastião Edson Macedo, com quem defendo o atrito da literatura e
do amor à “fiel/ dedicação à honra de estar vivo” porque “tão poucos somos, que
o nosso encontro íntimo, e as defesas de que nos servimos, serão decisivos”
Aos amigos Rommel Luz, Aristóteles Predebon, Leonel Velloso,
Marcos José e João Paulo que me são o fulgor, ensino das neogeografias e
“cantores de leitura”, com a certeza de que as palavras de António Franco
Alexandre serão cumpridas na esperança da Comunidade que vem:
“(...) um dia
seremos úteis e preciosos como a erva e a cabra,
e ricos de virtudes saberemos
o que fazer para morrer, não morrer. Entretanto”
A Gustavo Cerqueira-Guimarães, lunário companheiro à procura do
Vento.
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A Eduardo Ochs, pelo que não se nomeia, e também pelos livros, pelas
primeiras letras no caderno de doutorado e pelas muitas horas de palavras sobre
os seres de ar e sobre os seres de água.
À Evelyn Blaut, primeiro pela partilha da beleza inerente ao trabalho de
escrever para que nem o romance nem nós morramos. E depois pela revisão
atenciosa deste trabalho.
A Luís Maffei, pela partilha do conhecimento, presença e convites
diversos, além da poesia de falar do inferno.
À Teresa Cerdeira, começo de tudo. À Gilda Santos, pela gentileza em
ceder arquivos do Ler Jorge de Sena. À Ângela Beatriz, pelas leituras e pela
acessibilidade.
À Luci Ruas, pelo modo tão humano de ensinar e estar no mundo.
À Maria Lúcia Wiltshire pelos diálogos llansolianos de muitas utopias.
Às Professoras Madalena Vaz-Pinto e Ida Alves pelas outras paisagens e
de Portugal, a Poesia: por aceitarem fazer parte da banca examinadora.
À Cinda Gonda que não sabe, mas me ofereceu um lugar de aula, um
lugar de calma: por ter sido a primeira professora a aceitar um trabalho que, mais
tarde, seria tema da minha dissertação.
À Fundação Calouste Gulbenkian, em especial à Cátedra Jorge de Sena,
pelos dois primeiros anos de Bolsa recebida.
Ao CNPq, pela possibilidade de existir com alguma dignidade durante os
últimos dois anos.
À Coordenação de Pós-graduação em Letras Vernáculas nas pessoas
de Maria Aparecida Lino e Urania Marinho.
À UFRJ, casa que me forma, desde 1999, sob o olhar austero de Minerva.
A meu pai, Elmir Gama da Silva, não pelo que me falta, mas pelo que me
deu de alimento eterno: música.
(Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar as povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio
da noite aparecente,
votar a vida à interna fonte dos povos.
Deve instaurar o corpo e subi-lo,
lanço a lanço,
cantando leve e profundo.
Com as feridas.
Com todas as flores hipnotizadas.
Deve ser aéreo e implacável.
Herberto Helder, “Lugar”.)
10
Para SEBASTIÃO LOPES PEQUENO, que
me abria os seus livros, me falava de
amor, de saudade e de poesia; em sua
Memória.
11
Queria que todo o meu trabalho fosse
gestatório e que este período, quase
povoado de selvas, fosse um elemento
químico, uma experiência, e um estudo.
Maria Gabriela Llansol, Um Falcão no
Punho.
Música literata e fascinante,
nojenta do que por ela em mim se fez
poesia,
esta desgraça impotente de actuar no
mundo,
e que só sabe negar-se e constranger-me a
ser
o que luta no vácuo de si mesmo e dos
outros.
Ó catedral de sons e de água! Ó música
sombria e luminosa! Ó vácua solidão
tranquila! Ó agonia doce e calculada!
Ah como havia em ti, tão só prelúdio,
tamanho alvorecer, por sob ou sobre as
águas,
de negros sóis e brancos céus nocturnos?
Eu hei-de perdoar-te? Eu hei-de ouvir-te
ainda?
Mais uma vez eu te ouço, ou tu, perdão,
me escutas?
Jorge de Sena, Arte de Música.
12
SUMÁRIO
I)
INTRODUÇÃO:
“QUEM PRECISA QUE UM RAMO ENTRE NA SUA VIDA?”.............................................P. 13
II)
TÁBUA INDICATIVA DOS LIVROS PUBLICADOS
POR MARIA GABRIELA LLANSOL................................................................................P. 21
III)
CAPÍTULO I:
“A SUA ORIGEM NA PULVERIZAÇÃO REPENTINA DO MUNDO”..................................P. 22
IV)
CAPÍTULO II:
“UMA LABAREDA SUBINDO”.....................................................................................P. 62
V)
CAPÍTULO III:
“UM CANTO REALISTA E SUBLIME, GRAVE E ALEGRE, ENRAIZADO E AÉREO”.........P. 103
VI)
CAPÍTULO IV:
PARA ONDE VAIS, DRAMA-POESIA?.........................................................................P. 142
VII)
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
“A ANGUSTIANTE ALEGRIA”.......................................................................................P.173
VIII) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................P.177
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1.INTRODUÇÃO: “QUEM PRECISA QUE UM RAMO ENTRE NA SUA VIDA?”
Apresentar esta tese de doutorado significa, num primeiro momento,
voltar aos primórdios do período gestatório: exige recobrar a memória do
estranhamento. Maria Gabriela Llansol veio a mim1 evidentemente por Jorge
Fernandes da Silveira, que durante extensa conversa eletrônica, datada de 20 de
abril de 2006, lançou-me um fragmento de Inquérito às Quatro Confidências:
______________ nada é mais rápido do que a melancolia; é
traiçoeira no ataque, inopinadamente ressurge diante dos
olhos, e o turbilhão é tal que se extingue sem linhas
precisas. O facto principal, determinante, é que a nossa
forma, a forma com que somos receptivos ou agimos, é um
corpo, todo o afecto nasce, perdura e se extingue nessa
forma; a separação física dos corpos pode ser, por vezes, o
facto mais notável: aquele contra o qual o conceito perde
força e paciência. De nada me vale querer ser razoável.
Quando me dou à nostalgia, é triste de morrer.
A realidade da dor, até desejar a morte, não está na
separação física (de que é feita a maior parte da vida senão
de ausências presentes?) mas no simples efeito de imagens
que não se sobrepõem.
Não vou perguntar: “quem falta?” Sou eu que falto, o
fragmento por que suspiro, e que está suspenso fora de
mim. Eu queria ser ele, sem poder, como ____ como um
resto de frase
que se esquece.
(LLANSOL, 1996, p. 24)
Vinha então, e se digo vinha é porque diferentemente da leitura que já
havia feito de Um Falcão no Punho, nesta ocasião o fragmento do Inquérito
pareceu-me concentrar uma força sobre o tema da melancolia que eu acabara de
defender no Mestrado. De nada valia querer ser razoável com a temática e
1
Esta tese será escrita predominantemente em primeira pessoa do singular. Contudo, em algumas
ocasiões, farei uso da primeira pessoa do plural, quando entender que haja, aí, algum contexto de
coletividade, convocação ou evocação.
14
também, entendi, era preciso sair desse lugar em que as imagens permanecem
estanques. Compreendido o recado de Jorge, pus-me a (re)começar Maria
Gabriela a partir de um estranhamento óbvio, continuamente desafiador e
elevador de céus e abismos do nível básico da morfossintaxe. Como Nietzsche
poderia se transformar num Urso?
Pôde e Maria Gabriela fez. A mim, cabia apenas lê-la – de início – como o
sugere Maria Alzira Seixo (1985, p. 231) no que se refere a um texto que mantém
“uma hesitante afinidade com a prosa poética, com o ritmo dos salmos, com a
proclamação profética, com a ficcionalidade pura – sem no entanto se resolver
pela integração no poema em prosa ou no romance de marca tradicional”.
Admitida então a escolha do litoral na teoria dos gêneros, foi possível olhar
também de forma ímpar para o texto e descobrir que “nunca seria apenas (para
ele) uma fonte gotejante de linguagem” (LLANSOL, 1984, p. 105). Seria, então,
como continua o excerto, uma experiência sobre “o nada que vem” (LLANSOL,
1999, p. 26). Com efeito, o acesso a um texto e o conforto de ir ao encontro de um
significado não garantiria boa literatura, nem alta ficção ou poesia. Como ler,
então, Llansol sem estas experiências garantidas? Nela haveria uma resposta
própria, da ordem de um “encontro inesperado com o diverso”.
A impossibilidade de uma única fonte gotejante de linguagem surgiu como
diretriz para o estabelecimento das primeiras inquietações a respeito desta obra.
Para mim, o gotejar da linguagem denotava, antes de qualquer coisa, uma recusa
pelo império puro do significante: literatura como apenas manejo cirúrgico de
palavras, rimas, recursos estilísticos. Assim, parecia que o encontro com o diverso
só seria possível se, de fato, alguma diversidade houvesse sido instalada e
15
admitida. Não eram com certeza os espaços em branco ou as linhas contínuas no
lugar da escrita ou ainda alguma sintaxe desmedida que anunciavam o “Vazio
provocado”. Não havia, sintaticamente falando, nada de absurdo em Nietzsche
transformou-se em Urso. E então foi possível detectar que residia nos porquês e
nos comos e, sobretudo nas figuras, a questão nuclear, norteadora da referida
obra. O livro, em sua condição, passava a ser também um “novo ser”: “Ana de
Peñalosa não amava os livros; amava a fonte de energia visível que eles
constituem quando descobria imagens e imagens na sucessão das descrições e
dos conceitos” (LLANSOL, 1999, p.75).
Na esteira dessas preocupações iniciais procurei concentrar as minhas
leituras na obra de Giorgio Agamben. Acabei por escrever uma monografia de fim
de curso para uma disciplina e o tema que escolhi para o referido trabalho foi
exatamente a necessidade do significado para a cultura ocidental. Uma das
primeiras referências que utilizo, aí, é uma assertiva retirada do livro Profanações
(2007, p. 75) em que Agamben sugere que nada é tão frágil e precário quanto
qualquer sistema de linguagem que envolva meios e resultados puros. Noutras
palavras, o filósofo italiano demonstra que o significado, enquanto entidade
necessária da comunicabilidade humana, sempre esteve inserido numa
falibilidade que é, afinal, marca da ubiquidade entre a linguagem e a morte. O
marco exemplar dessa problemática é, desse modo, a relação ambígua entre a
Esfinge e Édipo que Agamben recupera em diversos textos, como em L´idée de la
prose, A Linguagem e a Morte e Estâncias. Desse último, aproveito para lembrar o
seguinte:
16
O mal-estar que a forma simbólica traz escandalosamente à luz
é o mesmo que acompanha desde o início a reflexão ocidental
sobre o significar, cujo legado metafísico foi acolhido, sem
benefício de inventário, pela semiologia moderna. Enquanto no
signo está implícita a dualidade do manifestante e da coisa
manifestada, ele é realmente algo fragmentado e duplicado, mas
enquanto tal dualidade se manifesta no único signo, ele, pelo
contrário, é algo conjunto e unido. O simbólico ato de
reconhecimento que reúne o que está dividido, é também o
diabólico, que continuamente transgride e denuncia a verdade
deste conhecimento.
O fundamento desta ambigüidade do significar reside naquela
fratura original da presença, que é inseparável da experiência
ocidental do ser, e pela qual tudo aquilo que vem à presença,
vem à presença como lugar de um diferimento e de uma
exclusão, no sentido de que o seu manifestar-se é, ao mesmo
tempo, um esconder-se, e o seu estar presente, um faltar.
(AGAMBEN, 2007, p. 218)
Parte do problema da recepção da obra de Maria Gabriela Llansol
encontrava aí uma iluminação possível. E porque eu também sofria a angústia de
exigir um significado próximo de puro daqueles textos é que fui compreendendo
que a linhagem da autora portuguesa sugeria que o seu texto fosse lido talvez
como poesia, pela sua resistência, pelo seu afastamento de uma promessa rápida
e lógica de significado, como lembra uma bela passagem de Jean-Luc Nancy
(2005, p. 12): “A poesia faz a facilidade do difícil, do absolutamente difícil. Na
facilidade, a dificuldade cede. Mas isso não significa que ela seja removida. De
repente, facilmente, estamos no acesso, isto é, na absoluta dificuldade, “elevada”
e “tocante””. O canto híbrido de Llansol começava a ir ao encontro de uma
superação do desconforto, do inconforto. E palavras como resistência e rebeldia
apareceram como premissas estéticas.
Na trilha desta luminosidade, resolvi então refletir mais detidamente a
respeito da minha hipótese intuitiva: a obra llansoliana era, sobretudo, política.
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Faltava, todavia, explicar o que me levava a encontrar o político nestes textos.
Com o tempo, acreditei que seria necessário escrever, a partir das diversas
leituras, uma história da política para tentar chegar a uma compreensão hodierna
do termo. Colocar o conceito numa perspectiva diacrônica, porém, era um
trabalho hercúleo que exigiria um tempo e um direcionamento de leitura que,
efetivamente, não interessava. Dizendo isso, no entanto, não me escuso da
responsabilidade das leituras que, afinal, foram feitas, mas eu não gostaria que
esta tese fosse sobre política e sobre Llansol, mas sobre o que se localiza de
político em Llansol.
O primeiro capítulo da tese, bem como a sua totalidade, adotará uma
perspectiva diacrônica, preocupando-se com as duas primeiras obras da autora
portuguesa: Os pregos na erva e Depois de os pregos na erva. Como a delimitação
do tema que proponho é o olhar das reverberações políticas, optei por ler esse
início da sua vida editorial e pública como embrionária, tendo em vista que nela
já seja possível localizar certos espaços de indeterminação e de pulverização do
que se compreende por mundo/Mundo, além de também ser possível identificar
um esboço do projeto que começa a ser legitimado a partir de O Livro das
Comunidades.
O segundo capítulo abordará a trilogia “Geografia de Rebeldes”,
investigando principalmente a problematização das idéias llansolianas de
Metamorfose, Comunidade e os seus ramos. Neste caso, creio ser fundamental
verificar as implicações éticas e estéticas que derivam do primeiro livro até o
estabelecimento do lugar que acolhe (N)a Casa de Julho e Agosto. A partir desse
18
segundo capítulo, pretendo também examinar que relações o conceito de
Metamorfose estabelece com outros rebeldes dessa comunidade discursiva.
O terceiro capítulo versará sobre a segunda trilogia, “O Litoral do Mundo”,
preocupando-se em determinar que reverberações políticas foram estabelecidas e
tomadas como diretrizes do projeto llansoliano, considerando esse pretenso lugar
de margem em que se colocam as muitas vozes do texto da autora e suas
implicaturas. Tentarei também, neste capítulo, entender quais são os limites da
História no texto de Llansol.
Finalmente, o quarto, e último capítulo, investigará alguns textos de Maria
Gabriela Llansol que possam determinar certos limites do Mundo e da sua relação
com o preceito estético do drama-poesia, por ela aferido. Tratará das
consequências da neogeografia, isto é, da escrita mais última como resultado
desse projeto intuído em Os pregos na erva, esboçado em Depois de Os pregos na
erva, decretado em O Livro das Comunidades e ratificado até Da sebe ao ser. As
obras que desejo investigar aqui não serão lidas apenas na sua unidade, mas no
aspecto da confirmação e/ ou alargamento das questões anteriormente vistas, o
que não significa que estas obras já não tenham sido utilizadas anteriormente
para ilustrar, fomentar ou fazer derivar quaisquer outras questões no espaço
desta tese. Para tanto, versarei sobre os seguintes livros: Lisboaleipzig I, Onde
vais, Drama-Poesia?, Parasceve, O Senhor de Herbais e Amigo e Amiga – Curso de
Silêncio de 2004.
Estabelecido o critério do corpus pensei, para o norteamento desta tese,
em três problemas principais que pareceram dinamizar mais efetivamente a
minha leitura:
19
i)
Em que medida a Comunidade está relacionada ao espaço litoral do
mundo?;
ii)
Quais as relações entre História e Política de acordo com a perspectiva
llansoliana?;
iii)
Que relações são possíveis de estabelecer entre Mundo, Texto e Utopia
em Llansol?
É provável que alguns não vejam o que percebo de político em Maria
Gabriela Llansol. Sei que a política que ela tanto abominava era a mesma que
permitia as injustiças e o novelo de poder a se enrolar com os Homens. Quis
escrever esta tese porque acreditei que, mesmo de forma dolorosa, e como ela
mesmo diz, de maneira triste mas não infeliz, algumas pessoas do mundo
precisavam saber das alternativas, assim como eu mesma as descobri insistindo
no seu texto. Llansol guiou este trabalho e esteve presente nas plantas que
adquiri e perdi durante estes quatro anos. Esteve comigo nas florestas quando eu
nelas entrava e também nas Noites Obscuras, com tantos livros e tantas palavras
vindas ao meu encontro. É por tudo isso que insisto no seguinte: É possível que
esta tese seja mal-compreendida. Mas gostaria que não me entendessem mal, já
que não tive a pretensão de forjar o meu texto, nascido de diversas intuições e
vislumbres outros. O que quis foi apenas deixar de lado, por alguns instantes,
certos modos de ler Llansol que insistem em codificá-la através de uma nutrição
quase clandestina permitida apenas a iniciados. Eu quis trazê-la, pela minha
leitura, para o combate entre o mundo e o Mundo. O mundo que se tem e o
Mundo que se espera na escrita, da escrita e pela escrita. Nesse caminho, fui
20
seduzida a pensar o que era afinal o paradoxo que me encantava: como este texto
tão absurdamente político procede de uma aversão tão ostensiva pela política?
Vagarosamente: não, Llansol não é comunista. Ou neoconservadora. Não
se trata disso. A Llansol que entendo aposta num Mundo dentro deste nosso
mundo corriqueiro, rasamente realista, minúsculo, atrofiador. É porque o seu
texto foi dando à luz inúmeras paisagens, tantas e incontáveis que cartografá-las e
dizer ei-las pareceria tolo. Esta é uma tese de doutorado. Um trabalho que atende
a inúmeros pressupostos burocráticos e acadêmicos e, portanto, para que esse
texto enfim houvesse, foi preciso unir vértices, fazer concessões; foi sobretudo
um trabalho apaixonado e, como toda paixão, cheia de fúrias e remansos. Tudo
isto para dizer o óbvio sobre o (meu) texto que se abre: este trabalho é apenas um
recorte de outras plurais formas de se adentrar por uma escrita.
O mundo que vejo pela janela de um apartamento de fundos parece
prometido ao seu próprio definhamento. Talvez fosse contra esse costume que
surgiram os primeiros pregos na erva, como se a vegetação dissesse: – Homem,
repara no que não deveria existir aqui. “Quem me chama?”. Pois então o chamado
da rapariga que escreveu por mais de cinquenta anos foi ouvido.
A ela, que não conheci, mas que reconheço no texto e na esperança,
gostaria de dizer: isto é apenas uma tese. A vida e o mundo continuam nos
atingindo.
21
2. TÁBUA INDICATIVA DOS LIVROS PUBLICADOS POR
MARIA GABRIELA LLANSOL EM ORDEM CRONOLÓGICA:
1962 – Os Pregos na Erva
1973 - Depois de Os Pregos na Erva
1977 – O Livro das Comunidades
1984 – A Restante Vida; Causa Amante
1985 – Um Falcão no Punho
1986 – Contos do Mal Errante
1987 – Finita
1988 – Da Sebe ao Ser
1990 – Amar um cão; Um Beijo Dado mais Tarde
1994 – Lisboaleipzig I; Lisboaleipzig II
1996 – Inquérito às Quatro Confidências
1999 – Ardente Texto Joshua
2000 – Onde vais, Drama-Poesia?; Cantileno
2001 – Parasceve
2002 – O Senhor de Herbais
2003 – O Começo de um Livro é Precioso; O Jogo da Liberdade da Alma
2006 – Amigo e Amiga – Curso de Silêncio de 2004
2007 – Os Cantores de Leitura
2009 – Livro de Horas I – Uma Data em Cada Mão
2010 – Livro de Horas II – Um Arco Singular
22
3. CAPÍTULO I: “A SUA ORIGEM NA PULVERIZAÇÃO REPENTINA DO MUNDO”
Não há literatura. Quando se escreve só importa
saber em que real se entra, e se há técnica
adequada para abrir caminho a outros.
Maria Gabriela Llansol, Um Falcão no Punho.
Em um de seus diários publicado, Finita, a escritora portuguesa Maria
Gabriela Llansol, ainda durante o seu exílio na Bélgica, escreve:
No dia 06, regressámos de Portugal, aonde não tínhamos
voltado, desde 1965; e eu desejo conhecer o futuro, como tenho
desejos de entender o passado. Por que me ocorre que em
Portugal, agora, pobres e ricos já se podem odiar
ostensivamente? Há nas ruas, à noite, e nas intimidades das
casas, um odor de violento ajuste de contas.
Cheiro de mensagem pervertida.
Desejaria avisá-los de que se afastem da Justiça.
(LLANSOL, 2005, p. 30)
Do mesmo ano, mas noutra publicação diferente, em Livro de Horas I - Uma
Data em cada Mão (2009), um dos últimos diários publicados, encontra-se uma
longa anotação:
Escrevem à máquina em face deste campo; milhões de folhas de
papel para trilhões de folhas de árvore; mulheres sentadas oito
horas por dia a escrever cartas e a dar forma lapidar à evidência.
Senhor doutor, senhor ovo de sabedoria, senhor de gema perdida; é
o meio-dia das duas horas livres para continuar à tarde; com este
horário de contenção biológica, com esta incubadora de leis, política
vai gerando político, eternamente. Acumulam-se informações, mas
o Estado, composto por estes milhões de homens machos que
vomitam frases e testículos e lugares comuns há séculos, não vota a
lei do seu desaparecimento.
Populações,
melhor,
gentes,
eu, o Estado,
eu, o Governo,
eu, a assembleia,
eu, os partidos,
23
eu, os jornais,
eu, os escritórios –os cafés –
as dobragens
das repartições públicas,
eu, as receitas colectivas do Estado,
eu, os homens,
que denegamos o quotidiano,
e fodemos sistematicamente
a imaginação,
a palavra balbuciada,
e as torrentes das palavras
virgens
que dormem nas nascentes
votamos o nosso próprio desaparecimento.
fomos às universidades, mas
prometemos ficar calados,
só a abater árvores,
a enfrentar animais
e a dar possibilidade
falsa de existência às florestas.
(LLANSOL, 2009, p. 95-96)
Como não reconhecer o viés crítico deste “eu” que, isolado, se instaura por meio
do desacordo e da não-pertença ao conjunto dos coletivos macropolíticos? Como
tratar apenas de mística e dos próprios conceitos criados por Maria Gabriela
Llansol sem pensá-los, de alguma forma, ligados a tal modo plosivo de escrever e,
portanto, tomar partido do próprio discurso?
Inicialmente, estive perguntando como definiria política para o início
deste trabalho, optando por descobrir e colecionar inúmeras definições, ora de
compêndios, ora de autores diversos que se preocuparam, dentro das suas
especialidades, em problematizar o conceito de política. Se discorrer sobre a
História da Política parecia exagerado, parecia igualmente incoerente, tendo em
vista que tal procedimento não compartilharia primeiro do Tempo e em segundo
do Lugar de que fala a autora, mesmo sabendo que tais categorias, para ela,
24
podem ser a qualquer momento transcendidas. Dessa forma, com o desejo de
coerência para com a própria Llansol, optei por, a partir dela, definir qual seria a
forma possível de compreender a Política, por isso a transcrição dos excertos
anteriores. Foi preciso pesquisar por pelo menos dois anos até chegar às palavras
de Hannah Arendt. Intuitivamente, convém ressaltar, aportei em Compreender,
seu livro de dispersos cujo título me parecia bem diferente da maneira árdua de
se pensar a política. Era um livro-gesto que me dirigia ao espaço maternal de Ana
de Peñalosa.
As concepções correntes de Política costumam ressaltar que a sua
principal preocupação está no foro das relações entre o Homem e os seus modos
de organização e uso do Poder, bem como no aproveitamento lateral e imanente
de alguns outros conceitos caros à própria Política como Justiça e Liberdade, por
exemplo. A proposta principal de leitura que se apresenta aqui tem a intenção de
relativizar o projeto que, em princípio, se apresenta puramente estético
(desprovido de qualquer pretensão política) de Maria Gabriela Llansol e
encontrar, no texto da autora, elementos que reforcem, desloquem ou realoquem
o lugar da política, depreendendo, para isso, o seguinte entendimento: “A política
organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade
relativa e em contrapartida às diferenças relativas” (ARENDT, 2009, p. 24,
sublinhados do autor). Desejarei buscar este sentido na obra llansoliana,
verificando inclusive a construção de uma perspectiva da Harmonia e da
Convivência possível entre os diferentes a partir de O Livro das Comunidades.
Os autores que escolhi para auxiliar a reflexão crítica sobre tais temas,
mais diretamente Hannah Arendt e Giorgio Agamben, são também aqueles que
25
invariavelmente estão ligados à cultura européia e avaliam o pensamento político
que, de uma maneira geral, permitiu os levantes de barbárie no século XX. Para
além disso, são pensadores extremamente ligados ao universo da literatura. A
opção por trabalhar com Hannah Arendt deu-se por dois motivos primordiais:
em primeiro lugar porque, depois de uma longa pesquisa, foi talvez a única a
esboçar uma problematização de política bastante semelhante ao que entendo
por político em Maria Gabriela Llansol. Assim, foi importante saber que Arendt
fora também uma despatriada, tendo fugido da Alemanha, onde nasceu, depois
da ascensão de Hitler ao poder em 1933 quando do estabelecimento mais efetivo
das políticas antissemitas. Fugiu para a França e imigrou para os Estados Unidos,
tendo vivido lá até sua morte; em segundo lugar, pareceu conveniente que
Hannah Arendt mostrasse de que posição falava, como alguém que
experimentara de fato o Ódio e o Poder do Príncipe ou seu Führer. Não obstante,
a teorizadora da política (ela não gostava de ser chamada de Filósofa, muito
embora sua formação fosse esta) muitas vezes mostrava-se angustiada com os
rumos do Mundo2, daí que suas principais obras estejam centradas em temas
igualmente caros a Maria Gabriela Llansol, como o potencial da violência no
século XX, a Justiça como um problema a ser investigado, bem como a
precariedade da Liberdade num mundo aparentemente democrático. Por isso,
elegi também para acompanhar o embasamento desta tese as seguintes obras
arendtianas: O que é a Política?, A promessa da política, A condição humana e
Compreender. Já a escolha por Agamben deveu-se a um curso assistido ainda no
2
Faz-se necessária a distinção: mundo, quando grafado com minúscula, estará associado ao
acinzentado universo do qual fazemos parte; Mundo, quando grafado com maiúscula, remeterá a
uma forma de projeção utópica que se deseja e pela qual o texto combate.
26
primeiro semestre do curso de Doutorado, oferecido pelo Professor Alberto
Pucheu, em que pude ler boa parte da obra do filósofo italiano e depreender
diversas relações possíveis entre ele e meu corpus de pesquisa, para além do fato
de ser Agamben um dos principais nomes do modo de se pensar a Política
hodiernamente.
Dentro da Literatura Portuguesa, Maria Gabriela Llansol é um nome e um
tema ainda polêmicos, que quase sempre provocam olhares atravessados, alguns
movimentos de repúdio, outros de paixão; já a indiferença e o respeito são mais
raros, embora crescentes. Se é possível pensar em projeto em termos literários, é
forçoso aqui observar que devemos a isso a evolução (sem estabelecer nenhum
critério judicativo)3 do seu trabalho, no qual podemos verificar que mesmo nas
suas duas obras iniciais costumeiramente deixadas de lado, o pólen do fulgor já
havia sido jogado à terra e ao seu mundo.
No final dos anos quarenta, Hannah Arendt publica uma resenha4 a respeito
do livro A Morte de Virgilio, de Hermann Broch. Neste pequeno texto, a
pensadora alemã retoma uma ideia de Hume a respeito dos ciclos da História e
do próprio Tempo, objetivando estabelecer duas noções dialogantes entre si, as
de “não mais” e “ainda não”. Vou lançar mão da própria Arendt ao dizer que
nestes limiares encontramos Proust e Kafka – balizas de certa história literária. O
primeiro falará do nosso passado e de uma poética da rememoração, enquanto o
segundo nos dirá sobre a coerção sistêmica do futuro. Mas e quanto ao presente?
3
Em Um Falcão no Punho, Llansol parece geminar o seu discurso ao de Pessoa numa das Cartas
sobre a gênese dos heterônimos (BERARDINELLI, 1990, p. 58) ao mencionar que não há evolução,
apenas viagem. (“não evoluo, VIAJO”). A partir disso, crio um outro espaço de discussão que não
seguirei agora, dada a extensão da relação entre a literatura portuguesa e as dimensões de termos
como viagem e ultrapassagem. Na ocasião adequada, farei uso disso.
4
A resenha em questão é parte da coletânea Compreender (Companhia das Letras, 2008) que
abrange textos esparsos de Hannah Arendt.
27
Na época da referida resenha, Broch respondia. Hoje, mais de sessenta anos
depois, tomo a opção de mostrar o que compreendo de Maria Gabriela Llansol,
sabendo que nela a melancolia talvez deseje ser superada e o há-de-vir ainda
esteja sendo preparado através de nossa “conta, risco e alegria” (LLANSOL, 1994,
p. 121).
“Não mais”: é que há no universo llansoliano um progressivo afastamento dos
efeitos de rarefação do humano ou de todos os “vivos no meio do vivo”; “ainda
não”: talvez seja este o lugar da utopia. Ou como disse belamente Maurice
Blanchot a respeito de uma existência poética, a propósito de Hölderlin:
Ceci, semble-t-il, qui est fondamental: c´est que le poète doit
exister comme pressentiment de lui-même, comme futur de son
existence. Il n´est pas encore, mais il a à être déjà comme ce qui
sera plus tard, dans un “pas encore” qui constitue l´essentiel de
son deuil, de sa misère et aussi sa grande richesse.
(BLANCHOT, 1999, p.121)5
Vou ao encontro de Llansol a partir deste pressentimento. Porque
esteticamente foi possível a transfiguração do mundo. Antes, é preciso pensar em
que lugar esse encontro ocorreria. Porque o escopo deste trabalho nasceu com a
leitura (encontro) do (com o) discurso feito na ocasião do recebimento da
Associação Portuguesa de Escritores (A.P.E) em 1991. A partir deste texto foi
possível traçar e entender parte do que guiava os livros de Maria Gabriela Llansol.
Sempre me perguntava, ainda que ingenuamente: o que esta mulher quer com
estes textos? O que há por trás desta pretensiosa (e aparente – até então)
iconoclastia? Fui respondida:
5
Tradução minha para a referida citação: “Eis, parece, o que é fundamental: é que o poeta deve
existir como um pressentimento dele, como futuro da sua própria existência. Ele não é ainda, mas
ele tem um vir-a-ser como algo que será mais tarde, num “não ainda” que constitui o essencial do
seu luto, da sua miséria e também da sua grande riqueza.”
28
Não adorava – sabia-o para sempre – qualquer forma de poder,
ou de violência. Por que aceitara eu um Prêmio que tantas vezes
fazia sangue, a não ser por desejar criar, com tantos outros, e no
espaço da nossa Cultura,
um espaço matinal de contra-sangue?.
(LLANSOL, 1994, p. 117, itálicos e sublinhados meus)
Llansol escreve contra os poderes totalitários que conhecemos (eu, vocês
legentes, o mundo) e isso abarca desde o universo acadêmico da recepção de seus
livros até a escrita da História, esta mesma com as maiúsculas. Deste modo,
poder e violência serão questões nucleares para suas figuras. Destaco em itálico as
três últimas linhas da citação pelo seu valor concentracional. A criação não pode
ser solitária (é então comunitária): “um eu é pouco para o que está em causa”
(LLANSOL, 2000, p. 182) e deve ser acompanhada pelos respiros do nosso mundo,
daí a relação com a nossa cultura. E ainda sublinhado: um lugar iluminado, um
espaço de fulgor, uma alternativa, repito, contra-sangue (palavra composta, por
isso mais forte e vívida).
Estabelecido o combate, era necessário ir adiante ainda no mesmo “Para
que o romance não morra”. É um texto com finalidade (para), um certo (in)direto
objeto do verbo, nesse caso oração: “_____ escrevo,” (LLANSOL, 1994, p. 116)6 e
portanto também responde àquela primeira angústia que, de modo mais
acadêmico, pode ser assim postulada: há projeto nestes textos? É um dos
problemas levantados para seguir investigando, já que a autora, em concordância
6
Citação completa: “ ___ escrevo,
para que o romance não morra.
Escrevo, para que continue (...)”
(Llansol, 1994, p. 116)
29
com o desejo de criar, antes de esclarecer a sua textualidade, apresenta quatro
perguntas que aqui vamos também tomar como questões norteadoras:
como continuar o humano?
Que vamos nós fazer de nós?
Que sonho vamos nós sonhar que nos sonhe?
Para onde é que o fulgor se foi?
(LLANSOL, 1994, p. 120, negritos da autora)
Uma resposta possível para tais questões talvez resida no fato de Llansol ignorar o
que Benjamin (1994) entende por crise do romance ou causa da rotura que leva a
narrativa ao seu ocaso. Deste declínio advém a tentativa de continuar o humano e
tramitar narratividade para a textualidade.
Novamente, o que também é importante observar nestas perguntas é uma
ideia subjacente de compromisso a residir nesta tarefa, ou melhor, no projeto da
textualidade, a partir de algo perdido. O fulgor e sua luminescência foram
perdidos, é certo, e talvez por isso tenha sido encontrada e buscada a
textualidade, para que o romance não morra. Este pacto, entretanto, já sabemos,
não diz respeito somente ao escritor, mas também ao leitor, agora legente (que lê
e age). O combate, deste modo, não pode ser estabelecido solitariamente e isso
explicaria também a incidência e importância do nós (nos dois excertos citados
acima), já que ao leitor também é conferida a atuação no processo de
textualização: “Ler é ser chamado a um combate, um drama” (LLANSOL, 2000, p.
18).
No entanto, uma outra questão suscitada pelo discurso de Llansol é a da
oposição clara observada nos princípios básicos da textualidade, ou seja: deve ser
evidente que a narratividade é uma atividade inserida numa relação com o poder.
Será que a autora, de fato, acreditava que a sua atividade, embora também
30
baseada em linguagem, fosse desprovida de relações com o social e com a
política? O texto nos diz o seguinte:
É minha convicção que, se se puder deslocar o centro nevrálgico
do romance, descentrá-lo do humano consumidor de social e de
poder,
operar uma mutação da narratividade e fazê-la
deslizar para a textualidade
um acesso ao novo, ao vivo, ao fulgor,
nos é possível.
(LLANSOL, 1994, p. 120, grifos do autor)
As problematizações desta tese partem também destes dois nódulos: o que são o
social e o poder contra os quais é elaborada a textualidade?
A concepção de mundo no universo llansoliano é bastante conveniente e
parece atender à demanda do “espaço matinal de contra-sangue”. Talvez por isso,
não conhecendo ainda, precisamente, a resposta para os questionamentos
anteriormente apontados, sugiro a hipótese de investigar mais detalhadamente –
por crer que resida aí – um pequeno recorte do mesmo discurso: “Sem
provocação, diria: a textualidade é realista, se souber que, neste mundo, há um
mundo de mundos” (LLANSOL, 1994, p. 118). Esses Mundos, que também vou
chamar de espaços da criação, são resultado do alargamento da pura escrita
(narratividade) e estão também comprometidos com o caráter amplificador da
textualidade descrito em Um Falcão no Punho, quando a autora defende que a
escrita deve amplificar o mundo.
Mas provavelmente não esteja claro ainda que mundos sejam estes.
Quando Llansol trata deste nosso aparentemente único mundo, ela se refere a um
universo definido e acabado, baseado em formas fixas de espécimes, arquiteturas,
afetos, políticas, poderes e narrativas, ordens inalienavelmente contrárias à graça
31
do dom poético ou “a imaginação criadora própria do corpo de afectos, agindo
sobre o território das forças virtuais” (LLANSOL, 1994, p. 120). Deste modo, há
um combate contra este mundo único, porque sua força é a obrigação da crença
na sua própria singularidade, para qual a única validade possível é a do Real e do
que se entende e deriva a partir dele, conforme podemos verificar no seguinte
trecho de A Restante Vida (p. 100):
A série dos êxitos, nossa derrota, confirmou os príncipes no
seu intento: queriam um só real, acabamos por pensar que só um
real havia. Mesmo mortos, há três séculos mortos, ficou-nos esse
reflexo: o real é o social, real só há um, e esse não é nosso,
excepto se por riqueza, manha, ou mérito, nos tomarmos como
príncipes. E, enquanto tais, continuaremos a batalha. Por que
não estranhar que se chame poderoso a esse (que outro nome lhe
dar?) que nos tomava por partes do seu fantasma insatisfeito e
podia pegar em nós abertamente, e pode pegar em nós
clandestinamente, como meio subserviente do seu encanto? Por
que não se acha trágica essa idéia de que o mundo é o social mais
a paisagem enquadrante onde se encontram as imagens de
poder?
Desse modo, acredito na ideia não da retratação nem da mudança deste mundo
que no excerto acima aparece como “um só real”, conforme a própria Llansol
afirma em O Senhor de Herbais. Por isso a textualidade llansoliana amplifica a
noção de mundo e insere, no seu corpo a escrever a certeza de que “[n]o espaço, é
muito mais fácil aproximar pontos distantes. Tornar contíguos mundos
longínquos.” (LLANSOL, 2001, p. 147). Nesse sentido, Llansol isola as rédeas da
escrita como resultado de uma trágica condição humana e sustenta, talvez por
meio dos mecanismos que viabilizam a autopreservação, um projeto claro de
concepção de mundos, através dos quais a perenidade, a inércia e a melancolia
seriam substituídas pelos resultados contínuos da metamorfose, do eterno-
32
retorno e do devir como formas mais ou menos garantidas de ir buscar a
plenitude e a duração:
Foi uma história – está sendo ainda –, de confronto entre
irredutíveis, entre o mundo e a Restante Vida. Sejam quais forem
as razões e os princípios em que cada um se escuda, ambos os
mundos perderam de vista a necessidade vital para cada homem
de poder alimentar-se de alegria, e poder viver com sentido.
(LLANSOL, 1994, p. 109)
Essa ideia de reconfiguração/ concepção dos mundos pode ser entendida
como desejo de superação de uma natural “Melancolia de esquerda” que
dominaria não apenas a poesia e a rarefação do universo ficcional7, mas que
fundamenta a sensibilidade humana, sobretudo depois das experiências
modernas de barbárie. A questão também não passa pelo rancor das posturas
iconoclastas, ela se apresenta como uma superação do Ódio, na direção de uma
“tarefa” “[a]té que o Amor tome figura humana, e o dom poético se manifeste no
carisma que a todo o homem foi entregue: o de continuar, com sua consciência
livre, a criação do mundo” (LLANSOL, 1994, p. 112) sem ressentimentos:
E dei comigo a pensar que muitos eram os que continuavam a
crer que, com um pouco de habilidade e inteligência, seria
possível conceber uma estratégia de transformação do mundo,
voltar a colori-lo por instantes, torná-lo encantado com algumas
probabilidades de êxito.
(LLANSOL, 2002, p. 31)
3.1 – OS PREGOS NA ERVA
A Geografia proposta pela autora, neste caso, pode ser compreendida a
partir de uma reconfiguração da escrita do mundo, criada na direção do espírito
7
Se é claro que Walter Benjamin, sobre a Arte, declara a “perda da aura” (cf. BENJAMIN, 1994), é
fundamental não esquecer da obra, ainda que controversa, do jovem Lukács, Teoria do Romance,
escrito às vésperas da Revolução Russa e portanto ainda durante a Primeira Guerra Mundial.
33
do que Llansol nomeia pelo Espírito da Restante Vida, cujos desenvolvimentos
vou apontar posteriormente na ocasião da leitura da “Geografia de Rebeldes”.
Apesar de claramente objetivada no contexto da publicação d’ O Livro das
Comunidades, em 1977, é possível perceber algumas das preocupações nodulares
de tal neogeografia já em seu primeiro livro porque parece ser necessário,
primeiramente, investigar a ideia de atravessamento e ultrapassagem nos seus
sentidos denotativos e conotativos exatamente porque os dois primeiros livros da
autora alavancarão esta problemática, na medida em que o primeiro é Os pregos
na erva e o segundo Depois de os pregos na erva.
Inicialmente, parece importante observar o conto que nomeia também o
livro, pois Llansol introduz muito sutilmente o humano numa relação de
memória e vivência trágica da história, isto é, há alguma medida perdida no
desdobramento deste mesmo humano. No caso de “Os pregos na erva” (o conto
propriamente dito e não o livro), encontramos uma urgência velada vivida pelos
três personagens Leonardo, Gonçalo e Raquel, “um presságio de repouso
acabado” (LLANSOL, 1987, p. 25), cuja ameaça se concretiza pelo fato desta
última vir sendo fustigada por moradores da comunidade por ser judia, o que
também evidencia um problema da própria comunidade com a diferença dos
diferentes e rapidamente nos leva a uma problematização da questão antissemita
que embasou, afinal, os conflitos mais sérios do Ocidente entre 1939 e 1945. As
relações que Maria Gabriela Llansol trava com o contexto histórico e o material
simbólico da memória da Segunda Guerra Mundial não estão isoladas. Em
discurso publicado em Lisboaleipzig 1, a autora sugere que o potencial máximo
provocado pelo levante da barbárie sob a chancela do III Reich na Alemanha na
34
verdade é uma consequente expiação do humano: “No Ocidente, esta energia
vagueante concentrou-se em Auschwitz como símbolo e lugar do holocausto que,
para além dos judeus, o é o da espécie humana” (LLANSOL, 1994, p. 111). Giorgio
Agamben, nesse caso, concorda: “Antes de ser o campo da morte, Auschwitz é o
lugar de um experimento ainda impensado, no qual para além da vida e da morte,
o judeu se transforma em muçulmano, e o homem em não-homem.” (2008,
p.60)8. E, nesse sentido, no contexto do conto llansoliano, algo na direção de uma
rasura da humanidade vai se construindo até ganhar densidade na fala de Raquel,
dona de uma galinha apedrejada até a morte “por pertencer a uma judia”
(LLANSOL, 1987, p. 28): “-Nós temos estigmas – continuou Raquel. – Qualquer
dia as pedras acertam nos próprios judeus. Não compreendo por que matam. Os
mortos são horríveis para ver.” (p.29).
É curioso que a personagem feminina, inserida entre Gonçalo e Leonardo,
seja a responsável por formular a pergunta que, acredito, parece ser a medula
deste conto “– Sabes o que são estigmas?” Raquel pergunta. A partir dessa
questão, cuja resposta é dada por Leonardo, “- Sei, sei.” (p.30), parece que é
possível identificar o esboço de um delineamento de estirpe para a obra de
Llansol, isto é, como se Raquel e aqueles capazes de identificar ou portar estigmas
formassem um coletivo gregário de semelhantes e, provavelmente por conta
disso, Raquel seja acolhida e protegida não apenas por Leonardo, mas igualmente
por Gonçalo, a seu modo:
8
É bastante importante observar o significado de muçulmano no âmbito da História entre 1933 e
1945, durante o Estado de Exceção vigente na Alemanha. De um modo geral e aplicado à literatura
de testemunho, muçulmano é aquele que, nos campos de concentração, sobrevive já desprovido
de qualquer traço de vitalidade, esperança ou qualquer outro tipo de afeto. A indiferença, bem
como o sinônimo de “cadáver ambulante”, também são as suas marcas. Agamben estuda
largamente a presença de uma vida nua nos muçulmanos em seu livro O que resta de Auschwitz.
35
No chão, os seus pés grandes pareciam navios ancorados. Os
cascos tinham rombos que eram os buracos incertos das meias,
buracos virginais porque nunca seriam cosidos e que por isso
alastrariam até libertar-lhe completamente os pés. Aproximou-se
de uma das janelas e descreveu um movimento linear com um
dos punhos fechados. Uma dor rápida perpassou-lhe pelos dedos,
provocada por um corte do vidro partido. Levou-os à boca e
sugou sem náusea o próprio sangue.
Pareceu-lhe então ouvir ao longe, a espetar-se no escuro e na sua
direcção, um rumor aguçado em grito. Espalmou as mãos no
vidro, a reter o rumor, com medo de que exprimisse o ódio a
Raquel e à sua raça.
(LLANSOL, 1987, p. 30)
Assim, parece relevante apontar que “Os Pregos na Erva” pode ser um conto que
deseja reificar uma preocupação com os passos e, por conseguinte, com os rumos
que estes impedimentos (os pregos) oferecem a um caminhar plano e fluido, daí
que todos os personagens centrais da narrativa tenham enquadramentos e
descrições suficientemente contundentes a respeito de suas pernas e pés,
anunciando cansaço e demonstrando uma certa impossibilidade de consolação:
“Leonardo apressou o passo mas desejou retardá-lo, a fim de que os seus sentidos
pudessem captar o momento que acontecia debaixo dos seus pés, pés tristes a
que não era permitido parar.” (LLANSOL, 1987, p. 28). Este caráter nocional dos
pregos sobre a erva pode ser conjugado ao livro como um todo, tendo em vista o
tom metonímico que o conto anteriormente referido apresenta em relação aos
demais da mesma obra. E como não me parece que Llansol tenha escolhido o
tema do antissemitismo para intitular seu primeiro grande livro publicado,
acredito ser conveniente pensar nas relações alternativas que são criadas pelo
humano nas condições de conflito que, aliás, também parece uma palavra
fundamental para o tecido llansoliano que aqui principiarei a tear. E em relação a
36
isso, convém abordar um pouco mais detidamente alguns dos contos que
compõem Os Pregos na Erva.
Para ser mais direta: considerando que algo devesse ser transposto neste
primeiro livro de Llansol, tendo em vista o título da sua segunda obra publicada,
o que precisava ser ultrapassado em Os Pregos na Erva? Para efeitos de resposta,
duas estâncias devem aqui ser observadas. A primeira diz respeito a um modo
sintático e gráfico de apresentar a narrativa: o texto não hesita9, de forma que o
seu fluxo parece contínuo. Não há, deste modo, atrito significante que impeça o
leitor de seguir o modo dinâmico das ações, ainda que seja pela falta delas que é
garantido o movimento do texto, como no conto “A Casa às Avessas”, o terceiro
do livro, em que o cotidiano de um casal consiste em ver passarem os carros à
janela, enquanto a filha, no cômodo ao lado, possivelmente motivada pela
figuração de Jeanne Hébuterne, a suicida “rapariga do pescoço esguio” que o
pintor italiano Amadeo Modigliani imortalizou, ritualiza a própria morte:
Sentou-se na cama com a esfera translúcida do aquário sobre os
joelhos. Os peixes abriam as bocas redondas para respirar,
pareciam tornar-se redondos como as bocas de onde saíam
bolhas, também redondas. Levantou os olhos e fixou o pescoço
desmedidamente esguio da rapariga do quadro de Modigliani.
Depois deitou-se ao comprido na cama, com o aquário entre os
tornozelos.
- Vem aí um automóvel – disse Luzia.
-Vem – respondeu Miguel. – Preto.
- Deve ir para Lisboa.
- Deve. Ou talvez não. Parece que vai parar. Não, afinal não
parou.
O calor anestesiava as coisas. O verde das folhas dos eucaliptos
(peixes verdes) amarelecia.
A rapariga estendeu um braço, abriu a gaveta da mesa de
cabeceira, coberta por um pano que a mãe bordara e procurou
nela um frasco com comprimidos. Tirou a rolha e despejou os
9
Observar as respostas que a própria Llansol dá para os espaços em branco, para os longos
travessões que se apresentam no texto, indicando os locais de hesitação do pensamento e da
matéria a ser dita.
37
comprimidos numa das mãos. A mão ficou repleta de zeros
brancos. Levantou-a para levá-los à boca.
-Vem aí outro automóvel – disse Luzia.
-Vem. É um Dauphine azul – respondeu Miguel.
(LLANSOL, 1987, p. 62-63)
A cena, nesse caso, se apresenta pertencendo ao lugar de uma atmosfera
melancólica, cujas ações estão a serviço da passividade e da microalienação, isto
é, não são conhecidas pelas personagens da sala as agonias ou tampouco o
sofrimento que motivam a filha a ritualizar (e portanto elaborar) e executar a
própria morte ao servir-se de um punhado de pílulas.
A segunda questão a ser tratada diz respeito ao conteúdo e ao universo
mais preciso do enredo daquelas narrativas. Uma característica que deve ser
observada, já devidamente apontada por Augusto Joaquim em seu estudo
denominado “O Limite Fluído”10, é a condição humana dos personagens destes
contos. E a isto somemos a relação deles estabelecida com o espaço e com as
paisagens; no caso, podemos apontar detalhadamente (através de breves
resumos) a trajetória e a rápida travessia por que alguns deles passam, não sem
antes mencionarmos o pórtico esquerdo e discreto (em página traseira) “o
homem é feliz enquanto o seu desespero for igual à sua esperança.” que é a
epígrafe do livro. O primeiro conto nos apresenta Simão, uma espécie de
andarilho que é morto aparentemente ao acaso, “penetrado na testa por um
aguilhão de som e de chumbo.” (LLANSOL, 1987, p. 20) por caçadores. Aqui, o
título da pequena narrativa (“A Via de Pilatos”) sugere a indiferença e a
impessoalidade por parte daqueles que assistem à morte do rapaz pobre e
10
“O Limite Fluído” acompanha a edição de 1987 de Os pregos na erva utilizada aqui.
38
errante. Perguntados entre si a respeito da morte (e metaforicamente, neste caso,
sobre seu sentido estúpido e casual), um dos espectadores do assassinato de
Simão declara: “-Eu não vi nada.” (p.16). Um cão contemplativo encerra o texto,
anunciando talvez mais importância e afeto, já que é o único a se aproximar do
morto e contemplá-lo, no sentido de enxergar (nos seus olhos mudos) alguma
sacralidade possível no homem e dar ao rito final aquilo de que anteriormente era
portador, “a alegria de um contacto humano” (LLANSOL, 1987, p. 18).
O terceiro conto também merece destaque, uma vez que localiza no
espaço de uma casa fechada, de aspecto prisional, o conjunto de quatro
encarcerados assistidos pelo representante da lei e guarda Mirtos11 (cujo nome é,
no mínimo, irônico). “Os corpos cercados” sugere uma ambiência kafkiana, no
sentido de não sabermos e também, aparentemente, seus personagens
desconhecerem os motivos ou os porquês de prosseguirem neste lugar. Os
movimentos diários consistem em caminhar a curta distância da extensão da
pequena habitação e no recolhimento de um balde com os excrementos dos
prisioneiros: “o balde era a vergonha da casa” (LLANSOL, 1987, p. 40). É possível
que, nesta narrativa, também se encontrem elementos que desafiam esta ordem
(da lei representada por “guardas”, “soldados”), como o gesto de “fazer amor” do
casal Pedro e Catarina e a tentativa de manutenção da lucidez através da
contagem dos dias ali permanecidos. Por outro lado, o uso da força e o
assassinato de Natália pelo guarda Mirtos agravam a situação de indelével
clausura e abandono dos quatro restantes. O que chama a atenção neste conto
em especial é exatamente a ausência de possibilidade da suspensão do impasse e
11
Mirtos é variante do grego Murta, tipo de floração e folhagem delicada utilizada também para
incensos.
39
da coerção em que se encontram tais prisioneiros, já que a prisão aqui é
constituída factualmente através de um mecanismo interno (o imóvel de
tamanho mínimo abrigando um número relativamente grande de personagens) e
outro de característica externa (a saber, os guardas, as leis, os soldados, o pátio
vigiado), de modo que o primeiro encarcera enquanto o segundo repele. O
aspecto intenso da punição também deve ser considerado, já que do corpo morto
de Natália restam apenas as pequenas flores coladas ao xale que é devolvido ao
cubículo como (também) forma metonímica de reforçar o gesto punitivo e sua
evidente relação com o Poder. Seria conveniente observar que, mesmo presos, os
personagens desta narrativa estão subordinados a um regime poderoso que os
subjuga e aos poucos os descaracteriza dessa relação intrínseca com o ser
humano. Para Foucault, em uma das entrevistas localizadas em Microfísica do
Poder, é possível entender que
Quando se define os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma
concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se
o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da
proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e
esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o
poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não
ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com
que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que
ele não pesa como uma força que diz não, mas que de fato ele
permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz
discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que
atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância
negativa que tem por função reprimir.
(FOUCAULT, 1995, p. 18)
N’“Os corpos cercados”, o estabelecimento tácito do poder deve ser entendido
sobretudo na estratégia que o guarda Mirtos apresenta para oferecer “Um simples
passeio” (LLANSOL, 1987, p. 43) a Natália, utilizando-se de um mecanismo que
40
não se coaduna a meios puramente repressivos, mas ambíguos, na medida em
que o passeio em si evidencia a condição de prisioneira pois confronta a
personagem a uma experiência de pequena liberdade na sua maior
paradoxalidade. Ou seja, o aparente lazer para o qual Natália é levada, nada mais
é que a melhor oportunidade para matá-la anonimamente (sem testemunhas, já
que os outros presos permanecem no cubículo). Também a conclusão do conto
referido pode fazer dialogar com o que já procurei apontar sobre Agamben em
seu livro O que resta de Auschwitz, sobretudo na fala final de Estevão, que leva a
coincidir a figura do estupor entregue à apoplexia com a figura do muçulmano,
tantas vezes lembrado, por exemplo, pelas narrativas de Primo Levi. E mais do
que isso, é dada novamente à fala, neste trecho, uma voz judaica que é a que
parece compreender melhor o que dizem os guardas, pois é aquela que traduz e
amaldiçoa:
Um guarda veio e não trouxe Natália. (...) – Quis fugir e matei-a –
disse o guarda.
Isaac fez uma tradução literal, em que a sua voz se comprimia.
Catarina tapou a cabeça e começou a chorar, com uma das mãos
a pesar na boca, o corpo afastado do de Pedro para também
cobrir os seus sentidos. O guarda saiu. Por detrás do seu ombro
esquerdo a lâmina da baioneta apontara para o tecto em cuja
parte exterior o céu assentava, descido na neve que se liquefazia.
“Amaldiçoado seja na cidade e amaldiçoado seja no campo, a
entrar e a sair. Edifique uma casa, e não a habite. Plante uma
vinha, e não a vindime” – gritou Isaac, a repetir os anátemas da
sua Lei.
- Estupores de seis metros quadrados – disse Estêvão.
Pedro pegou no xaile e desdobrou-o. Tinham-se agarrado à lã
várias flores iguais, tão pequenas que caberiam dentro de um
anel, com quatro pétalas amarelas cruzadas. Amortalhava-as uma
película de neve que não tardaria a transmudar-se em água para
libertá-las. Assistiram ao fenómeno da fusão das suas partículas
unidos pelos olhos pousados.
À tarde, Mirtos levou o balde com os detritos. Sobre o tecido do
xaile, a água tinha secado e as flores começavam a murchar.
(LLANSOL, 1987, p. 44-45)
41
Não obstante, é conveniente apontar que essas estratégias de exercício do Poder
podem e devem ser observadas em todas as outras narrativas de Os Pregos na
Erva, o que evidentemente coloca em discussão tal problema no contexto da
publicação do livro e a relação que ele estabelece com os demais dessa mesma
obra que se apresenta nesses lugares de “Transitus” entre impossibilidades e,
metonimicamente, n´“Um melro que uniu as penas das asas e imobilizou o corpo
nas ondulações do escuro, paragem efêmera que acabaria no próximo voo.”
(LLANSOL, 1987, 143).
Particularmente acredito que a primeira obra publicada de Llansol já
apresenta portanto o pólen do fulgor que procura uma saída da rarefação ou de
uma entropia fingida por meio de narrativas que se querem imbuir de intenso
potencial lírico, mesmo na temática comum da morte e seus entornos
semânticos. Ainda em Os Pregos na Erva, é possível encontrar uma preocupação
original da autora, que pode ser explicada pela perspectiva humana em relação ao
seu lugar na terra, no seu trânsito, embora os seus personagens, neste caso, não
tenham muita consciência dos sentidos simbólicos que poderiam atribuir a tais
questões e, provavelmente por conta disso, ainda sejam tomados de
preocupações físicas a respeito de seus corpos, pés, da relva, da vegetação, da
pequena fauna e da própria condição humana. Outros pontos do livro podem ser
observados como embriões daquilo que potencialmente será a comunidade,
como é o caso das diversas reuniões e associações que ocorrem entre as
personagens Joana e João Mateus, do conto “Intróito”, que se fundem após uma
grande perda: a morte do filho:
42
A cruz tem dois braços. Ao centro há uma encruzilhada. São as
encruzilhadas que tornam a vida magnífica. Joana vê-a. Ela
baptiza também, mas em outra água salgada que a faz descer a
uma dor de fundo de mar. (...)
João Mateus aproxima-se da janela. Desenha com um dedo
palavras na vidraça mas nela nada fica escrito, nem de alegre,
nem de triste.
Senta-se na cama, ao lado de Joana, que chora em silêncio, de
olhos fechados. Beija-lhe os olhos e a dor sem espaço vazio (por
já não ser aquela em que sempre se liquefazia a sua ausência)
- Morremos com ele – diz Joana.
- Não – responde João Mateus. – Renascemos com ele.
Ela submete-se às suas palavras.
(LLANSOL, 1987, p. 110 – 111)
Aparentemente envolvido numa atmosfera de desesperança (mas aqui assinalo o
retorno ao pórtico, à epígrafe, considerando e destacando que essa desesperança
parece querer ser proporcional à esperança), o livro inicial de Llansol já elabora,
frontalmente, um dos problemas nucleares de seu trabalho, que é a
fundamentação da esperança de ir buscar a plenitude. Não seria forçoso, então,
admitir que a epígrafe de sua primeira obra desempenha a função de apresentar
uma relação entre o desespero e a esperança, embora saibamos que o que os une
seja o homem e a linguagem? Daí que não haja quase espaço para a felicidade
nestes contos: “As palavras escritas numa vidraça embaciada pela chuva são
sempre tristes. Não importa o seu verdadeiro significado.” (LLANSOL, 1987, p. 91)
porque estes homens representados não são ainda capazes de vislumbrar a
esperança, o que justificaria também os títulos das narrativas, quase todas
transparecendo imprecisão e impossibilidade: “Os corpos cercados”, “A pedra que
não caiu”, “A casa às avessas”, “A manhã morta”, “Intróito” – texto aliás que é
introduzido pelo excerto citado logo acima, “Transitus” e “A terra fora do sítio”
por exemplo, o que me leva a acreditar que esta seja a ponte para a epígrafe
43
seguinte de Llansol já em Depois de os pregos na erva. Porque para Ernst Bloch,
em Princípio Esperança (2005), há conexões claras entre o processo de
manutenção da vida e o tema principal de seu livro, tendo em vista que sejam a
disposição e o desejo ardente dos seres humanos os responsáveis pela
alimentação da esperança e da utopia mesmo nas sociedades mais arcaicas de que
se tem notícia. Na verdade, para o filósofo alemão, ambos os substantivos
engendrariam a força revolucionária capaz de propulsionar o Novo, que podemos
adiantar com a sentença epigráfica da obra seguinte de Maria Gabriela: (autoanálise: “não sou capaz de dar vida a uma sociedade nova. Mas posso destruir os
mortos.”) (LLANSOL, 1973, p. 5).
3.2 – Depois de os pregos na erva
Na manhã que desperta
o jardim não mais geometria
é gradação de luz e aguda
descontinuidade de planos.
Tudo se recria e o instante
Varia de ângulo e face
Segundo a mesma vidaluz
que instaura jardins na amplitude
que desperta as flores em várias
coresinstantes e as revive
jogando-as lucidamente
em transposição contínua.
Orides Fontela, “Transposição”.
Aqui desejo observar como se deu a ultrapassagem dos pregos sobre a erva, já
que, dez anos mais tarde, a autora reúne em título três textos que são
apresentados pela seguinte quarta capa, que julgo importantíssima:
Por debaixo dos nossos pés, a trama social modificou-se (1958 –
1972).
44
Tudo e todos é coisa móvel: a realidade social já não é paisagem,
mas destruição da vista: o som não é melodia romântica, nem
compasso de espera.
Os antigos valores estão sujeitos. Tornam-se objectos de
confronto. Fatalmente agressores, os problemas não seguiram a
nossa solução. A rota diferente que tomaram – como se fossem
autónomos face ao homo sapiens e ao homo faber (um e outro
honestos cidadãos) – deixaram-nos sem referências, nem
luminares.
E face ao “mundo” somos secundários acidentes, feridas,
sintomas de feridas: mutilados em ponto grande ou minúsculas
miniaturas.
E contudo
A acção não começa na consciência, mas na amputação: as
referências estão lá, se forem tradição nossa: e cada português
tem hoje antepassados bizarros: no dito e no feito: no prometido
e no faltado: cada português arrisca-se hoje a ser pais de filhos
incógnitos: procurar donde se veio: desconstruir a trama dos
dizeres: contradizer o prometido.
Contradiga-se pois:
A acção começa no movimento,
E este dos corpos.
Estes, no corpo e contra o corpo,
Se constituem lei contra A Lei.
Entre o corpo e A lei,
Guerreiam os dizeres.
Dizê-lo é contradizer.
Contradizeres é uma colecção de textos cujo intento é fornecer
materiais para a leitura e centralização do heterogéneo que, em
português, já veio, está aí, e ainda está por-vir.
Atenta a certo espírito de seu tempo, a publicação de Depois de os pregos na erva
não só oficializa uma postura (ou seria uma impostura?) exilada da autora, como
também formaliza a introdução de Llansol no espaço heteróclito dos gêneros,
assinalando sua diferença em relação à obra anterior, sobretudo no que diz
respeito à forma. Maria Alzira Seixo, em “Alteridade e Auto-referencialidade no
romance português de hoje”, contido no fundamental A Palavra do Romance
(1986), entende que Llansol instaura, em O Livro das Comunidades, como o seu
próprio prefácio o afirma, o regime da mutação. Entretanto, considero que, do
ponto de vista formal, a “mutação discursiva” (SEIXO, 1986, p. 27) da obra
45
llansoliana está exatamente neste livro de 1973, já que é possível, primeiro, incluílo no espaço da contradicção, como a coleção à qual ele pertence mesmo diz;
segundo, porque nele encontro o “abalo narrativo” a que Maria Alzira Seixo se
refere. É consideravelmente impressionante a densidade, por exemplo, do
primeiro texto, da série de três que compõem este volume. Chamam a atenção as
datas que, na capa interna, antecedem até mesmo o título de cada um dos três
textos pertencentes ao livro: Lovaina, 1968 – Lovaina, 1971 - “E que não
escrevia”; Lisboa, 1964 – Lovaina, 1968 – “Um texto decadente” e Lisboa, 1961 –
Lisboa, 1963 – “O Estorvo”. O indicativo das datas evidentemente induz a uma
leitura que não abre mão do valor contextual a que ele pertence, isto é, não é
possível ler este livro sem pensar nas relações que ele estabelece com a sua época
de fissuras em que “face ao ‘mundo’ somos secundários acidentes, feridas,
sintomas de feridas: mutilados em ponto grande ou minúsculas miniaturas.” E
que tais fissuras podem ser observadas e sentidas no próprio deslocamento
oferecido pelo texto do meio, cujo começo da escrita se dá em 1964 em Lisboa e
cuja conclusão é feita em Lovaina, na Bélgica, em 1968, ano-turbilhão.
Seria relevante atentar para o fato de que, entre a publicação do primeiro e
do segundo livros, a autora decidiu acompanhar o marido Augusto Joaquim na
saída de Portugal. O exílio obrigatório, resultado da deserção, precisou ser
cumprido tendo em vista a não compactuação do esposo da autora com a sua
convocação para as frentes na África a partir de 1961, início oficial da Guerra
Colonial. Desse modo, é factual que Maria Gabriela Llansol tenha escrito estes
três textos no bojo de uma experiência orientada pela evidência do desterro, o
que é comprovado pela importância que dá à publicação de seus diários e,
46
evidentemente, pelo conteúdo de algumas de suas afirmações em entrevistas,
como é o caso daquela dada a João Mendes e impressa no Público ao afirmar
categoricamente a sua nacionalidade numa condição definitiva de pretérito,
destacando a partir desta relação não-cívica um lugar de conforto para algumas
das suas paisagens:
De Portugal conheço o português que é gente e uma língua.
Conheço pouca gente, mais paisagens do que gente, e trabalho a
língua.
Não consigo ser patriota. E muito menos no pensar.
Embora, como fui portuguesa, na minha infância, ainda me
deixo “raptar” pelo nacional, e lá vou, de vez em quando, servir a
língua. Não fica servida, mas o país agradece. Mas “Lá” sou
sempre olhada como avis rara e, aqui, como avis raríssima.
Quando me canso de ouvir dizer que sou hermética e
incompreensível, desligo, porque eu acredito nos desfasamentos
de ritmo. Vou pelos carris desafectados da linha de Sintra- Praia
das Maçãs, até à beira-mar. Estender o ângulo – alargar
imensamente o módulo com que meço o tempo. Agora, o que é
certo é que o meu texto é um autêntico sarilho para esta língua.
(LLANSOL apud MENDES, 1995, itálicos meus)
“E que não escrevia” decerto arma o sarilho, apontando-o para a Língua
Portuguesa e portanto também para Portugal, tendo em vista o seu caráter de
cruzamento polifônico, consequentemente forjador e resultante, isto é, causa e
consequência de um sentido único ou restrito abalado. Desse modo, o levante das
diversas vozes que operam a narração neste texto está entrelaçado ao núcleo de
uma família portuguesa despreparada para o recebimento de um filho/ filha que
resiste a inúmeras situações traumáticas – aqui as categorias de masculino e
feminino começam por se diluir e por isso mesmo oscilam adiantando, por
exemplo, o devir por meio do qual as figuras llansolianas emulam-se. Estas
relações são marcadamente burguesas e sinalizam diversas confluências de
planos que, de uma forma geral, tendem a apresentar algumas faces desses
47
núcleos familiares já anteriormente mencionados, utilizando para isso as marcas
dos intertextos que são enunciados através de orações, cartas, pequenas histórias
e até mesmo narrativas mais célebres, como é o caso da bela apropriação que a
autora faz de “O Príncipe Feliz” de Oscar Wilde:
e olhando meu pai de vários ângulos parecia-me um obelisco,
outras vezes uma estátua, a do Príncipe Feliz. De repente veiome esse livro à memória dueto de amor sobre uma grande cidade
príncipe que ama uma andorinha e meu pai homossexual
andorinha andorinha fica mais um dia comigo pedia o príncipe
feliz.
(LLANSOL, 1973, p. 09)
Essa ambientação micropolítica, aqui entendida como modo ou maneira de
administrar uma comunidade menor composta igualmente por figuras de
autoridade que organizam cotidianamente todas as relações de Poder, pode ser
tomada como esboço do que posteriormente leremos em “Os apontamentos
sobre a Rua de Namur” que segue O Livro das Comunidades. Digo isto pelo
simples motivo de existirem na contracapa da primeira edição de Depois de os
pregos na erva breves linhas sobre a biografia da autora que afirmam a sua
desistência da advocacia para ocupar um “lugar filosófico decisivo: viver com
miúdos.”, o que de antemão permite uma ambiguidade em que as duas leituras
são possíveis: a opção pelas crianças (sobretudo as especiais, declaradas autistas
ou sensíveis ao extremo) – como professora da comunidade de Namur já na
Bélgica, que a incita a trilhar o primeiro volume da trilogia da “Geografia de
Rebeldes” (“da tentativa inabalável de reconduzir à fala e à convivência de grupo
uma criança espanhola aparentemente autista que fora levada à Escola onde eu
ensinava.” [LLANSOL, 1994, p. 89]) e a opção pelos miúdos no sentido de esboçar
48
uma preferência por aqueles que compõem a Clave de Pequenez: “Aqueles de que
gosto foram vencidos e andam dispersos”, conforme a própria Llansol demonstra
no seu diário Finita (2005, p. 89). Não obstante, a proposta deste segundo livro de
Llansol pode ser compreendida se for levado em consideração o seu fôlego
crescente de sarilhar aquilo que em Um Falcão no Punho ficou tão devidamente
exposto, ministrando um combate – em hipótese alguma frontal – contra “[o]s
temas, circunscritos ao país despido das suas rotas de viagem, são temas carcerais
que revelam a mediocridade das relações de sociedade, em geral, e o
desenvolvimento normativo de uma literatura” (LLANSOL, 1998, p. 10). Não à
toa, a página de abertura de “E que não escrevia” salienta o comentário epigráfico
logo abaixo do título: (auto análise: “não sou capaz de dar vida a uma
sociedade nova. Mas posso destruir os mortos.”). E se a referida análise
pressupõe uma postura iconoclasta da autora, é porque os valores contidos neste
texto são mexidos às sacudidelas não somente estilisticamente, mas também por
meio de uma exposição que fragiliza e ridiculariza essa pequenez menor, cujo
modus operandi pode ser identificado no próprio organizar do texto, ao ser
dividido em “fichas” numeradas da 01 a 40. Dito de outro modo: a própria
apresentação deste primeiro texto de Depois de os pregos na erva adianta uma
preocupação doméstica de ordenar o mundo por meio das fichas que aqui podem
ser lidas igualmente como um tipo de gerenciamento institucional: as fichas são
dados que escritórios, empresas, escolas e hospitais, dentre outros, têm de
arquivar para a garantia da ordem e da memória. Nesse caso, a família, como
qualquer outra célula institucional, obedece aos mesmos padrões:
49
Ficha 29 – Aqui, presa do próprio nome, o sujeito é presa do
“Livro do Bebé” em que confluem, para desejar e querer no lugar
dele, um hábito social da classe burguesa (ideologia), a
montagem do álbum, adiante descrita, e as notas do relator, o
pai, centro dos fantasmas da família e dos seus fantasmas. Este
tem por móbil aparente fazer a história do sujeito, o seu filho,
num livro que guarde a sua memória.
(LLANSOL, 1973, p. 54)
Assim, o segundo livro de Maria Gabriela Llansol subverte (ou contradiz)
os ditames sociais europeus, como era de se esperar pelo espírito do seu tempo e
da sua condição. O Novo está garantido pelo adianto do olhar aguçado – talvez
um de falcão – que já esboça o desejo de criar uma alternativa ou um outro lugar
possível, daí o advento do compromisso ético da autora para com o universo
estético. E tal tarefa só seria possível a partir de uma compreensão do mundo.
Hannah Arendt, no texto “Compreensão e Política” (2008, p. 331), defende que o
exercício da compreensão é indiscernível à manutenção do mundo. E vai além,
admitindo que compreender é atividade distante de compactuar ou desculpar
quaisquer
sistemas
totalitários.
Era,
portanto,
necessário
para
Llansol
compreender diversos sistemas do mundo, mormente aqueles que se construíram
sob chancelas de tiranos do cenário europeu que ela experienciara e devolve
como material para alguma reflexão possível para aqueles que não compreendem.
A impossibilidade da reciprocidade de compreender pode ter levado Maria
Gabriela Llansol a formular a sua própria Comunidade, alguns anos mais tarde,
evidenciando a simpatia e o afeto para com “Os Incompreendidos” que, à maneira
de Antoine Doinel, clássico personagem de François Truffaut na Nouvelle Vague,
são marcados pelo estigma dos “Absolutamente sós”. A família portuguesa desse
tempo (“Lusíadas
Centenário do Selo Postal com o busto de um velho
50
o Templo de Diana
Tudo pela Nação
A Era dos Descobrimentos”
[LLANSOL, 1973, p. 58, com espaçamentos da autora]) foi, por isso, incapaz de
exercitar a compreensão de seus gestos e a consequente compreensão do mundo:
Ele ofereceu-me também um dicionário. Abrimo-lo na palavra
exílio
queríamos saber o que dizia desterro,
degredo e pareceu-nos pouco exacto e frustrado.
(LLANSOL, 1973, p. 59)
Por estes motivos, a conclusão do texto não poderia ser diferente, tendo
em vista que nesta situação as protagonistas (a avó e o narrador) são unidas pelo
mesmo corpo numa cerimônia que certamente é desdobramento de duas outras
ocasiões bastante caras ao imaginário europeu: o Tribunal da Santa Inquisição e a
Revolução Francesa:
Vieram alguns e alguém tira um a um os livros da estante, As
Peregrinações, as Décadas, o Só, o Serão Inquieto.
Punham o livro vertical sobre nós deitadas, e com ele (algumas
páginas?), vendavam-nos os olhos,
as capas dobravam-se, pano.
Acabada a mágica, começava nova mágica.
Um a um, quem fizera parte da família era decapitado e a sua
cabeça caía no cesto luminoso. Eu ligava uma fixa para cada
cabeça até que a avó se levantou da cadeira de verga, aparecida
no lugar do maple e, lentamente, para não escorregar na
passadeira do corredor sempre e cada vez melhor encerada,
entrou no quarto, no oratório, na casa de banho, na sala de
jantar, no quarto das criadas, ocupou o seu lugar habitual na
cadeira de verga (Écloga), encostada à mesa-geladeira da cozinha
onde se sentou à mesa e a figura ficou de pé, em frente dela e se
iniciou o interrogatório:
(LLANSOL, 1973, p. 60)
Se assinalamos como exemplares as observações feitas anteriormente,
talvez seja pelo fato de aqui querer destacar especificamente o texto-mediatriz
deste volume, que ocupa todo o miolo do livro e sua grande parte: “Um texto
51
decadente”. Inicialmente, seria proveitoso sublinhar alguns aspectos que dizem
respeito ao seu modo de organização, tendo em vista não uma operação
generalizada por parágrafos, mas uma construção em “Tempos” que se sucedem
segundo a lógica cardinal, do Tempo 1 ao Tempo 45.
Aqui o tema da esperança é retomado a partir de uma epígrafe de São João
da Cruz, que aparece pela primeira vez na obra de Maria Gabriela Llansol. O
pequeno trecho diz que “a ascese da memória leva à esperança” (CRUZ apud
LLANSOL, 1973, p. 77) e talvez seja preciso aceder a ele para entender de forma
mais profícua que a proposta do poeta e místico espanhol vai ao encontro de uma
sugestão de esvaziamento das lembranças, entendendo que alguns sacrifícios de
certas faculdades humanas são fundamentais para a manutenção da vida. A ideia
de decadência pode ser aqui compreendida pelo viés da relação epigráfica, cujo
aviso de entrada aponta para o fato de que tal narrativa “inspira-se no episódio
bíblico de Tobias que foi levado a Gabelo, em Ragés, por um homem que não
sabia que era anjo” (LLANSOL, 1973, p. 77). As inferências feitas a partir de tal
posicionamento podem indicar que de antemão haja dois pólos semânticos pelos
quais alguma leitura deve ser orientada, a saber, a dimensão do sagrado bem
como a dimensão do profano. Como meu entendimento aqui visa tramitar pelos
expedientes políticos do texto llansoliano, seria proveitoso já pensar nessa relação
entre Esquecimento e Política, não obliterando que a presença do texto do doutor
católico permeia inteiramente esse escrito.
Para começar, bastaria observar a nomeação dos personagens que aqui
aparecem ensejando a narrativa: Dâmaso – padre virgem, Silvestre – aquele que
52
elocubra, Heitor – o das dores, Paulo – o de muitos pesadelos e Ávila12 – a mulher
sem nenhuma poesia, afora Maria – que todos desejam e O Cego – o que tece o
fio da memória. Todos são prisioneiros de um tipo de “Campo” que os obriga a
trabalhos forçados e condições precárias de saneamento e vida. A automatização
das ações é perturbada por algumas intervenções insólitas, como o aparecimento
de um Arcanjo desenhado na madeira da cozinha que se humaniza até ser
enterrado. Ao longo da narração, orquestrada pela supressão das indicações que
caracterizam os discursos (in)diretos livres, vai-se conhecendo a rotina de tal
segregação. Impressionam diversas cenas de violência como o fuzilamento de
mulheres grávidas e até mesmo sobre como a magreza e a desnutrição afetam e
aproximam as crianças e aqueles menos fortes diante da morte:
Tempo 12: Sentaram-se ao abrigo do arame farpado que lampeja
quando lhe dá o sol. Estão muito cansados, cobertos da terra e da
cinza que segregam o trabalho da pedreira e a sua passividade
final. Há tempos que experimentam uma sensação de distância a
que Silvestre chama falta de vitaminas, atravessar um túnel ou
ouvir do fundo de um poço. Do mais desagradável é a secura que
se lhes estende pela pele e a acidez da boca. Chegou o momento
em que receiam transformar-se em répteis. Ávila deitou-se ao
comprido no chão por ser uma atitude fácil que lhe resolve os
problemas de equilíbrio.
(LLANSOL, 1973, p. 110)
O “Campo”, lugar em que quase todos os personagens se encontram, é
notadamente escrito com a inicial maiúscula, o que deve indicar a sua pertença
ao nível alegórico, integrando extensivamente um espaço semântico que encarna
toda a potência de uma cultura que conheceu bem os seus significados. Dito de
outro modo: não é possível ler este “Campo” devidamente institucionalizado sem
12
É digno anotar que, por conta da semelhança fonética, Ávila direcionará até Santa Águeda,
personagem histórica perseguida pelos romanos por ser defensora dos primeiros cristãos. A
iconografia a seu respeito sempre evoca o seu martírio: na tortura, teve os seios arrancados.
53
estabelecer uma ponte que me parece óbvia: com os campos de concentração,
sobretudo para o caso de se considerar que os núcleos do texto, organizados
desde o Tempo 1 irão findar-se no Tempo 45, ano de encerramento da Segunda
Guerra Mundial. Também Raquel Ribeiro no artigo “Maria Gabriela Llansol meets
Georg Steiner” (2008, p.40) entende que, embora essa ideia não seja abertamente
explicitada, é lógico que
Llansol will also reveal this in one of her most complex stories,
“Um Texto Decadente,” in Depois de Os Pregos na Erva. In his
text, the fragmented speech of the characters, who Llansol
prefers to call figures—Dâmaso, Silvestre, Paulo, Manuel, Maria e
Ávila—recalls the characters from The Waves, by Virgina Woolf
(in which Bernard, Neville, Louis, Rhoda, Jinny and Susan
interweave their lines in a mosaic of voices). These characters are
“caras expatriadas,” surviving the Holocaust, though Llansol
never names their trauma. She writes of the existence of the
Camp; of characters surrounded by fences; of several executions;
of images of carbonised corpses. Llansol describes the
atmosphere by explaining how “os bombardeamentos deixavam
tudo cheio de bruma, a poeira afundava os limites das coisas
estragadas” (Llansol 1973, 101). Llansol may have a reason for not
naming the Holocaust, since she may be no longer talking about
it. The question is really not what, A Llansolian Edenic Space 4 1
but who is she talking about? “Eu sou uma alienada?” asks Maria,
one of the characters, who does not know if the Camp is in fact
reality or a nightmare vision. 13
O campo também é indicado como local em que afloram as reflexões de natureza
teológica. Tais investigações são quase sempre dadas pelos personagens Dâmaso
13
Tradução minha: “Llansol também vai revelar isso em uma de suas histórias mais complexas, "Um
Texto Decadente", em Depois de os Pregos na Erva. Em seu texto, o discurso fragmentado dos
personagens, que Llansol prefere chamar de figuras - Dâmaso, Silvestre, Paulo, Manuel, Maria e
Ávila, lembra os personagens de The Waves, de Virginia Woolf (na qual Bernard, Neville, Louis,
Rhoda , Jinny e Susan se entrelaçam suas linhas em um mosaico de vozes). Estes personagens são
"caras expatriadas" sobreviventes do Holocausto, embora Llansol nunca nomeie, propriamente, o
trauma. Ela escreve sobre a existência do campo; de caracteres cercados por cercas; de várias
execuções, de imagens de corpos carbonizados. Llansol descreve a atmosfera, explicando como "os
bombardeamentos deixavam tudo cheio de bruma, a poeira afundava os limites das coisas
estragadas" (Llansol 1973, 101). Llansol pode ter um motivo para não nomear o Holocausto, já que
ela pode já não estar falando sobre isso. A questão é que não é realmente um espaço edênico
llansoliano,, mas de que lugar ela está falando? "Eu sou uma alienada?", pergunta Maria, um dos
personagens, que não sabe se o acampamento é, na realidade, fato ou um pesadelo” (Llansol, 1987,
p. 115)
54
e Silvestre que encenam posturas de dúvida em relação a quaisquer
manifestações hierofânicas. Para ambos, pareceria difícil pensar o Sagrado numa
participação real de proporções tão absurdas. No Tempo 12, durante uma
recordação de
Dâmaso,
vislumbra-se
um
hipotético porquê
para
seu
aprisionamento. Ao relatar inúmeros encontros com Bispos, o padre acaba
envolvendo-se “imprudentemente do ponto de vista social” (LLANSOL, 1973, p.
111). Numa destas declarações, Dâmaso afirma que o envolvimento com a
Teologia envolve uma profissão de fé crítica e reflexiva, o que posteriormente o
condena a ser afastado da Paróquia Central e mandado a uma Paróquia “de
Operários”. Depois de alguma experiência, envia carta ao Bispo, solicitando um
assistente. A resposta, a meu ver, é importantíssima para esta leitura que aqui
empreendo: “Acabou por confessar que não mo concederia por recear que eu o
politizasse.” (LLANSOL, 1973, p. 112). O “Campo”, desse modo, assume não
apenas a característica Institucional contra a qual todos os prisioneiros de alguma
forma se insubordinaram, mas também é o local onde convencionalmente está
manifestado o Poder que não permite nenhuma politização diferente da sua,
posto que é esta que garante a Ordem. É o que confirma Hannah Arendt no
ensaio “As técnicas sociológicas e o estudo dos campos de concentração”:
Os campos de extermínio comparecem no quadro do terror totalitário
com a forma mais extrema dos campos de concentração. O extermínio
se aplica a seres humanos que, para todas as finalidades práticas, já estão
“mortos”. Os campos de concentração existiam muito antes que o
totalitarismo os convertesse na instituição central do governo, e o que
sempre os caracterizou foi que não eram instituições penais e os reclusos
não tinham sido acusados de nenhum crime, mas se destinavam de
modo geral a abrigar “elementos indesejáveis”, isto é, indivíduos que, por
uma ou outra razão, haviam sido privados de sua pessoa jurídica e de seu
lugar de direito dentro do arcabouço legal do país em que viviam.
(ARENDT, 2008, p. 264)
55
Daí que nessas condições seja ilusório ao extremo pensar em esperança,
considerando os discursos empreendidos por Ávila, a personagem feminina
mutilada, cujo seio foi arrancado. Consoante a esperança é a revolta, invocada por
ela provavelmente como metonímia de seu nome e da sua resistência enquanto
lugar protegido da Espanha. Por outro lado, a solidão e a perda contínua dos
aspectos mais básicos que caracterizam a humanidade das personagens acabam
levando-os a um limiar de desespero e loucura que são mais identificáveis na
própria Ávila como também na outra personagem, Maria. Ambas são capazes de
pressentir inúmeras conclusões a despeito do Poder que lhes é imposto: “Não há
nada melhor para manter na submissão do que procurar destruir a vítima antes
que ela seja executada”. (LLANSOL, 1973, p. 126).
Ao aproximar-se do fim, após o suicídio de Ávila, os prisioneiros vão sendo
tomados pelo Ódio e por um consequente desejo de vingança e reparação e
preparam uma revolta cuja senha é a palavra Roterdão, aludindo provavelmente a
um ambiente de loucura, esboçado por Erasmo de Rotterdam em seu Elogio da
Loucura para ensejar uma discussão sobre as relações entre Arte e Magia no
universo do Campo. A partir dessa indicação da revolta, o texto ganha um caráter
cada vez mais insólito, desviando o seu foco para uma criança e a sua pertença a
uma família de pais incomuns. Novamente, é recuperada a figura do Arcanjo, cuja
definição no texto parece ser bastante misteriosa.
Se inicialmente uma prévia explicação de “Um Texto Decadente” é dada na
abertura do conto em si, parece ser difícil encontrar no texto espaço para essa
dimensão do sagrado através de outras manifestações, tendo em vista que outros
elementos da história contida no Livro de Tobias ainda assim são encontrados,
56
sendo o Cego o mais proeminente deles. Outro dado importante de ser observado
é o fato de esse mesmo livro estar presente apenas em Bíblias Católicas e ser
entendido como sacrílego nas religiões cristãs protestantes, uma vez que fora da
Igreja Católica a presença do Arcanjo Rafael seja considerada arbitrária. Além
disso, as ações gerenciadas pelo anjo são entendidas comumente como
incentivadoras da mentira e da Magia, atividades desprezíveis para todas as
congregações protestantes.
Consequentemente, se presumo que algumas fontes das cenas fulgor são já
verificáveis em Depois de os pregos na erva , parece forçoso compreender que ler
“Um Texto Decadente” é admitir a penetração e a confluência de pelo menos três
macroplanos que se interpenetram nesta história. Dessa forma, conforme o
diagrama abaixo demonstra, o Campo como espaço principal, mas também como
lugar de ascese, permite que os prisioneiros possam também ser entendidos
como habitantes de um lugar sem qualquer dimensão de sagrado e que, portanto,
advoga a decadência do ponto de vista teológico (os Homens são seres decaídos
do Paraíso). Já o Livro de Tobias e a biografia de São João da Cruz se entrelaçam a
esse círculo principal como chaves que auxiliam e esclarecem alguns pontos
obscuros embora sejam, ao mesmo tempo, estas três unidades as responsáveis
pela produção de informações condizentes apenas ao domínio de um único
círculo. Por exemplo: sabe-se que São João da Cruz nasceu em Fontíveros, Ávila e
morreu em Toledo. Tais informações têm sua pertinência ao círculo Biografia de
S. João da Cruz, apesar de, quando correspondentes ao Campo, lugar de ascese,
tais informações possibilitarem uma outra leitura ou até mesmo uma modificação
de tal Campo já que, nele, Ávila é uma personagem suicida e Toledo seja um cão
57
que surge ao final da narrativa. Outro exemplo: No Livro de Tobias, O Cego é
Tobit, pai deste que nomeia o livro. O Cego só voltará a enxergar depois da
intervenção do arcanjo Raphael. Inserido no Campo, O Cego pode ser destacado
como aquele que rememora, isto é, o responsável pela manutenção de um
contato com o exterior através da sua memória que é, afinal, fonte de esperança,
conforme afirma Nilton dos Anjos (2006, p.70): “No tempo de São João da Cruz
talvez se tenham iniciado as grandes rupturas, mas, até São João da Cruz, pelo
menos, vigorou, e isso vale para os grandes místicos atuais, ou seja, essa
percepção de que só é possível ter esperança se houver memória.”
Figura 01 – Capa da primeira edição de Os pregos na erva
58
Campo,
lugar de
ascese
Biografia
de S. João
da Cruz
Livro de
Tobias
Figura 02 – Proposta de diagrama para Depois de os pregos na erva.
Já nos Tempos finais de “Um Texto Decadente” emerge um trecho
recorrentíssimo na obra llansoliana (já aparecera em “E que não escrevia” e
também reaparece reproduzido em Onde Vais, Drama-Poesia?):
-Como, de resto, é evidente, não tive intenção de ser concebido;
dei comigo já sentado no quarto das sombras com uma
perspectiva de descida aos infernos diante dos olhos, ninguém
estava à altura de receber-me, nenhuma relação humana era
exacta para tornar-me equilibrado e justo, ou útil; no quarto das
sombras a luz entrava a jorros por duas grandes janelas de sacada
mas eu habitava aí, não ultrapassava o limiar do corredor que
59
possuía uma passadeira de oleado negro e brilhante porque,
diziam, havia um fantasma acocorado à entrada e que, afinal,
nada mais era do que, a certas horas do dia, o volume rutilante
do sol no oleado.
(LLANSOL, 1973, p. 162)
É recuperada, nesse contexto, a criança de traços autistas, indicada a frequentar
apenas o espaço destinado às “crianças anormais”. Não seria procedente
caracterizar estas associações de múltiplos planos narrativos já que a autora
mesmo pondera, depois de refletir sobre o momento em que o “jogo de espelhos
se estilhaçou” (LLANSOL, 1994, p. 126) que “[o] texto a que me refiro está na
origem de O Livro das Comunidades, onde o texto da sobreimpressão começa
verdadeiramente.” (LLANSOL, 1994, p. 128, negritos da autora). Ao repetir o gesto
da escrita que evidencia o despreparo do mundo para receber tal criança, Llansol
acaba por apresentar igualmente esse esboço de figura que se apresenta em
eterno retorno, provavelmente como matriz de todas as outras que, conforme o
excerto anterior indica, não estava à altura de ser recebida e compreendida.
De qualquer forma, a terceira e última sessão de Depois de Os pregos na
Erva, “O Estorvo”, publicada também na ocasião de Cantileno (2000),
corresponde a um tipo de narrativa de feições mais ortodoxas em termos de
organização, já que é subdividida em 10 pequenos contos, cuja temática ou cujo
temário comum diga respeito ao Pobre, visto sempre como aquele que se projeta
aquém ou abaixo dos estratagemas do Poder. São eles, nestas pequenas
narrativas, prisioneiros, nômades, pobres artistas de circo, empregados
domésticos, bêbados solitários, enfim “os humildes”, de acordo com a própria
nomenclatura de um dos contos.
60
Consideradas assim, essas personagens, que oscilam para o acesso ou não à
dimensão de figuras em Depois de Os pregos na Erva, podem ser quase todas
arroladas como típicas portadoras daquilo que Giorgio Agamben chama14 de “vida
nua”, uma vez que tal conceito está associado a um dupla relação de excluir-se e
incluir-se nas rédeas do Poder Soberano que, no século XX, se mascara tanto em
regimes autocráticos quanto nos democráticos. É a partir destes cenários em que
o despojamento mais completo e a total submissão da paisagem (e, portanto, da
natureza e do homem) estão menorizados é que a “vida nua” se exibe: “o casebre
com corpo de canições, e o homem a dormir sem camisa, desgraçado e enorme,
todos os dias despedaçado pela solidão da mesma tarde” (LLANSOL, 1973, p.
208), à espera de uma ressurreição possível.
Tendo em vista que Llansol preocupou-se ostensivamente com as questões
anteriormente apontadas, tais como Poder, Territórios, Comunidades e, mais que
isso, ousou observar que o cruzamento entre Ética e Estética seria uma forma de
continuar o Humano, não seria coerente dizer que o projeto llansoliano de escrita
é politicamente comprometido, se por política entendemos as diversas maneiras
de administrar e organizar as diferenças humanas? Talvez, para além disso, haja
em Llansol um comprometimento bioético, atualíssimo, que ultrapassa a política
na sua limitação humana e a alarga para caberem no lugar do puramente humano
os espaços de uma nova ordem capaz de absorver também tudo o que respira ou
14
O termo, na verdade, é inicialmente pensado por Benjamin, depois por Foucault, até finalmente
ser problematizado por Agamben a partir da trilogia do Homo Sacer, formada por O poder
soberano e a vida nua I, o segundo é Estado de Exceção e o terceiro é o aqui também já citado O
que resta de Auschwitz.
61
nos faz respirar: os Vivos e nessa categoria seria possível abarcar animais, plantas,
sonhos, imagens, flores, frutos e personalidades da cultura (inclusive
temporalmente mortas).
62
4. CAPÍTULO II: “UMA LABAREDA SUBINDO”
A minha escrita nasce quase sempre de uma revolta.
Maria Gabriela Llansol, Livro de Horas I.
Quando se observa a obra de Llansol por meio de uma perspectiva
diacrônica, parece conveniente dizer que seus dois primeiros livros estão
povoados de personagens que ainda não são, no seu entender, figuras, já que a
este conceito estão necessariamente condicionados as mutações e os devires, isto
é, como se houvesse uma superação de certas condições e efeitos do “Real”. Diz
Maria Gabriela em Um Falcão no Punho numa citação recorrente, mas
incontornável, sobre A Gênese e significado das figuras:
À medida que ousei sair da escrita representativa em que me
sentia tão mal, como me sentia mal na convivência, e em Lisboa,
encontrei-me sem normas, sobretudo mentais. Sentia-me infantil
em dar vida às personagens da escrita realista porque isso
significava que lhes devia igualmente dar a morte. Como
acontece. O texto iria fatalmente para o experimentalismo
inefável e/ou hermético. Nessas circunstâncias, identifiquei
progressivamente “nós construtivos” do texto a que chamo
figuras e que, na realidade, não são necessariamente pessoas mas
módulos, contornos, delineamentos. Uma pessoa que
historicamente existiu pode ser uma figura, ao mesmo título que
uma frase (“este é o jardim que o pensamento permite”), um
animal, uma quimera. O que mais tarde chamei cenas fulgor. Na
verdade, os contornos a que me referi envolvem um núcleo
cintilante. O meu texto não avança por desenvolvimentos
temáticos, nem por enredo, mas segue o fio que liga as diferentes
cenas fulgor. Há assim unidade, mesmo se aparentemente não há
lógica, porque eu não sei antecipadamente o que cada cena
fulgor contém. O seu núcleo pode ser uma imagem, ou um
pensamento, um sentimento intensamente afectivo, um diálogo.
(LLANSOL, 1998, p. 130-131)
Se foi possível enxergar nas personagens das duas publicações anteriores aquilo
que Giorgio Agamben chamou de “vida nua”, considerando que este conceito está
63
relacionado a um fracionamento, a uma cisão da vida potencializada,
resplandecente, plena, é necessário considerar que estes personagens de alguma
forma falidos, porque essencialmente contornados de atributos e falibilidades
humanos, são progressivamente substituídos ao longo da primeira trilogia por
figuras de intenso brilho que não estão atreladas ao prestígio social como
elemento que corrobora o poder, muito embora isso não queira dizer que estas
figuras sejam desprovidas de outros tipos e formas de um exercício poderoso em
contínuo de escrita. Escreve-se potencialmente nos livros de Maria Gabriela como
desejo de testemunhar outra História, isto é, como maneira de criar novas
narrativas que não estejam a serviço de preceitos já organizados pelo discurso
eloquente dos Príncipes. Não obstante, há uma preocupação llansoliana que diz
respeito à importância dessa outra forma de problematização da História que, a
meu ver, também sugere uma preocupação inerente com os procedimentos de
formação de uma Memória, seja essa uma combinação de memória cultural,
social e política.
Chamo a atenção de tais questões porque acredito que seja profícuo
apontar e discutir quais seriam – e se de fato haveria - intenções políticas na
convocação além-humana que Maria Gabriela Llansol empreende ao gesto radical
de publicar O Livro das Comunidades. É que este livro não perpetrará nem modo
nem consistência de matéria anteriormente encontrada, e o fato é que lançará na
ordem da Literatura uma reconfiguração do mundo. Para começar: é um livro
terminado e assinado no primeiro dia dos mortos depois da Revolução dos
Cravos, marcado na Abadia de Maredret na Bélgica em 02 de novembro de 1974.
Começo, então, pelo fim para evitar maiores digressões. O que quer dizer que na
64
confluência dessa data tão singular possa existir, ao mesmo tempo, algum
sepultamento e a erupção de uma abordagem revolucionária do/ para o texto. O
excerto seguinte demonstra, de alguma forma, como Ana de Peñalosa,
protagonista da ficção e preceptora “Real” do místico São João da Cruz, encerra o
livro recebendo o “novo ser” que nascera:
O novo ser não era também um livro. Ana de Peñalosa não
amava os livros; amava a fonte de energia visível que eles
constituem quando descobria imagens e imagens na sucessão das
descrições e dos conceitos. Disse ao novo ser, enquanto o
acariciava:
-Trabalhei entre os trinta e oito e os quarenta e três anos; mas
agora preciso de recriar um novo lugar de repouso destinado
somente ao saber, como na adolescência e na infância. Dantes,
foi o tempo de aprender o que me ensinavam, agora é o tempo de
conhecer o que, durante todos estes anos, me foi dito.
Preparação valiosa da última etapa da idade adulta, abandono
sereno e iniciático do labirinto, - Cansou-se de olhar o sítio
repleto de colunas, edifícios, arcos do triunfo, estádios,
observatórios, casas particulares, templos e pirâmides
gigantescas, santuários. (...) Era o fim do texto, mas fim
provisório. Recomeçou na manhã seguinte o diálogo com o novo
ser, diálogo mudo constituído por olhares, carícias, ausências,
pensamentos, sorrisos e medo.
(LLANSOL, 1999, p. 75-76)
Desejo, com isso, pensar mais diretamente sobre o caráter iniciático que O Livro
das Comunidades traz na sua constituição, questionando, de saída, o que havia de
novo a ser comunicado. E aqui não seria permitido deixar de dizer que a questão
da superação, do recomeço e da reordenação sejam nucleares para a obra
llansoliana, tendo em vista a recorrente preocupação em compreender e tratar
deste Novo Ser que, a meu ver, funciona como metonímia do mundo a ser
modificado, daí que seja a mutação um novo Bem a ser buscado e conquistado
em acordo com um dos discursos mais belos por ela proferidos e publicados em
65
Lisboaleipzig. Consequentemente, quando se admite, com a autora, que os Bens
da terra são cinco, a saber: o conhecimento, a abundância, a generosidade, o
prazer do amante e a alegria de viver15, é permitido entender que reside nesta
perspectiva um compromisso ético que consiste basicamente numa tentativa de
conduzir a sua obra e também o mundo em direção a este desejo. Aliás, Silvina
Rodrigues Lopes, em Teoria da Des-possessão, antevê tal topos em tal obra ao
declarar que: “A escrita de Maria Gabriela Llansol aparece nitidamente como
espaço onde se dramatizam as idéias-forças da passagem do poder ao desejo, o
que faz de todos os livros uma única Causa Amante.” (LOPES, 1988, p.109, grifos
meus). Por outro lado, ao admitir que “O Novo não está no que é dito, mas no
acontecimento da sua volta.” (FOUCAULT, 1998, p. 27), entende-se que haja a
formulação de uma promessa construída sobre o desejo igualmente poderoso de
um ser que há-de-vir no seu próprio retorno, na sua própria promessa. Mas
diferentemente dos textos marcados apenas pela faculdade de prometer, O Livro
das Comunidades é já fogo em processo, porque ignição e corte: “uma labareda
subindo” (LLANSOL, 1999, p. 46).
O famoso prefácio de O Livro das Comunidades já assinala o risco do Novo
Ser e o integra à ordem que a autora convocará para inaugurar a horda de
rebeldes, todos imbuídos pelo espírito da Restante Vida, cuja essência, de uma
maneira geral, deve ser entendida como o zeitgeist dos intensos e dos vencidos
ou, nos termos da autora portuguesa, d´“os absolutamente sós”. Com efeito, o
que apresenta e promete essa escrita protestante é da seguinte ordem:
15
Estes bens estão especificados em dois belíssimos discursos que compõem Lisboaleipzig 1:
“Encontro-me no Novo”e “Por que não pude deixar de vir”, por exemplo.
66
Há, assim, três coisas que metem medo.
A primeira é a mutação. Ninguém sabe o que é um homem.
Os limites da espécie humana não são conseqüentemente
conhecidos. Podem, no entanto, ser sentidos. O mutante é o
fora-de-série, que traz a série consigo. Este livro é um processo
de mutantes, fisicamente escorreitos. É um processo terrível.
Convém ter medo deste livro.
(...)
O falar e negociar o produzir e explorar constroem, com efeito,
os acontecimentos do Poder. O escrever acompanha a densidade
da Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que, aqui vos deixo
qual é: a Paisagem.
Escrever vislumbra, não presta para consignar. Escrever; como
neste livro, leva fatalmente o Poder à perca de memória. E sabese lá o que é um Corpo Cem Memórias de Paisagem.
(LLANSOL, 1999, p. 10)
Este corpo que ora se apresenta, e é matéria de abundância, formaliza um dos
Bens já defendidos pela autora como mostrei em comentário no início deste
capítulo, isto é, o Corpo Cem Memórias de Paisagem eclode como Corpo de
Potências, concordando com a abundância e a generosidade. Por conseguinte, a
escrita adquire uma força oriunda daqueles que a operam, ou melhor, daqueles
que a operam e vivem: os mutantes. Na esteira dessa nova experiência, corpo e
paisagem trocam olhares e passam a ser um contíguo do outro, o que logo leva a
entender que tal correspondência fertiliza as trocas orgânicas, admitindo um fluir
entre naturezas aparentemente dissonantes. O predomínio da faculdade de
metamorfose nos mutantes evidencia a contiguidade entre Corpo e Paisagem, já
que O Livro das Comunidades é organizado a partir de 26 Lugares que encenam
eventos conectados ao significado do nascimento, renascimento, ressurgimento
de diversos Corpos Potentes imbuídos, como já disse, do espírito da Restante
Vida desejosa de Novo, quer no nível formal da escrita, quer no nível significativo
dela. Assim, crendo na conjugação e na sobreimpressão de hibridismo e
67
elementos certamente maravilhosos que perfazem a atmosfera de mística e
iniciação, Llansol procura abrir caminho a essa “alternativa de seres” (LLANSOL,
1999, p. 12).
Também por questões políticas, provavelmente ligadas à Tradição do
Poder, os mutantes podem subverter tal ordem, na medida em que a contínua
camuflagem gerada pelas alterações da forma (/série que eles trazem consigo)
preserva sua distinção, ao mesmo tempo em que os indefine: são figuras, mas
humanos? Seres bestiais, monstros? Esta mutação e o devir em que a figura se
define estão, num primeiro momento, na ordem do pensamento ou do mundo
afetivo? De qualquer forma, parece importante observar que muito ao contrário
de uma ordem ficcional da tradição, que pode ser sublinhada, por exemplo, n´A
Metamorfose de Franz Kafka, nos livros da “Geografia de Rebeldes” e nos
subsequentes, a experiência metamórfica admite um caráter libertador, mesmo
que a variedade da tal série assuma feições monstruosas. Em uma das entradas de
Inquérito às quatro confidências, Llansol recupera um dado fundamental de certa
conversa com Augusto Joaquim:
Tudo o que tu escreves pode ser encarado como uma procura –
na realidade são infindas procuras práticas, quase uma para cada
dia – de saídas viáveis da entropia. Enquanto que o Kafka
pensava que a entropia era inexorável e inultrapassável – para
tudo e todos -, embora momentaneamente não fosse indiferente
o lugar que cada um ocupa nessa máquina trituradora. Uns são a
própria carne, e outros os que os comem em salsichas, embora
uns e outros acabem em restos e lixo.
(LLANSOL, 1996, p. 80)
Chamo a atenção para a segunda linha da citação, com o intuito de
apontar o enfoque dado aos termos entre os travessões que consistem em
destacar quão ativas são as “procuras práticas” de Maria Gabriela, o que leva a
68
querer, com isso, equacionar escrita e ação. Essa relação de proporcionalidade
pode ser entendida em O Livro das Comunidades através da organização dessa
mesma comunidade, cuja orientação principal está vocacionada para a
constituição de uma Regra, na fluidez dos gestos que conotam a presentificação e
a mobilidade do discurso (fala-se de muitos lugares e espaços diferentes neste
livro, muito embora estas passagens provoquem pouco atrito do ponto de vista
semântico). Estas figuras estão sempre envolvidas pela heresia discursiva, seja em
nível oral, seja em nível propriamente de escrita, de maneira que a própria
narração assume: “estou no índex com esta sombria faculdade de criar seres que
não são precisamente humanos mas são seres e abandonados até aqui”
(LLANSOL, 1984, p. 27). Paralelamente a isto, é conveniente considerar que os
aspectos desse efeito herético são ambíguos e também flutuam ao sabor das cenas
fulgor e a própria consideração dessa imprecisão é demonstrativo de que a
mutação e o devir são precípuos e congruentes entre si. Essa rebeldia, nomeada
no mapeamento de intensidades que se verifica no próprio título da trilogia,
orienta uma estética de transformação em que o espírito humano se funde com a
dimensão não apenas selvagem dos animais, mas com a negatividade principal do
Homem: um ser não-domesticado. Apesar de ser suficientemente clara a
diferença entre Kafka e Llansol, Deleuze & Guattari (em Kafka – Para uma
literatura menor) podem ilustrar essa questão quando dizem que “no animal tudo
é metamorfose” (2003, p. 68).
Se por um lado é verificável que as figuras de heresia estão a serviço do
discurso, também essas mesmas figuras, muitas vezes, participam do Convívio
pelas suas características hierofânicas, como é o caso de Hadewijch, São João da
69
Cruz, Müntzer, Eckhart, dentre outros. Mas para Llansol este não é o único
atributo que leva estas figuras a serem convocadas pelo texto. É sobretudo o fato
de ocuparem um espaço na paisagem da escrita. Em outras palavras: são
personagens únicos e irrepetíveis, primeiro porque se dedicaram obstinadamente
à escrita e segundo porque não procriaram do ponto de vista fisiológico,
entendendo que dar ao mundo um Corpo Cem Paisagens é também perpetuar a
espécie. O que pode ser mais ou menos entendido neste trecho:
Ana de Peñalosa deitou-se para trás, a cabeça de de Müntzer
nascia das duas pernas, adulta, os olhos dificilmente descerrados.
(...) Ana de Peñalosa começou a dizer em voz cantante e
enamorada:
(...)
Durante a batalha de Frankenhausen, no dia 15 de maio de 1525,
os camponeses foram definitivamente derrotados pelos Senhores.
O meu filho capturado, encarcerado e torturado teve de declarar
que reconhecia os erros de que o acusavam e morrer decapitado
a 27 de maio de 1525.
(LLANSOL, 1999, p. 50-51)
A dimensão do sagrado no princípio da obra llansoliana pode ainda ser
perspectivada como tentativa de avaliação e re-significação de alguns atributos
conferidos ao Numinoso (OTTO, 2007) que nunca está necessariamente religado
a uma Moral Cristã e que, pelo contrário, insiste em criar, no espaço da ficção,
uma relação “totalmente outra” (OTTO, 2007, p. 18) de algo Desconhecido,
Inominável e Avassalador para preenchê-lo de magnitude humana e cotidiana. O
terceiro livro dessa primeira trilogia seria a prova evidente desse desejo, pois sua
geografia é costurada pelas mãos beguinárias dessas mulheres que optaram pela
não-definição de uma pertença institucional, o que as requalifica para ter voz e,
portanto, produzir discurso em Na Casa de Julho e Agosto, considerando que uma
beguina:
70
est une femme devote non-cloîtrée, vouée à la pauvreté, à la
prière, aux bonnes oeuvres; d´une vie interieure que signalent à
la fois sa ferveur enthousiaste et sa pure liberté; exposée aux
persécutions, soit parce qu´en effet certaines déviations
doctrinales ont paru dans ces milieux, soit par suíte de
préventions injustes et intéressées . 16
(D´ANVERS, 1954, p. 33)
Para além disso, no referido livro de Llansol encontra-se a saída definitiva do que
tal trilogia tentou apresentar em relação ao deslocamento ou uma alternativa à
História, no sentido de uma marcação ortodoxa de discursos vencedores que
decidem a orquestração do tempo e definem os espaços. Com efeito, é possível
compreender em que medida O Livro das Comunidades, A Restante Vida e Na
Casa de Julho e Agosto assumem a Geografia em lugar da História, através da
retomada do mundo: “-Chegou o momento de sair da História e ir viver no
mundo de seiscentos milhões de anos – disse sem usar qualquer forma de
expressão” (LLANSOL, 1984, p. 15). De certa forma, as figuras estão ligadas
também por essa relação de autonomia e responsabilidade frente ao modo Novo
de
vivenciar
a
“aventura
universal”
nas
condições
transformadas
e
transformadoras do devir:
Várias inteligências autônomas traçavam seu destino sobre os
livros que fazia e que eram secundários, primordial era o registo
de uma vibração pensante e reflectida num lugar e num material
perfeitamente desconhecido. Sua eficácia não dependia da
memória, mas do conhecimento. Olhando os escritores sentados
à volta da mesa, verificou que este termo era vazio, e que suas
imagens se definiam, sobretudo, pela posição do olhar, e pelo
abandono da antiga forma de leitura e de escrita. Meditando
sobre seus destinos verificou que o nada se aproximava, mas
impotente. A longa narrativa que ia ter lugar não provinha da
descrição interpretada de suas vidas, mas do evoluir de suas
16
Tradução minha: “É uma mulher devota não-enclausurada, votada à pobreza, às orações e às boas
obras; de uma vida interior que ocasionalmente assinala seu fervor entusiasmado e sua pura
liberdade; exposta às perseguições, seja por conta de certos desvios doutrinais, seja pela sorte de
prevenções injustas e interesseiras.”
71
passagens íntimas que talvez viessem a coincidir, nalguns pontos,
com a aventura universal, sua experimentação e fuga.
(LLANSOL, 1984, p. 14-15)
Tal aventura sintetiza igualmente uma aposta no desejo de Eternidade a que
Silvina Rodrigues Lopes (1988) também aludiu demonstrando a pertença da
memória ao propósito do infinito, o que pode ser visto nas obras das beguinas
mais famosas, como é o caso de Hadewijch e Marguerite Porete, que não apenas
pensaram, mas escreveram e experienciaram a dimensão do Eterno por meio de
uma busca por fusão de êxtase entre si e o Absoluto17:
Lembro-me do que procurava quando o escrevi, embora, agora, ao
relê-lo, me sinta atraída por dimensões nele presentes mas de que,
então, não tive uma percepção clara. Na altura, algumas beguinas
saíram da tipografia de Plantin-Moretus em busca da nascente gelada
do Tigre e do Eufrates. Eram mulheres alfabetizadas, vivendo numa
proximidade comum, embora não forçosamente comunitária,
empenhadas numa vida religiosa que não tinha por norte nem a
escolástica teológica, nem a visão da mulher por ela imposta a toda a
sociedade, nem, finalmente, um contacto mediato com Deus.
Alimentaram-se, pelo pouco que sabemos, dos textos de Eckhart, de
Tauler, de Suso e de Ruysbroecke (e de tantos outros textos que nunca
nos chegaram). Apenas alguns remanescentes tardios desse
movimento ainda foram contemporâneos de Spinoza. No entanto,
sempre pensei que o seu pensamento era o que melhor se teria
adequado ao que procuravam – uma vida jubilosa e um acesso à
eternidade não fundada na crença mas na experiência. O que a
História não permitiu, a visão ofertou. Abriu-lhes espaços significáveis
onde apenas haviam vislumbrado o inomeável. Também para elas, o
amante ficara velado, como acontecera a Psyché, a crermos nas
Metamorfoses que nos deixou Apuleu. De qualquer modo, arriscaram
uma forma de vida poderosamente sugestiva. O seu halo perdurou,
não apenas nos meus textos, mas também nos textos de outros
escritores. Por exemplo, o que é Blimunda, a única grande personagem
feminina de José Saramago, recentemente retomada por Hélia Correia,
senão uma beguina?
(LLANSOL, 2002, p. 207-208)
17
A imbricação de algumas beguinas com uma poesia extremamente ligada às imagens do Amante
e do Amado pode ser verificada mormente nos poemas de Hadewijch e Marguerite Porete, bem
como em algumas de suas cartas. Esses textos, entretanto, não possuem edição brasileira,
enquanto as edições portuguesas são raríssimas.
72
O aprofundamento destas categorias teológicas, no entanto, será discutido
noutra ocasião, tendo em vista que outros pesquisadores já versaram sobre tal
tema, como é o caso da tese de Vânia Baeta (2006), Luz Preferida: a pulsão da
escrita em Maria Gabriela Llansol e Thérèse de Lisieux.
O uso da Metamorfose como conceito e máxima do universo de Llansol
evidencia também uma releitura da Tradição, uma vez que esse uso recupera e
atualiza os seus efeitos que escrevem a sua diacronia nas estórias e lendas
formalizadas por Ovídio na sua obra maior. A propósito das Metamorfoses, Ítalo
Calvino (2009) defende uma operacionalização que aposta no efeito da
tramitação de universos, mostrando que na obra ovidiana, de onde é possível
pinçar dados de semelhança para com a proposta de Maria Gabriela, “A poesia
das Metamorfoses se radica sobretudo nesses limites imprecisos entre mundos
diferentes” (CALVINO, 2009, p. 32, grifos meus). Todavia, no “real” llansoliano
identifica-se uma superação em relação ao caráter hierárquico das ordens divinas,
humanas, vegetais e animais dispostos pelo poeta latino. Provavelmente porque
para a autora, a migração pelos diversos mundos e suas diversas formas esteja
necessariamente ligada a um projeto de uniformidade entre os seres e entre tudo
que potencializa uma cena fulgor, ao mesmo tempo que fulmina a hierarquia da
supremacia contemporânea do puramente humano em relação aos minerais, por
exemplo.
Também Jorge de Sena, a seu modo, investe na Metamorfose para garantir
a profusão do que é vivo e alimenta a Viva Chama não apenas da escrita, impondo
também ao espírito humano o renascimento de energia e força ao opor-lhe a
73
morte como fim último. É a tarefa do portador do dom poético e daquele que cria
mundos o “ampliar-se no espaço” (SENA, 1989b, p. 133) já que, “escrever é
amplificar pouco a pouco” (LLANSOL, 1998, p.28) porque:
Não foi para morrermos que falamos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhamos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhamos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.
(SENA, 1989b, p. 135)
como ilustra o último poema de Metamorfoses, “A Morte, o Espaço, a
Eternidade”. Não parece dizer respeito apenas a esta questão da Eternidade que
Llansol evoca lugar e nome de Jorge de Sena. Em O Senhor de Herbais, Maria
Gabriela Llansol dedica breves páginas àquilo que chama de “pagar a (minha)
dívida a Sena” (LLANSOL, 2002, p. 137) no sentido de admoestar a narrativa
seniana a partir de um projeto desmembrado da tradição realista do tríptico
nacional (o Estado, a Igreja e as Armas). E se para emergir é que nascemos, é
daqui que devemos partir para a tarefa da textualidade: o mundo como promessa,
o que provavelmente sugere a datação do poema seniano: “Assis, 01 de abril de
1966, Sábado de Aleluia”. Talvez mais precisamente: ir a contrapelo do que
Gabriela sustentou ao dizer que “O criar mundos é dado a poucos. Fazê-los é
74
progredir.” (LLANSOL, 2001, p. 135). A Sena, que sabia que a poucos era dado o
dom do fulgor, coube o empenho obstinado de fazer emergir o humano e de
potencializá-lo na “fiel/ dedicação à honra de estar vivo.” (Sena, 1989b, p. 165) e
avançar até a metamorfose do último Sputinik.
Llansol, de sua parte, declara no já referido texto de O Senhor de Herbais
que “nós somos feitos (também) à distância” (LLANSOL, 2002, p. 135), o que
validaria a longa travessia da causa amante humana desde a Gazela da Ibéria e
explicaria a readequação do tempo na textualidade llansoliana, ao contrário do
uso sistemático do espaço como lugar de alta concentração e potência. Daí que a
paisagem ressurgida seja a célula de tais textos, sofrendo continuamente, junto
com as suas figuras, as (im)permanências do tempo:
A repousar à beira do lago, acabou por sorrir; alguém passara
como uma ilusão, num barco e remando – uma sombra por
conhecer; ouvi o rumor da água e dos remos no esforço da
impulsão. Sobressaltou-se, seria Nietzsche?; o mesmo barco
passou de novo. Olhou frontalmente a firmeza da sombra,
sobretudo a cabeça, onde só se distinguiam os cabelos. Ouvia o
rumor da voz: “Semivivos que me cercais, e me encerrais numa
solidão subterrânea, no mutismo e no frio do túmulo; vós que me
condenais a levar uma vida que mais valia chamar morte, voltarei
a ver-me, um dia. Depois de morto terei a minha vingança:
sabemos voltar, nós, os prematuros. É um dos nossos segredos.
Voltarei vivo, mais vivo do que nunca.”
Dirigiu-se com ele para casa, pelo espesso silêncio que se seguira.
Mas era uma sombra de criança: - Donde vens? Do corpo. Do
lugar das recordações e das vibrações. – Não sei o que queres
dizer. – Tenho recordações de que não me lembro: são as mais
belas; as vicissitudes das idéias e dos sistemas afectam-me mais
tragicamente do que as vicissitudes da vida real. – Sentaram-se
encostados um ao outro. Depois, Friedrich N. deitou-se no colo
de Ana de Peñalosa, disposto a adormecer.
(LLANSOL, 1999, p. 59)
Com efeito, Jorge de Sena poderia ser na obra de Llansol encontrado não
apenas por ter sido escolhido por Llansol para compor a “clave dos
75
inqu(i/e)ridos”, dos rebeldes e vencidos de algum modo pela História ao ocupar
lugar ao lado de Spinoza, Nietzsche, Müntzer, Copérnico, entre outros, mas
sobretudo porque também num dos seus mais famosos prefácios (Prefácio à 1ª.
Edição de Poesia I) a transformação do mundo é formalmente elaborada:
Se a poesia é, acima de tudo, nas relações do poeta consigo
mesmo e com os seus leitores, uma educação, é também, nas
relações do poeta com o que transforma em poesia e com o acto
de transformar e com a própria transformação efectuada – o
poema -, uma actividade revolucionária.
(SENA, 1989a, p. 25)
Operar a transformação, neste caso, orienta a poética de estar no mundo e pode
ser igualmente entendido como movimento contrário ao estabelecimento da
“Noite Profunda” (poema de Peregrinatio ad loca infecta) do seu Tempo, e não o
da “banalidade do mal”18 ou do “reino da estupidez”, mas da responsabilidade
humana e humanística de lutar contra um outro movimento, este traiçoeiro e
oblíquo, uma vez que:
É de repente que a noite profunda chega,
como um enjôo, uma agonia, uma vertigem,
uma queda irreparável, no vácuo, no vazio,
(...)
Repentinamente (a música tocava, a noite
física do mundo viera serena e perpassante
para ficar), a outra noite chegou
abrupta, inexorável, impiedosa,
feroz, cruel, tirânica (...)
(SENA, 1989c, p. 56)
18
O conceito de “banalidade do mal” é determinado por Hannah Arendt na obra Eichmann em
Jerusalém. Nesse livro, Arendt conclui que Adolf Eichmann, responsável pela morte direta de um
número enorme de judeus, acabava por descaracterizar o homicida demoníaco. Para ela, a
maldade de Eichmann consistia em ser apenas um sujeito desprovido de espírito crítico ou
qualquer outra manifestação reflexiva que fosse além dos clichês e lugares evidentes do achismo e
do senso-comum. Esta ideia é tão importante para Hannah Arendt que ela passa boa parte de sua
vida buscando problematizar o pensamento humano. Este seu projeto, inacabado por conta de
sua morte, deu origem ao livro póstumo A Vida do Espírito, que trata basicamente de três
faculdades humanas: o pensar, o querer e o julgar. A introdução deste livro demonstra em que
medida a “banalidade do mal” influenciou o seu interesse por essa reflexão.
76
E, não obstante, caberia apontar que contra a “Noite Profunda” do mundo há, em
Llansol, a obstinação pela liberdade de consciência, tornada possível pela
também metamorfose do texto e suas formas que aqui retomo: “operar uma
mutação da narratividade e fazê-la deslizar para a textualidade um acesso ao
novo, ao vivo, ao fulgor nos é possível” (LLANSOL, 1994, p. 120, com
espaçamentos da autora). A noite física do mundo assume, desta feita, não
apenas a qualidade daquilo que perpassa e viaja, mas também a sua dimensão de
escuridão e ausência de saída ad loca infecta ou o mundo na sua versão de “vida
danificada”19
Por isso assinalo a relevância do texto que investe nesta posição de crer-se
contínuo porque também provocador de uma ação, ao invés da manutenção da
inércia e da acomodação. Desse modo, para Llansol, as revoltas se dão de maneira
não a constituir uma outra História, mas ao desenho de uma outra Geografia que
acompanha as batalhas textuais que vão ao encontro de uma escrita que consiste
em evidenciar as possibilidades dos outros mundos. Mesmo que tal atividade
revolucionária, conforme assinala Jorge de Sena, possa muitas vezes estar
imbricada a um compromisso utópico, a priori desguarnecido. É o que sugere o
poema que escolhi para epígrafe desta tese, “La Cathédrale engloutie” que
também abre Arte de Música (1968), do já nomeado poeta. Esta veia seniana que
decalca em certa poesia um movimento de amargura ou ceticismo só encontraria
eco no legado llansoliano talvez do primeiro livro, Os pregos na erva, embora
fosse possível fazer Sena concordar com Adorno (apud COURTINE-DENAMY,
19
Referência ao livro Minima Moralia – reflexões a partir da vida danificada que Adorno escreve
nos 40 sob o espírito da Segunda Guerra Mundial.
77
2002) quando esse último reforça que o espírito humano é totalmente
indestrutível.
Por conseguinte, a parte intermediária de A Restante Vida, denominada
“As Lições”, localizadas entre “Os meses da batalha” e o “Postfacio”,
compreendem, na obra, um momento fundamental que trata do entendimento
da batalha e os seus desdobramentos pensados num contexto a posteriori da
experiência do combate. Estas 25 lições parecem ensejar a marca discursiva de tal
projeto metamorfósico iniciado em O Livro das Comunidades cuja eternidade se
mostra conciliada à escrita já na primeira Lição:
Ana de Peñalosa chegou ao fim da vida. Ser o fim é-lhe
indiferente, não tem muito sentido. Mais uma vez pensa
Utilizar
a escrita
que sempre lhe serviu
de laboratório
e de alquimia.
Reflectindo,
disse para consigo:
Não será uma arte demonstrativa.
A escrita,
vê-la escrever-se lucidamente,
é o fundamento deste real.
(LLANSOL, 1982, p. 71)
O entendimento da escrita como parte inalienável e inextirpável “deste” real
demonstra um modo de investimento num caráter atuante. Dito de outro modo,
arriscaria dizer que em Llansol, como em Jorge de Sena, o sentido comum do
engajamento é ultrapassado. Conforme demonstra Adorno (1973, p. 67), no
famoso ensaio “Engagement” em que discute a oposição entre Brecht e Beckett, é
fundamental repensar a noção de obra “oficialmente engajada”, verificando que
78
tal pretensão quase sempre solapa as expectativas de um trabalho denso que não
está preocupado em simples e aparentemente posicionar-se contra. O pensador
alemão também se utiliza do termo “desmontagem” para indicar que obras
realmente engajadas minam por dentro as principais assertivas do mundo óbvio.
Com efeito, tanto a matéria de escrita de Maria Gabriela quanto a de Sena estão
em sua quase totalidade, afastadas de uma vinculação de propaganda ou
meramente atreladas a um propósito crítico que apenas consiste em mimetizar o
mundo e os seus entraves.
Neste caso, conforme também sugeriu Deleuze (1997) no ensaio “A
Literatura e a Vida”, o texto delimita uma zona de investimento para aquele que
escreve:
O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde
com o homem. A literatura aparece, então, como um
empreendimento de saúde: não que o escritor tenha
forçosamente uma saúde de ferro (...) mas ele goza de uma frágil
saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas
demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja
passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda
saúde dominante tornaria impossíveis. Do que viu e ouviu, o
escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos
perfurados. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda
parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos
organismos e gêneros e no interior deles?
(DELEUZE, 1997, p. 18)
Consequentemente, não é apenas o escritor que com os olhos avermelhados e os
tímpanos perfurados regressa da sua temporada infernal, mas também o leitor,
inteiramente inconfortável, como prefere Llansol, porque desafiado.
79
Um outro tema que merece ser pensado é o do exílio. Tentarei, aqui,
observar em que medida a obra llanseniana20 está vocacionada para deslocar
suas figuras, lançando-as à já mencionada aventura iniciada com a “Geografia de
Rebeldes. Aproveitando a metamorfose como tópica do seu discurso, a autora que
aqui se estuda entenderá que tal faculdade funcionará como mecanismo de
adaptabilidade e sobrevivência na intensidade dos deslocamentos, tendo em vista
a reconfiguração do Mundo ou suas alternativas. Assim, a cartografia dos rebeldes
atende necessariamente a um processo migratório que, nos livros de Llansol, está
em consonância com o desejo de encontrar a terra prometida, ainda que o
eldorado de tal expressão resida no aspecto utópico dessa possibilidade. Mais que
isso: no texto, definido por excelência como lugar, paisagem e corpo, a execução
dos mundos outros é permitida, na medida em que o acesso é disponibilizado
para aqueles que partilham ou elegem Bens semelhantes aos que a escritora
nomeia em Lisboaleipzig 1.
Não à toa, a partir da “Geografia de Rebeldes” é determinada uma
tipificação de personagens que na sua factualidade histórica estiveram à mercê da
condição de exilados. Todavia, esse exílio está também conectado ao nãopertencimento da figura ao seu patriótico ou nacional espaço de nascimento,
como é o caso de São João da Cruz, Nietzsche e T. Müntzer já n´O Livro das
Comunidades, em que é possível entrever dados consistentes a respeito do caráter
tipicamente profético que o discurso de tais figuras assume.
Ernst Bloch, em seu Thomas Münzer, Teólogo da Revolução (1973),
recupera a importância humana que o tom profético dos discursos do religioso
20
Adjetivo que uso para ratificar a importância de Jorge de Sena para a obra de Maria Gabriela
Llansol e demonstrar a força dessa comunidade discursiva.
80
alemão assume ao vociferar contra a associação de interesse puramente
financeiro, por exemplo, entre Lutero e o Príncipe Imperial Frederico da Saxônia,
ou entre a Igreja Romana e seus representantes de nobreza cristã esquecidos dos
lugares menores e da pobreza original em que muito do evangelho foi escrito. De
forma bastante semelhante, encontra-se em Jorge de Sena o mesmo tom de
protesto e indignação que marcou a sua poesia, e ainda mais aquela escrita a
partir de sua saída de Portugal e vinda para o Brasil em 1959, pouco depois do seu
já importantíssimo Fidelidade (1958).
Embora não tenham aderido ao mesmo tom de discurso em suas obras,
Sena e Llansol podem ser cotejados por meio da radicalidade que empreenderam
ao trabalho da escrita e do desejo executado de combater a língua no seu interior,
“porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada”, como
sugere Roland Barthes (1998, p. 17). Apesar de os modos serem bastante
diferentes, é possível concordar a respeito da arte das migrações, tornando isso
matéria de escrita como alternativa a uma existência de provações. Tendo
experimentado o exílio praticamente na mesma época, ambos os autores foram
capazes de diagnosticar a falência que constituía o estado vigente do mundo,
evidenciando não apenas a perda das batalhas e as decapitações, mas indicando
caminhos ao fornecer subsídios para a entrada noutro Real, ao mesmo tempo que
lutam noutra margem contra o “fascismo da língua”21. Como se através da escrita
fossem não somente ultrapassados os abismos e infernos simbólicos de que fala
Deleuze, mas como se estivesse em questão a lapidação duma espécie de amor ao
Mundo e ao humano no ato da interação entre as principais ações de escrever e
21
Barthes é taxativo ao dizer que se há algum lugar de Poder, este é o da língua. Para mais,
conferir BARTHES (1998).
81
ler, sob a impressão de ser modificado enquanto sujeito participante de tal
processo.
Disso deriva o principal legado de Sena e Llansol, que diz respeito à
constituição de uma comunidade discursiva, na qual a reflexão das novas
condições e feições do humano podem ser lidas. Verificados igualmente são os
contornos de um perímetro e geografia das migrações ocasionadas pelos
cumprimentos dos exílios, conforme se entende nos fragmentos abaixo, retirados
do Livro de Horas I, diário de Maria Gabriela que aborda parte dos anos de 1972 a
1977 durante o desterro na Bélgica:
De facto, sou muito diferente dos homens. Sinto-me como um
corpo à procura de caminho, não sem inteligência, mas como se
toda a inteligência devesse passar pelo corpo. Augusto diz-me,
esta noite, que talvez regressemos, dentro de três anos, a
Portugal. Sinto-me triste, como se regressar fosse apenas um
dever. Lá, não sou ninguém. Lá sou mulher dividida entre duas
classes sociais, entre a solidão e a sociabilidade. Saio para a rua e
falam a minha língua. Já não posso vê-la à distância, ver-me à
distância. E talvez – que ironia! - eu volte e a minha mãe,
visivelmente, já lá não esteja. Então, porquê voltar, se o mesmo
espaço e o mesmo tempo se expandem por todo o lado? Se esta
casa não estiver lá? Se eu estiver onde nasci, de regresso da
viagem a que chamávamos exílio?
Ele (mas quem?) não vem, nem vai.
A minha angústia, muito leve e quase inaudível, permanece.
Gosto dos meus cabelos, das minhas mãos e deste meu
pensamento plangente.
*
Nunca se regressa a lugar algum. Passamos e continuamos. A
única vantagem que um lugar situado em Portugal pode ter sobre
outro situado na Bélgica é esta: neste lugar as pessoas podem
reunir-se no trabalho, no exílio, na busca de uma certa
transcendência, de uma unidade.
Trouxemos para aqui uma língua e o sentido da vida. Trouxemos
para aqui uma rede de relações – uma nova prática libidinal de
grupo – e uma nova língua. Nunca mais falaremos o português
como falávamos antes.
82
Aug: Onde vais?
Eu: Continuo, recomeçando a ler.
(LLANSOL, 2009, pp. 86-87)22
O que é latente no excerto acima é uma conclusão suficientemente clássica do
exílio que corrobora com a ideia de que o estrangeiro já não pertence a lugar
nenhum mais e que, por conta disso, também a sua língua materna opera através
da memória. Em Llansol percebe-se comumente a escrita como movimento de
repulsa à nostalgia, que compromete a vida restante e a vida possível do presente
através dos diversos trânsitos, indicados pela multiplicidade dos locais das
enunciações que se verifica mais costumeiramente nos seus diários. Sobre a
questão em Jorge de Sena, o famoso poema “Em Creta, com o Minotauro” (1989c,
p. 74) congrega alguns dos elementos que perfazem as semelhanças e as
disparidades com relação à Maria Gabriela.
I
Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.
22
O texto contido abaixo do asterisco é de autoria de Augusto Joaquim em comentário ao trecho
que o precede, da própria Llansol. Para maiores informações, conferir a já citada referência.
83
II
O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que
se lixou.]
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da
puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.
III
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.
IV
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver
vergonha]
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
84
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.
V
Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.
Seria interessante notar que no poema de Sena, apesar da óbvia relação que o
poeta estabelece com Creta, não há qualquer identificação com a paisagem
natural do nascimento, isto é, não há nenhum modo de o escritor verificar-se
como conteúdo (e até mesmo continente) duma geografia nacional portuguesa,
que Llansol observa muito semelhante à maneira do poeta de Visão Perpétua:
... Trabalhando intemporalmente para não interromper a doçura
deste processo visionário, embarque e descoberta. Nascida
portuguesa, quem são os meus parentes? De portuguesa, vim
para a terra belga. Depois, através de Ana de Peñalosa tornei-me
espanhola. E há a Alemanha de Nietzsche, a França de Proust, a
Flandres de Hadewijch ___ Alguém vem também do Oriente e
para o Oriente me leva.
(LLANSOL, 2009, p. 130)
E aqui, enquanto me refiro à paisagem, compreendo a sua perspectivação não
apenas de cenário, conforme demonstra Iná Elias de Castro em Geografia e
Política (2005), mas sobretudo de espaço de interação entre o humano e o nãohumano. Contudo, se há de se considerar que o lugar do humano, no universo da
poesia seniana e da obra de Llansol, transita a sua metamorfose até não ser mais
admitido como premissa tal qual era no Renascimento, é possível ir ao encontro
do que Sebastião Macedo (2009, p. 62-63) diz, se for o caso de concluir não ser
85
possível, no contexto histórico a que pertencem ambos os escritores portugueses,
uma ressurreição que aposta no humano:
Uma pequena digressão pode levar esse constrangimento e essa
limitação às interdições políticas sofridas por Sena em Portugal e
no Brasil; mas também pode alcançar uma referência do poeta a
seu próprio tempo e às ideologias então dominantes. Aponto,
aliás, que muitos dos poemas de Sena veiculam um pensamento
não exatamente pessimista, mas disfórico, que pode ser
associado à visão de um esgotamento do velho projeto
humanístico do Ocidente e o desejo de “metamorfose” deste em
um novo projeto, transvalorado tal como o pensara Friedrich
Nietzsche e o pensa, atualmente, Peter Sloterdijk.23
A disforia, neste caso, costuma ser compreendida como o processo
crescente de desencantamento e diminuição da energia do sujeito face o mundo.
Ela estaria necessariamente convencionada à projeção de olhar do homem
contemporâneo incapaz de perspectivar a sua conditio humana. É interessante
perceber que em Sena, como aponta ainda Sebastião Macedo, a linhagem desse
pertencimento niilista deveria ser mais detidamente cotejado ao legado
nietzscheano24, muito embora tais pesquisas ainda sejam incipientes.
Por outro lado, parece impossível esquecer a presença do filósofo alemão
na obra llansoliana, seja como personagem, seja como própria cena fulgor e
matriz de muito do seu pensamento. Inegavelmente presente também, como
demonstram os seus diários (Finita e Livro de Horas I, sobretudo), a leitura
anotada e comprometida que Llansol faz de Assim falava Zaratustra e da Aurora,
23
Macedo indica, neste parágrafo, através de duas notas, que não existe ainda nenhum
apontamento mais profundo a respeito da disforia seniana e a perda de perspectiva do humano
como centro nevrálgico do projeto humanístico no século XX e, para tanto, sugere a leitura de
Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo:
Estação Liberdade.
24
É fundamental esclarecer que esta tese não tem a pretensão de sequer avançar no tema da
influência nietzscheana em Maria Gabriela Llansol. Só o tema, em si, exigiria um trabalho de
enorme e direcionado fôlego de cuja intenção, aqui, não partilho.
86
por exemplo, evocam a solidez com que a autora portuguesa apostou em
determinadas idéias e conceitos de Nietzsche como o eterno-retorno aplicado à
tópica da metamorfose ou da própria concepção estética de Mundo que se
verifica em O Nascimento da Tragédia que Maria Gabriela, ao contrário de Jorge
de Sena, mantém.25
É difícil precisar em que medida Llansol partilha e não-partilha dos efeitos
disfóricos que agem e flutuam no mundo e na arte. Se por um lado é procedente
que haja, mormente na sua obra inicial, um lume em vias de apagamento, não
seria absurdo também dizer que a alternativa encontrada, isto é, a sustentação da
Nova Comunidade que se propaga com A Restante Vida e Na Casa de Julho de
Agosto, seja baseada na aventura já referida de um novo nicho de leitura e
conhecimento, como conclui também Peter Sloterdijk (2000, p. 14-15):
Com o estabelecimento midiático da cultura de massas no
Primeiro Mundo em 1918 (radiodifusão) e depois de 1945
(televisão) e mais ainda pela atual revolução da Internet, a
coexistência humana nas sociedades atuais foi retomada a partir
de novas bases. Essas bases, como se pode mostrar sem esforço,
são
decididamente
pós-literárias,
pós-epistolares
e,
conseqüentemente pós-humanistas. Quem considera demasiado
dramático o prefixo “pós” nas formulações acima poderia
substituí-lo pelo advérbio “marginalmente” – de forma que nossa
tese diz: é apenas marginalmente que os meios literários,
epistolares e humanistas servem às grandes sociedades modernas
para a produção de suas sínteses políticas e culturais.
E com isso chega-se a outro núcleo da narrativa llansoliana: o lugar da
Comunidade.
25
Dentre os diversos modos de explicar essa questão, acredito que a mais eficaz seja a própria
existência de um livro publicado em 2002 por Llansol, cujo título é O Senhor de Herbais e o seu
subtítulo seja “Breves ensaios literários sobre a reprodução estética do mundo, e suas tentações.”
87
Figura 03. Dedicatória de Maria Gabriela Llansol a Jorge de Sena.
26
26
Imagem cedida pelo sítio LER JORGE DE SENA http://www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena/port/).
Agradeço enormemente à Gilda Santos pela autorização do uso desta imagem e à Luciana Salles
pelo envio. Lê-se: Jorge de Sena: Se a sua escrita não existisse, o que teria sido a minha? Com a
“cumplicidade” de Maria Gabriela Llansol. Lovaina, Dez. 73.
88
4.1 COMUNIDADE
Sobre O Livro das Comunidades desejava uma
escrita viva que pudesse tomar por um encontro.
Llansol, Finita.
Já foi dito, nesta tese, que O Livro das Comunidades inaugura e reelabora o
conceito de lugar. Pode-se dizer que o núcleo aberto pela figura de São João da
Cruz juntamente com o espaço maternal do qual derivam Ana de Peñalosa e Ana
de Jesus permitiu a Maria Gabriela Llansol levar adiante o projeto da
Comunidade, na medida em que demonstra, nesse primeiro livro, a aptidão e a
inclinação das suas personagens para um modo de organização que chama a
atenção pela relação com a escrita e as suas potências.
Ao dar destaque para o aspecto doméstico, mas transcendente da diversa
horda de rebeldes que convoca, Llansol seleciona tipos obstinadamente
comprometidos com a atividade de escrever em sua primeira trilogia: beguinas,
filósofos, teólogos, livreiros e poetas que estejam a serviço de uma Viva Chama,
cujo incêndio é iniciado por São João da Cruz. Poderiam objetar que a
Comunidade llansoliana aí nascida estivesse veiculada a um propósito
religiosamente cristão, o que seria facilmente negável, tendo em vista a forte
presença do misticismo oriental que se verifica nessa obra, e que é largamente
explicada através da presença fulgurante dos textos mais conhecidos de
Ibn´Arabi, por exemplo.
Porque para a autora, a Mística e o seu Tempo de Ouro nos séculos XIII e
XIV cederam lugar ao Príncipe, obstinado pela perpetuação da espécie e, por
conseguinte, do feudo – questão sobre a qual se deve refletir durante a leitura do
89
excelente “Diálogo com Llull” que Llansol publica na coletânea de Lisboaleipzig 1
(1994). Nesse texto, é fulcral o delineamento que se constrói para compreender
um rebelde, no contexto llansoliano: a energia vagueante que resta (daí a
insistência e o gosto pelo conceito da Restante Vida) da Mística27 e não se
coaduna com os Ideais do Estado: “Porque o rebelde é a energia vagueante
contra-o-mundo, que se desprende, como um odor, do místico que não pôde
realizar-se enquanto tal, dada a destruição de toda a geografia eremítica.”
(LLANSOL, 1994, p. 110)
A partir daí, fica mais fácil entender que a potência da Comunidade,
conforme entende Peter Pál Pelbart (2009) no ensaio “A Comunidade dos sem
comunidade”, reside justamente na sua oposição ao caráter tirânico da massa
convergida em Sociedade, uma vez que sob a égide dessa última, o mundo
conheceu apenas a intolerância, bem como outras negativas, como a melancolia
em contraposição ao júbilo da existência e a face estéril da criação humana que
parece ter sido suplantada pela mecanização da reprodução sexual, por exemplo.
Estas prerrogativas dão corpo à Ética da Comunidade llansoliana, que
também reforça nas suas linhagens, ou melhor, nas linhas do seu livro escrito, a
busca pela plenitude através do dom poético e da liberdade de consciência28 que
27
Neste texto, Llansol faz uma leitura acurada do Livro do Amante e do Amado, do filósofo
medieval Rámon Llull e aponta que o declínio da Mística estaria ligado ao poder em ascensão do
Príncipe – que aqui assume uma carga metonímica para toda a História dos Brasões que se inicia
com o Feudalismo – cujos intentos civilizatórios estariam cada vez mais comprometidos com o
Estado, as Armas e a Igreja, tratando de equalizar, a partir daí, quaisquer manifestações de caráter
individual ou solitariamente perigosas. Deve-se observar que o advento e a fixação dos
pressupostos de suserania e vassalagem explicariam o apagamento progressivo da vida eremitéria
que, evidentemente, norteava a vida dos Eremitas, dando lugar aos monastérios cristãos então
submetidos ao Poder Institucional da Igreja.
28
É importante observar que Llansol reconhece, no Direito contemporâneo, a garantia da
consciência livre, embora também reconheça que: “Essa aquisição, que começa no Livro do Job, e
está hoje consagrada na Constituição e no Direito, passou pela morte do Príncipe, e por uma
mutação profunda da mística.” (LLANSOL, 1994, p. 109)
90
só poderiam ser plenamente possíveis num espaço em que as individuações
estivessem na esteira não da resposta para Quem sou eu?, de acordo com o que
Llansol ratifica na entrevista dada a João Mendes. Provavelmente por isso as
figuras sejam delineadas no sentido não de determinação de uma “identidade”,
mas de uma linhagem estimulada, indiferente ao projeto de cinza (de onde baseia
a certeza de que a Comunidade llansoliana é de Viva Chama) que acende e esgota
as repressões e o objetivo das massas indissociáveis e indissociadas do
indiferente-coletivo Sociedade, também visto como Civilização. O trecho citado
da entrevista é grande, mas possui núcleos que interessam sobremaneira:
As figuras do teu texto vão se acrescentando umas às outras
como personagens de um mesmo grupo de interesses,
protagonistas de uma cumplicidade, neófitos “cooptados”
por quem já lá estava. O que os torna elementos de um
“nós”? Que define esse grupo de pertença? O que liga as
suas identidades?
- A tua pergunta lembra um formulário administrativo: nome,
morada, filiação, estado, no. de bilhete de identidade, no. do
contribuinte, rendimentos anuais, tem casa própria? Dados que
vão sabe-se lá para onde, mas que continuam a ser-nos exigidos.
O espaço edênico tem os seus problemas, mas não tem esses. Os
problemas que tem residem, por exemplo, no modo como o texto
formula o pensamento, na espantosa diversidade dos afectos,
como se estabelecem as redes de relações e os trajectos do
conhecer; como seguir o princípio de bondade; como encontrar
um modo de consumo frugal e não ascético; como distinguir
entre a sedução e o fascínio; como fazer um duplo viável da
liberdade de consciência e do dom poético; como abandonar a
procura da verdade, sem se abandonar à impostura da língua;
como estabelecer a geografia das fontes de alegria, e tantos
outros. Mas o grande problema do espaço edênico é a posse dos
referenciais práticos. Porque a maior parte dos humanos está
muitíssimo mais disposta a acreditar que inferno existe, do que
alguma vez aceitará o espaço edênico como possível, quanto mais
real.
Na prática, no mútuo, não há comunidade, não há grupo, não há
clube, não há seita, não há um “nós”. Existe, contudo, uma forma
estranha de ser para os viciados em identidade: as figuras
parecem, de facto, existir sob forma de linhagens, como
indivíduos da mesma pessoa.
91
Para dizer de maneira crua, só o escravo pergunta quem é; o
homem livre segue quem o chama. Segue, mas não pertence à
voz que o chama. A identidade, a mais das vezes é estritamente
inútil e acaba em papelada ou disco magnético de um
computador qualquer. As pessoas, na sua maioria, encontraram
esse dono, ao quererem saber quem são. Ao mesmo tempo – o
que é extremamente triste – vivem uma vida inteira sem que
ninguém chame por elas. Sabem quem são e não servem para
ninguém. Ignoram que são chamadas a ser “figura”.
Mas se “emigrarem” para o espaço vocativo do texto, encontrarão
formas ou grafias onde se apoiar, jogos em que desejam intervir,
pontos vorazes que as atrairão, quimeras por quem terão de
passar; penso que essas grafias, apesar de inúmeras são em
número limitado: há o trimúrti, há o casal, há o ambo, há a
dupla, há o viajante, há o falcoeiro. No texto, aparecem estas e
outras, cada uma com a sua escrita própria. E metamorfoseiamse tais como se escrevem. À medida que perdem o medo (e Aossê
é um exemplo de uma enorme ousadia medrosa), começam a
adquirir o corpo do espaço edênico. (...) Como adquirem uma
repugnância profunda pela impostura da língua, adquirem um
grande desejo de jogo, de viagem, de paisagem aberta. Como
prescindem do poder, tornam-se auto-suficientes, no sentido de
se tornarem autônomos. Não conseguem abdicar da beleza
própria, que é uma espécie de luz que lhes vem da cena interior.
(...) Como os seres não estão hierarquizados, adquirem a
sensibilidade da mágoa: sentem com grande acuidade o abate
das árvores, o sujar da água, a criação de corpos artificiais, a
destruição do jogo pela intriga, a mancha que o desprezo deixa
sobre a bondade. Por serem, muitas vezes, processos irreversíveis
de desfazeamento da consciência.
(LLANSOL apud MENDES, 1995, p. 2-3, itálicos meus)
Se por um lado é possível dizer que, aparentemente, a ficção llansoliana esteve
preocupada com as questões relativas ao universo da Comunidade, é também
notório que Maria Gabriela trouxe à tona, em seus diários, muito do espírito
gregário que o contexto de Maio de 68 legou ao seu período de Exílio na Bélgica.
O texto que segue O Livro das Comunidades na sua segunda edição de 1999 traz
os Apontamentos sobre a Escola da rua de Namur, cuja essência seria a de
evidenciar a experiência que consistia basicamente em ensinar e partilhar, com
crianças de diversas nacionalidades, o conhecimento e a convivência num
92
espírito comunitário que ficou conhecido como a Quinta de Jacob, endereço da
referida escola, fundada basicamente por universitários belgas para atender os
filhos dos estrangeiros daquela época. As atividades dos professores tratavam não
apenas de transferir algum conteúdo, mas exigiam uma relação de proximidade,
afeto e responsabilidade que não se limitavam a um espaço determinado de sala
de aula, o que significa dizer que, nessa experiência, os professores vivenciavam
diversos níveis de trocas afetivas com seus alunos, inserindo-os em todas as
atividades básicas de convivência, desde a feitura dos pães e da produção para um
pequeno restaurante que garantia o sustento e a manutenção da “Escola
Alternativa” até a resolução de conflitos complexos entre os membros ou
curiosos, jornalistas e religiosos que insistiam em saber detalhes daquele insólito
e revolucionário tipo de vida.
Aparentemente, o que estava em jogo na Escola da Rua de Namur era um
desejo de provar socialmente que a vida em comunidade (viver com) era possível
se fossem respeitadas as alteridades no alargamento das suas diferenças num
espaço de conciliações (daí a sua fundamentação política), o que afinal levou a
autora, conforme já tão largamente citado e referido, à tentativa de trazer à fala e
à convivência uma menina espanhola, que aparentava sofrer de autismo
(LLANSOL, 1999, p. 78).
Entretanto, por motivos variados, a Quinta de Jacob, de acordo com o que
se lê em o Livro de Horas I, também pereceria:
Chegamos a esse território depois de uma longa viagem, com
crianças, companheiros e animais. Nem todos os companheiros
se amavam entre si, e por vezes os combates entre os cães da
nossa matilha, que em breve seria dizimada pela doença,
prefiguravam os conflitos que se travavam em silêncio e
interiormente entre os homens. Havia gente de diferentes tipos –
93
meditabundos, coléricos, inquietos -, mas em todos perpassava,
em diferentes graus e com diferentes formas, uma espécie de
olhar vazio e um futuro determinado. Estavam reduzidos a errar
lamentavelmente, quando depararam com a porta por onde se
entrava para esse território. Sendo muitos e poucos, homens e
mulheres, cultivavam a solidão e também uma proximidade
quase sem hábeis limites. Era no tempo em que as árvores caíam
sem cessar pelos campos e caminhos, uma ausência de verde se
anunciava pela terra. Com tantos maus prenúncios, persistiam,
no entanto, em trabalhar a terra, e à noite, no segredo da casa
comum e dilacerada, estudavam qual seria o melhor lugar para
guardar e fazer alastrar e progredir, mesmo que fosse só uma
gota de verde.
(LLANSOL, 2009, p. 168-169)
Seu ocaso corresponde diretamente ao término da escrita do último volume da
trilogia da “Geografia de Rebeldes” e indica a força que reside no sentido utópico
da Comunidade.
É que, para alguns, o projeto comunitário está necessariamente ligado a
uma inacessibilidade, na medida em que reforça o sentido do não-lugar reservado
à utopia e que, novamente, trata de convocar a esperança contida na reordenação
da História, a serviço de novas peregrinações. E se a palavra alude ao lugar
preferido da cultura portuguesa talvez seja porque, a estes lugares novos e
imprecisos para onde tal neogeografia nos leva, haja uma ressonância oblíqua,
uma aquiescência incômoda. Provavelmente o que se lê em parte do último diário
publicado, Um arco singular – Livro de Horas II (2010) quando Llansol sente-se
atraída pelo estudo de Helder Macedo sobre Menina e Moça, texto presente em A
Restante Vida no não-gratuito final do mês de abril29:
Enquanto Hadewijch desaparecia, o rumor e o medo da batalha
penetravam as janelas e atingiram toda a casa, até aos alicerces, e
29
A Restante Vida é dividido, inicialmente, em “Os meses da batalha” (que passam por meses que
vão de “ No mês de novembro” a “Nos meses de setembro e outubro”), “Os capítulos da espera”
(do capítulo I ao IX), as Lições (conforme já anteriormente dito, XXV no total) e mais um
pósfácio, assinado por A. Borges.
94
ao forno; forrando as paredes, dispostos a confundirem-se com a
terra, as folhas e os textos trazidos pela matilha, tinham
encontrado precário abrigo. Frases repelentes e doces, vozes
escritas, aceitaram ficar fechadas na expectativa. A ri(t)ma, por
cúmulo de prudência, foi revestida de excrementos de cavalos e
um odor nauseabundo espalhar-se-ia sobre quem ousasse
descerrar a porta do forno:
“Menina e moça me levaram de casa de meus pais para longes
terras; e qual fosse a causa dessa minha levada, era pequena, não
na soube”
(LLANSOL, 1982, p. 30)
Assim, convém dizer que a anotação no diário llansoliano demonstra em que
medida a reutilização da autora recupera e atualiza não apenas a importância
simbólica do texto, mas o próprio texto, conforme lembra Jorge Fernandes da
Silveira ao transformar a homenagem de Fiama Hasse Pais Brandão em tópica da
própria Literatura Portuguesa com “O texto de Joan Zorro”:
Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir
os meus textos
a joan zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita
e da leitura
exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra
e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos
é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente.
(BRANDÃO, 1991, p. 181)
O que, do modo llansoliano, é dito já no prefácio d´O Livro das Comunidades:
“Este livro é a história da Tradição, segundo o espírito da Restante Vida.”
(LLANSOL, 1999, p. 09, itálicos da autora). Por isso, parece importante entender
que apesar de as peregrinações da escrita de Maria Gabriela estarem em conexão
com a História, elas operam metamorfoses sólidas no que concerne ao
estabelecimento dos lugares-chave que puderam constituir e ratificar não apenas
uma versão oficial, mas também todas as versões que foram usadas a serviço de
95
qualquer ideologia poderosa ou institucional. Em outras palavras: a comunidade
llansoliana, mesmo ancorada no caráter revolucionário, atende ao chamado
daqueles nomes da tradição que em algum momento semelhante estiveram
“absolutamente sós”. Tratarei dessa questão mais detidamente no próximo
capítulo.
Ocorre que na obra de Maria Gabriela Llansol há um cumprimento poético
e, portanto, estético do mundo, o que significaria dizer que, nesse sentido, o
caráter laborativo dá conta de suplantar a vigência da utopia. Somada a isso, a
feição utópica encontra resistência não apenas na concreção evidente dos livros,
mas sobretudo de modo que a existência da literatura –e não bem a realização do
que ali, como conteúdo, pode ser entendido como projeto ou desejo – garante
uma intervenção no real, ainda que no da autora: “Escrever sempre me secou as
lágrimas. Se eu não sofresse não escreveria.” (LLANSOL, 2010, p. 159), por
exemplo.
Por outro lado, o uso da palavra comunidade enquadra alguns riscos no
pensamento contemporâneo, uma vez que está, de inúmeras formas, coadunado
ao de termos caros para os Estudos Culturais. Não apenas oposta ao espectro da
sociedade e o seu efeito civilizatório, a preocupação comunitária também, apesar
de sua fertilidade, reacende o problema das práticas totalitárias, uma vez que
pressupõe uma “naturalidade” de preceitos, comportamentos e fechamentos,
segundo BAUMAN (2001). Apesar deste viés de leitura ser plenamente possível, é
fundamental não esquecer que na ficção llansoliana a latência da comunidade
acompanha a escrita no seu movimento de pujança e, por isso, agrega novas
categorias que poderiam não estar a par da experiência humana de comunidade.
96
Por estas razões a autora subverte e rearranja essa questão, justamente por abolir
as condições de qualquer supremacia humana, já que nas comunidades
desenhadas pela geografia dos rebeldes o tempo é suplantado pela fluência
interseccionista dos planos e o espaços são restituídos, recuperados e criados
pelas migrações dos Pobres e Intensos nos níveis diversos da cena fulgor. E não
apenas isto. A comunidade de Maria Gabriela Llansol não se apresenta como
tópica totalitária exatamente porque sua base não é puramente humana. Ela
existe muito mais por conta de um afastamento do humano que por qualquer
outra caracterização. E por esse motivo são mistas e não-hierárquicas.
Se, ainda para BAUMAN (2001), a comunidade é sinônimo de latência de
fronteiras, isto é, se ela permite que os perímetros sejam potencialmente tidos
como cercas, seria o caso de procurar saber que papéis a ficção llansoliana
confere a essa dimensão geopolítica do mundo. Neste caso, acredito que existam
dois níveis de entendimento: o primeiro, e fundamental, é compreender que
embora esteja localizada ou agrupada como ficção, o texto de Llansol sugere,
como demonstrei na epígrafe do primeiro capítulo, uma preocupação com os
encontros que se dão na diversidade do Real; o segundo, que não está abortado
do primeiro, seria pensar como a autora adotou o “encontro inesperado do
diverso” para si, não como projeto, mas como a vida que permeia o dia-a-dia com
as suas figuras, os fulgores e os impedimentos. Com efeito, verificar-se-á que os
limites entre obra e vida foram abolidos da sua experiência logo após a chegada à
Bélgica. É o que, aliás, se percebe claramente durante a leitura dos últimos e
póstumos diários publicados pela Assírio & Alvim que datam da ocasião de escrita
97
da já referida trilogia. Tal leitura reforça também a “Vocação do Exílio”30, uma vez
que o uso por parte de Llansol de determinados substantivos ao longo do diário
explicitam que a casa de Jodoigne e sua vida aí, ainda que difíceis, fizeram com
que Gabriela construísse e existisse “na espécie de fortaleza encantada de
Jodoigne” (LLANSOL, 2009, p. 231).
Para Ernst Bloch, no segundo volume do monumental Princípio Esperança,
a procura dessa última está latente em toda obra humana porque busca, afinal,
uma suplantação da morte. Assim, a perspectiva destes três livros de Llansol que
oficialmente desencadeiam o salto é, talvez, o título provisório que a autora deu
para o segundo volume da primeira trilogia antes de optar por A Restante Vida,
ou seja, O Livro dos Poderes do Livro. Com isso, Maria Gabriela demonstra que a
evidência mais forte dessa obra que aí começa é a crença, ou a esperança de que a
escrita é não apenas o que une e sela a comunidade, mas sobretudo fortalece o
sentido do sonho, lugar onde ocorre o primeiro espessamento das esperanças:
No reflexo do branco e do azul caminhava a medo, mas com
calma aparente; é uma voz, nada mais do que uma voz, mas
ouvia Müntzer pregar; queria procurar a escrita para conhecer
exactamente o conteúdo da pregação. Acontecia que escrevia
sobre a página do manuscrito, o urso atento e sentado ao lado. O
coração de João da Cruz excedia o texto, afundava-se no pêlo do
urso
Que dizia
é o mês que mais amo; é o último mês do ano. Queria escrever a
Regra
há quatro folhas amarelecidas
a meu lado
num minúsculo ramo
o papel ficou pousado sobre o livro aberto de São João da Cruz
a Viva Chama e leio, a meio da página, que a condição da união é
a semelhança
quem se assemelha junta-se
30
Longo texto transcrito para o Livro de Horas I (2009. p. 158), mas que consta em separata dos
seus cadernos.
98
o semelhante é conhecido pelo semelhante.
Continuo,
a olhar em volta
o que acabo de ler
e chego ao momento em que digo
a fecundidade do dom é a única retribuição do dom
parece-me, antes de mais, que a regra deve repousar sobre si
mesma
quer dizer
quer dizer
que ela deve poder permanecer a dormir,
e ser levada como um sonho.
(LLANSOL, 1999, p. 43)
Não à toa as personagens llansolianas indicam estar num módulo que
corresponde ao onírico, ensejando uma situação de múltiplas vibrações que,
quase sempre, acabam numa escrita desses trânsitos em companhia de seus
semelhantes.
Pelo fato de não proceder de modo que valorize majoritariamente o
inconsciente, não convém nomear esta escrita de surrealista pelo simples fato de
ela não participar de certos métodos reconhecidamente usados pelos artistas que
fundamentaram e assinaram, com André Breton, o Manifesto Surrealista de 1924,
como é o caso da escrita automática ou a livre-associação. Além disso, ainda que
a Comunidade esteja distante da sua concreção, o seu desejo efetiva a obra e a
semelhança do dom a que o excerto anterior alude, indica que os seres “reais nãoexistentes” participam da vivência doméstica da autora. Seus diários, com isso,
mais uma vez permitem que os legentes acompanhem os repertórios de leituras,
as presenças sentidas dos mais variados pensadores, poetas, animais e plantas.
Não obstante, há que se notar a persistência da autora em demonstrar que tais
99
figuras sejam intervenientes31 como chama viva de um propósito, um desejo,
uma causa caríssima para Maria Gabriela Llansol que, em sua obra, insiste na
conquista do anel como princípio de lealdade à já anotada semelhança da
Comunidade, fluxo de lugares móveis nos quais as figuras tencionam “renascer a
inteireza perdida (...) não para ser escrava mas para ser um elo.” (LLANSOL, 1984,
p. 48).
A imagem do anel, largamente utilizada na obra de Llansol, reforça o
caráter gregário da comunidade, muito embora também esteja a serviço da idéia
de unidade cíclica, cujo veículo é o eterno-retorno reapropriado das páginas
nietzscheanas.
Como através de um espaço universal se volta a um lugar:
Fui à procura do nosso contexto. E escrevendo sobre lugares
alienos, estrangeiros, dei a impressão de não estar a falar daqui.
Mas eu nunca saí daqui, no sentido de que nunca abandonei o
meu corpo. A minha forma de rebeldia foi tão-só a recusa de o
viver mutilado. E em tantos séculos, ele lançou raízes ou deixou
pegadas em lugares de que já nem guardávamos a memória.
Chegamos a um estado de tão profunda fragilidade e pequenez,
que se tornava importante saber se tínhamos vivido, ou se
tínhamos sonhado o nosso passado. A diferença é mínima, mas o
desencanto pode ser mortal. Ir buscar a plenitude, é garantir a
respiração harmônica e metódica do meu corpo nascido para
perdurar.
(LLANSOL, 1998, p. 135)
Poderiam objetar o referencial político-norteador da obra llansoliana tendo em
vista que a caracterização das figuras como Pobres as incluiria na noção de
bando, que Agamben discute em Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I.
Ao entender que o bando se subscreve no seu próprio significado etimológico,
isto é, o daqueles que foram a-bandonados, o filósofo italiano também
31
Conferir o longo trecho da entrevista dada a João Mendes que transcrevi algumas páginas atrás.
100
compreende que tal raiz lexical prevê o seu próprio paradoxo: ajuntamento que
“designa tanto a exclusão da comunidade quanto o comando e a insígnia do
soberano” (AGAMBEN, 2007, p.36), o que provaria, de certo modo, que o bando
llansoliano não experimenta a solidão total pois a sua etimologia provaria o
contrário. Ademais, é cotejando a comunidade ao bando de “absolutamente sós”
que será possível perceber que nem o primeiro nem o segundo termo
corresponde exatamente a um espaço no qual a Lei e o Poder estejam ausentes,
muito embora não seja difícil reconhecer que Llansol talvez desejasse que a sua
obra não tivesse maiores ressonâncias políticas.
Todavia, Hannah Arendt (2009) observou que, tratando-se de qualquer
evento linguístico, não haveria qualquer possibilidade de estar fora da política,
pois “Sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se
política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político.”
(ARENDT, 2009, p. 11). Questão com a qual Michel Foucault, a seu modo,
concorda em A Ordem do Discurso:
É certo que não mais existem tais “sociedades de discurso”, com
esse jogo ambíguo de segredo e de divulgação. Mas que ninguém
se deixe enganar; mesmo na ordem do discurso verdadeiro,
mesmo na ordem do discurso publicado e livre de qualquer
ritual, se exercem ainda formas de apropriação de segredo e de
não permutabilidade. É bem possível que o ato de escrever tal
como está hoje institucionalizado no livro, no sistema de edição
e no personagem do escritor, tenha lugar em uma “sociedade de
discurso” difusa, talvez, mas certamente coercitiva. A diferença
do escritor, sem cessar oposta por ele mesmo à atividade de
qualquer outro sujeito que fala ou escreve, o caráter intransitivo
que empresta a seu discurso, a singularidade fundamental que
atribui há muito tempo à “escritura”, a dissemetria afirmada
entre a “criação” e qualquer outra prática do sistema lingüístico,
tudo isto manifesta na formulação (e tende, aliás, a reconduzir
no jogo das práticas) a existência de certa “sociedade de
discurso”. Mas existem ainda muitas outras que funcionam de
outra maneira, conforme outro regime de exclusividade e de
divulgação: lembremos o segredo técnico ou científico, as formas
101
de difusão e de circulação do discurso médico, os que se
apropriam do discurso econômico ou político.
(FOUCAULT, 1998, p. 40-41)
Com efeito, já foi dito que na Comunidade llansoliana da “Geografia de Rebeldes”
o elemento fundamental que acessa o dom poético é a figura e que a sua pertença
prescinde do humano embora, muitas vezes, faça uso da energia vibrátil
encontrada na escrita ou no projeto estético de algum nome da história, da
cultura. Talvez algo mais relevante que isso seja apontar que no movimento
comunitário da escrita ao qual toda obra de Llansol está subordinada, exista uma
tópica sutil, mas reveladora: é que, de todo modo, o devir das figuras está
necessariamente comprometido com o acesso ao outro. Exemplo máximo é como
Ana de Peñalosa, o nome primeiro da Comunidade, acolhe João da Cruz no livro
que abre a trilogia. Ou a maneira com que as beguinas trocam olhares e
conhecimento acerca do estar devindo uma figura de larga intensidade em Na
Casa de Julho e Agosto. Tais movimentos, entretanto, são subscritos a planos de
leitura não muito evidentes e contribuem para dar ao texto a aparente
necessidade de um processo iniciático que, aliado ao da atmosfera já mística,
contribuiria para o fortalecimento de uma “Sociedade do Anel”, conforme a
antiga atividade lúdica infantil que consistia em passar um anel secretamente
para um dos participantes e tencionar descobrir, através dos gestos, qual teria
sido o “premiado” nessa relação de troca. Apesar de não admitir a pertinência da
102
palavra “sociedade” refletida na sua obra, Maria Gabriela identifica no núcleo de
todas as suas figuras o elo “mediador” ou “trocador”32 característico.
Nas cosmogonias llansolianas do último livro da “Geografia de Rebeldes”,
Llansol encaminha sua saída das nascentes dos rios. E reunindo todos os
elementos alquímicos, e sobretudo os diversos conhecimentos adquiridos a partir
do silêncio aéreo das beguinas, do fogo hierático das cavernas, dos ramos
terrenos que brotam entre os rochedos e da água a chegar ao mar como
continente perdido é de onde vem o Pobre, Comuns, a voltar os olhos fixamente
para o paradigma do frontalmente inatacável. Dessa via surge o mundo, litoral,
noutras Descobertas: “Se este é o último dia, que a eternidade comece.”
(LLANSOL, 1982, p.123).
32
Os termos são dados na parte do livro O que é uma figura? (BARRENTO, 2009, p. 116) intitulada
“Discussão” em que a própria Llansol, bem como Hélia Correia, João Barrento, Maria Etelvina
Santos, dentre outros, participam de um colóquio em torno da figura de Jade.
103
5. CAPÍTULO III: “UM CANTO REALISTA E SUBLIME, GRAVE E ALEGRE, ENRAIZADO E
AÉREO”
Reparo que, ao fundo, a árvore é um livro que distribuiu as
folhas pelos ramos de modo que nenhuma escape ao Sol; há
um tal fulgor no sol que desce, e se esconde, que dificilmente
posso concentrar-me sempre no mesmo lugar verde. A
distância é o percurso, e na globalidade do céu receio não
descobrir viagem por mar que me oriente.
Maria Gabriela Llansol, Um Falcão no Punho.
A saída do epílogo de Na Casa de Julho e Agosto não pode ser feita de
maneira incólume. Ela não finda e nos leva para depois de Flandres, para além do
beguinário de Bruges e a escrita da eternidade ultrapassa todas as gerações de
Plantin Moretus. Outro passo: I, o da Causa Amante, livro de 1984, que inaugura a
segunda trilogia de Maria Gabriela Llansol: “O Litoral do Mundo”.
Se foi evidente que a ideia de Comunidade dos livros anteriores esteve
associada a uma dimensão religiosa, ainda que não ortodoxa, é possível dizer que
na obra que segue os efeitos dessa Iniciação serão convocados para o
deslocamento ao sul: na direção de Portugal. Com esta mudança de paisagem, a
energia fulgurante e os nós construtivos sofrerão também algumas alterações, e é
na direção deste sentido que encaminho a minha leitura, orientada pela força de
três núcleos que cintilarão a marginalidade no atravessar da língua e sua
impostura: Dom Sebastião, Camões e Jorge de Sena nesse lugar de encontro,
entrada e saída onde o mar e a terra acabam e também terra e mar principiam. O
Cabo, a Costa – paisagem de limite que leva a Causa Amante ao encontro do
lugar marginal das vias de acesso ao dom poético.
104
Como falar de um paradigma sem recair nos seus clichês? Como tratar do
Mar Português de glórias e fantasmagorias sem recorrer aos seus mitos e às
tentativas de dissolução desses mesmos mitos? Cartografando a dialética poesia
pessoana ortônima com a de Campos? Talvez antes, Cesário Verde já tenha
esmiuçado o legado das varinas dos pobres bairros que, também como o poeta,
foram deixados ao lugar de fora das salas e dos modos de ler, aristocraticamente,
a História sempre. Mas não apenas: já no próprio Camões Maria Gabriela Llansol
enxerga Comuns, a metamorfose da lápide, versão fulgural e reapropriada para a
energia que vaga à saída das nascentes do Tigre e do Eufrates para outra geografia
natural: finisterra.
É nesse sentido ambíguo do lugar periférico que desejo auscultar o rumor
dessas vozes que falam entre e sobre o Atlântico. Para tanto, primeiramente é
necessário partir do óbvio e dizer o irremediável sobre o século XVI português e
pensar que dele e sobretudo de sua imagem é que nasce o propósito d´Os
Lusíadas. E num segundo momento parece incontornável dizer que neste mesmo
livro, a épica nuclear da língua portuguesa, ou melhor, no livro de linhagem que
funda em diversos sentidos a própria língua, também acontece de o Poeta
reavaliar o próprio Canto e, no caso, mostrar as suas fraturas.
A zona limítrofe que é percebida na geografia desse contexto, isto é, a
dimensão natural do que caracteriza o lugar de água ou o lugar da terra está
necessariamente embutida no título da trilogia, muito embora essa ambiguidade
seja diluída através da textura desse espaço limítrofe que Llansol já evoca para
Causa Amante:
105
Com os textos escritos por Luís M., que não vêm sozinhos,
desembarcarão também, por mar, aqueles a quem os Príncipes chamam
marginais, e que são a gente-própria do nosso território, pois, por direito,
nós herdamos as margens; acolher os marginais nas margens, que estão
sempre em perigo, e em lenta evolução à beira do rio, mar, corrente de
água, foi a idéia que colhi no pano de rendas feita por Eulália. Eu talvez
não tenha muito tempo para aproximar-me dessa corrente de
profundeza humana, que minhas irmãs devem cuidar até ser possível
perfurmar-lhes a última chaga; eu, a tímida escrevente, talvez tenha de
ficar muitas horas sentada em frente do meu banco, a contar para a
posteridade, que é indeterminada, como as coisas se passaram neste
cabo Espichel, e por ele tornaram a passar, no movimento ritmado das
marés.
(LLANSOL, 1984b, p. 30-31)
Se, portanto, as margens são os lugares nos quais as beguinas repousam do
êxodo, é também notório que, por ser local de perigo conforme o excerto acima
demonstra, a experiência das migrações se “rivaliza” com a fecundidade dessa
herança, tendo em vista que é aí que ocorrerão diversas cenas fulgor. Há uma
preocupação narrativa de apontar, por exemplo, na figura de Clara Serena, que a
chegada e a permanência dessa comunidade própria, ocorrem sem combate,
apesar de o léxico que opera esse trânsito ser eminentemente épico e, com isso,
ser enseada “dessa corrente de profundeza humana” (LLANSOL, 1984b, p. 240).
Esse legado, ápice da estruturação humanística do Ocidente, foi que deu origem
ou permitiu inúmeras condições de barbárie, autorizadas sobretudo pelos
argumentos cristãos dos jesuítas aliados aos propósitos de Estado do Príncipe e
sua nobreza33. E nisso, um dos propósitos da ultrapassagem de voltar à língua:
33
Agradeço especialmente a Sebastião Edson Macedo por disponibilizar sua monografia final de
uma disciplina intitulada Religião e Literatura durante o curso de doutorado em Berkeley. Nesse
texto, Sebastião aponta que o aspecto licencitário dos jesuítas autorizou a dizimação ameríndea,
por exemplo, e propiciou o desenvolvimento de uma espécie de prática ocidental que se
caracteriza pelo extermínio e pela não-aceitação da diferença, o que demonstraria aspectos protobiopolíticos, segundo Philippe Lacoue-Labarthe, em relação às práticas de eliminação humana
durante o III Reich.
106
A água, de que se habituara a ouvir dizer que murmurava, indicava-lhe
que um bando de pobres atravessaria, à hora do calor, a cidade de lés a
lés, deslocando os brasões, fazendo desaparecer os livros das genealogias,
destruindo as provas da outorga de tenças, pensões e cargos em frente
do Paço Real.
(LLANSOL, 1998, p. 32)
O fragmento acima, retirado de Um Falcão no punho, diário que abarca o
ano de 1979 e os projetos iniciais de Causa Amante, admite que é a água o nó
central da cultura portuguesa e que sua hidráulica – versão talvez mais crua para
a antiga mecânica dos fluidos – está necessariamente comprometida com a
inoperância e com o atrofiamento da atividade criadora de pujança. É provável
que, a esse respeito, seja possível pensar que a ideia de esperança para a memória
cultural portuguesa esteja suficientemente coadunada a traços diretos da fratura
deixada pela manhã que enfim não houve depois de Alcácer-Quibir. Ou, em
outras palavras: a dimensão insólita do principal ator da batalha, Dom Sebastião,
absorveu o princípio esperança que está originalmente atrelado ao fundamento
da criação e do prazer estético.
Como Maria Gabriela Llansol tratou de tais problemas de maneira lateral
(lembrar que este combate não poderia ser frontal), no sentido de que, para ela,
havia outros ramos, seria fundamental perceber que, partindo de uma
desconfiguração da própria condição de protagonista da História, Dom Sebastião
metamorfoseia-se num arbusto. Para integrar a Clave da Pequenez, por
conseguinte, é forçoso destituir o humano como centralizador ou pivô dos afetos
e das convivências, sobretudo com a estética:
Quando a noite desceu, Sebastião que perdera o uso da palavra, e
mantivera o uso de outra razão, vislumbrou o que era calar-se entre
nós.
107
(...)
Quando todos os arbustos tinham sido arrancados e talhados, um
suspiro de vaga natureza atravessou o carro grosseiro que os levava
atraídos pelos novos cheiros; Alisubbo acompanhava, ao passo da mula,
a pequena floresta inerte; e Coração de Urso permanecia ao alcance dos
braços cortados para que Sebastião o dom do arbusto não sucumbisse
na descida vegetal.
(LLANSOL, 1984b, p. 65-66, negritos meus)
Chamo a atenção para a duplicidade que o negrito sugere ao permitir e ao validar
o entresser, mas também indicar que tal cena fulgor evoca o nó, em seu plural, do
paradigma frontalmente inatacável que recorrentemente se usa para diagnosticar
e tornar visíveis as amarras de uma sociedade, ou melhor, de um tipo de
civilização em que o mito e o humano estão coadunados e a serviço de um
projeto de Poder que não prescinde da polarização entre Senhor e Escravo.
É a partir disso que se verifica fundamentalmente uma influência
nietzscheana34 que consiste em entender as civilizações judaico-cristãs como
cernes da moral escrava, baseadas sempre nos princípios de submissão, expiação
e servilismo, o que vai de encontro à perspectiva dos “espíritos livres”. Talvez por
conta disso, na já citada entrevista concedida a João Mendes, Llansol (1995)
afirme: “só o escravo pergunta quem é, o homem livre segue quem o chama”.
Com isso, apesar de haver uma lição de humildade, cujo sentido seria a
experiência da pobreza por parte daqueles que irrompem na cultura como as
chaves de ler o Império “assinalado”, Llansol se afasta da moral puramente
genealógica de Nietzsche que previra apenas o humano e sua super-dimensão
como júbilo e potência, exatamente por crer e propor na comunidade a ampliação
34
Para maiores detalhes, consultar A Genealogia da Moral ou a discussão iniciada a partir do 45º
aforismo do segundo capítulo de Humano, demasiado Humano.
108
das categorias biopoéticas. Ou seja, o fato de estar preocupada com a dimensão
da servidão humana leva Llansol a enxergar que essa visão de servilismo também
impede que animais e plantas sejam igualmente reduzidos a meros papéis
passivos.
Por outro lado, seria o caso de pensar não apenas do ponto de vista sócio –
histórico-civilizatório, já que as personagens épicas podem representar papéis
que funcionam de maneira pouco precisa, uma vez que Sebastião é simplesmente
grafado como dom ou dom arbusto e Camões como Comuns. Deve-se, sobretudo,
observar que o primeiro, inúmeras vezes, aparece no texto em minúsculas,
enquanto o segundo desliza e atravessa até o novo nome com a manutenção da
maiúscula que lhe garante o nome próprio. Outro ponto fundamental é o que
também sustenta este modo de ordenar eticamente “O Litoral do Mundo”:
Comuns não se pergunta quem é, e por isso mesmo é o agente ativo e executor
do Poema, enquanto D. Sebastião, que em princípio teria a precedência da
senhoria Real, é apenas matéria ou “sujeito” de lugar passivo para quem a Obramor em si é dedicada. Diz Llansol numa entrada de Um Falcão no Punho:
Hoje comecei um trabalho de sincretismo com Os Lusíadas; há um
escolho – tantos anos de lugar-comum de admiração coletiva; falei com
o Augusto e, como eternamente, ele tenta ajudar-me a alcançar a parte
serena da crise e sugere-me um programa de recolha das minhas
intuições a partir d´Os Lusíadas.
(LLANSOL, 1998, p. 40)
Nesse sentido, seria correto afirmar que se há alguma precedência em relação ao
Poeta, talvez seja pelo fato de nele predominar o aspecto estético da criação, e
não porque seu grande livro investe na tonalidade épica d´ “As navegações
grandes que fizeram;”, n´ “[a] fama das vitórias que tiveram;/ (...)/ Que eu canto o
109
peito ilustre Lusitano” (CAMÕES, S/D, p. 71). Além disso, é interessante notar
que o desejo intuitivo de promover o “trabalho de sincretismo” consistiria
basicamente numa desautomatização precisa da Obra como tópica clichê a
serviço da comoção e da “admiração coletiva”. Noutras palavras: para Llansol, Os
Lusíadas devem ser criteriosamente lido porque o seu pertencimento épico
necessariamente alude a modos de subjugar, matar e morrer.
Próximo de tal questão, Jorge Fernandes da Silveira em O Tejo é um Rio
controverso (2008), sugere que a grandiloquência do herói insuflado seja menor
que a voz camoniana manifestada através do que move o Amor e seus
desdobramentos considerando, para tanto, três núcleos presentes nos Cantos III,
V e X, respectivamente: o de Inês de Castro, o do Gigante Adamastor e o do peito
lamentoso do Poeta. Aproveitando o sentido da causa amante que perpassa
(talvez fosse melhor dizer atravessa) não apenas o discurso épico de Camões, mas
também a sua lírica, poder-se-ia dizer que o desenvolvimento de Llansol em
relação a novas criações de sentido para a figura camoniana reintegra o autor a
um projeto de reconfiguração estética e cosmogônica35, que decerto estará mais
evidente em Contos do Mal Errante, segundo livro de “O Litoral do Mundo”.
Silvina Rodrigues Lopes, ao final de Teoria da Des-possessão, insiste no aspecto
da mutação das figuras vinculado à presença e ao trabalho preceptor das figuras
femininas que, na obra llansoliana, encenam a domesticidade dos cuidados e da
escrita, propiciando a outros – com eles – sempre uma gestação da pujança e que,
35
É importante notar que ao longo dos três livros de “O Litoral do Mundo” haja insistência por
parte da autora em utilizar um léxico comprometido com a orientação, como por exemplo
“atravessar”, “ocidente”, “oriente”, “em direção a”, etc.
110
afinal, pode ser vista nas relações entre Úrsula e Sebastião, o dom, bem como
entre Clara Serena e o pobre Comuns.
Preocupada também com a pergunta formulada em Um Falcão no Punho
(1998, p. 34) “E se Vasco da Gama não tivesse voltado?”, a autora aprofunda em
Da Sebe ao Ser (1988) uma das cenas fulgor mais contundentes dos pontos de
vista épico e lírico, quando narra o primeiro longo encontro entre Vê Gama e
Comuns e por meio do qual se verifica a dissolução entre tipos de fronteiras,
como a da superioridade da História em relação à Arte, por exemplo, que Llansol
chamará de “cena fulgor audível”:
– A sua viagem. Foi por isso que, finalmente, voltou.
- A minha viagem? Para isso não precisei de ti. Bastaram a vontade do
Rei e o ouro dos judeus.
- Isso, o quê? Até que eu o escreva, isso o que foi?
- Alarguei o Império do avô deste rei, que alavanco e me dá sombra.
- Sim, encontrou maneira de roubar mercados aos maometanos.
- Eram essas as ordens.
- Fedelhices.
- O quê?
- Ir descobrir um planeta, por causa da pimenta! Obrigar tantos homens
a serem heróis só para que o rei de um reino minúsculo sentisse
aumentar o seu fasto e o poderio.
- Herói? Que grande palavra para quem tenha um rei. Nem sempre a
recompensa está à altura, é certo, mas onde o olhar do Senhor não
enxergue, que o criado trate da sua própria vida. Se o não fizer, não tem
de que se queixar.
- Ao voltar, não se sentiu um pouco apertado neste reino?
Nas horas más, contra deuses estranhos, a quem rezou?
Diante dos perigos, não sentiu ganas de continuar?
No momento de glória, o que o fez voltar aonde era simplesmente
súbdito?
- E o que fazes da honra, escrivão?
- Como se há-de chamar à honra, grande Capitão, quando a esta se pede
o excesso?
- Santidade, como sempre ouvi dizer; mas nenhum de nós voltou santo,
que se saiba.
- Porque não foi essa a vossa travessia; não ao serviço de Deus, mas do
Rei. Atravessando os mares, para além do que podiam as vossas forças,
uma outra força vos dirigia.
- Qual, pode saber-se?
- O entusiasmo homérico, o entusiasmo de Dionísios, esta a potência
que vos fez atravessar os mares.
111
- Fala à minha curiosidade, que eu escuto, velho sabichão.
(LLANSOL, 1988, p. 62-63)
É interessante observar que por ser audível, o canal da discussão (oral) entre
Gama e Comuns privilegia a palavra em confronto, e que apesar de aparentarem
oposição, estão submetidas ao mesmo argumento teleológico: a dilatação da fé e
do império e, por conseguinte, a Honra. Num estudo citado pela própria Llansol
em O Senhor de Herbais, António Guerreiro36 alude a um ponto importante de Da
Sebe ao Ser, quando repara que a tramitação das personagens para certa
descaracterização histórica acaba por inseri-los na ambiência da Comunidade
como alternativa a um projeto da Pátria Nacional, cujo telos é, finalmente, o
Poder. A Comunidade, nesse caso, é o contínuo abraçamento, enquanto a Pátria é
o resultado de uma política permanente de exclusões. A aposta num projeto
comunitário de congraçamento acaba gerando um efeito sincrético de
“associações da diferença” (ARENDT, 2005) já intuído na trilogia anterior. Nisso,
Llansol também acerta porque desloca Os Lusíadas do seu in media res, ou
melhor, o faz voltar à praia, litoral do mundo:
Eu descrevo-lhe o que é a costa, entre outras coisas frágeis que
ela me explica:
a costa não é apenas o contacto da terra
e do mar;
o mesmo poderia dizer-se do fundo
do Oceano;
a costa é, sobretudo, a presença de um terceiro elemento,
36
Digna de nota é a formulação final do texto de António Guerreiro (apud LLANSOL, 2002, p. 80,
negritos meus): “A comunidade surge assim como alternativa e resistência à pátria. A primeira é
um espaço aberto e abrangente que compreende a errância e a compreensão universal; a segunda
é uma máquinal infernal de inclusões e de exclusões, de enraizamentos e de exílios. Sentir-lhes os
efeitos é estar sujeito às formas patológicas com que ela exerce o seu domínio, a mais poderosa
das quais é a nostalgia (etimologicamente, a doença da pátria). A lei da comunidade é o
nomadismo e o devir anónimo, a lei da pátria é a fixação e a distinção. Contra o livro da pátria,
este é o Livro da comunidade. Neste sentido, /este livro/ inscreve-se contra Os Lusíadas.”
112
o ar,
com seu papel fundamental;
e a energia do mar provém de movimentos ondulatórios que
resultam do encontro da água e do ar.
(LLANSOL, 1984b, p. 33)
Com isso, ao voltar para a praia, o texto llansoliano vai ao encontro controverso
(SILVEIRA, 2008) destas e de “outras palavras que diziam,/ De amor e de piadosa
humanidade” (Lus, IV, 92, 1-2) que preparam a voz do Velho, no Canto IV d´Os
Lusíadas. Encontro da água e do ar: tempestades marítimas, encontro das
decisões apaixonadas e da consciência: “Nenhum cometimento alto e nefando/
Por fogo, ferro, água, calma e frio./ Deixa intentado a humana geração./ Mísera
sorte! Estranha condição!”( Lus, IV, 104, 5-8).
Dispostos simbolicamente, os quatro elementos fundamentais da natureza
(ar, água, terra e fogo) assumem valores de tom igualmente político, já que suas
projeções estão associadas a modos de se pensar a diferença e também o
movimento
de
contrapelo
em
relação
às
narrativas
fundadoras.
Consequentemente, o que chama a atenção no excerto anterior não é a densidade
da água portuguesa propiciadora da poética colonialista marítima e da partida
sem volta que leva Portugal a amar um Fantasma. Aqui, o que promove a beleza
dos dois excertos lidos anteriormente é mais a lembrança do Ar como catalisador
de deslocamentos que a totalidade aquática dos Impérios:
Pelas fendas da paisagem, tornou-se perceptível um curso de ar
que agitou de contentamento os ramos de dom arbusto:
daqui faço uma linha que me ata ao sol,
um traço para o solo firme,
uma seta que guardes no coração,
uma fenda para ver o mar.
(LLANSOL, 1984b, p. 156)
113
Assim, o desejado Rei dá lugar, depois de várias metamorfoses, através de um
fluxo de ar, a uma nova escrita vegetal “no desenho de uma fina caligrafia,/ que o
mar o ia deixando de levar a Alcácer Quibir,” (LLANSOL, 1984b, p. 146). Como se
a ficção, por meio da sua múltipla organização de planos temporais e geográficos,
permitisse outra História: não a de um Rei que volta vitorioso e pleno de poder da
batalha, mas a de um ser que não vai em direção à guerra.
Verifica-se em Maria Gabriela Llansol a ideia de que tal proposição acima
demonstrada orientaria uma opção desprovida de relação com o Poder, já que
abdicaria de uma sistematização do mundo organizada pela oposição e
complementaridade entre Senhor e Escravo. Contudo, devo admitir que minha
hipótese insiste em acreditar que mesmo no espaço da Comunidade do Cabo
Espichel ( “retida pelo pendor da escrita” – LLANSOL, 1984b, p. 135), lugar em que
as beguinas e os outros dedicam-se à “arte da partida” (p. 136), o poder é
imanente, na medida em que até mesmo sem procedimentos de hierarquização,
as relações entre seres de diferença pressupõem modos e formas de lidar/
interagir com o mundo, sua História, seu presente e suas Tradições. Para tanto,
bastaria reforçar o título provisório que Llansol deu por algum tempo a O Livro
das Comunidades: O Livro dos Poderes do Livro, isto é, um nome que evidencia a
consciência de que também na Comunidade da Escritura, orientada pela palavra,
são desenhadas manifestações poderosas, porque linguísticas, e, portanto, de
alguma maneira estruturantes de “sistemas simbólicos de poder”37.
37
Conferir a obra O Poder Simbólico, de Pierre Bourdieu, na qual se analisa a interação de
sistemas simbólicos ou não de poder, considerando três “estruturas estruturantes” (BOURDIEU,
2007, p.8): a arte, a religião e a língua.
114
Com isso, o projeto da transumância, o “outro lado da sua fidelidade”
(LLANSOL, 1984b, p. 164) à causa amante, evoca o projeto não apenas do entrelugar, mas do entresser, inaugurando não mais uma política engendrada pelo
fator humano como premissa, mas uma política possível da criação estética:
harmonias e fluxos migratórios pelos diversos reinos e filos que têm vida no
Mundo em que respira a Restante Vida:
Será a restante vida ouro, isto é, metamorfose escritural, força
metálica de uma língua que, pouco a pouco, vai sendo dissolvida
na água? Águas ambíguas, ora águas de Tejo-rio, ora águas já
definitivamente poluídas.
(LLANSOL, 1984, p. 108)
O cerne da questão que envolve o humano em Llansol é amplamente discutido,
tendo em vista que, nessa questão, estejam embutidos os termos que trazem à
reflexão a própria condição humana e o que houve ao longo de sua história: como
ignorar que a trajetória do Homem sobre a Terra não propiciou apenas avanço da
técnica e a potencialidade das culturas, tendo utilizado para isso a contradição
de, frequentemente, dizimar parte de sua própria espécie? Nesse sentido, a obra
de Maria Gabriela Llansol impõe questões obsessivas sem necessariamente expôlas de forma tão evidente, de maneira a possibilitar que a legência seja chamada
para quem ou o quê, ali, perguntar por ela. Porque, como já foi dito, dentre as
muitas cintilâncias do Livro, importa também que ele ofereça uma alternativa
respiratória para o Mundo, e o conjunto dessas opções alargadas pelo escrever vai
de encontro ao propósito humano ocidental. Em outras palavras: o humanismo,
tido como fundamento da promessa e da latência da nossa espécie, é reavaliado
pelo texto llansoliano. O crítico João Barrento parece concordar:
115
Em muito do que dissemos há uma leve sugestão de que, para
nós conseguirmos um dia chegar a dizer o que é o humano neste
texto, não podemos deixar de integrar nele os animais, que estão
presentes como aqui se diz, juntamente com os humanos e com a
casa.
É uma questão que nos ocupa já há tempos. Na Arrábida, com a
intervenção de Manuel Gusmão, andamos muito à volta do que
é, afinal, humano neste texto e como é que lá se chega. Já aí eu
concluía que neste texto há um aparente paradoxo: ao humano
só se chega através de, ou percorrendo caminhos que não são os
do humano, pelo menos no humano como ele, tradicionalmente,
tem sido visto, entendido pelos filósofos, pela história, etc. O
humano não tem possibilidades nem condições de se alcançar
em si mesmo e por si só, e aí os animais presentes, embora possa
nem se falar de um animal em concreto, têm essa função de
contribuir para uma modelação dos contornos do humano.
(BARRENTO, 2009, p. 65)
Esse ponto, nevrálgico para a delineação da outra paisagem, já começada na
“Geografia de Rebeldes”, permite que seja colocado em perspectiva até mesmo o
aspecto puramente humano da literatura, uma vez que, do seu ponto de vista, a
arte da palavra (no sentido da sua pulsão estética) permite a interação num
espaço em que somente seres dotados de certos tipos de compreensão e
linguagem estariam presentes. Quando Pégaso, Coração do/de Urso, Alissubo,
Prunus Triloba, Jade e outros começam a agir tanto nas atividades de escrita
quanto nas de leitura e convivência, passa a existir nestes textos uma produção de
sentido que alarga as expectativas convencionais dos chamados “realismos”. Por
conseguinte, quando se toma contato com os diários da autora, ainda que se dê a
eles alguma roupagem do tipo de uma ficção intimista, é surpreendente descobrir
que na sucessão diária do doméstico e do íntimo, Llansol não opta por
movimentos muito diferentes daqueles verificados em seus livros tidos por
ficcionais: “(...) escrever é o duplo de viver.” (LLANSOL, 1998, p. 73), o que acaba
116
por rearranjar não apenas os modos de lidar com a literatura, mas com as
premissas existentes para que ela aconteça e exista.
Dizer isto, no entanto, implica problematizar a própria disposição não
apenas do Tempo, mas igualmente da densidade do Mundo, isto é, implica
praticamente reapropriar-se de outra cosmogonia, para a qual seriam necessários
outros instrumentos de orientação espacial. A obra llansoliana, se entendida
como construção de uma zona possível de respiração para o mundo, na medida
em que se apresenta como algo desejoso de ser publicado não apenas como
ficção, mas como associação, na sua condição diarística, entre pensamento e
desejo, acaba por testemunhar o seu também lugar litoral do mundo, já que
figura entre a coisa pública a ser participada e a intimidade a ser paradoxalmente
exposta e negada.38
De qualquer forma, no que Llansol escreve é visível a relação conflituosa
com o fator humano, embora importante também seja pensar que o seu texto
adquire muito da feição conativa da linguagem, muito por conta do seu tom
evocatório em relação ao próprio desempenho das figuras ao longo das imagens
narrativas. Isto justificaria, por exemplo, a frequente presença de Monstros e
outros híbridos latentes de forma bastante específica nesta segunda trilogia. Os
mutantes, como explicou o prefácio d´O Livro das Comunidades, trazem a série
38
Aqui sugiro pensar, mais a título de curiosidade que de análise, aquilo que entendo por certa
incongruência entre a obra e a figura pública de Llansol: como personagem totalmente desafeita a
publicidades e participações, que motivos éticos/ estéticos teria a autora para publicar seus
diários? Não é de se estranhar que os “diários” da autora sejam basicamente anotações referentes
ao seu trabalho como sujeito que escreve? Talvez por conta disso eu julgue seus “diários”, que
agora tomo licença para assim me referir a eles, entre aspas, os textos mais obstinadamente
essenciais para qualquer trabalho, justificativa ou hipótese. Na escritura diarística não acredito
estar presente apenas o aspecto das impressões; pelo contrário, neles é promovida uma teorização
ou uma apresentação formal das causas e dos movimentos que levaram a obra entendida como
ficção a ser publicada.
117
do humano consigo, mas ultrapassam a sua fisicidade, seus contornos e
delineamentos. Por outro lado, estão sempre à mercê, como que conscientes da
sua necessidade de Misericórdia. Os Intensos não dispõem de individualidade tal
qual a entendemos hodiernamente ou, pior, pós-modernamente. São dotados de
uma aliança com o que defendem, entre eles mesmos e suas causas. E também
porque estão sob a égide da (in)diferença é que serão abraçados como rebeldes.
A presença de Jorge Anés indicaria, mais uma vez, uma relação com o
Elemental Fogo. Em Causa Amante, a figura está necessariamente ligada ao risco
e à ascese pela fogueira, submetida aos trâmites interrogatórios do Tribunal da
Santa Inquisição sob riscos e sob “[a] horrível perspectiva de ver Jorge Anés preso
e morrer na forca suspenso pela língua fez-me mal ele procurou a minha casa,
para passar todo o dia a tatuá-lo, ou escrever nele” (LLANSOL, 1984b, p. 95). A
serviço e como parte da comunidade da escrita, Jorge de Sena possibilita uma
relação de semelhança nos termos da língua ao figurar no texto llansoliano como
corpo-fonte, na medida em que tatuar revela uma noção extensa da
temporalidade: o que se escreve/ inscreve ou se desenha na pele, pela tatuagem,
permanece eterno. Para corroborar com a problematização inerente ao papel(!)
do fogo no uso que Llansol faz da presença seniana em seu texto, seria
fundamental também apontar que parecem existir dois núcleos de sentido, ou
dois núcleos semânticos, vinculados à importância de Jorge de Sena para tal
escrita: a memória do fogo e a nova ordem.
Como se sabe, e facilmente se reconhece, o fogo está necessariamente
associado ao trâmite de um mundo divino para um mundo humano,
considerando o iniciático mito de Prometeu. Mas o fogo, como demonstra a
118
maioria das obras dedicadas ao estudo das tradições herméticas39 e dos estudos
comparados de religião (segundo ELIADE, 1983) baseados no entendimento do
mundo através de princípios orgânicos e metafísicos, o fogo é regido pela
ambiguidade inerente aos domínios do Bem e do Mal. Por ser também resultado
da combinação de outros princípios naturais, é notadamente visto como fonte da
energia que movimenta o Homem entre os domínios da sua vontade, e por isso
costuma estar associado a modos de iniciar ou fazer fluir, conforme, por exemplo,
a própria Astrologia demonstra para relacionar a tal elemento os três signos de
ignição: Áries, Leão e Sagitário. Como é extensíssima a poética do fogo na nossa
tradição, não se deve estranhar que estes signos estejam, no mapa zodiacal,
dominando três referidas casas astrológicas consideradas estruturantes. Numa
mandala astrológica, o círculo é dividido em doze partes iguais. Cada divisão
dessa é classificada como “casa”, que por sua vez é regida por um signo e seu
símbolo. Para os herméticos, a roda do mundo é assim disposta e naturalmente
começa com o signo de Áries, o fogo empreendedor na Casa 1:
39
Para mais, conferir detidamente o importante e raro livro de Julius Evola, A Tradição Hermética.
119
Figura 04 – Mandala astral antropocêntrica
Por isso é importante atentar para o fato de que, ao prestar atenção aos números
(de 1 a 12) que estão no centro da mandala, será possível concluir que as casas 1, 5
e 9 são regidas por signos de fogo e que o significado de cada uma dessas casas
está, no caso, associado ao Eu, ao Prazer e ao Conhecimento, respectivamente.
Tais signos de fogo seriam regidos pela proporção astronômica, mas também pela
mitologia própria dos seguintes planetas: Áries – Marte, a energia primordial,
como deus da guerra, é o arquétipo do Masculino; Leão – Sol, o fogo que garante
a vida (bio) e origem de qualquer essência humana ou trans-humana; Sagitário –
Júpiter, o maior dos planetas e Rei dos deuses porque associado à Justiça e à
Sabedoria.
120
Nos textos de Maria Gabriela Llansol, desde A Restante Vida40, é visível a
influência de determinados pressupostos relativos à Alquimia, o que exige um
olhar mais cuidadoso no que diz respeito aos registros metafóricos e metonímicos
que o fogo desempenha nessa obra. Se por um lado é óbvio notar que a repetição
de uma certa fórmula lírica – chamarei assim – associada a Jorge de Sena seja
lembrada (“era impossível que o fogo ardesse” – LLANSOL, 1984b, p. 97), é
preciso não esquecer que o próprio poeta é também autor do interminado (faço
questão do aparente neologismo) Sinais de Fogo, não apenas o romance de
formação seniano, mas duplo do poema, “La Cathédrale Engloutie, de Debussy”
que inaugura Arte de Música o que, em outros termos, significa dizer que se trata
de um evento ou de uma série de acontecimentos nucleares que acabam por
desencadear a Obra a partir da sua dimensão essencial.
Na ficção llansoliana, Anés, como muito bem lembra Gilda Santos (1994),
Jorge de Sena pode ressignificar a outra tonicidade do nome, gerando a
aproximação fonética do plural da palavra anel. Com efeito, não sugere nenhum
absurdo afirmar que a aliança entre Sena e Llansol esteja coadunada à língua,
suas inteirezas e sobras na distância do exílio. Interessa observar de que maneira
a figura seniana ultrapassa a própria língua, quando ao final de Causa Amante o
poeta português transforma-se em inquiridor dessa coisa ultrapassada.
As questões políticas congregadas ao fator linguístico estão presentes de
maneira mais insidiosa em Da Sebe ao Ser, na ocasião em que Vê Gama luta
40
Não apenas nas narrativas que compõem as duas trilogias iniciais, mas sobretudo nos diários já
publicados que cobrem os anos de produção desses seis livros nodulares e, mais precisamente, no
último volume publicado Um Arco Singular/ Livro de Horas II, de 2010, nota-se a intensidade com
que Llansol esteve ligada e preocupada em estudar mais detidamente os princípios e
procedimentos da Alquimia.
121
contra o tédio e se percebe desafiado por Comuns e por João da Cruz. O nome da
personagem de Llansol já demonstra argutamente por que lugar esta figura está
atravessada: Vê Gama deve atentar para o que importa a um núcleo épico, a
saber, sua genealogia, o sobrenome por meio do qual é reconhecido como um
herói nacional proveniente, de certo modo, de uma ínclita família que n´Os
Lusíadas se aponta: “Não menos cobiçoso de honra e fama,/ O caro meu irmão
Paulo da Gama” (Lus, IV, 81, 7-8). É, portanto, na cartografia esvaziada do tédio
pós-colonial que Vê Gama ganha o aspecto locutório do texto, provavelmente por
conta de uma intenção narrativa de “vê-lo” falar e defender a usurpação, o roubo,
o abuso e a barbárie autorizados pela dinastia que enfim deu ao mar aquilo que
no passado foi o desejo ardente de futuro nas “naus a haver” que Pessoa legou à
cultura por meio da sua Mensagem. Hannah Arendt, perguntada por Günter Gaus
em entrevista (ARENDT, 2008, p. 31) sobre o que restaria da/ e na memória sobre
uma vida de exílio, responde o título do diálogo entre os dois alemães: “O que
Resta? Resta a língua”, no sentido de que nem mesmo as piores experiências
coletivas seriam capazes de neutralizar o aprendizado primeiro que ensinaram
tanto a consciência quanto o sentimento ao exercício do pensar em língua
materna, ainda que essa língua seja hiperpotencializada pela política ou por
interesses exclusivo-nacionalistas. Um clássico exemplo disso foi o uso que a
ditadura salazarista fez d´Os Lusíadas e, muito provavelmente por conta disso,
Llansol tenha dado a Vê Gama, numa de suas narrativas, o tom presunçoso, a
“língua da arrogância” (LLANSOL, 1988, p. 84) que tem necessariamente a ver
com outra linha de leitura do fogo: o navegador português, muito embora seja
defendido por Vênus, tem muito da astúcia e da presunção de Marte.
122
É provável que, sob os efeitos de “sofrer a pena dos reconciliados (sacrifício
espiritual, prisão ou desterro)” (LLANSOL, 1984b, p. 99), o Jorge Anés de Llansol
funcione como figura metonímica dessa língua obstinadamente procurada
porque certamente enrouquecida desde que o outro Poeta, no seu último canto
do livro, escreveu com pesar:
Falei nesta contradição a Jorge Anés, durante uma visita que
pôde fazer-nos, e ele me aconselhou absoluto silêncio, pois se ele
tinha de sofrer o fogo, que nós e nossos similares fôssemos
guardados, e enterrados a seu tempo de vida normal no jardim,
E não com as cinzas dispersas no ar, como ele;
disse-me que tinha feito um poema sobre o enterramento de seu
corpo no ar, e que esse prazer era um prazer dado pelo jardim a
quem nele ia trespassar;
tinha escrito sobre a matéria que se inflama que, quando se
apaga, gasta o fogo;
era, creio, um soneto persuasivo de últimas imagens.
que ele nunca poderia chorar comigo pois sua escrita, falasse de
morte ou de vida, era sempre inteligente e intrépida;
sentámo-nos, com os textos em espiral, na pedra que eu tinha
preferido para esse encontro, lapidar e arrancada à proximidade
de uma profusão de arbustos; falamos contendo o movimento
desnecessário dos lábios, e ele disse-me que o caminho era longo,
mas que tivesse esperança,
pois maior do que nós
era a língua
que nos esperava;
disse-lhe a sorrir,
que ela estava presa num ramo,
e ele disse-me
que eu tinha uma linguagem feminina e descalça,
mas que não era ainda a língua.
- Que hei-de fazer? – perguntei-lhe. E ele respondeu-me que era
preciso dar tempo ao tempo,
o fogo ao fogo,
a cidade de Lisboa à cidade de Lisboa,
o Tejo ao Tejo,
e o mínimo movimento ao grande movimento da nova espécie.
(LLANSOL, 1984b, p. 101-102)
Assim, a espera e a aposta pela nova espécie são o que proporcionam os primeiros
traços de um mapeamento possível nessas grafias narrativas do Mundo. Nelas,
123
surge uma recuperação e uma reapropriação doutros passados não sentidos
puramente como nostalgia: é que no “grande movimento da nova espécie” as
metamorfoses do fogo (que afinal são as metamorfoses da energia que move o
espírito da Restante Vida) permitem que “aqueles que devem morrer para que a
língua viva devem ressuscitar entre si” (LLANSOL, 1984b, p. 103). Esse
renascimento precisaria obedecer ao princípio do espaço litoral, também incerto
e provisório, típico lugar contrário ao das assertivas e da Pátria. Nesta praia
llansoliana, meditam Camões e Sena, mas também outros companheiros de
língua, linguagem e descendência que tão bem cabem e perdem-se em versos
desta primeira das “Oito Meditações à beira do Pacífico”:
Sobre esta praia me inclino.
Praias sei:
Me deitei nelas, fitei nelas, amei nelas
com os olhos pelo menos os deitados corpos
nos côncavos da areia ou dentre as pedras
desnudos em mostrar-se ou consentir-se
ou em tombar-me intentos como o fogo
do sol em dardos que se chocam brilham
em lâminas faíscas de aço róseo e duro.
Do Atlântico ondas rebentavam plácidas
e o delas ruído às vezes tempestade
que em negras sombras recurvava as águas
me ouviram não dizer nem conversar
mais do que os gestos de tocar e ter
na tépida memória as flutuantes curvas
de ancas e torsos, negridão de pêlos,
olhos semicerrados, boca entreaberta,
pernas e braços se alongando em dedos.
Aqui é um outro oceano.
Um outro tempo.
(...)
(SENA, 1989b, p. 235)
124
5.1 O MAL ERRANTE
Contos do Mal Errante é uma obra que, de saída, anuncia em seu título um
possível lugar de reflexão sobre os enquadramentos textuais mediante a sugestão
de uma categoria narrativa, a saber, a própria noção de conto que, no caso, está
mais para a sucessão de contas como as pérolas de um colar cujas pontas estão
unidas. Contas como cenas de fulgor:
Estou quase a acabar Contos do Mal Errante. Chamei-lhe contos,
não por ser um livro de contos mas porque, em cada parte de si
mesmo, é uma confidência envolta.
(LLANSOL, 1998, p. 92)
O seu pertencimento à trilogia d´“O Litoral do Mundo” permite que sejam
cotejados alguns aspectos já anteriormente trabalhados. Com isso, se no primeiro
volume deste segundo tríptico de Maria Gabriela Llansol as questões políticas
estão dimensionadas na aventura da escrita que perpassa e reúne diversos lugares
da cultura portuguesa, Contos do Mal Errante se utilizará de procedimentos
semelhantes, muito embora seja, dos livros que compõem esta série, o mais
diferente (e também o de menor acessibilidade), e talvez o mais ousado, tendo
em vista sua proposta e seu aspecto orgânico.
Trata-se de uma configuração amorosa atravessada por uma figura
masculina, Copérnico, e duas outras femininas matrizes (que vão constituindo
diversas metamorfoses ao longo das narrativas deste livro), Hadewijch e Isabôl:
ao fim de algum tempo, já que o homem que eu amava, me
amava, a amava também a ela, principiei a sentir o desejo de
acariciar o seu corpo; não só para avaliar por mim a qualidade do
sentimento que ele podia ter por ambas (...) num campo tão
cheio de emboscadas como o do amor ímpar.
(LLANSOL, 1986, p. 40)
125
Essa última, a Isabôl que reflete, garante alguma linearidade em relação à
obra de Llansol, já que, semelhante ao Rei Sebastião, na referida Isabôl
(desdobramento de Isabel de Portugal, a Rainha Santa), a fé e o império
portugueses estarão transversalmente representados:
Ó meus Senhores,
como o meu espírito é rebelde, e herdado de longas vidas que
nunca se submeteram; como o meu espírito é feito de vários
materiais, e todos diferentes das lápides de sepulturas que
talharam para Isabel de Portugal.
(LLANSOL, 1986, p. 36)
Essa narrativa abdica da presença do Rei-Trovador, Dom Dinis, para realocar a
personagem histórica Isabel numa posição que ultrapassa a sua versão religiosa.
Associada ao milagre das rosas, a rainha Santa, pertencente à mística Dinastia de
Borgonha, vai ganhando traços sinuosos até que o deslizamento do seu nome
para Isabôl acompanhe as flutuações do amor. Enquanto isso, Hadewijch vai se
afastando da narrativa por meio de uma ausência misteriosa.
Anteriormente já disse que a sequência da obra llansoliana permite
assegurar que haja, esteticamente, um projeto orientado pelo novo desenho do
Mundo, o que pode ser percebido pelo sentido visual, preocupado em captar,
depreender e formular as novas imagens que se formam Seguindo o Olhar. O que
há de novo, entretanto, em Contos do Mal Errante, é a centralização da temática
cosmogônica, isto é, a sugestão de uma reordenação que pretende suplantar
padrões de natureza antiga com o intuito de fomentar uma criação nova e
possível. Essa questão pode ser notada de forma mais eficaz ao atentar-se para o
fato de ser Copérnico, o que escreve, ao longo do livro, o seu também livro
revolucionário:
126
Nem todos os c0rpos celestes se deslocam em volta do mesmo
centro: o que foi oportuno para quem se iludia com ela; o que foi
indispensável à mansão para que fechasse as suas portas à
esperança não provinda dela mesma; chegamos assim a uma
meditação contra o vento que foi dourada entre todas as
estações. Copérnico foi abrir o cofre onde se encontrava fechado
na torre De Revolutionibus Orbium Coelestium, e eu limitava-me
a paginar os dias.
(LLANSOL, 1986, p. 78)
A revolução provocada pela sistematização dos estudos copernicanos,
sabe-se, não foi extensiva apenas ao aspecto científico da experiência humana, ela
ocasionou diversas reverberações de natureza cultural. Para Peter Sloterdijk, em
Mobilização Copernicana e Desarmamento Ptolomaico, o entendimento do
mundo a partir de uma perspectiva ptolomaica, apoiada no paradigma
antropocêntrico, permitiu que o Homem fundasse uma compreensão ilusória do
mundo. Com as descobertas divulgadas por Copérnico, a cultura da ilusão precisa
dar lugar aos novos modelos estéticos, que devem ser capazes de estancar o fluxo
vertiginoso originado pela perda definitiva da inocência e aprender a remanejar a
vontade e o modo de ficção. Apesar de saber que, ainda para Sloterdijk, a era
atual na qual nos inscrevemos como seres producentes de cultura é já um tempo
pós-copernicano41, na medida em que por copernicanismo entende-se um típico
41
Peter Sloterdijk (1992, p. 63) propõe que o nomeado pós-modernismo pode ser mais
densamente lido a partir do seguinte: “Quem sentir vertigem total face à representação moderna
do mundo, poderia, talvez, perceber que no sujeito copernicano contemporâneo sobrevive um
ptolomeu eterno; para este mundo da ilusão antiga nunca deixou de ser uma pátria – uma morada
sensorial. Continua representando para ele a ordem vagarosa de sincronias entre corpo e terra, de
proporções entre gestos e realidades. O ptolomeu movimenta-se na ilusão autêntica dos
esquemas antigos que nos orientaram em relação à natureza do mundo antes da revolução
copernicana. Se os habitantes de sistemas explosivos sentem falta de algum tipo de orientação
estética concreta, precisam de uma conscientização ptolomaica. Chamo de “desarmamento
ptolomaico” esta volta consciente da vertigem copernicana de representação para a nova
consciência antiga. Também neste caso uso um termo da esfera militar porque o processo da
modernidade em seu conjunto pode ser, sem dúvida alguma, entendido como espécie de guerra,
armamento, manobra, exercício, mobilização em vista da “concretização” dos potenciais num
Combate Último. Reivindico o conceito de desarmamento para uma teoria da cultura alternativa,
127
modernismo. Não centralizarei o problema da dimensão cosmogônica em Llansol
por meio de um viés pós-moderno, já que esse conceito, apesar de admitir pontos
e características que são reconhecidamente pacíficos tais como esgotamento,
crueza, permissividade e desencanto, não abarca o Mundo que se deseja nos
textos llansolianos cuja fonte parece, sempre, determinar um espaço de pujança
rumo à alegria.
O que interessa, portanto, na leitura de Sloterdijk, é mais esta relação que
trata da necessidade do valor quimérico para entender uma teoria da cultura na
contemporaneidade que propriamente a perda definitiva dos traços de aura na
produção artística. Com isso, ao contrário do que se percebe nas manifestações
hodiernas – penso, por exemplo, em casos próximos temporalmente, como O
Amor é Fodido de Miguel Esteves Cardoso, a maioria das narrativas de Inês
Pedrosa, em boa parte da obra de Lobo Antunes e até mesmo no caso da poesia
contemporânea portuguesa que através de nomes como Rui Pires Cabral, Luís
Quintais, Manuel de Freitas e Maria Sousa, dentre outros, se reconhece uma
tonalidade disfórica, muitas vezes melancólica42 – o texto llansoliano considera
porque ficou evidente que as definições copernicanas de cultura se encontram atravessadas até às
bases de sua rede conceitual por categorias armamentistas. Se uma teoria da cultura na pósmodernidade apenas for possível como teoria crítica da mobilização, os sucessos da modernidade
copernicana precisavam de uma reavaliação numa perspectiva armamentista cética. As
consequências para a teoria estética seriam de longo alcance: a sua categoria básica não será mais
criatividade mas percepção. O mito da criatividade fragmenta-se em cascas sensíveis e caroço
brutal – o núcleo raivoso do ataque niilista que fermenta em todas as forças de mobilização. A
teoria estética só com a queda da criatividade terá a possibilidade de se transformar em algo que
não podia ser na modernidade atividade: escola da percepção, pedagogia do desarmamento,
ensino da composição geral, arte do tratamento artístico, técnica da desbrutalização da técnica,
economia estética, lógica da preservação, ciência da abstenção”. Indo ao encontro dessa longa
reflexão, seria o caso de atentar para o fato de, nos Contos do Mal Errante, Copérnico ser chamado
de “o pastor dos mitos pós-humanos” (LLANSOL, 1986, p. 202).
42
Não que isso seja uma anotação menor na/ para a literatura portuguesa. A historiografia
literária portuguesa parece perceber que a melancolia é uma tópica comum, aliás, desde as
cantigas de amor e amigo. Para mais, conferir dissertação de mestrado PEQUENO (2006): Al
Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia em que, no segundo capítulo, procuro
128
fundamental ultrapassar a crença humanista que, na sua feição de fidelidade ao
paradigma realista, acaba por revelar e escrever (afinal expor/excretar uma visão)
desprovida de luminosidade e sem qualquer acesso a outros tipos de energia. Por
conseguinte, a mobilização copernicana pode, sobretudo, demonstrar como é
possível abrir clareiras não apenas criando comunidades, mas investindo, nos
termos da cultura, num combate sistemático ao que nela parecer daninho e
atrofiador como, afinal, demonstra a epígrafe desta tese, retirada de Um Falcão no
Punho (1998, p. 67): “Queria que todo o meu trabalho fosse gestatório e que este
período, quase povoado de selvas, fosse um elemento químico, uma experiência,
e um estudo.” Com isso, fica bastante evidente que o projeto “O Litoral do
Mundo” atende, como segunda etapa ou segundo momento, a um desejo
depreendido da apresentação da comunidade. Sugere a hipótese de a escrita
do fogo, originada pelo desejo de alimentar a Viva Chama que guia a Subida do
Monte Carmelo de São João da Cruz, ser confrontada no cerne da sua própria
língua, ainda que tal confronto se dê por meios laterais: na orla periférica entre
mar, entre terras num aparente território neutro/ outro.
A batalha travada fora dos cercos da cidade de Münster – trama paralela
que se percebe nos Contos – esboça e aproxima os efeitos do Mal que parece
querer penetrar o cerco organizado pela Muralha. Esse Mal, no entanto, tem por
fonte o amor singular e egoísta que em diversas ocasiões atinge a própria trindade
formada por Copérnico, Hadewijch e Isabôl. Nesse sentido, é do interesse de
compreender em que medida a melancolia está associada a práticas culturais e artísticas em
Portugal, sobretudo. Seria o caso de observar também em O Senhor de Herbais (2002) o que
Llansol diz a respeito da estética realista e da sua relação com o sentido de produção, que nega
veementemente a alternativa humana de cumprir-se esteticamente. Para mais, ver pp. 106-141 do
referido livro.
129
Llansol focalizar menos a problemática do poder que estava em jogo no regime
teocrático43 que a troca de correspondência, isto é, o labor textual em que se
debruçavam os três amantes e os seus modos singulares de escrever e saber
carnalmente a energia amorosa numa laboriosa aprendizagem:
_________________ eu ainda não compreendi a verdadeira
natureza desse mistério, e já perguntei a Copérnico se a
amplitude de um ser pode afastar outro. Ele respondeu por si
mesmo: – Não, não tenho medo de ti. – Mas, se for assim,
pergunto-me qual é o núcleo que a atrai no afastamento.
Porque eu não sou alguém para suportar o irremediável, mas
para dobrá-lo a uma transformação apaixonada. Se vim a
Münster foi para levar-te – lançar-te um traço de percurso. Não
sabes que não posso existir fora da minha humanidade? Se devo
sempre escrever-te _________ pois partes sempre para mais
longe _______ em breve deixarei Münster para unir-me, na
mansão, ao trabalho dos meus livros e testamento; e, ao concluílo, a tua presença ficar-me-á próxima, e revestir-se-á de uma
imagem lembrada.
Mas ainda esta noite te deixei afastar na órbita da tua
perspectiva, e não da minha, com o intento de compreender os
desígnios do que se ama.
(LLANSOL, 1986, p. 147)
A ensaísta Paula Morão (1988) acredita que o entendimento do Mal na
obra em questão consiste em tornar possível a existência e a aceitação irrestrita
dos pares como masculino-feminino, proximidade-distância,
dentro-fora,
raciocínio-emoção numa mesma unidade. A crença de que só é possível aceitar o
mundo por meio dessa polarização maniqueísta impede de perceber zonas de
significado que muitas vezes estão fora desses núcleos. Nessa perspectiva, não
haveria espaço para o híbrido, o andrógino, o neutro, o limite, o periférico, enfim,
para nenhum significado menos estanque ou “realista”. O entendimento e a
43
Para fins informativos: os radicais da Reforma Protestante formam um grupo, com o tempo,
cada vez mais atuante. Esses dissidentes figuraram a Grande Batalha da Cidade de Münster, na
Alemanha, sob o título de representantes dos Anabaptistas. Jan (ou Jean) de Leyde, um dos mais
eminentes dos reformadores, depois de tomada a cidade, decreta um regime teocrático, através do
qual exerce poderes extremamente autocráticos e, portanto, tirânicos.
130
compreensão de terceiros elementos pressupõem, portanto, que “o número ímpar
estabelece que há partes que não têm parte; o que não é um obstáculo a que
essas fracções – as que não se uniram num todo –, sejam provavelmente aquelas
que não se deram à eternidade” (LLANSOL, 1986, p. 163, negritos da autora).
Paralelo a isso, o Mal também enseja uma aceitação tácita de conceitos do
entorno político: Poder e Justiça, por exemplo. A experiência maléfica, por isso,
está amparada nos dois níveis que sobressaltam dessa narrativa llansoliana: o Mal
que atravessa, afinal, as relações entre Amantes e Amados e o Puro Mal que cega
os Homens em direção à construção daquilo que Jan de Leyde violentamente
pressupunha ser a Nova Jerusalém e ele, dela, o Seu Governante. Ligado a esses
dois vieses do mesmo Mal está também pensado o lugar do Medo,
frequentemente em Llansol relacionado ao Novo:
Hadewijch,
Olhemos três imagens do poder:
a atracção dos corpos, a influência mágica, a degustação
hipnótica: na atracção dos corpos observamos que o móbil mais
fraco é atraído progressivamente por outro mais forte, e que nele
pode vir a dissolver-se por inteiro; na influência mágica vimos
um ser inexperiente ser subjugado por outro, mais hábil;
na degustação hipnótica, a serpente da fábula aniquila a vontade
de uma ave atraindo-a às suas goelas.
As três imagens são formas da vida – são três formas de medo
porque só das imagens espreita o medo; quem sabe que há uma
dependência relativa entre os seres, sabe modular o olhar
segundo as três imagens do poder;
sabe que roda em torno de forças maiores do que as suas, e a
única pergunta que faz é:
para sempre?
Sabe que sofre influências morais e sugestivas provenientes de
outros seres mais confiantes. O que ele deve saber é:
poderei olhar de frente, ou serei sempre eu a baixar os olhos?
sabe que a miragem o está esperando, e que a hora do desenlace
se aproxima; por conseqüência, interroga-se acabei o que tinha
por fazer?
Estas perguntas íntimas são reversíveis: nenhuma força é a força,
nenhuma pode dispensar o seu ponto de equilíbrio; nenhuma
131
influência é a influência e a própria serpente da fábula há-de
morrer, provavelmente, devorada.
(LLANSOL, 1986, p. 177-178, itálicos meus)
Apesar de inicialmente hermético, o “conto” acima é uma narrativa de Copérnico
que deseja fazer Hadewijch compreender a penetração do Poder nas artimanhas
do mundo. Essa pequena anedota ilustrativa vai ao encontro, por meio dessas três
perguntas em itálico, da observada superação da pergunta de escravo confrontada
com a pergunta do ser liberto que aludi a dado momento da entrevista feita por
João Mendes mas que, anteriormente, já aparece na ocasião propícia da escrita de
Contos do Mal Errante no diário Um Falcão no Punho, durante o ano de 1983, na
sessão intitulada A verdade como matéria:
A verdade não é subjectiva, nem objectiva, mas o contorno final e
acabado da vida de cada um; a resposta dada, com recta
intenção, ao justo apelo. Perguntar “quem sou” é uma pergunta
de escravo; perguntar “quem me chama” é uma pergunta de
homem livre.
(LLANSOL, 1998, p. 130)
Talvez por isso seja relevante acreditar que o cerco de Münster, embora esteja
presente no livro como disposição paisagística, para efeitos de visão das
personagens, cumpre papel de peripécia, tendo em vista que a relevância centra
seus spots na triangulação que assume a busca pelo “ponto de equilíbrio”
apontado pelo excerto anterior ao de cima. Com isso, a geometria resultante dos
dois princípios femininos e do outro masculino leva a uma significação que não
atende aos pressupostos modos de ler a própria narrativa, o que intervém nas
diversas dimensões do texto (do Livro, do testamento de Isabôl, das Cartas de
Hadewijch) e o potencializa exatamente como objeto poderoso. A própria capa
132
do livro, assinada por Graça Martins das Edições Rolim, é indicativo dessa
ultrapassagem de tradição “hermética”:
Figura 4: Capa da 1ª. Edição de Contos do Mal Errante.
Figura 5: Detalhe aumentado da capa.
133
É curioso atentar para a disposição do detalhe da capa do livro. Considerando os
apontamentos de Mircea Eliade a respeito do triângulo como a forma perfeita
que, desde antes dos gregos
interpretaram o triângulo (delta) no sentido de vulva: a
interpretação é válida dada a condição de conservar a este termo
seu valor primário de “matriz”, “fonte” (...) por causa de sua
forma perfeita, mas também porque representava o arquétipo da
fecundação universal.
(ELIADE, 1983, p. 32)
A aderência de um triângulo sobre o outro sugere que, apesar de os polígonos
serem ambos de três lados, o totalmente colorido, mesmo investido de uma
ranhura que o assemelharia a uma vagina, está posicionado de maneira ereta, o
que abre caminho para a leitura já presente no livro acerca do mito hermafrodita.
Se foi dito que com os Antigos era possível pensar no delta triangular como forma
perfeita, na obra llansoliana a figura verdadeiramente poderosa está associada ao
princípio do mito já observado, cujo corpo é configurado pela sobreposição das
três personagens principais. O que levaria a pensar que a metamorfose alcança,
aí, a sua dimensão mais dinâmica, na medida em que concede, ficcionalmente, o
cumprimento de uma aventura humana porque estética, capaz de ir além da
dimensão da sua própria anatomia.
O lugar científico da importância copernicana aparece nesse livro como
um modo, outro, de voltar a “O Litoral do Mundo”, onde o mar acaba e a terra
principia – repito. Nesse espaço à beira do frontal, em que os portugueses
utilizaram-se obstinadamente da técnica humana no seu sentido mais acurado,
vislumbra-se algo próximo daquilo que Peter Sloterdijk (2000) entende por
antropotécnica. Para ele, sempre que o humano se esforça em dinamizar o
134
conhecimento e aplicá-lo sobre outros, selecionando-os44, encontra-se uma face
antropotecnológica, como foi praxe no modo colonialista “sobre as viagens que só
à espécie humana pertenciam” (LLANSOL, 1988, p. 28) para subjugar e/ou
menosprezar outros humanos.
Em última análise, o texto de Jorge Fernandes da Silveira que abre O Tejo é
um Rio Controverso indica muito do que devia ser vislumbrado por Llansol em
Camões. Porque Inês de Castro e o Adamastor estão presentes na seleção
camoniana que atravessa o humano, considerando neles o motivo da própria
ruína, a saber, o Amor. E se, por um lado, o grande poeta da Língua não os
esquece, Maria Gabriela também encontra em Da Sebe ao Ser espaço para lançar
mão dos Golém, espécie de criaturas disformes consideradas monstros de lama e
depois monstro de pedra ou o “grande golém das naus, que trouxera até aquele
embarcadouro o conceito sensual da caravela e da experiência da travessia dos
mares” (LLANSOL, 1988, p. 25). Nessa experiência com os seres-limite que
avançam sobre a destituição contínua das imagens prosaicas do mundo, dois
lugares são testemunhos antes do epílogo: o monte Espichel (não apenas Cabo,
mas monte ainda vinculado ao ascetismo da Subida do Monte Carmelo, de São
João da Cruz, isto é, o monte Espichel também pressupõe uma jornada da alma) e
o Jardim (“o jardim que o pensamento permite” – encontro com o Fantasma-mor
da cultura portuguesa tornado arbusto, um dom, metonímia do que o texto
transforma).
44
Sloterdijk é categórico ao afirmar que qualquer ação humana que consiste em selecionar
indivíduos considerados mais ou menos aptos para um evento é uma manifestação
antropotécnica que hipervaloriza e desinibe o Homem. O filósofo alemão entende que, com isso,
fascismo e nazismo são práticas apenas mais radicais e mais desinibidas e desinibidoras da
vigência do hiper-humanismo. Para mais, conferir Regras para o Parque Humano (2000) do
referido autor.
135
Se em Contos do Mal Errante e em Causa Amante alguns elementos levam
a crer que nas clareiras abertas do texto llansoliano existe uma preocupação com
a dimensão alquímica do humano, ou melhor, com a dimensão do vir-a-ser que
esteja em consonância com o brilho luminoso e uma preocupação metafísica do
Homem, tudo leva a crer que, em Da Sebe ao Ser, a “Pedra Filosofal” de Llansol
tivesse a sua concretude mais próxima de qualquer devir, tendo em vista que é
neste volume que algumas balizas são determinadas para os efeitos dos livros que
virão “porque a esperança na Comunidade tornou-se tão intensa que atingiu, por
momentos, de modo intuitivo, o cúmulo que eu acalentava” (LLANSOL, 1986, p.
203):
É aqui onde encontramos, repetimos, o fundamento e a
justificação da obra alquímica, a opus alchymicum, que obcecou a
imaginação filosófica durante perto de dois mil anos: a idéia de
transmutação do homem e do Cosmos por meio da Pedra
Filosofal. Em nível mineral da existência a Pedra realizava este
milagre; suprimia o intervalo temporário que separava a
condição atual de um metal “imperfeito” (“cru”) de sua condição
final (já convertido em ouro). A Pedra realizava a transmutação
quase instantânea: deste modo devia substituir ao Tempo.
(ELIADE, 1983, p. 60)
E se em certa medida a transcendência da natureza é a própria essência da
alquimia, coube às linhagens definidas neste terceiro livro da segunda trilogia a
máxima a respeito de uma ordem nova: “porque sou o quinto elemento que a
nova época acrescentou aos quatro que os antigos nos trouxeram. Assim por esta
ordem: água, terra, ar, fogo e ouro” (LLANSOL, 1988, p. 173, grifos meus). Esses
Pobres, notadamente ocupantes de lugares diferentes daqueles das insígnias,
funcionam textualmente como figuras inesquecíveis, nem sempre dotadas de
misericórdia, mas aprendentes e, de certa maneira guiados por Juan (de la Cruz)
136
que “chefiava um bando de pobres inconformistas e ambiciosos, que queriam
fazer a subida do mundo humano” (LLANSOL, 1988, p. 148, negritos meus).
Nas interventivas dessa comunidade é possível receber as visitas de outros irmãos
que a História ou a relação Tempo-Poder não consegue marginalizar no texto. O
contínuo dessa neogeografia, à beira da escrita, vislumbra e deseja, desde o
primeiro Os Pregos na Erva, uma inequação na qual a variável esperança seja
maior que a outra, o desesepero:
Mas para me consolar sugeriu que talvez houvesse jardins que
fossem como as chaves, só que não sabia como despertá-los da
sua longa sonolência, embora, de certeza, em cada chave
esquecida estivesse escondida uma porta que se não abre.
Suspeito que este monge faz parte do bando de judeus e de
ciganos cremados em Dachau, em Auschwitz, em Treblinka;
suspeito que os bandos criam o sangue e que o sangue cria a
aflição onde estou. Havia muitas plantas espinhosas que
chegavam do campo de batalha.
(LLANSOL, 1988, p. 114)
Quanto à nova época, é importante que se diga que é a inaugurada no reinado de
D. Manuel e fielmente seguida pelo seu sucessor, que Llansol chama de João
terceiro, “senhor das rotas de ouro, da tortura e do Oriente (...) a fiscalizar as
florestas e as corporações” (LLANSOL, 1988, p. 172). Nesse contexto, a
responsabilidade da narração, não surpreende, é dada a um besante. E se é a
moeda que tem a voz, é dela também o Tempo (Mercantilismo), ainda que seja
substituída por outra e escondida sob os cabelos de Psalmodia ou engolida pela
serpente45 até que, finalmente, outra narração assuma e aponte o besante como
figura restrita e incapaz de textualizar sobre a comunidade:
45
Ao final de Da Sebe ao Ser, o Besante assume grande destaque na narrativa e parece figurar uma
triangulação com Psalmodia e a Serpente.
137
Copérnico, angustiado com a tempestade imóvel, quis saber de
mim por que cada um sofria, embora soubesse que os destinos
individuais não me diziam respeito, mas ao livre arbítrio. Caleime então, e a intensidade do vento fez perigar o navio
completamente.
Para imaginar o desconhecido e a morte suportáveis, propus que
Juan jogasse uma partida com o besante. Apesar de Friedrich N.
insistir em me fazer uma pergunta.
– Jogar às cartas, e a dinheiro, não é o papel de Copérnico –
disse-lhes. – É o teu papel – prossegui, voltando-me para Juan. –
E tu Friedrich N., serás o árbitro.
Juan anuiu, assim como Friedrich N., e foram sentar-se à mesa do
jogo. Infelizmente, em face, a cadeira do besante ficou vazia.
Pois este, jogador e recompensa,
não se tornara, entretanto, um homem.
(LLANSOL, 1988, p. 206)
É por conta desse desejo de humano que o texto llansoliano escapa da valoração
épica, dando aos seus ramos, tão profundamente presentes em Da Sebe ao Ser,
uma roupagem destituída, ainda que estejam presentes no livro as personagens
povoadoras dos dez cantos mais efetivos da cultura portuguesa e a sua marca
d´água. Fica evidente, portanto, que para Llansol o sentido da epopeia coincide
com certo ethos do mundo e que, por isso, os versículos contidos em “O canto de
Comuns, o Pobre, está moribundo” ocupa páginas das mais belas e
contemporaneamente importantes. O trecho é grande, mas imprescindível:
Durante os breves momentos em que me senti serenada, fui dar a
uma das moradas que, entre os eremitérios, mal
se distingue das vertigens,
das penedias, e onde
Comuns, o Pobre, escreve o seu canto.
Reflectindo-me no verde, sem, contudo, me afastar do domínio
da vontade afecta ao livre arbítrio,
compreendi que Esse, de longe, observava a cena fulgor em que
eu
tinha acabado
de cair?,
de entrar?,
de tornar-me?.
138
Se havia, como em todas as casas de família, um quarto com uma
cama para os nascimentos, para as doenças, para a morte e para
as
angústias,
sobre ela,
quando aí cheguei,
estava suspensa a árvore da vida – a árvore da vida de um ser que
eu não qualificava de homem,
tal como eu
sempre os conhecera; era um quarto de quatro paredes lisas,
como quatro papéis, e já um sono imperativo e estranho me fazia
dirigir para a cama quando, regressando à lucidez, reparei que,
sobre ela, estava deitado o conto de Comuns, o Pobre, que
agonizava. Numa parte das páginas se ouvia ainda a respiração,
de um pulmão ainda aceso; só ritmo interrompido, o sangue;
eu nunca tinha concebido,
ponho o dedo na ferida, que tal parte era a parte que coubera ao
fim e, para sempre, o representava;
que só um canto da folha era legível, e ardia ainda no fogo da
leitura, para onde me inclinei por querer reter o imaginário à
beira de se perder. Pela janela, vi os últimos troncos de uma
grande árvore, que estremecia imperceptivelmente, lamentando
os derradeiros momentos do excepcional ser humano nascido
com o aspecto de um canto heróico.
Aproximei-me para o afagar, e abri a janela para que a árvore
inteira me acompanhasse, se por acaso o medo do nada,
e do vazio de sinais,
viesse a despir o quarto. Comuns, a um canto, chorava de
silêncio. Vê Gama e dom arbusto olhavam a desarmonia, sem
brutalidade e sem mando, resignados, pareceu-me.
Como me inspiraria o livro que agonizava na cama?, e em que eu
não queria tocar, com receio de senti-lo já frio.
Aproximei-me.
No entanto, para recolher-lhe a última vontade, caso ela
existisse, e não fosse negada aos lábios, ouvidos dos que ficavam.
Tentei lê-lo em qualquer parte do rosto, pois ele mal se
materializava já; e não sabia se era verdade ou mentira o que
estava morrendo, era, no entanto, a verdade, no contexto do
eremitério dos Capuchos, dourado pelo nevoeiro da humidade.
Levantei e amparei a voz que se extinguia; massageei-lhe o
coração inóspito; animei-o de que não devia querer morrer
com a mágoa de o meu ter sido queimado; dei-lhe a maior
amplitude; garanti-lhe que ele não teria o destino das cinzas, que
uma nação lhe pertencia; em vão.
Comecei a entoar as respostas aos responsos de misericórdia que
as coisas desaparecidas têm outro imaginário.
Nesta situação triste e extrema,
o bando de camponeses das silésias, de judeus e ciganos de
dachau, de almocreves, de marinheiros da rota das Índias, de
soldados rasos e comerciantes de canela, de hereges
e heterodoxos,
havendo-me reencontrado o rasto,
139
entrou no quanto ou no livro que se deixava morrer. O livro
ainda pôde dizer bando minúsculo de borboletas que se agitam e
pediu-lhes a todos misericórdia. Semelhante ironia, tão pouco
esperada, surpreendeu-me sem lágrimas, e aqueles
que tinham sido ensinados a ler, e que não eram muitos,
debruçavam-se sobre o livro expirante tentando recolher nas
asas, em que eu fora incluída,
a última conclusão ardente.
O livro agonizante era, sem dúvida, o livro que deveria ser
dirigido a esta nação de pobres; não fiquei perplexa, nem
desconcertada,
andando nós todos,
como andamos
ligados ao fio da morte,
que vai com o tempo,
e nos há-de conduzir à ilha; das minhas mãos às mãos dos do
bando, passa, pois, um fio corre sempre e que, quando
começamos a avançar com rapidez, descendo a Serra, elevou o
livro nos ares,
tal Pégaso de papel,
e aí o deixou preso à nossa história, à nossa insustentável
vontade de viajar de paisagem em paisagem,
até nos encontrarmos sozinhos
para desaparecer.
Foi nesse instante que uma criança, a quem ensináramos a
manejar o fio que mantinha voando o Pégaso alado, perguntou a
outra, e depois ainda a outra, e finamente a mim:
- Um homem a morrer chama-se moribundo, e a um livro?
Respondi-lhe que tal nome ainda não existia, mas que tudo
haveria de depender do despojamento das nossas categorias
mentais
E da misericórdia que alcançássemos como pobres.
Como a visse triste com a resposta, e o livro puxasse pelo fio,
mandei-a ter com Comuns que este talvez soubesse o nome do
que jamais seria lido.
E vi Comuns fazer-lhe sinais: - Lusíadas – disse – é o nome deste
papagaio de papel. A criança riu-se
com o nome dado a Pégaso,
e eu deixei-a com o fio.
(LLANSOL, 1988, pp. 135-138, itálicos da autora)
Se, afinal, a trilogia sobre o litoral do mundo coincide, em parte, com um
decalque do sentido mítico d´Os Lusíadas – salvo a nado do simbólico naufrágio
–, operado pelo cavalo de asas e pela figura da criança questionadora, também é
verdade que sobressaem aqui inúmeros fios e elos dos quais nem mesmo o texto
140
llansoliano pode se livrar, na medida em que se apropria deles para retomar
outros novelos de narrativa e dar o passo seguinte para a textualidade. O canto
funâmbulo, assim, importa muito não só porque o seu sentido “o deixou preso à
nossa história”, mas porque o próprio declínio épico evoca o declínio do que fosse
desejo de verdade para o coletivo: honra e glória. Um pouco daquilo que
Sloterdijk (2002) identifica como descarga46 do indivíduo em processos de
identificação com figuras que encarnam o heroico dilatador. Parece ser o desejo
da escrita de Llansol estar atenta aos fios que se confundem e prendem “à nossa
história” e, nesse sentido, disso deriva a vontade de, no encontro do diverso,
enfrentar o tão referido nó de paradigma frontalmente inatacável.
A partir de tudo isso, não parece ser difícil perceber que o texto llansoliano
se constrói por meio de núcleos políticos determinantes, uma vez que se origina
de uma perspectiva que tenciona avaliar pressupostos ligados à figuração do
Homem e sobre como ele procede tendo ou não poder, sobre as suas impressões
acerca do Amor e seus adjuntos tais como ciúme, solidão, possessividade e,
sobretudo, como esse humano precisa de reagir para não desfigurar o próprio
humano para quem e a partir de quem foi dado já o aviso em Contos do Mal
Errante:
Partirei na minha obra e no meu trabalho pelo contacto cada vez
mais profundo com as figuras da teofania que me foi dada, do
mesmo modo que a substância e o destino.
46
A despeito da dimensão política do herói nas sociedades modernas, aproveito para citar o
próprio Peter Sloterdijk para que o entendimento da palavra descarga, aqui, não seja
comprometido: “Historiadores e sistematizadores concordam que o princípio do líder faz parte
das características constitutivas da direção social fascista. Fascismo é um estágio relativamente
provável, mesmo que não inevitável, na execução do programa de desenvolver a massa com
sujeito – pela razão tão complicada quanto plausível de que as massas ativadas e em busca de
descarga podem fantasiar em seus líderes sua própria subjetividade inacabada como sendo
acabada. O tornar-se sujeito por meio do outro que se sobressai se apresenta, nessa visão, como
um interstício para a real autocompreensão” (2002, p. 24-25).
141
a minha obra será uma obra de esperança, uma luz sobre o
destino humano no percurso de fazer o homem. inscrever-me-ei
na linhagem de Ptolomeu, de Spinoza, de Comuns, de Dante.
Será um canto realista e sublime, grave e alegre, enraizado e
aéreo;
o meu trabalho será a face prática e científica dessa esperança; o
homem é, o homem há-de ser.
(LLANSOL, 1986, p. 230)
O Litoral do mundo: lugar de costa, para fora da língua, à margem do mundo.
Não poderia haver espaço melhor para hereges e heterodoxos ausentes e
presentes no gênero humano e suas figuras de tantos sexos e potência esotérica.
Porque, como diz muito bem Homi Bhabha (2005, p. 44), “[a]s formas de rebelião
e mobilização popular são frequentemente mais subversivas e transgressivas
quando criadas através de práticas culturais oposicionais”. Sobre o texto
llansoliano, não há como duvidar: trata-se de uma jovem escrita rebelde do
mundo. Rebelde não apenas porque sua outra e nova escrita do mundo adota o
periférico, o limítrofe e o errante como potência, mas evidentemente porque o
resultado dessa proposta não se apresenta domesticado ou servil a quaisquer
preceitos estéticos vigentes no contexto histórico das suas publicações. Em outras
palavras: o texto llansoliano não se enquadra em nenhum rol de tipificações
literárias e, por isso, sua rebeldia, enquanto discurso, reforça a diferença
necessária para a existência da política.
142
6. CAPÍTULO IV– PARA ONDE VAIS, DRAMA-POESIA?
Eu tenho um sonho, subir ao telhado do mundo, viajar nas
galáxias, desfazer as nuvens, penetrar por cima a chuva e, acima
de tudo, tornar-me experiente no enigma do amor. Sinto-me, no
entanto, submersa pela realidade demográfica. Tantos seres
humanos cada vez mais a flutuar e a descer em maior número à
crosta terrestre, como se ignorasse que aqui reina uma civilização
que os definha, os deforma e os arromba com o seu joelho de força
como se arrombasse portas. Gostam de cá voltar. Gostam de se
lamentar e de sentir ressentimento por terem perdido a lotaria da
vida. Ignoram propositadamente a lei de Paretto – oitenta por
cento de qualquer bem será sempre pertença de apenas vinte por
cento dos humanos. Não é, de facto, uma terra de turismo.
Llansol, Parasceve.
É possível dizer, agora, que a obra de Maria Gabriela Llansol determinou
certas ideias suficientemente claras a respeito do texto e das suas relações com o
mundo. Se a literatura não existe (importa é saber em que “real” se entra), ou
existe mal, a obra llansoliana parece querer se distanciar do entendimento que
abarca uma literatura vinculada e somente possível num único real, entenda-se,
mundo humano. Para a autora, a obrigatoriedade de uma estética realista
consiste num atrofiamento exponencial cujos efeitos o Homem conhece.
Pensando nisso, é também hora de perguntar: sendo o trabalho de Llansol o que
se viu até aqui, isto é, essa trajetória evolutiva de aprimoramento de uma tarefa
de criação estética para que o próprio humano encontre outras formas e outros
espaços de respiração, de acordo com o que se lê no já citado discurso da A.P.E,
essa estética é ou não é excelentemente humanista? O seu fim não seria a
sobrevivência de uma espécie, ainda que vinculada às outras que organizam e
povoam o único mundo que conhecemos?
143
Com o intuito de responder ou de chegar o mais próximo possível destas
perguntas é que se constrói o último capítulo desta tese, para o qual destaco
cinco outros livros posteriores da autora, a saber, Lisboaleipzig I (1994), Onde
vais, Drama-Poesia? (2000), Parasceve (2001), O Senhor de Herbais (2002) e,
finalmente, Amigo e Amiga – Curso de Silêncio de 2004 (2006). O critério que
orientou esta escolha é antes uma seleção de títulos que considero expressivos no
contexto de alguma correspondência com o tema proposto, no sentido micro ou
macro-político, que propriamente uma escolha baseada em critérios de gênero ou
de algum recorte puramente cronológico.
Apesar de estas questões parecerem simples, elas orientam um paradoxo
que não se mostra de maneira evidente no universo llansoliano. É notório que se
verifica uma força alargadora, que acolhe e substitui quase sempre o contato
humano pela convivência com os animais domésticos e a valoração declarada ao
universo vegetal, cuja clorofila sugere ser a seiva/ sangue do dom poético, mas é
também importante comentar que o trabalho de escrita de Llansol, com o tempo,
foi se afastando de determinadas figuras que sugeriam uma pertença política mais
forte, como é o caso de T. Müntzer e até mesmo Nietzsche. Por outro lado, na
última trilogia estudada, já é claro que Spinoza começa a ganhar força.
Ora, não se pode esquecer que o convívio estético com Baruch de Spinoza e
o seu legado lembram que o filósofo é autor de textos-pilares que vão ao encontro
da hipótese que sustento a respeito da nova política llansoliana. Para tanto, seria
o caso de reparar como a escrita de seus dois Tratados principais (o TeológicoPolítico e o Político, além da Ética) é capaz de autenticar os textos de Llansol em
termos teóricos e confirmá-los como obra moderna, na medida em que está
144
intrinsecamente comprometida com as intervenções intelectuais encetadas no
século XVI. Daí que Spinoza não seja apenas mais um herético, mas um herege
português que desafiou a ordem política do seu mundo ao afirmar
categoricamente que a Teologia teria fins políticos, uma vez que coordenava a
obediência e a submissão de modos afetivos. Para ele, o fundamental era
compreender a Justiça sem as intervenções divinas, capacitando o “leitor-filósofo”
(para quem é destinado o Tratado Teológico-Político) a deduzir a impossibilidade
de uma teologia racional que afastava o Homem cada vez mais da sua Liberdade,
em ocaso desde muito tempo:
Sabemos que um traço marcante da mentalidade do final da
Idade Média e da Renascença foi o sentimento da caducidade do
mundo e da necessidade de sua instauratio (restauração), de sua
restitutio in integro (restituição inteira), de sua rinascita
(renascimento). Cada um desses termos, postos sob a expressão
“outono do mundo”, assinalava o desejo do fim como retorno à
origem perdida. Milenarismo joaquimita, cabala, filosofia
hermética, magia natural, devotio moderna e, finalmente,
Reforma Protestante, buscaram, cada qual à sua maneira,
exprimir a tristeza outonal do mundo e a promessa profética do
fim dos tempos ou do Tempo do Fim como retorno à sua
primavera.
(CHAUI, 2003, p. 64)
Com efeito, a linhagem de Spinoza vem dar ao texto de Llansol a incidência
luminosa que não abdica da pujança sobre o humano, mesmo na distância
diacrônica do pensamento, que é o mesmo que dizer que a autora é diretamente
influenciada pelo filósofo holandês (de família judia e portuguesa) e pelas suas
ideias. Na cena das confluências éticas e estéticas do século XX, Maria Gabriela
reconhece a atualidade e aplicabilidade da filosofia de Spinoza, e centra parte das
suas reflexões a respeito de ética nas premissas do livro homônimo que ele
escreveu. É, igualmente, um modo de dar voz e conceder pujança ao que reside
145
em cada uma das suas figuras. Mas é evidente que esse poder da escritura é um
poder de ordem paradoxal, embora a autora reconheça, ainda nos anos setenta,
que “faz talvez parte do Poder que quero usar, imprimir estes livros” (LLANSOL,
2005, p. 98)47.
A tópica da atualização acaba por levar a outras problematizações que
agora podem ser mais urgentes. O primeiro ponto seria o de questionar para
onde vai a obra llansoliana, considerando as duas trilogias iniciais como os seus
marcos, os seus pilares. Além disso, é fulcral formalizar a pergunta que uso para
nomear este capítulo, tendo em vista que um dos pressupostos que levam a Ética
aos primeiros graus de compreensão é a proposição de que toda coisa persevera
na continuação do seu ser. Essa continuidade que encabeça este capítulo está
geminada ao princípio do conatus humano que “não é apenas um princípio de
autoconservação, mas também de auto-expansão e realização de tudo o que está
contido em sua essência singular” (GLEIZER, 2005, p.31), entendendo ainda que
quando aplicado ao corpo o conatus pode ser chamado de apetite e quando
relacionado à alma, chama-se de vontade. Para onde vai a obra de Llansol?
Seguindo o Olhar, ela caminha para a preservação e a dilatação do seu ser.
Do ponto de vista informativo, é relevante rememorar que dois anos
depois da publicação de Da Sebe ao Ser aparece o seu romance premiado, Um
Beijo dado mais Tarde de 1990, que, aliás, muito contribui para estabelecer
relações com os livros anteriores e com os futuros, como tão claramente mostrou
47
Para que não se acredite que o texto llansoliano é desprovido de projeto, em outra página de
Finita, a autora escreve o seguinte apontamento digno de nota: “Não há dúvida que a mim me
fascinam a balança do Poder, e as contradições humanas que se exprimem na idéia de batalha;
muitas das minhas forças são negativas mas fazem parte de um esforço conceptualmente tecido,
trama de vibrações e de energias complementares” (2005, p. 97).
146
Jorge Fernandes da Silveira. No seu O beijo partido, Silveira procura abrir
caminhos de acessibilidade à obra llansoliana, partindo do romance em questão,
a seu ver, um dos mais expressivos da literatura portuguesa por motivos que
acabo por recuperar aqui, como a eloquência dada ao Pobre e ao Rebelde, bem
como a Visitação aos expedientes políticos “menores” da família, por exemplo.
Aproveitando esta ideia da recorrência figural, penso ser interessante chamar este
procedimento, tão caro e recorrente para Llansol, de versura48, apropriando-me
evidentemente de como o entende Giorgio Agamben:
E o poema é um organismo que se funda sobre a percepção de
limites e terminações, que definem, sem jamais coincidir
completamente e quase em oposta divergência – unidades
sonoras (ou gráficas) e unidades semânticas (...). Podemos contar
as sílabas e os acentos, verificar as sinalefas e as cesuras,
classificar anomalias e regularidades: mas o verso é, em qualquer
caso, uma unidade que encontra o seu principium individuationis
somente no fim, que se define só no ponto em que finda. Em
outro trabalho, propus dar o nome de versura – do termo latino
que indica o ponto no qual o arado faz a volta, ao final do sulco –
a esse traço essencial do verso que, talvez mesmo por ser tão
evidente, permaneceu inominado entre os modernos.
(AGAMBEN, 2002, p. 143)
Outrossim, a versura se apresenta através não apenas de uma cadeia de
personagens – versura figural – mas sobretudo porque a luz que ali parece incidir
atende à cintilância dos temas e Bens que o fulgor ilumina. Se há persistência e
interminabilidade na leitura de Llansol, facilmente se percebe que isso ocorre não
apenas por meio de aparições, mas de reaparições que atendem ao princípio do
48
Maria de Lourdes Soares e Luci Ruas são bastante precisas ao reconhecer um “mecanismo” de
leixa-pren em Amigo e Amiga, de Llansol. Soares menciona ainda que João Barrento prefere o
termo anadiplose. Para mais, conferir O Livro das Transparências (p. 39) e o texto de Luci Ruas
“Na paz subalterna de criar figuras”.
147
eterno-retorno no texto. Isto pode ser confirmado no que ela diz em “Amar um
cão”, texto incluído no conjunto de Cantileno:
É esta relação de alma crescendo que se estabeleceu entre nós; é
esta relação fora da luz comum, que estabelece as diferenças que
desempenham o papel de elementos perturbadores nos hábitos
de servir os afectos: eu ia dizer que, nesta ordem de ler, ler é
nunca chegar ao fim de um livro respeitando-lhe a sequência
coercitiva das frases, e das páginas. Um frase, lida
destacadamente, aproximada de outra que talvez já lhe
correspondesse em silêncio, é uma alma crescendo. Eu não
consigo abranger a infinitude do número e da harmonia das
almas, nem o texto de um verdadeiro livro, nem a terra de um
jardim que se mantém há gerações.
(LLANSOL, 2000, p. 45, itálicos da autora e negritos meus)
Essa relação com o infinito e com os desdobramentos de retorno contínuo
permeiam o texto seguidamente, na medida em que parecem estar vinculadas a
uma “função utópica” do texto, que Barthes (1998) aceita como o paradoxo
nevrálgico da literatura. Para ele, essa função surge exatamente da aparente
contradição que aponta ser o real a nascente da palavra literária, ainda que ela
seja “também obstinadamente irrealista; ela acredita sensato o desejo do
impossível” (p. 23). Um típico exemplo seria a belíssima cena fulgor de Um beijo
dado mais tarde, em que convivas estão sentados à mesa, remontando não apenas
ao filme A festa de Babete, mas dialogando ao infinito com inúmeras outras
imagens da cultura, como o banquete platônico e a última ceia. Não é à toa, claro,
que este capítulo tem por nome “A Chave de Ler”, como se com isso a narração se
expusesse como um próprio mecanismo de acesso ao texto, aos textos:
Foi um jantar rigoroso, em que o paladar trocava o amor com os
alimentos, em que os doze convivas, abrindo-se ao prazer da
boca e do olhar, rememoraram e tornaram presentes as pessoas,
nos acontecimentos de ouro de suas vidas: cristal, ouro, pratas,
iguaria, arte de preparar os alimentos reuniram-se no momento
único da ceia em que não houve traidor.
148
(...)
Eu via, no desenrolar dessa ceia, a manifestação dos bens da
terra. O conhecimento que traz abundância, a ponto de tornar
generosos os homens. O prazer do Amante e a alegria de viver
não podiam faltar a um tal festim.
(LLANSOL, 1990, p. 48)
O aspecto temático aí embutido encontra ressonâncias numa outra obra de Maria
Gabriela bastante lida, Onde Vais, Drama-Poesia? (2000). Nela, aparece também
uma reunião extremamente forte que consiste num certo chamamento à nudez:
trata-se do “Aestheticum Convivium” (p.27). A partir daí compreende-se que um
dos fundamentos dessa estética é a disposição ao aberto e à necessidade de
deslocamentos e metamorfoses, por meio dos quais as figuras aí reunidas
elocubram sobre as potências despertadas pelo corpo e pelo “sexo de ler”.
A pergunta configurada no título me parece crucial para a obra de Llansol,
considerando que neste livro haja algo de decisivo ou incontornável. É que as
figuras, a partir daí, passam a se dirigir a um certo anonimato ou a algum grau de
indefinição, isto é, as figuras que são reconhecidamente históricas – talvez com
exceção de Spinoza – parecem convertidas e portanto metamorfoseadas em
compósitos anônimos já pensados e trabalhados nos livros seguintes, por
exemplo em Parasceve, de 2001:
É possível que as figuras se tornem cada vez mais anônimas. Não
portadores de nomes ou de obras que a cultura reconheça. Por
mim, creio que é bom que assim seja. Vejo nesse anonimato
crescente o fruto do trabalho figural de muitos que tiveram
nome, nome que, por vezes, não silencio. A cultura sabe desses
nomes, mas não saberá jamais mais do que isso. Aos anônimos,
não pode promover. Ou, se preferirem, matar, quando diz o
nome e ignora o combate.
(LLANSOL, 2001, p. 100)
149
Entretanto, tal hipótese acaba convergindo para o que João Barrento e Maria
Etelvina Santos (2004) pensam a respeito do texto: “Leves e efêmeros, como
convém a um Texto que vem do futuro e provavelmente só nele encontrará o seu
lugar” (p. 5). Apesar de crer em rastros dessa perspectiva futura na trilha de
Llansol, penso que a paisagem já foi modificada pela torrente dos textos, e que a
insistência em acreditar que esses textos só podem pertencer ao futuro é
fundamentalmente impeditiva de uma interveniência estética que, por
conseguinte, deve-se admitir como ética. Não se trata, afinal, dos Bens que
elegemos para este mundo? Eles já não estão evidentes desde a publicação de
Lisboaleipzig I na insistência daqueles discursos apresentados como textos
“dedicados” e, portanto, obstinados?
Em entrevista ao periódico português LER, de setembro de 2008, um dos
mais eminentes ensaístas das Ciências Humanas, Eduardo Lourenço, afirma
categoricamente: “Provavelmente, a Gabriela Llansol será – penso eu – o próximo
grande mito literário português. A escrita dela é fulgurante. Não há nada que se
possa comparar àquilo” (MARQUES, 2008, p. 37). Ao admitir a possibilidade de
Maria Gabriela Llansol ser o próximo grande mito literário português persevera
uma crença que institui, de algum modo, e alimenta o fato de o Tempo da autora
não tê-la compreendido ou aceito tacitamente, conforme a progressão da mesma
entrevista indica:
Por que é que ainda não se deu essa descoberta?
Lourenço: Algumas pessoas sabem. Os amigos e os admiradores
dela são uma espécie de seita. Embora eu não tenha sido de
seitas, propriamente. Fui uma das primeiras pessoas que reparou
nela. Não fui só eu. O Prado Coelho, tanto o pai como o filho, e
outras pessoas como o João Barrento. Há páginas dela que são
siderantes. Aquilo não entra dentro de um mínimo de coerência
150
do tipo racional, a que nós estamos habituados e na qual a gente
sabe o que aquilo é, para onde vai, etc. Também ela, de uma
maneira diferente do Pessoa, vem de um planeta estranho: é
aquele mundo flamengo, aqueles Boschs, aquele mistiscismo
renano, aquelas coisas complicadas que aparentemente têm
pouco a ver connosco. Já tiveram, em tempos. É poesia da mais
alta. Sem se oferecer imediatamente com esse valor da poesia. É
uma surpresa no interior de qualquer coisa que se apresenta
como prosa mas é da mais alta poesia. (...) A Llansol nunca será
uma autora fácil e consensual. É uma espécie de fenómeno
misterioso. Alguém vindo de uma outra espécie de planeta.
Quem a encontra não é difícil ficar fascinado por essa escrita.
(MARQUES, 2008, p. 39-40)
Com efeito, entendo que estejam em jogo duas questões aí anotadas por
Eduardo Lourenço. A primeira visa problematizar a ideia da recepção da obra de
Llansol tendo em vista a adstringência com que, num primeiro momento, a
própria crítica portuguesa a recebeu. É evidente, no entanto, que apesar dessa
relação friccional, a obra de Llansol hoje em dia está presente em diversas
instâncias, inclusive nas da crítica49. Em outras palavras: gostaria de explicar que
a neogeografia a que me referi nos capítulos iniciais poderá ser admitida ao levarse em consideração que uma nova escrita do mundo é possível a partir da
perspectiva llansoliana e a prova disso é tomar novamente – insisto – o trecho do
discurso da A.P.E aqui já observado: o espaço matinal contra-sangue já foi criado.
Lê-se Llansol. Escreve-se sobre ela. O mundo, se fosse puramente um desejo
estético, foi então cumprido. Porém, e aqui trato da segunda possibilidade, se o
espaço matinal contra-sangue é também responsabilidade com “outros”, há que
se entender a volição conjugada (hifenizada) da sentença: “Legente,
49
o
Não seria o caso de lembrar que até mesmo no Brasil, país em certa medida periférico, certos
cadernos de cultura e literatura dedicam espaço para a publicação de resenhas a respeito da obra
de Maria Gabriela Llansol? Para maiores informações, conferir o texto de Maria Carolina Fenati
publicado
em
2009
no
caderno
Prosa
&
Verso
do
Jornal
O
Globo:
http://3.bp.blogspot.com/_SLwdiuDm9pE/S0Nm96P2IXI/AAAAAAAAE9A/ofr2S-Jcxm8/s1600h/Llansol-globo-tudo.gif
151
mundo está prometido ao Drama-Poesia” (LLANSOL, 2000, p.10). Daí que o
trabalho da Comunidade já tenha começado e as confluências migratórias dos
espaços e das transformações nos sejam trazidas ao presente com uma certeza de
projeto presente: “______escrevo, para que o romance não morra”.
A minha hipótese pressupõe que as formulações de Eduardo Lourenço
sugerem uma inatualidade para a obra llansoliana, ainda que seja claro que toda
obra de fato contemporânea possua relação de disjunção com o seu Tempo.
Todavia, há que se considerar que boa parte dessa aparente inacessibilidade foi
de alguma maneira construída por Maria Gabriela e Augusto Joaquim, na medida
em que a aversão dela pelo mainstream literário acrescentou uma enormidade de
dados insólitos a seu respeito, corroborando a formação de opiniões que julgavam
ser Llansol uma eremita mística em pleno século XX, dentre outras coisas. Ao
invés da mitologização que Lourenço cumpre apontar nos textos, creio que seja
mais interessante atentar para o que um outro Eduardo, esse Prado Coelho (para
quem ela dedica o seu último livro), disse já sobre esta obra:
Estão aqui indicadas algumas das implicações directamente
políticas do trabalho de Llansol. Por um lado, um
questionamento de todo o poder sobre um texto, quer o do autor
que o escreve, quer o do leitor que o lê, na medida em que ambos
se deixam envolver e atravessar pela corrente anônima da
textualidade (onde a própria distinção ler/escrever se vai
diluindo). Isto significa que a textualidade se propõe como
comunidade de iguais, isto é, como a radicalidade de um projecto
democrático. Mas com duas reservas em relação às expectativas
tradicionais: em primeiro lugar, esta igualdade não é um dado,
mas uma conquista; em segundo lugar, esta igualdade só é
possível não no espaço do confronto e concorrência em que
decorre o drama da História.
Numa época sem utopias, o texto de Llansol é certamente um
dos mais ferozmente utópicos que nos sentimos capazes de
inventar. É esta radicalidade e esta ferocidade que o tornam de
certo modo inadequado em relação às rotinas de leitura que um
prémio como este tende a suscitar. Mas não podemos deixar de
exprimir o júbilo que nos chega de pensarmos que, por um
152
mecanismo talvez desajeitado, poderá haver cem, dez, dois, ou
mesmo um só leitor a mais a entrar nessa comunidade de textos
em que regularmente nos perdemos e reencontramos com Maria
Gabriela Llansol.
É verdade que estes textos me fascinam, mesmo quando não
estou certo de os entender perfeitamente (melhor: sobretudo
quando não estou certo). É verdade (creio) que estes textos
fascinam tanto Maria Gabriela Llansol como a mim próprio. E o
facto de neles se desarmar toda a autoridade de um autor que os
torna simultaneamente precários, vulneráveis e deslumbrantes.
Qualquer leitor pode bater à porta e entrar. O que o aguarda é
apenas a serenidade e a justeza das coisas evidentes: pão, água, o
convívio com as plantas e os animais, alguma luz mesmo de
noite, alguma noite no corpo da própria luz. E o amor como
partilha do mais difícil.
(COELHO, 1991, s/p.)
Eduardo Prado Coelho pareceu muito cedo vislumbrar um acesso possível
às cenas domésticas em que o amor fulgura, seja no desejo do mundo que se tem,
seja do Mundo que se deseja no universo da obra llansoliana. Por isso parece-me
apropriado lembrar que em boa parte da obra A promessa da política, Hannah
Arendt discorre sobre os efeitos de sentido para a política hodiernamente. Na
época em que esta autora escreve é comum verificar não apenas os filósofos, mas
um número significativo de comunidades desencantadas com os rumos da última
História e do humano. Para esta pensadora, os fenômenos das recentes técnicas
utilizadas pelo Homem contra o Homem mesmo, experienciados a partir da/
durante a segunda guerra mundial, acabaram não apenas por coroar o
desencanto, como serviram sobretudo para introduzir um cenário de profunda
descrença e desesperança. Ao contrário do que pensaram diversos filósofos e
outros teóricos, a política está associada, para Hannah Arendt, a uma espécie de
amor ao mundo. Esse “amor mundi”, entretanto, está profundamente associado a
um modo actancial de existir, considerando que este amor arrisca a sua verdade e
153
a sua potência na mais completa consideração das diferenças alheias, quer em
termos de ação, quer em termos de pensamento.
As diferenças suscitadas pelas reflexões de Arendt acabaram por dissociála de certa tradição da filosofia política, exatamente porque suas proposições
parecem afastar essa disciplina de um jogo interesseiro e devotado ao
cumprimento da administração mínima e suportável da raça humana. Quanto a
isso, Hannah Arendt escreveu certa vez um resumo utilizado para um curso sobre
Teoria Política, ministrado numa universidade americana. Gostaria de aqui
reproduzi-lo, porque o seu conteúdo, a sua lucidez e a sua clareza iluminam a
preciosidade do que entendo por político em Maria Gabriela Llansol. Este texto é
o epílogo do já mencionado A promessa da política:
O moderno crescimento da ausência-de-mundo, a destruição de
tudo que há entre nós, pode ser também descrito como a
expansão do deserto. O fato de vivermos e nos movermos num
mundo–deserto foi primeiramente percebido por Nietzsche,
também o primeiro a se equivocar em seu diagnóstico. Como
quase todos que vieram depois dele, Nietzsche acreditava que o
deserto está em nós, assim se revelando não apenas um dos
primeiros habitantes conscientes do deserto, mas também, por
essa mesma razão, uma vítima de sua mais terrível ilusão. A
moderna psicologia é a psicologia do deserto: quando
percebemos a faculdade de julgar – sofrer e condenar –
começamos a achar que há algo errado conosco por não
conseguirmos viver sob as condições da vida no deserto. Na
pretensão de nos “ajudar”, a psicologia nos ajuda a nos
“adaptarmos” a essas condições, tirando a nossa única esperança,
a saber: que nós, que não somos do deserto, embora vivamos
nele, podemos transformá-lo num mundo humano. A psicologia
vira tudo de cabeça para baixo: precisamente porque sofremos
nas condições do deserto é que ainda somos humanos e ainda
estamos intactos; o perigo está em nos tornarmos verdadeiros
habitantes do deserto e nele passarmos a nos sentir em casa.
O maior perigo é que no deserto há tempestades de areia e que o
deserto não é sempre plácido como um cemitério, onde tudo,
afinal, continua sendo possível, mas pode criar um movimento
próprio. Essas tempestades são movimentos totalitários cuja
principal característica é serem extremamente bem ajustados às
condições do deserto. Na verdade, elas não contam com nada
154
mais e parecem, conseqüentemente, a mais adequada forma
política de vida no deserto. Tanto a psicologia, o exercício de
adaptação da vida humana ao deserto, quanto os movimentos
totalitários, as tempestades de areia em que falsas ou pseudoações irrompem subitamente da quietude, colocam em risco
iminente as duas faculdades humanas que nos permitem
transformar pacientemente o deserto, e não a nós mesmos: as
faculdades conjugadas da paixão e da ação. É verdade que nas
mãos dos movimentos totalitários ou das adaptações da
psicologia moderna nós sofremos menos: perdemos a faculdade
de sofrer e com ela a virtude da resistência. Só quem é capaz de
padecer a paixão de viver sob as condições do deserto pode
reunir em si mesmo a coragem que está na base da ação, a
coragem de se tornar um ser ativo.
As tempestades de areia ameaçam, além do mais, até mesmo os
oásis do deserto sem os quais nenhum de nós poderia resistir, ao
passo que a psicologia apenas procura nos tornar tão habituados
à vida do deserto, que já não mais sentimos necessidade de oásis.
Os oásis são as esferas da vida que existem independentemente,
ao menos em larga medida, das condições políticas. O que deu
errado foi a política, a nossa existência plural, não o que
podemos fazer e criar em nossa experiência no singular: no
isolamento do artista, na solidão no filósofo, na relação
intrinsecamente sem-mundo entre seres humanos tal como
existe no amor e às vezes na amizade – quando um coração se
abre diretamente para o outro, como na amizade, ou quando o
interstício, o mundo, se incendeia como no amor. Sem a
incolumidade desses oásis não conseguiríamos respirar, coisa que
os cientistas políticos deveriam saber. Se aqueles que têm que
passar suas vidas no deserto, tentando fazer isso e aquilo
preocupados com as condições do próprio deserto, não souberem
usar os oásis tornar-se-ão habitantes do deserto mesmo sem a
ajuda da psicologia. Em outras palavras: os oásis, que não são
lugares de “relaxamento”, mas fontes vitais que nos permitem
viver no deserto sem nos reconciliarmos com ele, secarão.
O perigo oposto é muito mais comum. Seu nome usual é
escapismo: escapar do mundo do deserto, da política para... o
que quer que seja, é uma forma menos perigosa e mais sutil de
arruinar os oásis do que as tempestades de areia que começam
exteriormente por assim dizer a sua existência. No afã de
escapar, levamos as areias do deserto para os oásis assim como
Kierkegaard, no afã de escapar da dúvida levou a própria dúvida
para a religião ao dar o salto para a fé. A falta de resistência, a
incapacidade de reconhecer e padecer a dúvida como uma das
condições fundamentais da vida moderna, introduz a dúvida na
única esfera onde ela jamais deveria entrar: a esfera religiosa,
estritamente falando, a esfera da fé. Este é apenas um exemplo
que mostra o que pode nos suceder no afã de escapar do deserto.
Pelo fato de arruinarmos os oásis vitais quando vamos a eles com
155
o propósito de escapar deles, às vezes é como se tudo conspirasse
para generalizar as condições do deserto.
Também isto é uma ilusão. Em última análise, o mundo humano
é sempre o produto do amor mundi do homem, um artifício
humano cuja potencial imortalidade está sempre sujeita à
mortalidade daqueles que o constroem e à natalidade daqueles
que vêm viver nele. É uma eterna verdade o que disse Hamlet: “O
Mundo está fora dos eixos; Ó que grande Maldição/ Eu ter
nascido para trazê-lo à razão!” Neste sentido, na sua necessidade
de iniciantes para que ele possa começar de novo, o mundo é
sempre um deserto. Mas da condição de não-mundo que veio à
luz na era moderna – que não deve ser confundida com a
condição cristã de outro-mundo – proveio a pergunta de Leibniz,
Schelling e Heidegger: Por que existe alguma coisa em vez de
nada? E das condições específicas de nosso mundo
contemporâneo, que nos ameaça não apenas com o nada, mas
também com o ninguém, talvez surja a pergunta: Por que existe
alguém em vez de ninguém? Estas perguntas podem parecer
niilistas, mas não são. Ao contrário, são perguntas anti-niilistas
feitas numa situação objetiva de niilismo em que o nada e o
ninguém ameaçam destruir o mundo.
(ARENDT, 2005, pp. 266-269, negritos meus)50
Chama a atenção, é claro, dois termos acima utilizados cuja combinação encontra
eco naquilo que agora sinto possível chamar de neopolítica llansoliana sob a
licença do que Hannah Arendt enxergou como “a nossa existência plural”. Com
isso, penso que a decadência da política residiu/ reside precisamente na rasura
que em diversos momentos da história possibilitou que o Homem fosse inimigo
da sua própria espécie e projetasse cada vez mais mundos em que o poder se
associa à injustiça.
Ainda em Onde vais, Drama-Poesia?, Llansol disponibiliza uma amostra de
como
determinados
pressupostos
da
comunicação
são
totalmente
intransponíveis, sobretudo quando associados a compreensões da ordem do
50
Na esteira do que Llansol chama de “Oferendas” em Onde vais, Drama-Poesia, considero este
texto de Hannah Arendt um presente. Caberia perfeitamente também em “Dedico-vos estes
textos” de Lisboaleipzig I.
156
senso-comum, quando transcreve parte de uma conversa entabulada por um
jornalista. O que está em jogo ali parece muito mais uma inacessibilidade do
mundo em relação a outras formas de respiro que simplesmente uma curiosidade
de imprensa. A minha hipótese é a de que a proposta llansoliana está mais
comprometida com a busca pela harmonia possível na variabilidade das
diferenças que propriamente com o mundo e as suas representações cristalizadas.
É interessante notar como a autora se apropria dessa percepção e a realoca
noutros espaços que estão para além do contemporâneo. E, com isso, Llansol
também reordena os compromissos aparentemente públicos que o escritor
mantém com a sua comunidade, na medida em que, como sujeito de uma figura
pública, passa a ser demandado e inquirido quando não aplica a roupagem
comercial (de acesso) à sua obra:
O ódio profundo que a natureza nutre, num crescendo, pelo
humano, a desilusão que a invade por o homem, no ciclo do
carbono, representar uma solução de facilidade e de felicidade
relativamente a outras formas naturais e ser, cada vez mais, uma
espécie autista, proliferante e conquistadora;
(...)
Eu, Maria Gabriela Llansol, sou responsável pelo texto que dou a
ler,
ser-se humano é evolutivamente um progresso de leitura mas
não é um privilégio, nem uma superioridade, nem um dado
adquirido.
é um lado
mais legível do que outros para dar continuidade.
(LLANSOL, 2000, p. 187)
Silvina Rodrigues Lopes entende, em Literatura, defesa do atrito, que esta
problematização só é factual na medida em que há uma demanda pública por
157
produtos que satisfaçam o apelo consumidor. É perceptível que, a partir disso, a
literatura também se transforme em exemplo “negativo” e seja levada a integrar
um universo industrial, da ordem da reprodução. O mesmo parece ocorrer com o
encaminhamento do autor que, por conseguinte, passa a ser entendido mais ou
menos como outro sujeito qualquer desse escalonamento. Quando muito, o autor
resvala para o acúmulo de “funções” ao conjugar ao seu trabalho as palestras ou
as leituras públicas que, afinal, levam alimento à boca da uroboro.
Convém apontar que relativizar esta questão exige pensar na recusa –
deliberada ou não – de ceder, por parte de Llansol, com relação a tornar sua obra
mais palatável. Daí que seja fácil reconhecer que no mundo de onde partem as
lisuras e os produtos de fácil aceitação e penetração, procede afirmar que existe
muito pouco espaço para a obra llansoliana. Todavia, exatamente por ser esse o
mundo, é que a mesma obra se torna urgente, bela e extremamente política,
porque embora esteja comprometida com alternativas de existência e de função
estética, essa própria existência provoca incompreensão, recusa e atrito.
Certamente a literatura proliferante e conquistadora que se percebe
encarcerada na esteira e na desculpa do pós-moderno não reconhece que seja
possível coexistir ao mesmo tempo um drama-poesia capaz de reverter qualquer
poética de abismo ou reinventar a própria dimensão estética. Fato é que, mesmo
compreendido no contexto estético do tempo contemporâneo no qual estamos
inseridos, o poder de que se alimenta a narrativa llansoliana está necessariamente
geminada a uma consequente reapropriação do Tempo, isto é, o drama-poesia
acumula força e pujança sobretudo porque sua característica principal é a de ser
processo e estar devindo a sua singularidade. Nas palavras de Silvina:
158
É na relação com o outro, no ser-em-comum, que se afirma o
não-comum da singularidade, aquilo que não depende de
nenhum modelo, critério ou valor, mas é a única garantia de não
sucumbirmos diante do “império das necessidades”, isto é, da
redução da vida à esfera do econômico e social. Trata-se de,
através da construção de formas discursivas ou outras, preservar
o potencial de mudança, de diferenciação infinita, acolher o
exterior sem o reduzir a um “ser como”, sem anular nele o
excedente, a sua mudez e as possibilidades infinitas de relação
que nela se abrem. É nesse sentido que a arte abriga a infância e
o conflito – sem medida absoluta que as anule em sistemas
rígidos de equivalências, as coisas continuam a desencadear-se
em múltiplas aparições, o mundo reordena-se sem fim.
(LOPES, 2003, p. 12)
“O poder de decisão” inserido, portanto, em Onde vais, Drama-Poesia?
reafirma a posição de Llansol face a outros modelos vigentes do literário, o que
por excelência desloca para uma categoria de avaliação do mundo: 1) o mundo
llansoliano não é o da maioria que aceita a melancolia como premissa; 2) o
Mundo utópico pode ser uma promessa ou uma virtualidade. A natureza (o
homem, os animais, a cultura e o verde) decide em qual dos dois investir e
persistir com esperança:
A escrita não se refere apenas aos indivíduos e personalidades rejeitadas.
A escrita não pratica a monocultura humana. Nesta fonte particular de
ser, todo o ser é possível, ou seja, fulgorizável, embora nem todos sejam
necessários. A escrita que eu vejo faz renascer estes e não outros, sem
que eu saiba porquê. Se aparecerem outros escritores, aparecerão, de
certeza, outras fontes de nascimento, outras figuras. É bem provável que
se altere a necessidade. Seja como for, eu não invento a escrita, como eles
também não a inventarão. Eu re-nasço dela e, escrevendo, re-sisto, reexisto, na minha forma singular de existência. Eu constato que sou
assim, que não me quero separar do facto de ser um ser por vir, e que
empresto a minha voz a esta espécie (que, no fundo, é a minha) de
vindouros por mansa insistência. Há muito que estamos nascendo.
Escrevendo, só sei dizer-lhe que acabaremos por nascer. Que, sem nós, o
mundo não apenas ficará incompleto, como não será a arte que poderá
ser, mesmo se não soubermos se terá energia bastante para ser tal. O
inerte perderá, com a escrita, o cultivo a que se habituou da sua própria
incompletude.
(LLANSOL, 2000, p. 212)
159
A partir destes dados disponíveis, seria o caso de poder observar a obra de Llansol
não apenas como método de angariar e fundar um simples espaço, mas de propor
que essa fundação seja cotejada ao que Michel Foucault nomeia por heterotopia,
pensando que a esse conceito estejam associados diversos caracteres. Quando
Foucault admite que estes “Outros espaços” congregam um dado relevante a
respeito do mundo e se opõem diretamente à utopia, considerada por ele
posicionamento sem um lugar de fato real, o filósofo francês abre caminho para
investigar espaços alternativos em que a própria noção de real permite
conotações. O texto de Llansol estaria, assim, vinculado a uma heterotopia de
compensação, já que nele residiria uma conexão irrestrita ao real, mas
paradoxalmente a ele inversa, dada a sua quase-perfeição. Apesar de estar
vinculada a um procedimento que visa equilibrar uma configuração distópica do
mundo, a heterotopia foucaultiana, a partir da qual se pode ler Llansol, dá
mostras de que está consciente da sua relativa interveniência, na medida em que
desafia a singularidade do aparente e único real.
Se em Onde vais, Drama-Poesia? ficou evidente a preocupação com os
rumos estéticos da natureza, a continuidade do que Llansol escreveu estava
comprometida com a característica heterotópica de um lugar aparentemente
pleno de incompatibilidades, como exemplificou Foucault (2006, p. 418) a
respeito do jardim e do cinema. Ao fazer referência às relações de justaposição
dos espaços heterotópicos, o pensador francês possibilita que o entendimento
acerca do que é o lugar do drama-poesia na obra llansoliana possa ser um pouco
definido como esse espaço em que, justapostos, drama e poesia funcionem muito
160
mais que uma categoria puramente estética, mas como espaço de fluição (não
apenas fruição, mas também o seu fluido) para uma zona reconhecida. Este
posicionamento, caro ao trabalho llansoliano, leva a aceitar que “o que é belo
nasce da fluição (...); para mim, todos os tons tendem para uma orla (como diria?
É uma espécie de imarginação/ a imagem afoga-se ou atinge a orla” (LLANSOL,
2000, p. 268, itálico da autora).
É possível admitir, com isso, que saída do paradigma já atacado da cultura
e da literatura portuguesas, o espaço da água é rebatizado numa zona de diversos
cruzamentos e vias em que a própria língua é ultrapassada, quando se pensa que
o drama-poesia arrisca problematizar não apenas o local e o nacional, mas uma
dimensão muito mais voltada para os efeitos e potências do estético e a sua
relação com o humano e os outros vivos, vindo a ser frondosa a forma de
pergunta: “uma tão profunda associação entre matérias tão diferentes não tem
como finalidade dar à morte a própria morte e continuar a metamorfose da vida?”
(LLANSOL, 2000, p. 148). Todavia, em Parasceve, com a certeza de que não se
trata puramente de uma fácil polarização entre localidade e universalidade,
Llansol explica:
Pouco sabemos de nós, porque se adoptou o ponto de vista local. E,
quanto mais local for, mais anônimos somos. A figura central deste texto
– a mulher – é tão totalmente anônima quanto absolutamente local. Não
admira que se sinta impotente, muito sensível aos sinais.
O texto não propõe qualquer universalismo. Não. Propõe apenas que, à
beira desse mundo local, há muitos outros. Tantos quantas as descrições
coerentes e consistentes. Todos perfeitamente, e desde sempre,
simultâneos, onde o tempo desempenha um papel praticamente
irrelevante. Não que não exista. Mas a sua intimidade com os príncipes, a
sua cumplicidade no desígnio de nos separar da pujança, faz-nos tornar
prudentes. Tempo, só muito atento. Se a figura é um agregado de
completude, o tempo é uma coordenada virtual.
(LLANSOL, 2001, p. 146)
161
E finalmente, é necessário que se diga: o drama-poesia não se encerra na
morte. Sua obra constitui a partir dela o equilíbrio fisiológico ao trazer uma BoaNova: “ele nasceu! Veio rasgar a imagem da Morte!” (LLANSOL, 2000, p. 306) e
então o Ciclo recomeça no seu eterno-retorno vegetal. Para Onde Vais, DramaPoesia? não é uma pergunta. É um desafio lançado, dramapoético de ressurreição
sem crucificados, é promessa e deságue.
Em 2002 é publicado O Senhor de Herbais – Breves ensaios literários sobre
a reprodução estética do mundo, e suas tentações, livro importante e ao mesmo
tempo muito marcado pelo desprezo de Llansol por uma miríade de questões e
ensejos. Embora norteado pela orientação de uma certa repulsa, este livro
atualiza diversos assuntos já anteriormente visitados pela autora desde as suas
primeiras obras, com a vantagem de oferecer uma visão amadurecida da própria
autora em relação ao seu trabalho.
Neste livro há uma série de comentários e visões sobre temas considerados
politicamente delicados. Embora não exista nada de radicalmente novo em
relação ao pensamento llansoliano, os assuntos abordados demonstram que a
autora estava não apenas conectada às tragédias do humano, como sobretudo
pensava nelas como resultado de um potencial ignorado ou esquecido. É curioso,
por exemplo, que ela critique Benjamin quando Manuel Gusmão o cita para falar
do mundo. Curioso porque, muitas vezes, Llansol dá a entender – ou melhor,
insiste – que a sua obra está muito mais associada a uma produção de som e de
significante que propriamente com valores de sentido ou significado (é o caso de
ver como critica Maria Velho da Costa e Agustina Bessa-Luís apontando como
162
ambas ainda preferem arrolar uma reprodução mimética do mundo em suas
ficções). Ao persistir nesse ponto, Llansol parece esquecer que a própria
existência do drama-poesia está vinculada a procedimentos de linguagem que por
si só indicam uma entrada no universo dos sentidos e igualmente de algum tipo
de poder. Dizer que o único desejo é o de imprimir e escrever livros já é poder,
como ela própria reconhece numa passagem de Finita já citada. Ou seja, acreditar
que a sua obra, em cuja diacronia aqui penso, é muito menos orientada por
significados que por significantes, leva a crer, a meu ver, num certo esquecimento
ou tipo de negação de uma larga extensão do seu trabalho. Mas nessa perspectiva
é importante ter claro que a obra não pertence somente ao seu autor e que, afinal,
o exercício da leitura e as alamedas por onde o texto leva vão dar a muitas
possíveis clareiras.
Por outro lado, O Senhor de Herbais é um livro repleto de conceituações e
pequenas narrativas sobreimpressas de paisagens contemporâneas que vão se
mesclando às obras anteriores de Llansol. Grosso modo, há nele uma longa
reflexão acerca do mundo e do nascimento ou da ressurreição doutros Mundos
alternativos. E é isso mais que aqui interessa:
O que está atolado em lodo são os mundos criados pelos diversos
realismos. Mas a sua imensa força não é suficiente para impedir
que os outros nasçam. Sobretudo, se nascerem à margem do
ressentimento, da pequenez de escala e do positivismo crítico. O
que torna esses novos mundos fascinantes e incômodos,
aparentemente utópicos, é o facto de parecerem surgir apenas da
linguagem, de extractos seus não anteriormente explorados, sem
qualquer referência explícita (ou apenas muito raramente) à
guerra textual em curso. Mundos que, ao surgirem, parecem vir
do nada. Pelo menos, a sua nascente não está identificada.
Bastou para tanto encontrar um modo técnico que não
obedecesse à compulsão reprodutiva. Esses novos mundos
existem, e nada os poderá apagar. Nisso, são futuros. Há uma
positividade possível no próprio seio da catástrofe criada (e
imaginada como ficção activa) pelos diversos realismos. Foi
163
possível criá-los sem profetismo, sem escatologia e sem
revelação. Na realidade, a possibilidade de nascerem
constantemente novos mundos é uma mera virtualidade de
linguagem ...se em vez da cobiça que domina a retina, nesta for
implantada um módulo de pujança... e se esta, enquanto a
manipulamos, não nos explodir em pleno rosto.
Sim, o perigo espreita-nos dos dois lados – uma liberdade de
consciência enredada na linha de costa, como novas paisagens
que, em vez de a completarem, acabarão com ela. Densificação e
pontos-vorazes.
Se a linguagem está em nota, nem toda está a pagamento; é com
ela que terá de ser feito o novo trabalho crítico.
(LLANSOL, 2002, p. 95-96)
O módulo de pujança, desse modo, por mais que a autora tente desviar ou
suplantar, acaba por ir ao encontro de tópicas fulminantes da vida em que a
cobiça cega pelo poder atiça faúlhas em madeiras. É como se o texto llansoliano,
ao mesmo tempo, estivesse presente em duas realidades: a distópica e a
heterotópica, daí uma forte vontade (porque um forte empenho) de ver acontecer
o Mundo no mundo, quando problemas humanos vêm à baila, como a doença da
vaca louca, o protocolo de Kioto, a obrigatoriedade da fecundidade feminina ou
sobre certo suspense em relação à Vida diante da “solução final” encontrada pelos
alemães ou ainda sobre o 11 de setembro e o seus tão longos efeitos. Não obstante,
estas questões colocadas ou derivadas da condição humana face à natureza, são
empregadas como naturalmente opostas àquilo que Llansol chama de
estatigrafia do sensível:
A outra origem da estatigrafia do sensível é a presença do
verdejante. Oposto ao árido, inscreve emblematicamente no
texto o espaço edênico. Sempre o vi como um pacto de bondade
subscrito por todas as partes. Mas que partes contratantes são
essas? Não, certamente, as de Hobbes e de Locke, nem as
imaginadas por Gregos e Romanos.
(LLANSOL, 2002, p. 209)
164
Assim, ainda que as pequenas narrativas sejam reapropriadas ou estejam
reinseridas no contexto da publicação de cada um dos seus livros, elas ilustram
acessos que um olhar político puramente humano jamais encontraria, dada a
fertilidade da semente de corrupção que numerosos membros da nossa espécie
trazem consigo.
Com isso já seria possível mapear, de algum modo, que a atividade literária
de Maria Gabriela Llansol parece seguir um rastro deixado por intelectuais que
pensaram o movimento de Maio de 68 e que, de alguma maneira, quiseram
evidenciar que o cerco capitalista não dispunha somente de máquinas fiéis à
trama dos agenciamentos. Nesse sentido, não seria incorreto pensar que o
trabalho llansoliano, ao procurar salientar outros desejos e outras aplicações do
poder, envereda por uma trilha que se poderia pensar micropolítica, uma vez que
seu espaço, fundamentalmente heterotópico, remete a uma jovem comunidade
de leitores, legentes e intervenientes. Por outro lado, seria o caso de se questionar
se essa extensão limitada pelo pouco tempo e pela quantidade “menor” ou
molecular (como prefere Guattari em Micropolítica. Cartografias del deseo) de
corpos envolvidos no projeto llansoliano não deva ser colocada em segundo
plano, tendo em vista que a temática figural alude necessariamente a novas
alternativas para o mundo – totalidade molar51 - no qual estamos enredados em
meio a filos e rizomas.
Independente da possibilidade de “enquadrar” a obra de Llansol nesta ou
naquela classificação, é relevante atentar para o fato de que a sua independência
estética terminou por possibilitar que ela rechaçasse os modos de codificação pré51
Guattari & Rolnik (2006) opõem molecular (menor) a molar (potencialmente maior). Para mais,
conferir o terceiro capítulo do livro, intitulado “Políticas”.
165
estabelecidos e adentrasse por um processo de singularização que persistiu até a
sua última obra, apesar dos insistentes modos de produção de subjetividade
guiados pelos pressupostos das culturas de massas. No belíssimo epílogo de O
Senhor de Herbais, a autora sugere encerrar um longo trabalho:
AS COMUNIDADES
Este livro é o confronto de materiais antigos, centrados sobre o
tempo que vivi em Herbais, e um encontro de estudos que,
durante várias sessões, se debruçou sobre O Livro das
Comunidades. Apesar de participar com o meu silêncio, para não
interferir na formulação da reflexão, fui sentindo o apelo outrora
fortíssimo que me levara a escrever a fonte da minha escrita e do
meu lugar no mundo. Seja qual for o meu destino, aí selei um
contrato com o vivo, e dei o passo irreversível que tanto hesitei
em dar para um texto capaz de conferir uma expressão actual a
gritos humanos e não-humanos, abafados pelo “assim é” da
história, do mundo, do poder de espezinhar.
Não quantas vezes sentada na minha cadeira a ouvir as
discussões, dificuldades e dúvidas, senti finalmente que outros, a
seu modo, entravam por uma porta não muito diferente da por
onde eu entrara. Senti que se procurava a chave sob a maçã,
o mistério não é o medo que tolhe os passos, mas a servidão que
trazemos acorrentada às mãos e nos impede de tactear a chave
sob a impotência e o júbilo de viver,
senti-me estranhamente bem, sem o peso de carregar sozinha
uma escrita que fez de mim um ser com aura, permitindo-me
reatar o meu caminho para o humano, de ser alguém de único
entre únicos também, únicos não querendo significar especiais
nem revelados, mas tão-só responsáveis pelo dado indiscutível
de que cada um é irrepetível,
quer goste quer não
a perseverança dos outros deu-me coragem
vi que não era uma singularidade vã.
Serra de Sintra, 29 de janeiro de 2002.
(LLANSOL, 2002, p. 323-324)
Os livros publicados por Llansol em seguida a este último são expressivos,
muito embora estejam comprometidos com uma urdidura que parece se afastar
166
cada vez mais dos procedimentos narrativos e caminhar para uma direção em que
a cena lírica é potencialmente procurada e finalmente atingida. Apesar de a
relação com o político parecer menos insidiosa nos quatro livros que são
publicados posteriormente (O Jogo da Liberdade da Alma, O Começo de um Livro
é Precioso, Amigo e Amiga e Os Cantores de Leitura), é fundamental chamar a
atenção para a obra publicada em 2006, após a morte de seu marido, Augusto
Joaquim, o Curso de Silêncio de 2004.
O texto em destaque merece atenção não apenas do ponto de vista do
“Golpe” sofrido por Llansol, mas porque a sua existência, enquanto material
estético, foi fundamental para que a própria autora encontrasse na sua fidelidade
ao dom poético e à ordem figural do Mundo, a trilha deixada pela experiência
mais próxima do Inominável que se conhece. O que também pode ser observado
é que essa experiência de “anti-fulgor” (LLANSOL, 2006, p. 39) e sem “nenhum
ramo de consolação” (LLANSOL, 2006, p.40) coloca/ colocou em risco a
obstinação llansoliana pela fulguração e pela potência criadora do drama-poesia
ou, em outras palavras, foi capaz de fazer a autora avaliar as consequências de
atravessar a esterilidade do “desassossego que conduz as viagens” (LLANSOL,
2006, p. 35). Teria este desvio provocado o contrário da preservação do ser da sua
coisa?
Estes fragmentos, curso de silêncio de 2004, estão desprovidos de
um elo lógico. Eles contêm a maior experiência de dor de uma
mulher resistente. Serviram de matéria de ensino oral sobre a
ferida da morte nas escolas do vale – e o aberto silêncio
envolvente;
(LLANSOL, 2006, p. 35)
167
O excerto citado anteriormente, de O Senhor de Herbais, demonstrava
muito bem como o pertencimento de Llansol ao seu “herbário de faces” e à sua
pequena Comunidade, que tinha por Lugar primeiro o ambo Augusto, estava
vinculado a uma importância de natureza única, como se a aposta medular da
autora fosse exatamente uma aposta de convivência que garantia a fluidez do seu
Verbo impelido a abrir caminhos. Diante da desproporcional perda, no entanto,
Maria Gabriela aproveitou-se da versura do seu próprio trabalho para dar
seguimento ao arado campesino e deixar a voz medieval da Amiga lamentar a
partida do Amigo para, em seguida, retomar a vida esvaziada pela ausência do
Outro.
Nas palavras de Elias Canetti, que anotou durante toda a sua vida
absolutamente tudo o que pensara sobre a morte, morrer configurava a
impotência humana diante da ancestralidade do mundo. Para ele, apenas a
escrita seria capaz de amansar a ansiedade face aos expedientes variados da
morte. É no contexto da segunda guerra mundial que Canetti mais se dedicou à
tarefa de abraçar a lucidez pela atividade da escrita enquanto via parte do povo
judeu caminhar para o Campo. Neste sentido, o texto do escritor vai ao encontro
de um projeto sub-reptício de esperança:
15 de fevereiro de 1942
Hoje decidi anotar meus pensamentos contra a morte da
maneira como eles me vêm, aleatoriamente, sem nenhum
contexto e sem submetê-los a um plano tirânico. Eu não posso
deixar que essa guerra passe sem forjar no meu coração a arma
que dominará a morte. Esta arma terá que ser atormentadora e
traiçoeira, coerente com ela. Eu queria, em tempos menos
limitados, fazê-la vibrar sob brincadeiras e ameaças ousadas; eu
imaginava a derrota da morte como um baile de máscaras; e em
meia centena de disfarces, todos rebeldes, eu queria abrir
caminho até chegar a ela. (...) Eu tenho de segurá-la por onde
168
posso, e agarrá-la aqui e ali com as primeiras frases aceitáveis que
me surgem. Agora eu não posso ser um marceneiro para seus
caixões, muito menos decorá-los, ou ainda colocar os que já estão
decorados em mausoléus firmes e gradeados.
Pascal chegou aos trinta e nove anos, eu logo terei trinta e
sete. Com o seu destino, eu ainda teria dois magros anos! Que
pressa! Ele deixou pensamentos desordenados em defesa do
Cristianismo. Eu quero registrar os meus para ajudar o homem a
se defender da morte.
(CANETTI, 2009, p. 09)
Leitura, releitura e escrita funcionam como atividades revolucionárias,
conforme já disse Jorge de Sena. As palavras adquirem essa tonalidade e formam
este ramo da “árvore da vida” (LLANSOL, 2006, p. 116) porque continuam num
movimento de insistência – são as mesmas, mas são únicas a cada ocasião em que
são proferidas -, de acordo com a singularidade com que em dados contextos são
vivas: “Não te esqueças de voltar a ler o que já perdeste, pois no reler é que está a
frescura e, na reacção, a resistência humana” (LLANSOL, 2006, p. 127). Para ir ao
encontro dessa defesa bastaria que as figuras nômadas de Llansol acessassem o
texto novamente para que a autora pudesse deslocar a esperança de esterilidade
para a ainda hesitante divisão do próprio livro: “__________ Estou bem”; e, com
isso, assimilasse a lição maior que a cantiga de A. (como bem lembra Maria de
Lourdes Soares, em “A Grafia do Invisível ou A Jubilosa Ressurreição em Curso –
Notas Sobre Amigo e Amiga” n’O Livro das Transparências, A. não é apenas a letra
de Augusto que falta, mas Amigo, Ambo, o A. que dá a ignição da escrita porque
primeira letra, etc.) imprime na sua transformação de “alma crescendo”: a
ressurreição. O legado do luto permite que a imortalidade se torne possível
mediante não uma crença religiosa, mas uma aposta pela singularidade e pelo
169
princípio de eternidade segundo Spinoza, que Llansol já demonstrava conhecer
desde as primeiras aparições de Baruch/ Bento em seus textos52.
Em relação a isso é importante apontar que no curso do qual faz parte a
aula de Spinoza indicada pela autora, Deleuze observa que mesmo diante das
limitações epocais do contexto em que vivia, Spinoza foi capaz de pensar em
termos revolucionários, uma vez que problematiza as dimensões hierárquicas que
estão em jogo ao pensar a política atravessada por questões ontológicas:
Son problème politique il se le pose d’une manière très belle,
encore très actuelle : oui, il n’y a qu’un problème politique, c’est
qu’il faudrait essayer de comprendre, faire de l’éthique en
politique. Comprendre quoi ? Comprendre pourquoi est-ce que
les gens se battent pour leur esclavage. Ils ont l’air d’être
tellement contents, d’être esclaves, qu’ils sont prêts à tout pour
rester esclaves. Comment expliquer un pareil truc ? Ça le fascine.
À la lettre, comment expliquer que les gens ne se révoltent pas ?
Mais en même temps, révolte ou révolution, vous ne trouverez
jamais ça chez Spinoza.
(DELEUZE, 1980, p. 45)53
Os sentidos político, poético e ético, assim, se encontram nesse livro que também
a seu modo constitui um testamento, porque um testemunho dessa morte
anterior à própria morte que foi a perda de Augusto Joaquim.
Mas, finalmente, o que se aprende do curso de Maria Gabriela Llansol não
é propriamente o silêncio ou a contaminação da vida pelo luto. Nestes textos, a
52
Aqui é interessante verificar que a própria Maria Gabriela Llansol (em O Senhor de Herbais,
página 239) indica uma aula do curso de Deleuze em Vincennes, intitulada “Spinoza: immortalité
et éternité”. Essa aula, bem como outras do curso sobre Spinoza, encontram-se disponíveis em
http://www.webdeleuze.com/php/sommaire.html. No mesmo site é possível aceder a um arquivo,
em francês, de mais de 130 páginas sobre diversos pontos da filosofia do pensador holandês.
53
Tradução livre: “Seu problema político que ele coloca de uma forma muito bonita e ainda muito
atual: sim, há um problema político é que devemos tentar entender, fazer da ética política.
Compreender o quê? Compreender porque é que as pessoas estão lutando pela escravidão. Eles
parecem ser tão felizes, para ser escravos, eles estão desesperados para permanecer escravos. Como
explicar uma coisa dessas? Isto os fascina. Por que é que as pessoas não se revoltam? Mas, ao
mesmo tempo, rebelião ou revolução, você nunca irá encontrá-lo em Espinosa.”
170
Noite Obscura cede lugar à Luz Matinal e o que não se perde jamais é a imagem
de alguns relevos no mundo: seres intensos no árduo trabalho de fazer resistir a
esperança nos moldes pedagógicos da metamorfose, também um modo de
tramitar o Amor através das imagens: “sem passagem, não há matéria figural”
(LLANSOL, 2006, p. 226). E, dessa passagem “do lado inseguro da margem”
(p.227) para o encontro, a Amiga pergunta à natureza, como na cantiga medieval,
“ai Deus, e u é?”. Sem ainda obter resposta, resta o desejo:
-Sim – digo-te, pousando as mãos nos teus joelhos: - Desejo
encontrar alguém que me ame com bondade, e saiba ler.
- Alguém que queira ressuscitar para ti?
- Sim, alguém que tenha para comigo essa memória.
alguém que deixe espaços entre as palavras para evitar que
última se agarre à próxima que vou escrever
alguém que admita que a cartografia dos animais e da pontuação
não está ainda estabelecida
alguém que eu possa ler diferentemente depois de me ler
alguém que dirá aos animais e às plantas que nem sempre serão
servos
alguém que nos amarmos se reconheça de matéria estelar
(LLANSOL, 2003, p. 80, itálicos da autora)
Quanto aos entornos políticos da escritora, insisto no último excerto
citado de O Senhor de Herbais sobre a arte de tecer e reatar-se ao humano
perdido (o próprio e o do outro), que encontra a chave sob a fruta. Outrossim,
nada é mais político que o religare por meio do qual se reencontra a veia
demasiado humana. Porque Amigo e Amiga, como texto da decepação e do
reencontro, parece conceder validade ao eterno-retorno, ao afirmar que
“Esperança é um nome de poesia plena” (LLANSOL, 2006, p. 168, itálico da
autora) a caminho do Mundo que, milagre ou não, espera-se da comunidade que
vem:
171
Se estamos, pois, à espera de milagres devido ao impasse em que
se encontra o nosso mundo, tal expectativa de forma alguma nos
expulsa da esfera política em seu sentido original. Se o
significado da política é a liberdade, isso quer dizer que nessa
esfera – e em nenhuma outra – nós temos efetivamente o direito
de esperar milagres. Não por acreditarmos supersticiosamente
em milagres, mas porque os seres humanos, saibam eles ou não,
na medida em que são capazes de agir, estão aptos a realizar, e
realizam mesmo, constantemente, o improvável e o imprevisível.
A questão de se a política ainda tem algum significado
inevitavelmente nos envia, do exato ponto onde termina, numa
crença em milagres – e onde mais poderia terminar? –, de volta à
questão do significado da política.
(ARENDT, 2005, p. 168)
Por isso, todas as palavras relacionadas ao atravessar da língua na obra
llansoliana estão comprometidas com uma dimensão de Advento. Ou melhor,
estas palavras (nos) preparam para concluir que a Hora é chegada e que o Mundo
como promessa deve cumprir-se no presente, e que pensar nos efeitos da
modulação temporal – na sobreimpressão de espaço e tempo – através do dramapoesia nos leva ao caminho além de Parasceve – lugar e ultrapassagem da
preparação. E que de lá – no Enlevo – os Bens e as imagens já cintilam à nossa
espera. E que, por isso mesmo, não deixa de fazer da obra uma aventura humana:
HOJE, terminei o ciclo do dia; e eu cavei energicamente a minha
terra; lancei-lhe sementes para o futuro ao prosseguir o rito da
ressuscitação (...) Confesso que acordei com medo de principiar o
dia ______ que temia viscoso e sem divisórias; mas, ao esboçar
um pequeno movimento, reparei que me deslocava para outra
percepção dessas imagens turvas. (...) Principiei a acordar, pois
não se tinha esvaído o passado firmado em comum. Já que
sempre tínhamos pensado o futuro é agora, o tempo fizera-se
presente durante a sua indeterminada ausência (dele, Nómada)
e, como uma oferta, o princípio espiritual da manhã, ao mostrarme a sua matéria juvenil, incitava-se “levanta-te, aceita-me, para
teres a certeza de que não estais perdidos um para o outro.
(...)
Como não podia comunicar-lhe isto de viva voz, e face-a-face, e
precisava de um ouvido concreto, lancei esta confidência às
águas do Curso de Silêncio que certamente há-de encontrar
172
alguém legente que saiba do que falo quando me refiro ao ruah, e
ao espírito de encanto das operações divinas.
(LLANSOL, 2006, p. 243-244, itálico da autora)
São as palavras finais do texto que, “como uma oferta”, nos lembra de que o anel
do legente será passado adiante, porque leitura, escrita e medo são incompatíveis.
– Sim, diz o texto. E me lembra: “Alguém que tenha para comigo essa memória.”.
173
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS: “A ANGUSTIANTE ALEGRIA”
Na profusão do silêncio suspendeu os ramos.
E sua nostalgia ______provocava em seu companheiro um
impacto profundo _____ Começaram a falar, como
andavam.
- Nada se ouve neste canto do mundo.
- É o canto onde se faz o prelúdio do vazio, onde a chama
já não nasce. Se imagina – pôs o dedo em frente dos olhos,
e seu companheiro suspirou fundo. – Ouço, no entanto, a
água que trago nos ouvidos, de outras paragens, e procuro
reconhecer a água daqui.
- Não ouves o murmúrio?
- Já não deve reconhecer-se pelo murmúrio, mas pela
possibilidade de reconstituir em madeira as cinzas.
- Uma espécie de milagre?
- Não. A progressão do conhecimento que continua.
Llansol, Livro de Horas II.
No dia 03 de março de 2008 o amigo Sebastião ligou bem cedo e disse – A
Llansol se foi. Lembro de ele ter perguntado – O que perde o mundo? Não soube
responder com nenhuma precisão àquela altura. Mas igualmente, lembro de,
durante o dia inteiro de silêncio, ter pensado no que a própria Gabriela havia
dito, certa vez, sobre dar outro tom à voz da(s) nossa(s) espécie(s).
O último livro publicado em vida por Maria Gabriela Llansol chamou-se
Os Cantores de Leitura. Nele é seguro encontrar partículas musicais sobre os
efeitos de uma obra que aí abre espaço para pensar o fim de um certo ciclo, o
fechamento de uma passagem. É sobretudo um texto que deseja sair do próprio
silêncio. Se por um lado é um livro que abdica da verossimilhança das figuras em
relação à História do Real, também é verdade que a sua inscrição se define pela
provisoriedade e pela instabilidade da matéria figural que aí povoa intensamente
não apenas por meio de um modo assim entendido, como também por meio de
uma quantidade variada de nomes que figuram por passagens do conhecimento:
174
“Todos os cantores de leitura eram, por conseqüência, pensadores e, no fundo,
recriadores de móbeis. Uns distinguiam-se pela actividade, outros pela
contemplação. Alguns eram teóricos-práticos.” (LLANSOL, 2007, p. 226). Trata-se
do Conhecimento em forma de Canto. Mas não é, esta obra, um canto
homogêneo. Eu diria que é polifônico e, portanto, híbrido. Das muitas imagens,
chegam até nós as das plantas (e tão insidiosamente imagens do ser e vir a ser um
ramo), dos animais e dos que reconhecemos pela identidade dos nomes.
Entretanto há também as visões de tudo o que respira e recebe uma iluminação
generosa que o olhar, muitas vezes, acompanha. Como se a aproximação com a
obra de Llansol fosse uma entrada na Casa de Saudação e ela nos cantasse a sua
leitura que vai recuperando a voz de existir depois de uma experiência de luto.
Deleuze & Guattari lembram ainda que num “mapa de intensidades” (2003, p. 69)
encontra-se “um conjunto de estados, todos diferentes uns dos outros,
implantados no homem no momento em que este procura uma saída. É uma
linha de fuga criativa que só significa o que ela é.” (2003, p.70). Nesse devirhumano e devir-animal Llansol escreve:
Através de mim, os animais assumiram melhor a sua condição
humana. Eu não fiz senão correr através do mundo, e assumi,
como pude, a minha condição animal. Começou a vibrar um
grande arco em que espalhei a justiça e a desordem_________
(LLANSOL, 1994, p. 82)
O último livro deixado por Llansol não poderia abrir mão da ética. É que a
sua inteireza, conforme entendeu Spinoza, penetrou nos interstícios de qualquer
luz sobre o texto. As vozes, as músicas, os cantores e os legentes assumem, assim,
o desejo de chegar ao Livro da Ética intuitivamente, por meio da sentença que
175
irrompe, tantas vezes, por entre as cenas: “toda coisa se esforça, enquanto está em
si, por perseverar no seu ser”. Com isso, parece que Os Cantores de Leitura
ratificam a necessidade humana de se afastar da melancolia, ainda mais quando
se valem do termo já cunhado por Llansol anteriormente: a nostalgria. Neste
sentido, lembrar é sempre ir ao encontro de uma alegria: “Afinal, os cantores de
leitura e seus teatrais dançarinos representavam também numa cena sobre o
sofrimento do desequilíbrio, e a recuperação da alegria num instante do tempo e
num ponto do espaço.” (LLANSOL, 2007, p. 266).
Porque volto ao texto de Llansol, do seu diário Inquérito às Quatro
Confidências, enviado por Jorge Fernandes da Silveira: a melancolia é sorrateira e,
se aporta, tende a permanecer seguidamente. É por isso que creio na literatura.
Não propriamente na literatura dos manuais ou dos preceitos, mas na literatura
que funda e cava através do singular o seu dado de universalidade, porque
“escrever é um protesto de inocência”, é a certeza de que somos inocentes e ao
mesmo tempo é remanso para o sentido trágico da existência humana – é algo
tornado coisa, mesmo diante disso. Talvez por conta da consciência dessa
irmandade que nos une, eu peça licença para citar a mim própria de lugar
nenhum, senão das minhas anotações pessoais sobre escrever, publicar, ler, reler
e pensar o poético:
A poesia sempre esteve, pelo menos para mim, num lugar em
que fosse possível falar de duas experiências básicas: a da
comoção e do desolamento. A extensão do que se mostra entre
uma e outra também me faz estar em zonas limítrofes para dizer
e para sentir. Desse modo, a (minha) escrita funciona(ria) como
algo que se ergue sólido e firme como triunfo para os meus
olhos cansados. É crente, como eu sou crente, de que nela há
alguma salvação profana e também um lugar no qual vislumbro
uma beatitude concreta como se, a partir dela, eu desejasse
dialogar com os meus irmãos de misérias e assombros. A poesia
176
é apenas um modo particular de enfrentar o mundo, de através
de um universo microscópico estar à deriva com tantos outros: é
como dar as mãos e ser recolhida para um lugar no qual gigantes
de humanidade estiveram, e por lá eu pudesse desfrutar de uma
compreensão fraterna, uma aquiescência amorosa.
Ao fim, posso afirmar que Maria Gabriela investe todas as suas forças
contra o réquiem da causa de tudo o que respira. Contra os rituais fúnebres do
eclipse do Homem e da natureza, na contrapartida de um outro trabalho – esse
epifânico, ético e estético que dissolve as palavras definitivas que estavam à
entrada dos campos de Auschwitz-Birkenau e diziam que só o trabalho de
caminhar para a morte ou para o suplício libertavam. É como se a obra de Llansol
fosse uma promessa de que no lugar do gás e das cinzas, o Homem pudesse
revestir e proteger o seu Amor Mundi de fulgor e de esperança e ir ao encontro de
um canto resistente, humano e animal, em consonância com a escrita que o liga à
Terra.
A paz brilha na tranqüilidade. A tranqüilidade brilha no sossego,
o sossego brilha na provocação insólita deste sol, a provocação
da luz repousa no abscôndito,
(...)
A esta temperatura de escrever,
o ler funde-se em outra escrita.
(LLANSOL, 2007, p. 272)
Rio de Janeiro, 03 de fevereiro de 2011.
177
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
8.1) DE MARIA GABRIELA LLANSOL:
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Assírio & Alvim, 2006.
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LLANSOL, Maria Gabriela. Cantileno. Lisboa: Relógio d´água, 2000.
LLANSOL, Maria Gabriela. Causa Amante. Lisboa: A Regra do Jogo, 1984b.
LLANSOL, Maria Gabriela. Contos do Mal Errante. Lisboa: Rolim, 1986.
LLANSOL, Maria Gabriela. Da sebe ao ser. Lisboa: Rolim, 1988
LLANSOL, Maria Gabriela. Depois de os pregos na erva. Porto: Afrontamento,
1973.
LLANSOL, Maria Gabriela. Finita. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005.
LLANSOL, Maria Gabriela. Inquérito às Quatro Confidências. Lisboa: Relógio
d´Água, 1996.
LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1 – O Encontro inesperado do diverso.
Lisboa: Rolim, 1994.
LLANSOL, Maria Gabriela. Livro de Horas I – Uma data em cada mão. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2009.
LLANSOL, Maria Gabriela. Livro de Horas II – Um arco singular. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2010.
LLANSOL, Maria Gabriela. Na Casa de Julho e Agosto. Porto: Afrontamento, 1984.
LLANSOL, Maria Gabriela. O Jogo da Liberdade da Alma. Lisboa: Relógio d´Água,
2003.
LLANSOL, Maria Gabriela. O Livro das Comunidades. Lisboa: Relógio d´Água,
1999.
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais Drama-Poesia?. Lisboa: Relógio d´Água,
2000.
178
LLANSOL, Maria Gabriela. O Senhor de Herbais. Lisboa: Relógio d´Água, 2002.
LLANSOL, Maria Gabriela. Os Cantores de Leitura. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.
LLANSOL, Maria Gabriela. Os pregos na erva. Lisboa: Rolim, 1962.
LLANSOL, Maria Gabriela. Parasceve. Lisboa: Relógio d´Água, 2001.
LLANSOL, Maria Gabriela. Um beijo dado mais tarde. Lisboa: Rolim, 1990.
LLANSOL, Maria Gabriela. Um Falcão no Punho. Lisboa: Relógio d´Água, 1998.
8.2) SOBRE MARIA GABRIELA LLANSOL:
BARRENTO, João et alli. À beira do rio da escrita. Jade – Cadernos Llansolianos 1.
Sintra: Gell, 2004.
BARRENTO, João et alli. O Livro das transparências. Jade- Cadernos Llansolianos
9. Sintra: Gell, 2007.
BARRENTO, João. O que é uma Figura? Lisboa: Mariposa Azual, 2009.
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Llansol. Belo Horizonte, Editora UFMG: 2007.
COELHO, Eduardo Prado. “Um prémio dado mais tarde”. Lisboa: Público, 11 de
junho de 1991.
EIRAS, Pedro. ‘Les années 70, ont-elles existé? – à propos de Finita, de Maria
Gabriela Llansol’, in The Value of Literature in and after the Seventies: the Case of
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pp. 127-140 <http://congress70.library.uu.nl> . Acessado em 03 de janeiro de 2009.
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Falcão no Punho. Diário I', de Maria Gabriela Llansol]" / António Guerreiro. In:
Revista Colóquio/Letras. Notas e Comentários, n.º 91, Maio 1986, p. 66-69.
LOPES, Silvina Rodrigues. Teoria da des-possessão. Lisboa: Black Sun, 1988.
LOPES, Silvina Rodrigues. “Comunidades da excepção” In: Exercícios de
Aproximação. Lisboa: Vendaval, 2003. pp. 187-200.
179
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O que aprendi é que não há seres absolutos,
e que o mundo é contido pelos muros que
nos esperam.
Llansol, Um Falcão no Punho.
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TATIANA PEQUENO DA SILVA