UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
FABIANO ALMEIDA DA SILVA
Body- Building e a confiança e medo no uso dos
esteroides anabolizantes: uma análise sociológica
João Pessoa
2012
Body- Building e a confiança e medo no uso dos
esteroides anabolizantes: uma análise sociológica
FABIANO ALMEIDA DA SILVA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal da Paraíba como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Sociologia sob a orientação
da professora Marcela Zamboni Lucena.
João Pessoa
2012
S586b
UFPB/BC
Silva, Fabiano Almeida da.
Body- Building e a confiança e medo no uso dos esteroides
anabolizantes: uma análise sociológica / Fabiano Almeida da
Silva.- João Pessoa, 2012.
115f.
Orientadora: Marcela Zamboni Lucena
Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA
1.Sociologia. 2.Esteroides anabolizantes – uso – problemas.
3. Transformação do corpo. 4. Hormônios – uso – confiança –
medo – análise sociológica.
CDU: 316(043)
AGRADECIMENTOS
Escrever uma dissertação apesar de parecer uma produção individual ela envolve
a participação direta ou indireta de muitas pessoas. Mesmo sendo impossível destacar
todas agradeço especialmente:
A minha orientadora Prof. Dr. Marcela Zamboni Lucena, pela paciência em
administrar meus erros, ansiedades e inseguranças, além da sua importante orientação
que caso contrário a conclusão do trabalho seria impossível.
A toda minha família pelo apoio e confiança que depositaram em mim e ainda,
por suportar minha ausência em muitas ocasiões durante a elaboração do presente
trabalho.
À Universidade Federal da Paraíba pela disponibilidade da sua estrutura de
ensino e qualidade.
Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia em especial a excelência do
corpo docente.
Aos professores; Dr. Anderson Moebus Retondar; Dr. Mauro Guilherme
Pinheiro Koury e Drª. Simone Magalhães Brito, pelas preciosas sugestões apontadas
durante a qualificação, que possibilitou uma nova organização do trabalho, ampliando
assim a própria qualidade do mesmo.
À CAPES agradeço a bolsa concedida, ao qual foi vital para a realização da
pesquisa.
E a todos que participaram e apoiaram de forma direta ou indireta a realização
deste sonho.
“O corpo é o vetor semântico pelo
qual a evidência da relação com o
mundo é construída...”
(David Le Breton)
RESUMO
O presente trabalho versa sobre o problema do uso intensivo dos hormônios
esteroides anabólicos androgênicos (EAAs), também conhecidos popularmente como
esteroides anabolizantes, por homens frequentadores de academia de ginástica de um
bairro popular na cidade de João Pessoa. Esta pesquisa tem como objetivo,
compreender, dentro de uma perspectiva sociológica, a relação de confiança e medo nos
usos dos hormônios esteroides anabolizantes, bem como, as próprias motivações para a
prática da musculação e a utilização destas drogas masculinizantes. Diante do exposto,
percebe-se que na sociedade contemporânea, o corpo tornou-se elemento central na vida
de muitos indivíduos, realidade esta, fruto do fenômeno do culto ao corpo que nas
últimas décadas tomou formas radicalizadas. Neste contexto, ao mesmo tempo em que a
corpolatria se intensifica, paradoxalmente cresce, nas mesmas proporções, a insatisfação
das pessoas com sua imagem corporal, principalmente quando comparados aos ideais
corpóreos amplamente valorizados socialmente. Esta realidade se agrava em uma
sociedade em que somos cobrados, julgados, classificados e identificados pela imagem
corporal. Assim, a supervalorização da imagem corporal está fazendo com que muitas
pessoas cometam excessos na utilização dos mais diferentes meios na busca pelo corpo
esteticamente “perfeito”. Estes excessos estão cada vez mais “cegos”, sintoma da
cultura do presenteísmo, onde sustenta o “agora”, como tempo mais importante para os
que procuram a transformação da forma corporal. Tais fenômenos condicionam muitos
indivíduos a embarcarem no submundo da utilização dos esteroides anabolizantes com a
intenção de construir um corpo “sarado” em um curto espaço de tempo. Nestas
circunstâncias a relação de confiança e medo tem importância particular, pois, a partir
destes dois elementos (e também de outros), os indivíduos direcionam suas ações e
discursos para o uso ou não uso destas substâncias.
Palavra Chave: Esteroides Anabolizantes; Transformação do Corpo; Confiança e
Medo.
ABSTRACT
This paper discusses the problem of the intensive use of anabolic-androgenic
steroid hormones (AAS), also popularly known as anabolic steroids by male gym-goers
in a popular neighborhood in the city of João Pessoa. This research aims to understand,
within a sociological perspective, the relationship of confidence and fear in the uses of
anabolic steroid hormones, as well as their own motivations for the practice of
bodybuilding and the use of these drugs masculinizing. Given the above, it is clear that
in contemporary society, the body became a central element in the lives of many
individuals, this reality, the result of the phenomenon of the cult of the body that in
recent decades took radicalized forms. In this context, while the corpolatria intensifies,
paradoxically grows in the same proportions, the people's dissatisfaction with their body
image, especially when compared to ideal body widely socially valued. This situation is
aggravated in a society in which we are charged, tried, identified and classified by body
image. Thus, the overestimation of body image is causing many people to commit
excesses in the use of many different ways in the pursuit of body aesthetically "perfect."
These excesses are increasingly "blind", a symptom of the culture of presenteeism,
which maintains the "now" as most important time for those seeking the transformation
of body shape. These phenomena affect many individuals to embark in the underworld
of the use of anabolic steroids with intent to build a body "healed" in a short time. In
these circumstances the trust and fear is particularly important, because from these two
elements, individuals direct their actions and speeches for use or not use of these
substances.
Keyword: Anabolic Steroids; Body building; Confidence and Fear.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 09
CAPÍTULO I .................................................................................................................. 14
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS.................................................................... 14
1.1 METODOLOGIA DE COLETA DE DADOS .................................................... 14
1.2. GRUPO ANALISADO E CAMPO DE PESQUISA .......................................... 17
1.2.1. INCIDÊNCIA DOS USUÁRIOS ................................................................. 19
1.3. CAMPO DE PESQUISA .................................................................................... 22
1.3.1- ACADEMIA “A” ......................................................................................... 23
1.3.2. ACADEMIA “B” ......................................................................................... 26
CAPÍTULO II ................................................................................................................. 31
TIPOS DE MODELAGEM CORPORAL: DOS SUPLEMENTOS ALIMENTARES
AOS QUÍMICOS ESTEROIDES ANABOLIZANTES ................................................ 31
2.1. SUPLEMENTOS ALIMENTARES ................................................................... 31
2.2. ESTEROIDES ANABOLIZANTES ................................................................... 36
CAPÍTULO III ............................................................................................................... 46
TRANSFORMAÇÃO DO CORPO ANABOLIZADO: O QUE DIZEM OS
USUÁRIOS? .................................................................................................................. 46
3.1. BODY-BUILDERS E A CULTURA DA “MALHAÇÃO” ............................... 46
3.2. CULTO AO CORPO: MOTIVAÇÕES PARA A PRÁTICA DA
MUSCULAÇÃO E USO DOS HORMÔNIOS ESTEROIDES ANABOLIZANTES
.................................................................................................................................... 51
CAPÍTULO IV ............................................................................................................... 76
CONFIANÇA E MEDO NO USO DOS ESTROIDES ANABOLIZANTES ............... 76
4.1 CONFIANÇA E USOS DOS ESTEROIDES ANABOLIZANTES .................... 76
4.1.2- CONFIANÇA E RELAÇÕES DE “AMIZADE” NA UTILIZAÇÃO DOS
ESTEROIDES ANABOLIZANTES .......................................................................... 85
4.2 – MEDO E O USO DOS ESTEROIDES ANABOLIZANTES ........................... 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 100
REFERÊNCIA ............................................................................................................. 109
INTRODUÇÃO
Na sociedade contemporânea, os holofotes estão voltados para o corpo, nunca o
invólucro corpóreo foi tão venerado e adorado como no presente momento. O corpo
tornou-se um santuário, envolvido por uma “sagrada” atmosfera religiosa do corpo,
carregado por um conjunto de crenças, rituais e simbolismos (BAUDRILARD, 1995;
CASTRO, 2007). Tal fenômeno do culto ao corpo altera os estilos de vida de uma
parcela significativa da nossa sociedade e, deste modo, encontram-se facilmente
indivíduos condicionados por uma preocupação excessiva com a aparência corporal em
uma verdadeira idolatria ao corpo. Esta “corpolatria” faz do corpo um capital, um puro
empreendimento, ao qual o indivíduo tem que administrar da melhor forma possível.
Em suma, o corpo virou, na atualidade, objeto de investimento (financeiro e temporal),
tratamento, preocupação e manipulação; algo que deve ser criado, desenhado e
teatralizado no espetáculo da vida social, fazendo do corpo um elemento central na vida
cotidiana de muitos indivíduos (MAFESSOLI, 1995; GOLDENBERG, 2002).
Um dos efeitos colaterais deste fenômeno na contemporaneidade é o elevado
crescimento da insatisfação dos indivíduos com sua imagem corporal, proporcionando
crises de identidade pessoal e a propagação de sentimento de vergonha, quando
comparados aos cânones corporais amplamente valorizados socialmente1. Em tese, com
a radicalização da corpolatria, desenvolve-se paradoxalmente a intensificação da
insatisfação pessoal com imagem corporal.
Neste contexto, amplia-se o consumo de bens e serviços na intenção de
aprimoramento da estrutura corpórea. Assim, a busca por uma melhor forma corporal
faz com que muitos indivíduos procurem os mais diferentes meios que prometem a
realização dos objetivos traçados ligados à imagem corporal2. Um exemplo desta
1
A indústria do corpo ou da beleza, sob o ecoar da mídia e publicidade, desempenha uma papel
estruturante do “culto ao corpo”, criando, divulgando e propagando novos signos e imaginários corporais,
desenvolvendo uma realidade de dois gumes que proporcionalmente a supervalorização e criação de
novos modelos corporais dominantes, cria-se em contra partida, a insatisfação das pessoas com sua
imagem corporal gerando uma oposição entre o corpo visual ideal e o corpo real (SANTAELLA, 2004
BOLTANSKI, 1984; CASTRO, 2007). Para Mirian Goldenberg (2002, p. 7), “quanto mais se impõe o
ideal de anatomia individual, mais aumenta a exigência de conformidade aos modelos sociais do corpo”.
2
Existe um amplo consumo de produtos ligados à questão estética tendo como base a indústria da beleza
e da boa forma. De acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), o Brasil é o segundo
país em número de cirurgia plástica de caráter estético, sendo superado apenas pelos EUA. O interessante
é que, segundo os dados desta instituição, houve um crescimento assustador do número de cirurgias
9
realidade é a busca incansável pelas academias de ginásticas para execução de várias
modalidades, dentre elas, a musculação.
A prática de exercícios com pesos (através de máquinas e halteres) e repetições
em série dentro das academias de ginástica se faz presente, na atualidade, em diferentes
segmentos sociais, sendo praticado predominantemente por homens, e nos últimos anos,
com grande aceitação entre as mulheres. Este campo (no sentido de Pierre Bourdieu),
conhecido comumente como musculação, encontra-se carregado de elementos (disputas,
contradições, dominação, poderes, simbolismos, desigualdades etc.) de extrema
importância para o diagnóstico da realidade centrada na supervalorização da imagem
corporal que presenciamos nos dias atuais.
Muitos dos adeptos (normalmente do sexo masculino) da prática da musculação
buscam o hipertrofiar da massa muscular no sentido de representação da beleza
masculina, porém, discursos ligados à saúde e melhor qualidade de vida também fazem
parte deste universo3. Conforme Le Breton (2004, p. 7), “a vontade de transformar o
corpo tornou-se um lugar-comum”, principalmente porque na atualidade o sujeito não é
apenas responsável pelo seu jeito de ser, seu comportamento e conduta frente aos outros
indivíduos, mas também responsável pela sua forma corporal. O corpo não corresponde
mais a uma realidade inexorável, objeto de não alteração, muito pelo contrário, vemos o
corpo como alvo de construção pessoal extremamente manipulável e maleável, segundo
os desejos individuais, as condições objetivas e possibilidades disponíveis (LE
BRETON, 2009; GOLDENBERG, 2002; GIDDENS, 2002).
Como intensificação deste processo, o culto ao corpo contemporâneo traz como
uma das suas peculiaridades a demasiada importância do presente, alterando a própria
busca pela transformação da forma corporal. O imediatismo associado a uma realidade
em que faz do corpo uma propriedade e responsabilidade exclusivamente do indivíduo
tende a direcionar a radicalização da ação. Desta forma, muitas pessoas buscam atingir
os objetivos traçados em um curto espaço de tempo, utilizando-se das mais variadas
ferramentas produzidas e ampliadas pela indústria da beleza e da boa forma. Porém,
meios ilegais também são utilizados em prol das metas estabelecidas individualmente.
De qualquer modo, os frequentadores (homens e mulheres) de academias de musculação
plásticas com caráter estético realizadas em homens, apesar ainda da predominância feminina.
Disponível em: www.cirurgiaplastica.org.br/.
3
Assim, a grande aceitação para prática da musculação, seja por questões ligadas à estética, à melhor
qualidade de vida ou à saúde, corresponde ao reflexo do próprio fenômeno do culto ao corpo.
10
estão envolvidos com este “presenteísmo” contemporâneo, condicionando muitos
adeptos desta prática corporal a buscarem as armas impostas pela sociedade de consumo
e consideradas por muitos como necessárias e indispensáveis na luta para realização do
sonho de modificar o invólucro corpóreo.
Com isso, o consumo de substâncias, na intenção de acelerar e potencializar o
processo de modificação da forma corporal, não é mais novidade entre os praticantes da
musculação. É um lugar comum afirmarmos o crescente consumo, nos últimos anos, de
substâncias como a suplementação alimentar e os esteroides anabolizantes entre os
partidários da musculação. Porém, outras substâncias também podem ser encontradas
neste campo como é o caso dos produtos para uso veterinário. Apesar de, muitas vezes,
a utilização destas ferramentas ser desnecessária (no caso dos suplementos alimentares),
ou até mesmo impróprias e ilegais (esteroides anabolizantes e produtos para usos
veterinários), muitos adeptos da musculação agarram-se a específicas armas da imagem
corporal, como forma de combater o mal-estar provocado pela dinâmica da mudança e
do presenteísmo contemporâneo, que faz da espera algo penoso e doloroso, não havendo
mais espaço para demora dos acontecimentos, vontades e desejos.
Dentro desta infinidade de ferramentas administradas com a intenção da melhora
da forma corporal, os hormônios esteroides anabolizantes ocupam um lugar de
destaque, sendo utilizados por muitos praticantes de musculação na confiança de que
estes aditivos possam proporcionar um corpo “sarado” em um curto espaço de tempo.
Diante disso, o que se tem observado nas últimas décadas é o crescimento assustador do
uso dos esteroides anabolizantes por razões puramente estéticas na intenção da
transformação da forma corporal.
Em direção oposta, os sistemas especializados (através dos mecanismos de
informação) alertam para o perigo da utilização indevida dos esteroides anabolizantes
como meios ilegais e bastante arriscados no que tange ao seu uso com caráter estético.
Assim, os partidários da musculação, usuários de esteroides anabólicos androgênicos
(EAA) ou não, se veem diante do seguinte dilema: de um lado a confiança no uso dos
esteroides anabolizantes como arma capaz de materializar sua vontade incondicional de
transformar a forma corporal, de outro, o medo no uso dessas substâncias postas pelos
sistemas especializados como meios ilegais e bastante perigosos.
Diante do cenário exposto e considerando a materialidade deste fenômeno no
mundo contemporâneo, o presente trabalho versa sobre o problema do uso intensivo dos
hormônios
esteroides
anabólicos
androgênicos
(EAAs),
também
conhecidos
11
popularmente como esteroides anabolizantes, por jovens do sexo masculino e
frequentadores de academia de ginástica de um bairro popular na cidade de João Pessoa.
Esta pesquisa teve como objetivo, compreender, dentro de uma perspectiva
sociológica, a relação de confiança e o medo nos usos dos hormônios esteroides
anabolizantes, bem como as próprias motivações para a prática da musculação e a
utilização dessas drogas masculinizantes.
A importância do trabalho se faz devido à escassez de estudos sociológicos
ligados à utilização dos esteroides anabolizantes, principalmente em uma época
centrada na supervalorização da imagem corporal. Além do mais, os dados apresentados
podem fornecer contribuições significativas para a reflexão, no que envolve o fenômeno
do culto ao corpo como força motriz de excessos na corporeidade contemporânea.
Esta dissertação está dividida em quatro capítulos, subdivididos em itens que
procuram expor os pontos centrais do trabalho: 1- “Considerações metodológicas”; 2“Tipos de modelagem corporal: dos suplementos alimentares aos químicos esteroides
anabolizantes”; 3- “Transformação do corpo anabolizado: o que dizem os usuários?”; 4“Confiança e medo no uso dos esteroides anabolizantes”.
No capítulo primeiro, intitulado “Considerações metodológicas”, busca-se expor
a metodologia utilizada na pesquisa, apresentando alguns dados colhidos na realidade
estudada, além de definir a amostra, apontando o grupo estudado. Em linhas gerais,
apresenta alguns indicadores referentes aos usuários de EAA. Em seguida, é indicada a
incidência dos usuários que utilizam essas substâncias. Ainda neste capítulo se buscou
fazer uma breve exposição de duas academias de ginástica como cenário importante
para temos uma ideia de um campo que permeia toda a pesquisa.
O capítulo segundo, denominado “Tipos de modelagem corporal: dos
suplementos alimentares aos químicos esteroides anabolizantes”, visa apresentar estas
duas ferramentas bastante utilizadas (uma legalmente e outra ilegalmente) por
frequentadores de academia de ginástica, na busca de modificar a forma corporal. No
que se refere aos suplementos alimentares, buscou-se mostrar sua função e intenções
para seu consumo, além de oferecer as balizas para questionamentos ligados aos riscos
desta ferramenta exposta como “legal” e “saudável”. Em relação aos EAAs, procurou-se
apresentar de forma breve, sua história, sua função e intenções, bem como alguns dos
efeitos colaterais possíveis na utilização desses aditivos.
Já no capítulo terceiro, “Transformação do corpo anabolizado: o que dizem os
usuários?”, parte da definição do conceito de Body-builders, tendo por base a “cultura
12
da malhação” e o fenômeno do culto ao corpo. Ainda nesse capítulo, serão apresentadas
as motivações para prática da musculação e usos dos esteroides anabolizantes, conforme
exposto nos depoimentos dos entrevistados. Mostrou-se que alguns fenômenos sociais
se configuram como elementos centrais para as específicas motivações apresentadas,
além da relevância de particulares sociabilidades para a fermentação deste processo.
No último capítulo, “Confiança e medo no uso dos esteroides anabolizantes”,
buscou-se mostrar a relação dos entrevistados com estes dois elementos importantes
para o direcionamento do discurso e da ação. Na parte referente à confiança, será
exposta, no primeiro momento, a importância deste elemento no contexto moderno,
principalmente dentro de um ambiente cercado por sistemas especializados. Assim, a
própria prática da musculação encontra-se envolvida com um conjunto de sistemas
especializados, em que se pode depositar ou não a confiança. Por fim, no que se refere à
parte da confiança, serão expostas as condições apresentadas pelos entrevistados para o
fortalecimento ou abandono deste sentimento em face ao uso dos esteroides
anabolizantes. Na segunda parte do capítulo, referente ao medo, partiu-se da hipótese de
que o medo é um sentimento social e culturalmente construído, estando presente em
todas as formações sociais. O medo é um fenômeno difuso na contemporaneidade,
estando presente na própria corporeidade humana. Assim, a própria prática da
musculação é uma realidade cercada pelo sentimento de medo, seja no que se refere à
insatisfação da sua imagem corporal (medo do não reconhecimento, da exclusão, do
estigma, do insucesso, da não realização do objetivo traçado etc.), na utilização ou não
de diversas substâncias (suplementos alimentares, esteroides anabolizantes, produtos
para uso veterinário), dentre outros. No final da parte referente ao medo serão
apresentadas as condições em que este sentimento foi reduzido ou ampliado, tendo em
vista os depoimentos dos entrevistados nas suas experiências quanto aos usos dos
esteroides anabolizantes e tudo o mais que envolve a utilização destas substâncias.
13
CAPÍTULO I
CONSIDERAÇÕES METODOLOGICAS
1.1 METODOLOGIA DE COLETA DE DADOS
A coleta de dados foi realizada através de entrevistas gravadas com usuários de
hormônios esteroides anabolizantes (EAA) que são frequentadores de academias de
ginástica, localizadas em um bairro popular da cidade de João Pessoa. O processo de
coleta de dados se desenvolveu segundo uma rede de relacionamentos, onde, a partir de
um usuário, criaram-se as condições para trilhar a rede de amigos e conhecidos também
usuários. Nestas circunstâncias, as entrevistas foram realizadas através do modelo semiestruturado de entrevistas com caráter metodológico qualitativo. A escolha desta
ferramenta de pesquisa se deve ao fato de se entender, que ela possibilita a profundidade
da entrevista, favorecendo a livre expressão das idéias dos entrevistados, que de acordo
com suas respostas, direcionam o pesquisador para novas perguntas, tendo sempre como
guia o roteiro pré-estabelecido. Desta forma, favorece a descrição dos fenômenos
sociais, a sua explicação e a compreensão de sua totalidade, além de manter a presença
consciente e atuante do pesquisador no processo de coleta dos dados (TRIVIÑOS, 1987,
MANZINI, 1991, 2003). A construção do roteiro das entrevistas foi baseada em
conceitos ligados ao culto ao corpo, confiança e medo e cultura do consumo tendo por
base perguntas principais e secundárias para atingir o objetivo da pesquisa. A partir de
tais conceitos, foi elaborado no primeiro momento um roteiro de 12 perguntas. Foram
entrevistados 10 usuários de esteroides anabolizantes, frequentadores de academia de
ginástica de um bairro popular da cidade de João Pessoa. As entrevistas foram aplicadas
em sua totalidade pelo próprio pesquisador e todos os entrevistados passaram pela
entrevista de caráter semi-estruturado entre o período de maio de 2011 à fevereiro de
2012. Todas as entrevistas foram gravadas com o consentimento dos entrevistados;
duraram em média 45 minutos aproximadamente e todas foram transcritas na íntegra.
Quase todas as entrevistas ocorreram na “praça do coqueiral” no bairro de Mangabeira,
a pedido de alguns usuários, e também, para facilitar o acesso dos pesquisados
residentes na mesma localidade. A maioria dos entrevistados (70%) colocou algumas
condições tanto para a realização da entrevista como principalmente para o processo de
gravação das falas. Estes entrevistados aceitaram que o processo de gravação das falas
14
fosse realizado na condição que o material fosse eliminado imediatamente após a
transcrição. Além do mais, a realização das entrevistas só foi possível através da
promessa do pesquisador ao manter o sigilo absoluto das informações e tudo mais que
de alguma forma pudesse “prejudicá-lo” e identificá-lo. Assim, o pesquisador garantiu
em vários momentos (antes, durante e depois da entrevista) o sigilo absoluto das
informações ligadas (direta ou indiretamente) a identidade dos pesquisados. E para
tanto, no presente trabalho, os nomes dos entrevistados ficaram ausentes. O pesquisador
pediu para cada um deles que de preferência, não expusesse nenhum nome (amigos,
fornecedores, usuários, dentre outros) na intenção de passar mais confiança aos
entrevistados e consequentemente proporcionar mais fluidez nas entrevistas. Porém, em
vários momentos ao citar alguns nomes ou informações “comprometedoras”, a maioria
dos entrevistados (oito deles) se sentiram desconfortáveis, contudo, foram reforçados
pelo pesquisador, do comprometimento do mesmo em manter o sigilo absoluto das
informações. Durante as entrevistas, foi possível perceber sinais de impaciência e até
mesmo pequenos níveis de agressividade por parte de alguns dos entrevistados quando
o tempo da coleta de dados excedia os 20 minutos.
Estas condições foram indispensáveis principalmente no que envolve um estudo
com os usuários de EAA, que como afirmam Sabino (2004, 2007) e Santos (2007),
existe um código de ética dos “bombados” que os “obriga” a não declararem
abertamente o consumo dos esteroides anabolizantes, os amigos usuários e os próprios
fornecedores destes aditivos. Dificuldade que se potencializa com o processo de
gravação das falas, mas que para a pesquisa foi de fundamental importância,
considerando a riqueza dos detalhes que envolve este universo do uso dos esteroides
anabolizantes e frequentadores de academia de ginástica.
Depois da realização das entrevistas, os dados coletados foram passados pelo
procedimento de transcrição para depois serem analisados. Antes do processo de análise
de dados foi realizada uma releitura completa de todo material colhido nas entrevistas,
atividade esta indispensável para o suporte do processo de categorização4 das falas. O
processo de categorização se fundamenta a partir do agrupamento dos dados,
4
O processo de categorização na presente pesquisa foi uma ferramenta fundamental para o processo de
redução dos dados coletados, criando categorias como produto da síntese de todo material extraído da
realidade social pesquisada. Desta forma, foi possível destacar os aspectos mais importantes nas falas dos
entrevistados, a partir de um esforço e retorno periódico (dificilmente concluído) aos dados coletados,
para com isso fazer o refinamento contínuo e progressivo das categorias tidas como importantes para o
conjunto da presente pesquisa.
15
identificando as partes em comum dentro do todo, para assim, serem classificados
dentro do conjunto das falas, levando em consideração, as semelhanças ou analogias
presente no discurso. Por meio desse método foi possível extrair as regularidades
contidas nas falas dos entrevistados saindo do particular para o mais geral. Desta forma,
as regularidades semânticas serviram para a construção das categorias temáticas
analisadas teoricamente. Categorias como: corpo magro, vergonha do corpo,
insatisfação da imagem corporal, corpo “musculoso”, dentre outros, foram extraídas
com o procedimento de categorização dos dados colhidos nas falas dos entrevistados,
além daquelas pré-estabelecidas como confiança e medo.
Em princípio, o propósito da pesquisa foi entrevistar 15 pessoas em um período
de seis meses, prazo este estipulado pelo pesquisador para fechar a amostra, mas que
não foi possível por vários motivos. Alguns usuários (três no total) desistiram na última
hora em realizar a entrevista, dizendo: “quero fazer mais não...”, “pensei melhor e não
posso te ajudar não...” ou “não quero expor minha vida pra ninguém...”. Apesar da
insistência do pesquisador todos se mantiveram irredutíveis, demonstrando inclusive
níveis de agressividade. Outros usuários (dois no total) não quiseram conceder a
entrevista dentro do processo de gravação, mantendo-se avesso a esta ferramenta de
pesquisa. De qualquer modo, estes (dois) usuários passaram pela entrevista não gravada,
onde os dados obtidos na atividade de coleta foram transcritos no diário de campo.
Durante o período de coleta de dados, muitos contratempos ocorreram dentro do campo,
que mesmo com a interseção dos “porteiros” a dificuldade se fez presente.
Na transcrição das entrevistas gravadas, foram respeitadas as expressões dos
entrevistados, bem como o modo de falar de cada um deles, nas suas gírias e palavras
abreviadas. As palavras de baixo calão foram algo comum no discurso dos
entrevistados, porém, foram deslocadas da maioria das falas citadas no corpo do
trabalho.
Durante a análise, apareceram palavras em destaque, seja em negrito ou itálico,
para destacar pontos interessantes do texto ou das falas dos entrevistados. Estes
destaques são de responsabilidade do pesquisador. Outros destaques serão informados
em nota de rodapé, quando estes, não forem de responsabilidade do pesquisador.
Durante a análise, as regularidades nas entrevistas aparecem indicadas em expressões de
grandeza como: muitos, muitas, a maioria, a totalidade, dentre outros.
16
1.2 GRUPO ANALISADO E CAMPO DE PESQUISA
A pesquisa foi realizada com 10 jovens usuários de esteroides anabolizantes,
todos praticantes de exercícios de força (musculação) e frequentadores de academias de
ginástica localizadas em um bairro popular5 na cidade de João Pessoa. Os critérios
adotados pelo pesquisador para escolha dos respectivos atores devem-se aos seguintes
motivos: 1- os homens são os maiores usuários dos esteroides anabolizantes em
academias de ginástica; 2- nas últimas décadas, houve um crescimento assustador no
consumo das “drogas masculinizantes” (EAA) por frequentadores de academias de
ginástica (principalmente do sexo masculino) alcançando proporções alarmantes; 3devido a menor dificuldade no acesso a rede de usuários do sexo masculino pelo fato da
sua contingência; 4- o culto ao corpo faz com que a utilização de “drogas da imagem
corporal” como os esteroides anabolizantes ganhe cada vez mais espaço entre os jovens
do sexo masculino apesar do relativo crescimento do uso pelo sexo feminino.
No que tange o perfil dos entrevistados, o pesquisador se ateve as percepções
extraídas através do campo e do contato com os atores. Conversas antes das entrevistas
ou depois das entrevistas também serviram de materiais para traçar o perfil dos
entrevistados. Ao sintetizar estes dados podemos apontar: idade, escolaridade, profissão
e gastos com ferramentas ligadas à transformação da imagem corporal, como esteroides
anabolizantes, suplementos alimentares e outros produtos.
Em pesquisa realizada pelo “Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
Psicotrópicas” (CEBRID)6 foi apontado que os maiores usuários de EAA no Brasil são
homens entre 17 a 34 anos. Na presente pesquisa, a faixa etária dos entrevistados foi de
20 a 30 anos, porém, a maioria deles já fazem uso destas substâncias há alguns anos.
Em relação a escolaridade, verificamos conforme os dados que, 2 dos
entrevistados possuem segundo grau incompleto, porcentagem idêntica aos que
possuem segundo grau completo. Por outro lado, 6 dos usuários são universitários
matriculados em instituições públicas.
5
Uma das várias possibilidades de estudar a relação do indivíduo com sua corporeidade se dá
considerando a realidade das classes sociais, principalmente em se tratando de uma sociedade tão
diferenciada e desigual como a nossa. Desta forma, considerar a classe social é importante no que tange o
estudo da corporeidade, apesar de na atualidade, se vivenciar uma tendência nas ciências sociais de
negligenciar as classes como categorias explicativas importantes.
6
Ver o segundo capítulo “Tipos de modelagem corporal: dos suplementos alimentares aos químicos
esteroides anabolizantes”.
17
No que se refere à ocupação profissional verificamos que 7 dos entrevistados
possuem alguma atividade remunerada e que 3 dos entrevistados está atualmente sem
nenhuma ocupação profissional. Porém, um dos entrevistados ao se colocar como
desempregado afirmou que consegue adquirir alguma renda com as vendas de
esteroides anabolizantes e de receitas médicas (falsificadas) para compra dessas drogas.
Além do mais, o entrevistado afirmou também, vender produtos para uso veterinários
(vitaminas e anabolizantes) onde muitas pessoas utilizam-se destas substâncias para
modificação da forma corporal. Este entrevistado confidenciou que antigamente era
vendedor destes produtos sem restrições, porém, hoje (por causa risco potencial) as
vendas são destinadas apenas aos amigos de confiança. Para Giddens (1991), dentro do
universo da relação de amizade o elemento confiança tem importância singular,
principalmente no contexto das sociedades modernas. É através da confiança nas
relações de amizade que se dão muitas das decisões tomadas cotidianamente levando
em conta a autenticidade e lealdade do amigo.
Por fim, sobre os gastos ligados as ferramentas para transformação da forma
corporal, a totalidade dos entrevistados (por serem usuários), destina parte (ou todo) do
dinheiro adquirido no consumo dos esteroides anabolizantes. Segundo Boltanski (1984),
do ponto de vista da posição social ocupada pelo indivíduo, existem diferenças no que
se refere às representações, às significações, às percepções, ás sensações, aos valores e
aos usos sociais do corpo ligadas a sua cultura somática. Além do mais, a própria
constituição corporal do indivíduo relaciona-se de uma forma ou de outra, às condições
materiais de sua existência e a sua posição de classe. Assim, os usuários sem nenhuma
atividade profissional alegaram que têm a possibilidade de compra dos esteroides
anabolizantes graças ao dinheiro que recebem dos seus pais e às vezes de empréstimos
com os amigos também usuários. No que se refere a outras ferramentas para
transformação da forma corporal, 9 entrevistados assumiram fazer uso de suplementos
alimentares com a intenção de força auxiliar da hipertrofia muscular e para melhorar a
performance na prática de exercícios de força de modo geral. Estes 9 usuários
afirmaram a dificuldade no consumo constante dos suplementos alimentares, devido ao
preço elevado de muitos produtos que muitas vezes é incompatível com a própria renda
mensal. Porém, a maioria dos entrevistados alegou se esforçar bastante para fazer uso
dos suplementos alimentares, porque associado ao uso dos esteroides anabolizantes, o
ganho da massa muscular e tudo mais (força, energia, queima de gordura corporal,
dentre outros) ligado a prática da musculação é intensificado. Um dos entrevistados
18
afirmou nunca ter consumido suplementos alimentares por causa da sua condição
material. Para ele, o raro dinheiro adquirido é destinado ao consumo dos esteroides
anabolizantes e também para o consumo de produtos para uso animal. Este entrevistado
manifestou vontade de consumir suplementos alimentares conforme as boas indicações
dos amigos no que tange a os efeitos “benéficos” para construir um modelo corpóreo
ideal. A pesquisa também verificou, que cerca 4 dos entrevistados fizeram uso de
alguma substância para uso animal na intenção de modificação da forma corporal. Para
os usuários destes produtos, esta ação seria um dos meios mais rápidos e baratos de
construir a forma corporal almejada, porém uma atitude mais arriscada.
1.2.1. INCIDÊNCIA DOS USUÁRIOS
Todos os entrevistados afirmaram contundentemente que são usuários
atualmente de hormônios esteroides anabolizantes. Apenas
um
dos
entrevistados
começou a fazer uso dos esteroides anabolizantes no ano passado (2011), contudo, os
demais usuários, faz utilização destes aditivos em um período mínimo de 3 anos. O
período maior apontado por um dos entrevistados para o consumo dos EAA gira em
torno de 9 anos. E a idade mais precoce na utilização destas drogas da imagem corporal
(EAA), conforme observado nas entrevistas foi aos 14 anos, seguido de outro usuário
aos 16 anos. Portanto, em média, o consumo entre os entrevistados gira em torno de 4
anos. Exceto o entrevistado que começou a fazer o uso dos esteroides anabolizantes no
respectivo ano de 2011, os outros 9 usuários realizam no mínimo dois ciclos de
aplicações anualmente, que envolve várias aplicações em um período mínimo, que em
média gira de um mês a três meses. É importante ressaltar, que o período de aplicações
se modifica de acordo com o ciclo escolhido e a escolha dos esteroides ou até mesmo de
outras substâncias escolhidas para o consumo (utilização de substâncias para uso
veterinário).
Os esteroides anabolizantes são administrados na sua composição injetável e
oral. Nestas condições, a totalidade dos entrevistados fez uso dos EAA na sua versão
injetável, onde 5 deles também consumem na sua composição oral. As alegações dos
outros 5 entrevistados que não utilizam os EAAs por via oral gira em torno de três
argumentos: 1- Os EAAs na sua administração oral são mais prejudiciais à saúde
19
principalmente ao fígado; 2- O não conhecimento dos produtos; 3- A falta de
oportunidade para o consumo de drogas específicas.
A partir os dados coletados, se verificou que todos os entrevistados afirmaram
ter consumido o “Deca-durabolin” (Decanoato de nandrolona), seguido de 9 que
consumiram “Durateston” (Propionato de testosterona) e 7 entrevistados utilizaram
“Winstrol” (Estanazolol) como os esteroides anabolizantes mais comuns dentre os
usuários pesquisados. Porém, vários outros esteroides anabolizantes foram bastante
mencionados, entre tais substâncias podemos citar às seguintes:
•
Androxon (Undecanoato de Testosterona)
•
Deposteron (Cypionato de Testosterona)
•
Hemogenin (Oxandrona)
•
Primobolan (Mentelona)
•
Testex (Cypionato de Testosterona)
Além do uso de substâncias como os esteroides anabolizantes, os suplementos
alimentares apareceu conforme os depoimentos, com a finalidade de auxiliar os EAAs
para transformação e construção da forma corporal. Exatamente 90% dos entrevistados,
afirmaram fazer uso de suplementos alimentares para ajudar a potencializar a
modificação corporal. Apenas um dos entrevistados nunca utilizou tais substâncias, na
alegação de não ter condições financeiras para o consumo. Porém, 7 entrevistados ao
alegarem fazer uso de suplementação alimentar, reiteraram constantemente a
dificuldade de uma regularidade no consumo de substâncias especificas, devido do
custo elevado dos produtos, principalmente os importados. Os suplementos alimentares
apontados pelos entrevistados são formados principalmente por compostos de
carboidratos, proteínas, aminoácidos, metabólicos e extratos. A partir dos dados
coletados, os suplementos nutricionais mais citados em ordem crescente foram o
seguinte:
•
Maltrodextrina
•
Albumina
•
Whey Protein
•
Hipercalóricos
20
•
Creatina
•
BCAA
•
Mega Pack
•
M’Drol
As substâncias para uso veterinário foram consumidas por 4 entrevistados, com
maior incidência do complexo vitamínico ADE7. Apesar desse produto não ser um
esteróide anabolizante, estas substâncias são frequentemente usadas por indivíduos na
busca de crescimento do tecido muscular (pelo menos aparentemente), mesmo não
possuindo propriedades para o desempenho desta função. O que chama atenção com
os dados coletados é que entre os usuários destas substâncias a preferência por este
produto cresce quanto maior o declive da condição material. Assim, o entrevistado
que apresentou a menor condição financeira faz uso constante do complexo
vitamínico ADE em associação com um tipo de esteroide anabolizante (Decadurabolin), pois, segundo relato do mesmo, a utilização de outros esteroides está fora
das suas condições econômicas. Em análise de preço feita pelo pesquisador em
clínicas veterinárias do bairro dos usuários aqui pesquisado, o valor médio do
complexo vitamínico ADE variou entre 12 a 15 reais. Anabolizantes de uso
veterinário foram utilizados por 3 entrevistados conforme os dados coletados, em
destaque para Androgenol (Propionato de testosterona) e Equifort (Undecilenato de
boldenona)8. Conforme os dados, as substâncias de uso veterinário utilizadas foram
às seguintes:
•
ADE (Complexo Vitamínico)
•
Potenay (Complexo Vitamínico e Estimulante)
•
Revimin Plus (Complexo Vitamínico, Mineralizante e Anabólico)
•
Androgenol (Anabolizante para uso animal)
•
Equifort (Anabolizante para uso animal)
7
Utilizados no combate do enfraquecimento, falta de apetite, raquitismo e estimulante de engorda para
gados e cavalos.
8
Ambos os medicamentos são utilizados no tratamento de deficiência do hormônio masculino e no
preparo de animais para cobrições.
21
Uma vez esboçado o método de coleta de dados, alguns indicadores e a própria
incidência do consumo dos entrevistados, falta-nos agora contextualizar o ambiente
mais importante de sociabilidade dos entrevistados: a academia de ginástica.
1.3. CAMPO DE PESQUISA
A partir do momento em que o pesquisador tomou contato (através de um
porteiro e informante) com um usuário de esteroides anabolizantes e posteriormente,
seguiu trilhando a rede de relacionamentos, o mesmo criou as condições necessárias
para se ter acesso a outros usuários (amigos e conhecidos do primeiro usuário
entrevistado). Tal realidade corresponde ao fio condutor de todo o processo de coleta de
dados. Porém, conforme a realização das entrevistas, o pesquisador se viu na
necessidade de fazer observações mesmo que não sistemáticas, em um dos ambientes
mais importantes de consolidação das redes dos usuários aqui pesquisados, ou seja, as
academias de ginástica frequentadas pelos mesmos. Foram escolhidas duas academias
de ginástica a qual chamarei de academia A e B para que se mantenha o sigilo absoluto
das informações que de alguma forma leve a sua identificação. Os critérios para a
escolha de específicas academias foram os seguintes: Em primeiro lugar, 6 dos
entrevistados em nossa pesquisa estão distribuídos no universo destas duas academias
(A e B) escolhidas pelo pesquisador. Em segundo lugar, os percentuais dos valores das
mensalidades de ambas as academias escolhidas pelo pesquisador difere em mais de
100%, ou seja, a mensalidade da academia A é mais do que o dobro da academia B. Em
terceiro lugar, a academia B possui um dos menores valores (talvez o menor) de
mensalidade de todo o bairro (segundo sondagem prévia do pesquisador). Por outro
lado, a academia A é uma das que tem os maiores valores de mensalidades cobradas na
localidade.
Transcrever o ambiente das academias observadas, serve para ilustrar e
compreender a sociabilidade vivida dos entrevistados, através da indicação dos
símbolos utilizados e da relação de poder que envolve o invólucro corpóreo nesta
instituição social.
As observações nas academias A e B duraram 12 dias cada. A frequência do
pesquisador em cada academia observada era de 3 dias por semana e na medida do
22
possível, os turnos eram alternados. Já no que se refere a duração, a permanência do
pesquisador no ambiente analisado era por volta de 1 hora para não manter suspeita. O
pesquisador matriculou-se como aluno na busca de maior sigilo possível, além do mais,
este procedimento traria uma maior facilidade para a coleta dos dados. As informações
colhidas nos dias de observações (três vezes por semana) eram anotadas no diário de
campo (guardado na mochila do pesquisador) logo após a saída dos locais pesquisados.
1.3.1- ACADEMIA “A”
A primeira impressão que se tem ao chegar à academia é que ela tem um espaço
amplo para a prática da musculação, uma boa estrutura com aparelhos
consideravelmente “novos” e mantendo um bom aspecto de limpeza. Esta academia “A”
oferece outras modalidades permitindo que o aluno desempenhe outras atividades
físicas (caso pague uma taxa extra). Além de aparelhos para musculação, a academia
conta com várias esteiras (manuais e elétricas), bicicletas ergométricas, mini trampolim,
simuladores (corridas e caminhadas), colchonetes para abdominais, dentre outros. Ainda
no ambiente interno, os espelhos estão em todos os lugares e presos nas paredes,
encontramos diversos deles, estando presente também em qualquer modalidade. O
pesquisador constatou que existe uma prática de certa forma “viciosa” nos alunos (as)
que constantemente ficam diante do espelho, mesmo no intervalo ou ao finalizar a série
dos exercícios. Esta prática, bastante comum, parecia algo além de um simples cultivo
narcisista, mas, algo que parecia internalizado e de certo modo mecânico como reflexo
das ações no ambiente institucional. O corpo neste momento era colocado como “alter
ego”, um outro eu ou uma parceiro para usar a expressão de Le Breton9. Estas práticas,
também geravam disputas “simples” ou ligadas à própria relação de poder da imagem
corporal, no que envolve o corpo como objeto simbólico e detentor de valor. Nestas
condições, ampliam-se as disputas e os constrangimentos dentro deste campo de
práticas e ações. Em várias ocasiões foi possível notar duas ou mais pessoas se olhando
9
Para Le Breton (2009, p. 41) “milhares de homens e mulheres se matam pelo seu corpo colocando como
alter ego (como haltere ego), sempre no espelho diante deles – porque as salas têm espelhos --, e os
exercícios exigem sua presença.” O corpo na contemporaneidade se afirma como alter ego, uma
personalidade diferente do eu. Isso é possível, porque a modernidade acabou com o dualismo
homem/alma e estabeleceu o dualismo homem/corpo fazendo deste elemento salvação.
23
no mesmo espelho e quando se concretizava determinada realidade, às vezes, tal
fenômeno parecia sair de uma “simples admiração pessoal” da imagem corporal para
uma “severa” exibição da estrutura corpórea. Em outras várias ocasiões, quando
específica realidade se materializava, normalmente existia um constrangimento do aluno
ao dividir o reflexo no mesmo espelho com alguém (considerado por ele)
simbolicamente “superior”. Quando um aluno, por exemplo, estava se olhando no
espelho e outro mais “forte” (com volume maior de massa muscular) ficava diante do
mesmo espelho (ou até mesmo no campo de visão), sempre o aluno com menor
hipertrofia muscular desistia de ficar diante do mesmo espelho e consequentemente
perante o reflexo do outro. De qualquer modo, os alunos da academia gostam de ser
vistos por outros alunos da mesma academia frequentada, conforme observação do
pesquisador da linguagem corporal dos praticantes.
Foi notável que alguns frequentadores na academia (principalmente as mulheres)
estavam preocupados não apenas com sua imagem corporal como também com a
aparência de modo geral. Os trajes mais comuns entre os alunos eram: para os homens,
shorts ou bermudas com camisa normal, porém leves (com manga ou regata) e tênis ou
sapatilhas. Também grande parte dos alunos utiliza-se de acessórios como luvas para os
exercícios de força. As mulheres usam, na sua grande maioria, calças de lycra com tops
ou camiseta. No que envolve os trajes, foi possível perceber uma tendência que quanto
mais “sarado” o corpo estiver, menor e mais justa seria as peças de roupas utilizadas
pelos alunos da academia.
Além dos trajes típicos observáveis, outros elementos ganharam destaque como
companheiro inseparável de muitos alunos dentro do circuito de exercícios próprio de
cada praticante: a coqueteleira ou garrafa. Muitos alunos levavam dentro das garrafas ou
coqueteleira suplementos alimentares como força auxiliar e necessária para a prática de
exercícios dentro da academia. Na maior parte das vezes, foi possível notar que muitos
alunos ao chegarem à academia estavam portando uma garrafa com algum tipo de
substância em pó que era misturada com água. Estas substâncias, com várias
tonalidades, eram ingeridas na medida em que o circuito de exercícios era concluído. Já
outros alunos portavam coqueteleira que continham algum tipo de substância que era
misturada com água e ingeridas logo após da conclusão dos exercícios. Em vários
momentos foi possível perceber conversas entre os praticantes (homens e mulheres)
sobre os produtos ingeridos seja entre os que portavam garrafas ou coqueteleiras ou
entre os que portavam e os que não portavam. Nesta academia, conversas sobre
24
consumo de vários tipos de suplementos alimentares eram comuns entre os praticantes
segundo foi possível notar em vários dias de pesquisa. Dúvidas e dicas sobre o consumo
dos suplementos alimentares eram comuns entre os praticantes e também com os três
instrutores da academia em que várias vezes foi possível perceber homens e
principalmente mulheres pedirem sugestões de produtos para serem consumidos não só
com o intuito de melhorar a performance, mas, principalmente de modificar a forma
corporal. Em vários dias observou-se que alguns alunos pediram sugestões para o
consumo de suplementos alimentares (certamente outros também) e dicas de tipos de
exercícios para os alunos que se destacavam no interior da academia de ginástica pelo
seu volume da massa muscular (hipertrofia), portanto, os mais “fortes” da academia.
Porém, não foi possível detectar conversas abertas sobre o consumo dos esteroides
anabolizantes entre os frequentadores nos dos 12 dias de observações.
Como em qualquer outra academia de musculação, o som ambiente contava com
estilo de música típico para a prática de exercícios como mecanismo motivacional e de
distração da carga de esforço físico atingido. Porém, muitos alunos utilizavam-se de
aparelhos eletrônicos próprios (Celular, MP3, MP4, dentre outros) como forma de
controlar o próprio estilo musical no seu caráter individual.
A preocupação e cultivo das medidas corporais também foi uma realidade
presente na academia. Na recepção da academia, havia cerca de 3 três fitas métricas,
sendo constantemente utilizados pelos alunos na intenção de medir os ganhos e perdas
de determinadas partes do corpo. Assim, vimos homens medindo o volume do braço e
do tórax e as mulheres, medindo o volume das coxas, nádegas, barriga e panturrilha.
Certos imaginários e representações corporais também são alimentados nesta
academia, onde se encontra em várias partes da mesma, pôsteres com imagens de
corpos de homens e mulheres considerados “ideais”, conforme foi possível observar.
Muitos alunos aos conversarem entre si e ao mesmo tempo ao olharem para os pôsteres
expostos no ambiente da academia diziam: “um dia vou ser assim!”; “quando chegar
nessa forma física eu deixo de malhar!” ou “meu sonho é chegar nesse nível!”, dentre
muitas outras frases expostas pelos alunos. Apesar dos pôsteres estarem presentes no
ambiente da academia, estas imagens eram constantemente comentadas e visualizadas
pelos alunos nos seus momento de descanso, nas conversas ou no próprio caminhar de
um aparelho para outro. Tais imagens eram uma realidade bastante impactante. Assim,
imagens de corpos que dificilmente são atingidos (padrões hegemônicos) estão
presentes no ambiente da academia, podendo despertar, uma infinidade de sentimentos
25
como: angústia, ansiedade, medo, insatisfação da imagem corporal, vergonha do corpo,
dentre outros. Cartazes incentivando a modificação da imagem corporal na busca da
“boa forma” também encontram-se presentes no espaço desta instituição social,
incentivando os alunos a se manterem fiéis ao estilo de vida dos exercícios físicos, na
busca de um corpo saudável.
1.3.2. ACADEMIA “B”
Ao chegar à academia, logo se tem a impressão das suas péssimas condições,
realidade esta que se concretiza ao presenciar suas estruturas. O que chama atenção não
é apenas sua estrutura física, mas, os próprios maquinários presentes na academia. A
grande maioria dos maquinários que ali estão são produções artesanais. Os produzidos
industrialmente são arcaicos e bastante depreciados em suas condições. Esta realidade
desperta sensações de insegurança na própria execução dos aparelhos, sendo visível a
ausência de manutenção regular. Em sua totalidade os aparelhos presentes na academia
direcionam-se para a prática de exercícios de força estando ausentes maquinários de
outras atividades físicas. Assim, à academia não possui esteiras, bicicletas ergométricas
ou qualquer outro maquinário que direcione para outra prática fora dos exercícios de
força (musculação). Outra coisa que direciona a atenção é o aspecto de um ambiente
não limpo não só na estrutura da academia, como também, nos próprios aparelhos que
parecem não higiênicos.
Uma situação bastante intrigante nos primeiros dias de observação foi a ausência
da presença feminina no ambiente da academia, dando a impressão que não existia
nenhuma mulher matriculada. Esta realidade se materializou quando tivemos a
informação (do instrutor e dono da academia) que a presente academia contava
aproximadamente com cerca de 125 alunos, todos do sexo masculino. Esta situação
gerava brincadeiras no que tange a ausência da presença de mulheres no ambiente da
academia, mas que por outro lado, tal especificidade foi bastante elogiada e vista como
positiva por muitos alunos. Conversas sobre esta particularidade eram comuns, como
também, o consenso dos alunos ao afirmarem (durante as conversas) que específica
academia é destinada a quem quer modificar a forma corporal no hipertrofiar dos
músculos e não pra ficar olhando para o sexo oposto. No quinto dia de observação, um
26
dos alunos (em conversa ligada a não presença de mulheres) fez a seguinte alegação
perante todos: “quem vem malhar aqui, vem pra crescer e não pra ficar olhando pra
mulheres...”. Foi possível perceber, que tal característica é motivo de identificação e
satisfação dos próprios alunos ao fazerem comparações críticas com alunos que
frequentam outras academias na intenção de admirar o sexo oposto e não de se dedicar
plenamente ao objetivo de ganhar massa muscular. Conforme as várias conversas
observadas durante os dias de pesquisa, foi possível perceber que alguns alunos
acreditam que alunos de outras academias (principalmente as mais caras do bairro)
“nunca “conseguem ficar “fortes” porque estão na academia mais para a exibição de
roupas, bens materiais e principalmente para admirar as mulheres que ali estão, do que
propriamente para ficar forte ou usando a expressão deles: “pra crescer” ou “pra ficar
grande”.
Igualmente à academia A, os espelhos estão em vários lugares na academia B,
porém, a inferioridade da importância deste elemento em comparação com a outra
academia observada10 foi visível. As práticas e “disputas” frente ao espelho são fugazes
não gerando nenhuma surpresa. Só em alguns momentos logo após a execução de cada
exercício de força, alguns alunos da academia se olham, mas, rapidamente voltam à
prática dos exercícios repetitivos como se cada segundo fosse precioso.
Apesar da trivialidade, é importante ressaltar que durante os exercícios
praticados na academia, específicos estilos de músicas eram executados se adequando
ao lugar comum em todas as academias. Nenhum aluno foi observado utilizando-se de
qualquer aparelho eletrônico para a execução de estilos de músicas em nível individual
para a prática dos exercícios. Porém, alguns alunos ficavam cantando em vários
momentos, músicas que fazem apologia ao uso dos esteroides anabolizantes, dando
forte indício da identificação de determinado grupo social. É como se determinadas
músicas, que fazem apologia ao uso dos hormônios esteroides anabolizantes e situações
objetivas e “positivas” cantadas nelas, servissem como meio de adequação e
fortalecimento da identidade do grupo (grupo dos “bombados”) e consequentemente da
restauração e fixação da sua própria identidade. Também foi possível observar na
presente academia, a utilização de fitas métricas na intenção de medir o volume da
massa muscular. O interessante é que a preocupação exclusiva na medição se aplicava
ao volume do braço, fazendo desta parte do corpo o elemento mais importante.
10
Ver academia A.
27
A preocupação predominante na academia era com a imagem corporal, na
intenção de modificação da forma física, fato este bastante claro na observação. Assim,
a atenção com a aparência de modo geral era algo não presente entre os alunos, em que
os trajes dominantes, eram camisas regatas e bermudas acompanhadas normalmente de
tênis. A utilização de acessório como luvas, coqueteleiras ou garrafas com qualquer tipo
de substâncias ou até mesmo, contendo simplesmente água, foi uma realidade não vista
nos dias de observações. Contudo, mesmo não sendo uma prática a utilização e
consumo de suplementos alimentares em coqueteleiras ou garrafas no ambiente da
academia, foram percebidas constantemente, conversas entre os alunos sobre
suplemento. Em específicas conversas entre os alunos, foi possível notar o caráter
espetacular que assume o uso de suplementos alimentares no ambiente desta
instituição. Era surpreendente e simplesmente notório, a felicidade na face de certos
alunos ao falar que realizou um compra de suplementos alimentares para potencializar
seus objetivos, no que se refere não só a modificação da forma corporal, mas, para
melhorar o desempenho na academia ou até mesmo, no sentido de arma auxiliar para o
próprio consumo de EAA. Muitos alunos em conversas regulares colocaram o consumo
de específicos suplementos alimentares (normalmente os importados ou nacionais com
marcas e valores que se diferencia dos demais) como algo a ser buscado, chegando
muitas vezes a ser mais que uma necessidade, representando um verdadeiro “sonho”
que precisa ser alcançado. Bastava um aluno comentar entre os colegas algo ligado aos
suplementos alimentares (que vai comprar, que comprou ou que quer e precisa comprar)
para as conversas se expandiram no ambiente da academia. Dicas, conselhos e
experiências no que se trata do uso dos suplementos alimentares eram comuns entre os
alunos. Os sujeitos mais “fortes” da academia ao passarem dicas, conselhos e
experiências ligados ao consumo de suplementos alimentares, uso de EAA e a
formulação das séries de exercícios, despertava a atenção de todos, servindo como
paradigma da ação para os demais frequentadores da academia que tem como objetivo a
hipertrofia dos músculos. Em vários momentos durante a observação foi possível
perceber que muitas ações e “certezas” eram alteradas em “uma só palavra” dos alunos
considerados pelos demais, como referência para a própria prática da musculação. Os
alunos mais “fortes” da academia eram estimados, representavam à referência nas ações
ligada as práticas de musculação, servindo de modelos a serem seguidos, considerados
verdadeiros especialistas nos assuntos ligados a esta prática.
28
Conversas sobre o consumo dos EAAs e substâncias para uso veterinário eram
uma realidade não menos comum no interior da academia, porém com menor
intensidade. Durante os 12 dias de observações, foi constatado que os alunos conversam
abertamente sobre o consumo de EAA, produtos para uso animal e suplementos
alimentares. Os assuntos mais comuns entre os frequentadores, ligados ao consumo de
tais substâncias, giravam em torno dos seus efeitos “positivos”, dos efeitos colaterais, da
construção dos ciclos, das dosagens, dentre outros. Podemos afirmar que nesta
específica academia, existe um processo de naturalização dos assuntos direcionados ao
uso de esteroides anabolizantes, suplementos alimentares e substâncias para uso
veterinário.
Foi possível notar em vários momentos, a forte tendência que alguns
frequentadores apresentaram com a insatisfação da imagem corporal em níveis
acentuados, mesmo sendo visto pelos outros alunos como modelo corporal a ser
seguido. Esta realidade apresenta forte indício de “transtorno da imagem corporal”
conhecida por alguns como “dismorfia muscular” (ASSUNÇÂO, 2002), que caracteriza
o sujeito em nunca ficar satisfeito com o volume da sua massa muscular. Assim, existe
uma distorção da imagem corporal real fazendo das medidas dos tonos musculares algo
insuficientemente forte e musculoso não aos olhos dos outros, mas, exclusivamente aos
olhos de si. Desta maneira, alguns alunos na academia eram constantemente elogiados
(por amigos e os demais praticantes da academia) devido à elevada hipertrofia muscular
que apresentava, mas, que foi visível o não reconhecimento do mesmo. Em várias
situações, os alunos elogiados afirmaram ainda estarem “fracos” e “pequenos”, mas, que
um dia, chegarão a ficar “grandes” e “gigantes”11. Ao mesmo tempo em que eram
elogiados e admirados, eles apontavam para os diversos pôsteres fixados na parede da
academia, com imagens de fisiculturistas famosos como: Arnold Schwarzenegger,
Ronnie Coleman, Jay Cutler, Gunter Schierkamp, dentre outros. A própria associação
que determinados alunos faziam da sua forma corporal com imagens expostas dos
fisiculturistas, representava o ideal a ser buscado (apesar de diferir na intensidade do
modelo muscular valorizado socialmente), um verdadeiro objetivo de vida para muitos
frequentadores desta academia. As representações e imaginários corporais presentes nas
11
Segundo Assunção (2002), a “dismorfia muscular” que corresponde um dos vários transtornos da
imagem corporal (como a bulimia e anorexia), pode fundamentar excessos e obsessões nas atividades
físicas, causando prejuízos em outras atividades sociais devido a ausência de tempo para o funcionamento
das mesmas.
29
imagens fixadas na parede da academia direcionavam os alunos para sensações de
insatisfação da imagem corporal, ansiedade, angústia ao mesmo tempo em que
correspondem a elemento de objetivação. Apesar de outros alunos da academia não
terem como ideal o corpo dos fisiculturistas, pois a busca se fecharia na hipertrofia da
massa muscular em menor intensidade (ideal socialmente aceito), a maioria deles não
escondia admiração pelo volume muscular dos body-building profissionais.
Podemos concluir, afirmando que as academias escolhidas (A e B) para a
observação possuem especificidades que as aproximam, como também, as diferenciam,
ambas fermentam a própria busca dos alunos para modificação da forma corporal,
fazendo com que não só o ambiente externo da academia direcione o sujeito para
transformação e construção da forma corporal, mas, o próprio ambiente interno e a
própria sociabilidade presente dentro das academias (A e B) impulsiona esta busca. É
exatamente o que Stéphane Malysse, analisando as academias de ginásticas do Rio de
Janeiro chamou de “verdadeiras instituições pedagógicas do corpo”, um local de
aprendizagem, uma legítima “universidade do corpo” (2002, p. 95).
30
CAPÍTULO II
TIPOS DE MODELAGEM CORPORAL: DOS SUPLEMENTOS
ALIMENTARES AOS QUÍMICOS ESTEROIDES ANABOLIZANTES
A aparência corporal é cada vez mais uma prioridade na vida do indivíduo
contemporâneo (LE BRETON 2004, 2007, 2011). Neste contexto, transformar o corpo
para muitos virou um projeto de vida e para tanto, muitos indivíduos utilizam-se
(mesmo ilicitamente) de ferramentas disponibilizadas pelo mundo moderno em prol dos
seus objetivos. Assim, um número crescente de pessoas está fazendo uso de substâncias
na intenção de potencializar a transformação da forma corporal em um curto espaço de
tempo, que por outro lado, estes métodos podem não ser os mais adequados a saúde e a
capacidade do seu corpo.
Os Esteroides anabolizantes por possuírem a capacidade de acelerar o
crescimento da musculatura (efeito anabólico), têm feito com que muitas pessoas façam
uso destas substâncias (apesar dos riscos) para melhorar o desempenho e a aparência
física em um mundo cada vez mais voltado para a valorização da beleza e da boa forma.
Realidade idêntica a outras substâncias como é o caso dos suplementos alimentares que
chega como a promessa de realizar verdadeiros milagres, além de ser uma alternativa
“saudável” e “legal” na busca do corpo esteticamente “perfeito”. Porém, algumas
pesquisas em várias partes do mundo apresentam resultados que colocam em dúvida se
os suplementos alimentares são realmente saudáveis e necessários12.
2.1. SUPLEMENTOS ALIMENTARES
A busca de um corpo esteticamente perfeito e a melhora do desempenho na
prática de atividade física (seja atleta ou não atleta) faz com que um número
12
Apesar do foco do trabalho ser sobre o uso de esteroides anabolizantes, a discussão em relação aos
suplementos alimentares torna-se relevante porque, muitos indivíduos que fazem uso dos esteroides
anabolizantes consideram ideal a sua combinação (quando possível) com os suplementos alimentares com
a intenção de ampliar a potencialidade da transformação da forma corporal e da própria atividade física.
Junto disso, alguns estudos de diferentes órgãos (SBME- Sociedade Brasileira Medicina do esporte;
ANVISA- Agência Nacional de Vigilância Sanitária; FDA- Food and Drug Administration; dentre
outros) apontam para a presença de esteroides anabolizantes em diversos suplementos alimentares
ampliando a potencialidade do perigo da própria combinação.
31
incalculável de pessoas cometam abusos no consumo de substâncias na intenção de
potencializar e realizar seus objetivos. Uma nova tendência que se tem observado nas
últimas décadas entre os atletas ou simplesmente praticantes de atividade físicas é a
construção de habitus regulares na utilização de suplementação alimentar como forma
“saudável” e “legal”, capaz de melhorar o desempenho na prática da atividade física
(atleta e não atleta) de modo geral. Desta forma, os suplementos alimentares chegam
com a promessa de verdadeiros milagres, como ferramentas ideais para quem quer
melhorar a performance na atividade física, construir um corpo perfeito, além de
melhorar a saúde e a qualidade de vida.
De modo genérico, os suplementos alimentares foram criados com a finalidade
de suplementar a dieta com alguma deficiência, ou seja, em suprir uma possível
carência dos nutrientes necessários e essenciais a cada organismo humano. São
indicados para pessoas que não conseguem suprir suas necessidades básicas de
nutrientes somente com alimentação habitual. E por ser tratarem de alimentos sintéticos
de alta qualidade, são “recomendados” e principalmente utilizados por pessoas de todos
os sexos e todas as gerações. E não só isso, os suplementos alimentares também são
utilizados com a intenção de melhorar o desempenho em qualquer atividade física, seja
por um atleta de alto nível ou até mesmo, por qualquer pessoa que pratica exercícios
físicos. Esta realidade fez com que nas últimas décadas, houvesse um crescimento
assustador na utilização dos suplementos alimentares, estando presente na construção de
dietas de um número bastante significativo de pessoas. Além do mais, a cada dia surge
um produto novo e com eles, novas premissas para objetivação da satisfação e
necessidade pessoal, principalmente no que envolve a potencialização da performace e a
modificação da forma corporal.
Existe uma pluralidade de suplementos alimentares com finalidades específicas,
ligadas às práticas esportivas, a manutenção da saúde, a melhora da qualidade de vida,
dentre outras. Os suplementos alimentares são fabricados para serem administrados na
forma de pílulas, cápsula, géis, líquidos, pós, chicletes, balas, barras e muitos outros.
Essa variedade de suplementos alimentares podem ser comprados facilmente em
farmácias, supermercados, lojas especializadas, na internet, etc (PHILIPPI, 2004). E
apesar de conter em seus rótulos, o dizer – consumir sob orientação de um nutricionista
ou médico—, os suplementos alimentares podem ser adquiridos sem prescrição médica
ou de qualquer especialista (nutricionista ou profissional de educação física), além do
32
mais, muitos dos suplementos alimentares não oferecem qualquer tipo de contraindicação ou possíveis efeitos colaterais em suas embalagens.
Muitos dos suplementos alimentares que se consume, contêm nutrientes que
estão presentes em muitos dos alimentos ingeridos diariamente como é o caso das
proteínas, dos carboidratos, das vitaminas, dos minerais e muitos outros. De qualquer
modo, são nutrientes que podem ser administrado para uma infinidade de funções
orgânicas, seja energética; construção e manutenção de vários tipos de tecido;
manutenção e fortalecimento do sistema ósseo; além de outros elementos essenciais
para o organismo como todo, como por exemplo, as vitaminas e os minerais (ARAÚJO
& ANDREOLO & SILVA, 2002; PHILIPPI, 2004). Hoje é comum ouvir dos usuários
dos suplementos alimentares que tais substâncias administradas em “quantidade
apropriada” são benéficas a saúde e ao bem-estar do individuo, porém, não se tem um
consenso do que seria esta “quantidade apropriada” para tal benefício, ao mesmo tempo,
da quantidade excessiva que possa causar algum risco à saúde. A única certeza quando
se discute a importância, a necessidade e a quantidade do consumo de suplementos
alimentares é a relação conflitante das informações passadas pelos sistemas
especializados13.
Acredita-se o os suplementos alimentares são substâncias capazes de otimizar o
desempenho em qualquer atividade física, principalmente atlética. Capaz de
proporcionar ao atleta ou ao simples praticante de atividade física, a supressão dos
elementos básicos e essenciais extremamente importantes para qualquer prática de
exercícios físicos. Este fato faz com que se amplie o uso de ergogênicos (substâncias
que potencializam o desempenho das atividades físicas) como ferramentas inseparáveis
em qualquer prática de exercícios físicos. Uma modalidade de atividade física que vem
se destacando nos últimos anos na utilização de suplementos alimentares para fins
ergogênicos é a prática da musculação (ARAÚJO & ANDREOLO & SILVA, 2002;
CARVALHO, 2003). Observamos nas últimas décadas a tendência de muitos
frequentadores de academia de ginástica fazerem uso abusivo de substâncias
13
Os embates entre os conhecimentos especializados nas suas afirmações e contra-afirmações,
proporcionando posições conflitantes, ao mesmo tempo, que dissemina diferentes teses sobre a mesma
realidade, fermenta sensações de incertezas e inseguranças afetando de maneira decisiva as opções e
escolhas individuais, principalmente no que envolve a construção dos estilos de vida. Para Anthony
Giddens (2002, p. 10), “a modernidade institucionaliza o princípio da dúvida radical e insiste em que todo
conhecimento tome forma de hipótese – afirmações que bem podem ser verdadeiras, mas que por
princípio estão sempre abertas à revisão e podem ter que ser em algum momento, abandonadas”. Assim,
ampliam-se as “discordâncias internas entre especialistas” (2002, p. 14).
33
nutricionais para potencializar a própria prática de exercícios nas academias e assim,
para concretizar os objetivos traçados. Alguns fatores contribuem para a intensificação
deste fenômeno, são eles: 1- a supervalorização da imagem corporal que acompanhamos
na contemporaneidade sob uma atmosfera do culto ao corpo; 2- a formação de
contornos corporais ideais cada vez mais difíceis de serem atingidos; 3- a produção e
difusão de produtos provindos da indústria da beleza e da boa forma que prometem
verdadeiros milagres na realização dos anseios individuais, principalmente sobre a égide
de nossa sociedade do consumo; 4- a ausência de controle de vigilância sanitária,
desencadeando um comércio ilegal de produtos funcionando muitas vezes no próprio
ambiente das academias de ginástica, contando com a participação (direta ou indireta),
de profissionais ligados à prática de exercícios físicos dentre outros; 5- a venda de
suplementos alimentares sem a necessidade de prescrição de um médico ou nutricionista
para aquisição dos produtos; além de outros fatores. Além de tais fatores evidenciarem
uma situação preocupante, alguns estudos (ARAÚJO & ANDREOLO & SILVA, 2002;
CARVALHO, 2003) apontam que uma quantidade cada vez maior de pessoas (que
desempenham alguma atividade física) acreditam que a própria prática de exercícios
físicos requer diretamente o próprio consumo de suplementos alimentares.
Os objetivos para utilização dos suplementos alimentares por frequentadores de
academias de ginástica são os mais variados. E desta forma, muitas pessoas que
frequentam academia de ginástica consomem suplementos alimentares para
desenvolvimento de massa muscular, queima de gordura corpórea, ganho de força,
aumento da energia, para a ingestão de nutrientes essenciais e “necessários” a quem
pratica exercícios físicos (como as vitaminas e minerais), para redução do catabolismo
igualmente da fadiga e cansaço, dentre muita outras motivações.
Apesar do uso cada vez maior de suplementos alimentares por frequentadores de
academia de ginástica, muitas vezes esta utilização é feita de modo errado ou
desnecessário, aumentado os riscos à saúde. Um estudo realizado pela universidade de
Montreal no Canadá verificou que a grande maioria das pessoas que fazem uso de
suplementação alimentar, não tem conhecimento necessário para o consumo destas
substâncias. Situação que se agrava principalmente porque a grande maioria dos
consumidores de suplementos alimentares não fazem nenhuma avaliação clínica que
mostrem a necessidade de utilização de tais substâncias. Ainda segundo esta pesquisa,
34
até mesmo os atletas possuem conhecimento deficiente para utilização de
suplementação alimentar, fazendo uso errado e muitas vezes desnecessário14.
Portanto, a grande maioria dos consumidores de suplementos alimentares não
tem conhecimento necessário para a própria utilização destes produtos ou ao menos,
desconhecem os próprios riscos que estão sujeitos ao fazerem mau uso destas
substâncias. Como aponta vários estudos (CARVALHO, 2003; PHILIPPI, 2004), apesar
do consumo exagerado dos suplementos alimentares estarem presentes nos habitus de
uma parcela significativa de nossa população, o uso destas substâncias pode
proporcionar sérios riscos à saúde15. Para o pesquisador Martin Fréchette da
universidade de Montreal16, os suplementos alimentares trazem alguns riscos à saúde,
pois, “sua pureza e preparação não são tão controlados como os medicamentos”. Assim,
para este pesquisador, os “suplementos geralmente contêm outros ingredientes além dos
listrados no rótulo” fazendo com que muitas pessoas façam uso de “substâncias
proibidas sem saber”17. Em uma reportagem no “New York Times” sobre a utilização
dos suplementos alimentares nos Estados Unidos (Study Urges More Oversight of
Dietary Itens)18, foi destacado os riscos do consumo inadequado de tais substâncias que
segundo o relatório divulgado pela FDA (Food and Drug Administration)19, em 2008
foram relatados 948 casos de problemas de saúde ligados ao consumo dos suplementos
alimentares. Destes 948 casos, 9 óbitos, 64 casos graves e 234 hospitalizações
associados a utilização de várias substâncias contidas nos suplementos alimentares.
Ainda segundo esta matéria, o relatório divulgado pela FDA aponta, que dezenas de
marcas líderes de consumo nos EUA continham substâncias ilegais que além de não
14
Disponível em: http://www.nouvelles.umontreal.ca/udem-news/news-digest/protein-supplements-aremisused-by-athletes.html
15
Vários órgãos nacionais (SBME- Sociedade Brasileira de Medicina do Esporte; ANVISA- Agência
Nacional de Vigilância Sanitária) e internacionais (ADA- American Dietetic Association; FDA- Food and
Drug Administration) tem divulgado constantemente os sérios riscos do uso abusivo de suplementos
alimentares.
16
Disponível em: http://www.diariodasaude.com.br/news.php?article=suplementos-alimentares-malutilizados-pelos-atletas&id=4933
17
Na pesquisa realizada por Martin Fréchette, os suplementos com substâncias proibidas são
principalmente os destinados para os atletas de alto nível ou amadores. Os suplementos de proteína foram
apontados na pesquisa como os grandes vilões. Estes suplementos de proteína são produtos comumente
utilizados por frequentadores de academia de ginástica, essencialmente no que envolve os exercícios de
força.
18
Disponível em: http://www.nytimes.com/2009/03/04/business/04diet.html?_r=2
19
FDA (Food and Drug Administration) é um instituto governamental norte- americano que realiza o
controle dos alimentos, dos suplementos alimentares, dos cosméticos, etc.
35
estarem presentes nos rótulos, poderiam colocar em risco a saúde dos consumidores20.
Nesta mesma linha, um estudo realizado pelo instituto “Adolfo Luiz” com vários
suplementos alimentares (principalmente aqueles consumidos por praticante de
musculação), materializou uma suspeita, apresentando um resultado assustador. Foram
analisados 111 produtos de diversas marcas (nacionais e internacionais), onde 25% dos
suplementos continham esteroides anabolizantes, evidenciando as várias suspeitas de
que muitos dos suplementos alimentares possuem substâncias prejudiciais a saúde. O
agravante (segundo esta pesquisa) é que muitas substâncias não informadas na
embalagem estavam presentes nos compostos suplementares analisados21, realidade
idêntica à observada pela FDA com os suplementos mais utilizados nos EUA.
Mesmo com as evidências, ainda existem várias divergências sob os verdadeiros
riscos à saúde do consumo dos suplementos alimentares embora, todos concordem com
os perigos do uso indiscriminado e indevido de tais substâncias (CARVALHO, 2003).
Philippi (2004, p. 76).
Por fim, embora que os diversos estudos apontem (apesar das controversas) para
os riscos da utilização (abusiva ou desnecessária) dos suplementos alimentares, ainda
assim eles são amplamente consumidos a fim de evitar doenças, melhorar a qualidade
de vida, potencializar o desempenho na atividade física, como também transformar e
construir a forma corporal.
2.2. ESTEROIDES ANABOLIZANTES
Os hormônios esteroides anabólicos androgênicos (EAAs), também conhecidos
comumente como esteroides anabolizantes, compreendem as substâncias ligadas aos
hormônios sexuais masculinos, mais precisamente a testosterona e seus derivados22.
Estas “drogas masculinizantes23” possuem tanto propriedades anabólicas como
androgênicas. Nas suas propriedades anabólicas são responsáveis pelo crescimento e a
20
Disponível em: http://www.ecodebate.com.br/2009/03/12/new-york-times-questiona-a-seguranca-dossuplementos-alimentares/
21
Disponível em: http://saude.abril.com.br/edicoes/0309/corpo/conteudo_448564.shtml?pag=2
22
Quimicamente, a fórmula estrutural da testosterona está na base de todos os anabólicos.
23
Cesar Sabino (2004) coloca os EAA, como “drogas masculinizantes” por serem drogas constituídas em
geral, por hormônios masculinos, portanto, virilizantes proporcionando a hipertrofia da massa muscular
além de algumas características essenciais da masculinidade.
36
divisão celular, provocando o desenvolvimento de diversos tipos de tecidos
principalmente o muscular e ósseo. No que se refere as suas propriedades androgênicas,
são responsáveis pelas características sexuais associadas à masculinidade. Tais
propriedades androgênicas dos EAAs em geral, são as responsáveis pela maioria dos
efeitos colaterais (SILVA & DANIELSKI, & CZEPIELEWSKI, 2002; SANTOS,
2007). Contudo, já se buscou desenvolver EAA para que se obtenha propriedade mais
anabólica do que efeitos androgênicos, porém, não se conhece hoje nenhum composto
sintético anabólico (esteroides anabolizante) que não apresente propriedades
androgênicas (MOREAU & SILVA, 2003).
É importante ressaltar que qualquer organismo humano (também animal), possui
um conjunto de processos metabólicos (positivos) chamados de anabolismo. Os
anabolizantes (esteroides ou naturais) são substâncias capazes de auxiliar (acelerar) este
processo, ou seja, a construção e crescimento do corpo físico (tecidos corporais),
principalmente a massa muscular do indivíduo de um modo geral. Por possuir esta
especificidade, os EAAs chegam com a finalidade de gerar uma ação anabólica como
arma auxiliar para potencializar a aceleração deste processo de construção da massa
muscular.
Os EAAs são medicamentos (drogas) a base de hormônio masculino,
sintetizado para que se obtenha o mesmo efeito da testosterona, podendo ser
administrado na forma de comprimido24 ou injeção intramuscular25 (SABINO, 2004;
SANTOS, 2007). Como características principais podem-se destacar: a sua capacidade
de fixar proteínas, de reter água e nitrogênio, de aumentar o número de glóbulos
vermelhos, de reduzir os estoques de gordura corporal, dentre outras. Tais condições são
indispensáveis para o desenvolvimento e aumento do tecido muscular (SANTOS,
2007).
Os esteroides anabolizantes surgiram por volta dos anos 30 do século passado,
mais precisamente na Alemanha e com o passar dos anos expandiu-se pelo mundo.
Foram inicialmente sintetizados para sua utilização terapêutica no tratamento de várias
doenças. Hoje é utilizado pela medicina no tratamento de algumas doenças e distúrbios
tais como: alguns tipos de cânceres, osteoporose, hipogonadismo, estados catabólicos
24
Os EAAs administrados via oral são mais arriscados, proporcionando uma maior probabilidade de
aparecimentos de tumores e cistos hepáticos (SANTOS, 2007).
25
A maioria dos esteroides anabolizantes é administrada na versão injetável. Este processo de
administração é o menos nocivos em face aos orais, por não passar pelo processo de alcalinização, ou
seja, não sendo processados pelo fígado.
37
(raquitismo, HIV, graves queimaduras), deficiência nos níveis de testosterona,
problemas nos testículos, dentre muitos outros26 (SILVA & DANIELSKI, &
CZEPIELEWSKI, 2002; SANTOS, 2007). Existem, portanto, historicamente,
indicações médicas para a utilização dos esteroides anabolizantes no que se refere ao
tratamento de determinadas patologias e doenças27.
Não obstante, o uso dos esteroides anabolizantes não ficou restrito apenas ao
campo do tratamento de doenças, seu uso também se expandiu para o campo das
práticas desportivas (SABINO, 2004, 2007; SANTOS, 2007). Em meados do século
passado, os fisiculturistas e halterofilistas norte americanos começaram a utilizar os
esteroides anabolizantes para o crescimento do tecido muscular e respectivamente para
ganho de força. Além do mais, tinham por objetivos melhorar a estética corporal e o
desenho dos corpos (MOREAU & SILVA, 2003; SABINO, 2007; SANTOS, 2007).
Porém, segundo Santos (2007), na década de 60 este uso se expandiu para várias
modalidades no mundo do desporto, com a intenção de aumentar a força física, a massa
muscular e consequentemente o desempenho atlético. Em diversas outras modalidades
os esteroides anabolizantes tiveram grande aceitação, seja no boxe, no atletismo, na
natação, no ciclismo, nas lutas, dentre outros28 (SILVA & DANIELSKI, &
CZEPIELEWSKI, 2002; SABINO, 2007). Ainda para esse autor (2007. p. 30), na
atualidade o consumo de esteroides anabolizantes no esporte é ainda bastante elevado,
podendo até dizer que vem crescendo devido a “necessidade” de muitos atletas de
“vencer a qualquer custo” colocando a saúde, a carreira e até a própria vida em risco.
A partir dos anos 80 o uso dos EAAs sofreu profundas mudanças, efeito do
fenômeno do culto ao corpo onde os ideais de beleza e boa forma se acentuaram. Como
bem observou Castro (2007), neste período, a preocupação com o corpo alcançou uma
visibilidade e espaço no interior da vida social jamais vista anteriormente, fazendo com
que os cuidados com o corpo fossem uma prática do cotidiano. Esta realidade contou
com o aparecimento e proliferação das academias de ginásticas por todos os centros
26
A terapia androgênica pode ser utilizada também para o tratamento da anemia, problemas renais,
estatura elevada, em situações especificas de obesidade, em doença obstrutiva pulmonar crônica, no
tratamento de baixa estatura derivada da síndrome de Turner, no tratamento para crescimento peniano,
etc.
27
Nos rótulos dos EAAs contêm uma faixa vermelha indicando: “venda sob prescrição médica” e/ou “só
pode ser vendido com retenção da receita” (PHILIPPI, 2004, p. 107).
28
A partir de 1976 o comitê olímpico internacional (COI) estabeleceu proibições a certas substâncias
endógenas e exógenas que estavam sendo bastante utilizadas na intenção de melhorar o desempenho do
atleta em competições oficiais. A utilização de esteroides anabolizantes por atletas são ações proibidas no
mundo do desporto conforme designações do COI.
38
urbanos, fazendo com que o uso dos esteroides anabolizantes atingisse (de forma ilícita)
um novo segmento da população, como os frequentadores de academias de ginástica ou
os Body-Building. Então a partir deste momento, o uso dos esteroides anabolizantes
tornou-se uma prática comum não só no campo da medicina e do desporto, como
também, ligadas a questões relacionadas à aparência corporal (estético) na busca pela
construção e modelação da forma corpórea (SANTOS, 2007; IRIART & CHAVES &
ORLEANS, 2009).
Atualmente, o crescimento no uso dos esteroides anabolizantes para fim
puramente estéticos tornou-se uma realidade bastante comum alcançando proporções
alarmantes como se pode observar em alguns estudos (MANETTA & SILVEIRA,
2000; RIBEIRO, 2001; MOREAU & SILVA, 2003; IRIART & CHAVES &
ORLEANS 2009; entre outros). Para Santos (2007, p. 34), o que estamos presenciando
em relação ao elevado consumo de esteroides anabolizantes é uma realidade parecida
com a que foi o fumo no início do século passado, onde o ato de fumar foi visto como
moderno, atraente e os usuários adquiriam problemas de saúde sem que tivessem acesso
às informações. Vemos com isso, muitos usuários de esteróide anabolizante com uma
aparência de boa saúde e uma bela forma corporal o que de certa forma camufla os
riscos e os problemas do uso destes aditivos.
Segundo dados do CEBRID29, nas últimas décadas, houve um crescimento
assustador no consumo das “drogas da imagem corporal” (EAA) que incluem os
frequentadores de academias de ginástica (Body-Building). Os índices destacam o uso
crescente e preocupante no Brasil, não só entre os atletas e pessoas na busca por uma
melhor aparência corporal, mas de forma assustadora em segmentos quase ausentes nas
outras pesquisas, como é o caso dos adolescentes e das mulheres. Nos adolescentes o
uso se torna bastante preocupante pelo fato de existir uma tendência de intensificação
do uso, a fim de, obter rapidamente uma forma corporal desejada, não havendo entre
tais usuários um conhecimento mais acusado dos ricos. Além do mais, o uso dos EAAs
em adolescentes pode descontrolar totalmente o seu desenvolvimento, seu crescimento e
o próprio quadro metabólico aumentando o risco dos efeitos colaterais graves. Já nas
29
O CEBRID é o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, que funciona no
departamento de Psicobiologia da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), antiga Escola Paulista
de Medicina. É uma entidade sem fins lucrativos. Esse centro ministra palestras, cursos e reuniões
científicas sobre o assunto Drogas, publica livros, faz levantamentos sobre o consumo de drogas, mantém
um banco de trabalhos científicos brasileiros sobre abuso de drogas e publica um boletim trimestral,
sendo constituído por uma equipe técnica composta de especialista nas áreas da medicina, sociologia,
antropologia, farmácia-bioquímica, psicologia e biologia.
39
mulheres, existe uma maior sensibilidade para danos provocados pelos efeitos colaterais
no uso dos EAAs por serem hormônios essencialmente masculinos.
Nos últimos anos, o consumo destas drogas praticamente triplicou sendo
possível a afirmação de que hoje o consumo de esteroides anabolizantes virou uma
epidemia, principalmente entre os frequentadores de academias de musculação. Em
pesquisa realizada pelo CEBRID em 2001, cerca de 540 mil brasileiros admitiram o uso
destes produtos, número este que passou para mais de 1,3 milhão em 200530. De acordo
com os dados desta pesquisa, o esteróide anabolizante foi a droga que ganhou mais
espaço entre os jovens superando a maconha, a cocaína e o crack. Ainda segundo esta
pesquisa, a principal motivação pela procura destas drogas foi à melhoria da forma
corporal no desejo de ficar com o corpo “sarado31”. Para Santos (2007), o crescimento
no uso dos esteroides anabolizantes no Brasil já corresponde uma realidade crescente
acompanhando os elevados índices de outros países como Estados unidos, Canadá,
Suécia, etc. Apesar dos números apontados pela pesquisa do CEBRID serem bastante
alarmantes, representando a situação caótica do consumo dos esteroides anabolizantes,
acredita-se que os índices apresentados encontram-se defasados na atualidade, devido
ao elevado período do último levantamento. Além do mais pouco se tem feito para
combater a produção (clandestina), a comercialização (branda fiscalização) e o próprio
consumo (com políticas públicas) como acreditam alguns autores (SABINO, 2004;
SANTOS, 2007), principalmente em períodos de radicalização do fenômeno do culto ao
corpo.
Outras pesquisas (ARAÚJO & ANDREOLO & SILVA, 2002; MOREAU &
SILVA, 2003; IRIART & CHAVES & ORLEANS, 2009) também apontam para o
crescimento assustador no uso dos esteroides anabolizantes, tendo como principal
motivação a preocupação estética na busca por uma melhor aparência corporal. Além do
mais, em uma pesquisa feita por Iriart & Chaves (2009), foi constatado que usuários de
diferentes classes sociais (classe popular e média) na cidade de Salvador BA, utilizam
esteroides anabolizantes por preocupações puramente estéticas. Esta realidade parece
30
Conforme dados desta pesquisa os maiores usuários são homens entre 17 a 34 anos. Porém nos últimos
anos o uso dos EAAs vem crescendo entre as mulheres. Normalmente o consumo dos esteroides
anabolizantes é uma prática mais comum entre os indivíduos do sexo masculino, isso devido à razão, de
os usuários estarem em busca do crescimento da massa muscular, elemento este não muito bem aceito
entre as mulheres. Ainda de acordo com dados da pesquisa, a região sudeste foi apontada como a área de
consumo maior dos EAAs, apesar de na região nordeste, a utilização deste aditivo ter crescido
consideravelmente em comparação com a pesquisa anterior.
31
Informações sobre a pesquisa no sítio: www.cebrid.epm.br.
40
representar um cenário mais global diante do fato que nos dias atuais existe uma
intensificação da preocupação com a imagem corporal estando cada vez mais
disseminadas em diferentes classes sociais, profissões e faixas etárias como bem
observou Mirian Goldenberg (2007). Porém, Luc Boltanski (1989) afirma que por mais
que diferentes classes sociais se preocupem com a imagem corporal, esta preocupação
não é a mesma em todas as classes, pois, as condições materiais e objetivas, as regras e
normas dentro da cultura somática enraizadas em cada classe social, tornam esta busca
diferenciada.
Em suma, muitas pessoas fazem uso dos hormônios esteroides anabólicos
androgênicos (EAAs), na busca de construir um corpo “sarado”, “bombado” em um
curto espaço de tempo e com menos esforço. Podemos dizer, de acordo com o
levantamento feito pelo CEBRID, que o consumo de esteroides anabolizantes no Brasil
já perdeu o controle, tornando-se um problema de saúde pública. Assim, indivíduos na
busca de construir, manter ou esculpir o seu invólucro corpóreo para uma melhora da
aparência corporal, vêm recorrendo cada vez mais aos esteroides anabolizantes,
desconsiderando a automedicação e a superdosagem na tentativa de realização dos
objetivos traçados. O problema torna-se mais grave, quando o uso abusivo se faz dentro
das academias de ginásticas na intenção de melhoria da aparência corporal, levando
muitas pessoas em uma rede de sociabilidade a utilizarem estas drogas ilícitas em
dosagens bem maiores das recomendadas pelos médicos em qualquer tratamento
terapêutico.
Conforme elucidou Santos (2007, p. 11), existe alguns motivos para os
indivíduos fazerem uso dos EAAs. Por questões ligadas ao esporte, com o objetivo de
melhorar o desempenho e aumentar a possibilidade de vitória. Por motivos ligados a
saúde na utilização dos EAAs em algum tratamento terapêutico. E por fim, por questões
puramente estéticas na busca de construir um “corpo perfeito”. Para este autor, as
motivações ligadas ao esporte e ao caráter estético são para fins socialmente
descartáveis, diferentemente do seu uso com fins terapêuticos. Além destes motivos
colocados por Santos, podemos acrescentar aqueles ligados ao mundo do trabalho como
é o caso dos “seguranças privados”, ao qual o uso dos EAAs pode potencializar o
acesso ao emprego como também a própria manutenção ocupacional.
Muito do consumo dos EAAs está ligado aos seus efeitos esperados, ou seja, na
confiança da eficácia das suas substâncias para o aumento da massa muscular em tempo
acelerado, para a redução do teor de gordura corporal, para o fortalecimento dos ossos,
41
para a redução do catabolismo e da fadiga muscular, dentre outros. Para muitos
indivíduos, os EAAs, ao serem utilizados proporcionam o aumento da autoconfiança, da
auto-estima, da motivação, do entusiasmo, da força, da energia, da explosão muscular,
do aumento do desempenho na atividade física em geral, etc. (ARAÚJO &
ANDREOLO & SILVA, 2002). Porém, apesar das controvérsias sobre os efeitos
“positivos” do uso dos esteroides anabolizantes para fins não terapêuticos, Santos
(2007) acredita que mesmo não existindo comprovações científicas conclusivas e
informações que comprovem significativamente os efeitos “positivos” do uso, alguma
coisa existe de concreto, pois, não haveria sentido utilizar se não tivesse alguma
“verdade” do efeito esperado.
Existe uma infinidade de esteroides anabolizantes que podem ser administrados
através de cápsula ou via injeção intramuscular. Para citar alguns podemos destacar;
QUADRO 1
Lista de alguns EAA segundo CEBRID
Nome comercial
Substâncias
Administração
Anabol
Metandrostenolona
Oral
Anabolicum vister
Quimbolona
Oral
Anadrol
Oximetolona
Oral
Anavar
Oxandrona
Oral
Androxon
Undecanoato de testosterona
Oral
Hemogenin
Oxandrona
Oral
Deca- Durabolin
Decanoato de nandrolona
Injetável
Decaland Depot
Decanoato de testosterona
Injetável
Depo-testosterone
Cipionato de testosterona
Injetável
Durabolin
Undecilenato de boldenona
Injetável
Durateston
Propionato de testosterona
Injetável
Parabonan
Trembolone
Injetável
Primobolan
Mentelona
Injetável/ Oral
Testenat Depot
Enantato de testosterona
Injetável
Winstrol
Estanozolol
Injetável/ Oral
42
Não obstante, o uso de esteroides anabolizantes pode provocar graves danos à
saúde podendo levar a óbito o indivíduo, devido a sua característica essencialmente
androgênica, responsável pelos diversos efeitos colaterais conhecidos pelo consumo
desses aditivos32. São inúmeros os efeitos colaterais de longo e curto prazo relacionados
as “drogas” da imagem corporal”. Para muitos autores (IRIART & ANDRADE, 2002;
SANTOS, 2007) os efeitos colaterais se acentuam com o consumo de altas dosagens
sendo administradas por um longo período de tempo. Os efeitos colaterais podem ser
classificados em dois níveis; os leves e os graves. Os efeitos colaterais leves são: o
aparecimento de acne, queda de cabelo (calvície), aparecimento e crescimento
exagerado de cabelos pelo corpo, seborréia, dentre outros. Já os efeitos colaterais graves
são: o desenvolvimento de doenças coronarianas (infarto, morte súbita, hipertrofia
cardíaca), cânceres (fígado e intestino), doenças hepáticas, hipertrofia ou atrofia
testicular, dentre muitos outros (SANTOS, 2007).
Segundo informações do CEBRID, o uso indevido dos EAA pode provocar:
•
Nos homens e adolescentes: redução da produção de esperma,
impotência, dificuldade ou dor para urinar, calvície e crescimento
irreversível das mamas (ginecomastia).
•
Mulheres e adolescentes: aparecimento de sinais masculinos como
engrossamento da voz, crescimento excessivo de pelos pelo corpo,
perda de cabelo, diminuição dos seios, pelos faciais (barba).
•
Em pré-adolescentes e adolescentes de ambos os sexos: finaliza
prematuramente o crescimento, deixando-os com estatura baixa para o
resto da vida.
•
Em homens e mulheres de qualquer idade: aparecimento de tumores
(câncer) no fígado, perturbação da coagulação do sangue, alteração do
colesterol, hipertensão, ataque cardíaco, acne, oleosidade do cabelo e
aumento da agressividade que pode manifestar-se em brigas33.
32
Os efeitos colaterais são diferentes no que se refere às questões de gênero. Nas mulheres, são mais
agressivos porque elas possuem um nível baixo de testosterona. Nelas, pode-se conter: alteração da voz
(efeito irreversível), aparecimentos de pelos no corpo com características masculinas, hipertrofia do
clitóris, atrofia da mama, além de alguns efeitos que também são desenvolvidos nos homens. É
importante reafirmar, que os riscos no uso dos esteroides anabolizantes nos adolescentes são maiores do
que no indivíduo adulto devido às mudanças hormonais a que os adolescentes estão passando.
33
Segundo pesquisa do CEBRID de 2009, o consumo dos esteroides anabolizantes estimula a
agressividade. Conforme a pesquisa, não é apenas o dano cerebral que induz à violência. “Aparecida
Nappo” uma das responsáveis pela pesquisa, afirmou que a maioria dos usuários está em academias, em
43
•
Os usuários que injetam esteroides anabolizantes com técnicas
inadequadas e não estéreis ou dividem agulhas contaminadas com
outros usuários, correm o risco de contrair infecções como HIV,
Hepatite B e C.
•
O
consumo
destas
drogas
podem
provocar
mudanças
de
comportamento como: aumentando da irritabilidade, alteração de
humor, distração, esquecimento e confusão mental.
•
A dependência química pode ser percebida nos usuários que
continuam tomando esteroides anabolizantes mesmo depois de terem
tido alguma consequência causada pelo consumo destas drogas.
•
Para os usuários que vêm tomando altas doses de anabolizantes por
muito tempo além de não ser fácil deixar de usar estas drogas devido a
dependência química, podem ocasionar com o fim do uso: fadiga
constante dos músculos, perda de apetite, insônia noturna, redução do
desejo sexual e até depressão, que em casos extremos pode levar à
tentativa de suicídio.
Apesar dos sérios efeitos colaterais colocados acima, o risco do uso destas drogas
podem se intensificar, conforme a possibilidade de utilização dos EAAs (principalmente
por frequentadores de academia de ginástica) provindas do mercado negro. Desta forma,
o tráfico ilegal dos EAAs coloca em dúvida a própria qualidade do produto. Além do
mais, muitos dos EAAs que já não são mais fabricados continuam sua comercialização
(ilegal), dando forte indício que sua produção é realizada em laboratórios ilegais. Esta
realidade proporciona uma imprevisibilidade absoluta dos reais perigos e riscos do uso
dos esteroides anabolizantes, pois não se sabe exatamente a sua procedência e os danos
que podem causar (principalmente os falsificados).
Em suma, não há dúvida do sucesso destas drogas nos últimos anos,
principalmente entre os frequentadores de academias de ginástica, reflexo e efeito
colateral do fenômeno do culto ao corpo onde, uma quantidade crescente de indivíduos
em busca da perfeição corporal consome ilegalmente estes produtos perigosos.
busca de músculos. A força trazida pela droga tem impacto nas atitudes. A auto-confiança incentiva
brigas. Ainda segundo esta pesquisadora, a maioria dos entrevistados apresentou algum sinal clássico do
vício. Em suas palavras: “eles reduziam toda vida à malhação, ficavam afastados da família e amigos e
suportavam qualquer sequela para atingir o objetivo de ficar maiores”. Informações no sito:
www.cebrid.epm.br e www.globo.com do dia 15-03-09. Acessado em 17- 10-2011.
44
CAPÍTULO III
TRANSFORMAÇÃO DO CORPO ANABOLIZADO: O QUE DIZEM OS
USUARIOS?
3.1. BODY-BUILDERS E A CULTURA DA “MALHAÇÃO”
De modo genérico, o termo “body-building” (bodybuilding) corresponde ao
“corpo- transformado” ou “corpo em transformação” que são normalmente designados
por aqueles que frequentam academias de musculação (atletas ou não atletas), que por
meio de exercícios de força (utilização de aparelhos e alteres) buscam “modificar” e
“construir” seu invólucro corpóreo. Assim, os body-building ligam-se aos atores que
têm como objetivo principal desenvolver os músculos no sentido da sua hipertrofia,
realizando-a através de trabalhos intensos com pesos e repetições em série.
Por muito tempo, o termo body-building (body-builder)34 foi associado aos
fisiculturistas profissionais que por meio de exercícios com pesos buscavam modificar a
forma corporal, para a participação de eventos e posteriormente de torneios, na
exposição principalmente da força física (em maior intensidade) e das suas formas
corpóreas no seu caráter estético. Tais eventos e competições eram verdadeiros
espetáculos de exibição de forças e desenhos corporais, causando espanto aos que
presenciavam específicos acontecimentos35. Com o passar dos anos, as competições e
eventos de fisiculturismo foram tornando-se cada vez mais profissionais. Neste
momento, a importância da força física em si aos poucos foi sendo deixada de lado,
concentrando-se maior atenção a forma corpórea no seu caráter estético. Segundo Cesar
Sabino (2004, p. 45), com o passar dos anos e com o desenvolvimento do
fisiculturismo, “o uso da força passou a restringir-se às apresentações de halterofilismo,
enquanto o body-building constituiu-se gradativamente tendo por objetivo apenas a
apresentações da forma muscular.” No final do século XIX e principalmente no começo
34
O terno Body-builder foi criado por Friederich Wilhelm Müller mais conhecido como Eugen Sandow
(nome artístico adotado pelo mesmo quando trabalhava no circo). Praticamente toda literatura ligada ao
fisiculturismo e musculação considera Sandow como o primeiro fisiculturista famoso, portanto, o pai do
body-builder. Ele foi o primeiro homem a organizar campeonatos de cultura física em 1901 dando os
primeiros passos para esta modalidade esportiva. O termo body-builder foi exposto pela primeira vez em
1898 quando saiu à publicação da primeira revista (Sandow magazine) destinada ao fisiculturismo tendo
como autor o próprio Sandow (SABINO 2004).
35
Sobre as origens dos body-builders ligados ao fisiculturismo ver Cesar Sabino (2004) e Jean Jacques
Courtine (1995).
45
do século XX houve uma expansão das atividades do fisiculturismo, com surgimentos
de campeonatos profissionais, inauguração de academias, publicações de revistas
ligadas aos body-building, criação de novos métodos e aparelhagens para execução dos
exercícios, dentre outros. Com a intensificação cada vez maior dos treinos, das dietas e
da disciplina; o físico dos fisiculturistas se consolidou como uma identidade própria se
distinguindo efetivamente das demais modalidades esportista e posteriormente, dos
simples frequentadores de academia de musculação na intenção não profissional e sim
estética ou de saúde. O crescimento do fisiculturismo neste período deve-se
principalmente aos seus pioneiros, como o alemão Eugen Sandow e os americanos
Bernarr Mac Fadden e Charles Atlas. Na metade do século XX o fisiculturismo nos
EUA se consolida como hegemônico, influenciando posteriormente também outras
partes do mundo como é o caso do Brasil. Como consequência desta realidade,
expandiu-se o exibicionismo muscular em todos os lugares, nas praias, nas revistas, no
cinema, na mídia, além da proliferação nas academias de musculação em todos os
cantos. Realidade que se intensificou anos mais tarde como os irmãos Weider (Bem
Weider e Joe Weider) e com o maior ícone dos Body-builders de todos os tempos, o
austríaco Arnold Schwarzenegger.
Paralelamente a este contexto, a sociedade americana de modo geral já vinha
sofrendo profundas mutações no que envolve a corporeidade, alterando a própria
relação dos indivíduos com seu corpo, desenvolvendo um processo que acarretaria mais
tarde na supervalorização da imagem corporal como reflexo do fenômeno do culto ao
corpo36. Com isso, novos imaginários, representações e valores frente ao corpo foram
desenvolvidos e consolidados. Esta realidade alterou com isso, os usos, as práticas, as
percepções ligadas ao corpo e até as próprias técnicas corporais. No final do século XIX
e no decorrer do século posterior, a preocupação com o corpo vai se ampliando,
desenvolvendo gradativamente o mercado do corpo (nos moldes de corpo magro e
esbelto feminino e corpo forte e musculoso masculino), o consumo de bens e serviços
ligados a manutenção e modificação da forma corporal, a indústria da beleza, da boa
forma, do espetáculo, dentre outros fenômenos ligados ao corpo que acabaram
ganhando força. Novos modelos corporais ideais foram criados e expostos (na
publicidade, mídia e indústria cinematográfica) ligados a propagadas de saúde, prática
de esportes, sucesso, bem estar, felicidade, etc. Tais acontecimentos estavam ancorados
36
Segundo Mirela Berger (2006), o culto ao corpo nos EUA se aprofundou a partir de 1980.
46
sob a ideologia que aponta o corpo não mais como uma herança ou um fardo que se
deva carregar eternamente. Mas, uma realidade passível de modificação, como reflexo
da vontade e da aquisição dos meios necessários para realização dos anseios e objetivos,
principalmente sobre as bases da sociedade do consumo (COURTINE, 1995).
No que se refere à realidade brasileira, tais acontecimentos se fizeram presentes,
graças a influência norte-americana, porém, anos mais tarde. No começo do século XX,
novos imaginários invadem a sociedade brasileira, em um período de exposições de
imagens da indústria cinematográfica e de valores ligados à “revolução sexual” e ao
movimento feminista (LE BRETON, 2007; CASTRO, 2007). Em meados do mesmo
século, cresce em forma ampliada a indústria de cosméticos, da moda e da publicidade
direcionando as pessoas para a preocupação com a imagem corporal. Na esteira disso,
ideários de corpo esbelto, seguro e jovem ganham espaço cada vez maior no imaginário
feminino e em contrapartida, com a supervalorização dos músculos no âmbito
masculino, sob os moldes conhecidos popularmente de o corpo “bem definido” ou
“musculoso” (MARZANO-PARISOLI, 2004; GOLDEMBERG, 2007; LE BRETON,
2011). Neste período, novos habitus corporais como práticas de esportes, higiene
pessoal, busca pela beleza ocupam maior espaço nas preocupações pessoais sobre o aval
dos médicos e especialistas. Aliado a isso, a força da mídia e da publicidade na
exposição cada vez maior do corpo, além da venda de imagens e de produtos dentro de
uma cultura do consumo, transformando os estilos de vida da população no que se
refere a corporeidade e assim, difundindo novos habitus corporais e direcionando a
aparência para uma dimensão essencial da identidade de mulheres e homens.
(SANTAELLA, 2004; GOLDEMBERG, 2007; CASTRO, 2007; LE BRETON, 2010,
2011).
Depois do meado do século XX, o culto ao corpo atingiu uma magnitude social
jamais vista anteriormente. Neste momento, amplia-se a produção e mercantilização de
produtos ligados a beleza e a boa forma, intensificando neste contexto, a
supervalorização da imagem corporal igualmente aos cuidados e preocupações com o
corpo em geral (SILVA, 2001; CASTRO, 2007; GOLDEMBERG, 2007). Diante desta
atmosfera da supervalorização da imagem corporal, cresce de forma ampliada, neste
período, o aparecimento e a procura pelas academias de ginástica como reflexo deste
próprio fenômeno.
Em tal realidade do culto ao corpo, as academias de ginástica ou “musculação”
ocupam um lugar privilegiado, estando presentes nas grandes e pequenas cidades, nos
47
bairros privilegiados ou periféricos como práticas comuns de diferentes classes e grupos
sociais. É o que Mirian Goldenberg chama (2002, p. 20), de “difundida ideologia do
body-building” ou a conhecida “cultura da malhação” que se fundamenta na concepção
de beleza e forma física como resultado do trabalho subjetivo sobre a estrutura corporal.
Ainda segundo esta autora, a “cultura da malhação” é o produto de movimentos
importados dos EUA e que vem atraindo cada vez mais adeptos na busca de
modificação da forma corporal para adequação aos modelos corporais hegemônicos.
Assim, no que se refere ao corpo masculino, a adoração do físico musculoso dos bodybuilding (exposto pelas mídias eletrônicas, publicidade e indústria cinematográfica)
rapidamente assumiu um dos ideais corpóreos de bastante aceitação social.
As atividades no interior das academias tornam-se uma rotina árdua de
exercícios repetitivos e anseios obsessivos, porém, muitas vezes inalcançáveis estando
ligados aos ideais corporais amplamente aceitos. Na contemporaneidade, o culto ao
corpo assumiu um caráter radical, fazendo das próprias práticas ligadas à
supervalorização da imagem corporal algo intenso, ao ponto, de se assemelhar as
próprias práticas desportivas. Muitos frequentadores de academias de musculação, por
exemplo, ficam várias horas executando exercícios repetitivos, preocupados com os
objetivos, com o peso, a forma física, com as medidas, o tempo, a imagem, as dietas,
etc. Realidade não muito diferente dos atletas profissionais. O body-building não
profissional é o caso mais fiel desta realidade, porém não se trata de encarar a
musculação como esporte e sim, como aprimoramento estético.
Como um dos elementos centrais que evidenciam e ao mesmo tempo legitimam
a cultura do corpo, os body-building destacam-se pela intensa dedicação em querer
hipertrofiar a massa muscular. Para Jean Jaques Courtine (1995, p. 82) “o body-building
participa plenamente da cultura do músculo” a ponto de a preocupação se centrar na
aquisição de massa muscular fazendo da existência uma realidade dedicada aos
músculos e a aparência (LE BRETON, 2009, p. 41). Neste caso, os músculos não
representariam simplesmente uma parte integrante do sistema funcional corporal, mas,
além disso, um elemento poderoso capaz de mudar toda uma vida. Assim, os músculos
são vistos como objeto que deve ser trabalhado de forma diferenciada para poder extrair
toda “magia” deste tecido fibroso, elemento simbólico de valorização, identificação e
hierarquização. O aumento do volume muscular para os body-building acarreta
proporcionalmente, a elevação do respeito, do sucesso e do poder, além de ser um
elemento importante de status social (LE BRETON, 2007, 2011; BERGER 2006). Em
48
uma palavra, todos os seus pensamentos e atitudes no ambiente da academia de
musculação (e fora dele também) centram-se em torno dos músculos.
O body- building é um hino aos músculos, um virar o corpo do avesso
sem esfoladura, pois as estruturas musculares são tão visíveis sob a
pele viva dos praticantes quanto nas pranchas de Vesálio. (...)
[porém], o body-building é uma fortaleza de músculos inúteis em sua
função, pois para ele não se trata de exercer uma atividade física em
um canteiro de obras ou trabalhar como lenhador em uma floresta
canadense. É buscada a força muscular em si, em sua dimensão
simbólica de restauração de identidade. (LE BRETON, 2009, P. 4243).
O body- building é simplesmente o artesão do seu próprio corpo, que através da
sua inter-relação com as máquinas (da academia de musculação) juntamente com a
construção de sua dieta, e também, na utilização de várias substâncias, torna-se escultor
do seu próprio invólucro encarnado. Não é mais novidade para os body-building
(homens e mulheres), a utilização de hormônios esteroides anabolizantes e suplementos
alimentares na busca sem trégua pela modificação da forma corporal para uma melhor
aparência física. Conforme Le Breton (2009, p. 42), “o body-building forja para si um
corpo de máquina com acabamento cinzelado, cujo vigor é rematado pelos esteroides e
pela dieta”, fazendo do seu corpo modularmente fabricado.
Portanto, o corpo do body-building é uma máquina que precisa ser trabalhada
por partes, onde cada “perca” (partes do corpo) precisa passar por uma série de
exercícios repetitivos a fim de construir “seu corpo à maneira de um anatomista
meticuloso preso apenas à aparência subcutânea” para se chegar à forma corpórea
denominada de “corpo malhado” (LE BRETON; 2009). Tal modelo corpóreo é uma
realidade que se encontra em muitos lugares: nas mídias eletrônicas, nas academias, nas
ruas, nas praias, dentre outros, porque “o músculo está por toda parte” em um
verdadeiro espetáculo de exposição de corpos inflados de músculos (COURTINE, 1995,
p. 82).
Antes de tudo o espetáculo está nas ruas. Entre a multidão de
passantes, os body-builders destacam-se por sua forma de andar:
braços afastados, cabeça enfiada no pescoço, peito abaluado, rigidez ,
balanço mecânico. O body-builders não anda; ele conduz seu corpo
exibindo-o como objeto imponente. Não ao modo do obeso, este
indígenas das multidões americanas, que arrasta sua anatomia como
um fardo que o entrava e o estigmatiza. O corpo do bodybuilder
pretende, ao contrário, tirar todo o benefício do peso no campo do
49
olhar, saturá-lo de massa muscular. Impor-se, pesar no olhar alheio,
através da ação combinada de um efeito de massa e de uma
deslocamento mecânico. O músculo marca. Ele é um dos modos
privilegiados de visibilidade do corpo no anonimato urbano das
fisionomias. (COURTINE, 1995, p 82-83).
Portanto, os body-building constitui uma das manifestações do fenômeno do
culto ao corpo, ligados as representações de beleza e forma física (masculina), ao qual,
exige do corpo o espetáculo da hipertrofia muscular e adequação aos modelos
hegemônicos socialmente, aqueles livre das gorduras e das marcas (físicas e simbólicas)
do corpo relaxado. Realidade cada vez mais presente em diferentes classes sociais,
apesar das limitações e especificidades típicas de cada uma delas (BOLTANSKI; 1984).
De qualquer modo, acompanhamos uma “universalização” da “cultura do músculo”
desencadeando segundo Courtine (1995, p. 82), uma reivindicação muscular cada vez
mais democrática, fazendo da prática dos body-building (não profissional)37 uma
obsessão para diferentes indivíduos das mais variadas estratificações sociais.
3.2. CULTO AO CORPO: MOTIVAÇÕES PARA A PRÁTICA DA
MUSCULAÇÃO E USO DOS HORMÔNIOS ESTEROIDES ANABOLIZANTES
A preocupação com a estética foi indiscutivelmente a principal motivação
apresentada pelos entrevistados, para a iniciação da prática da musculação38 e o
consumo de várias substâncias (esteroides anabolizantes, suplementação alimentar e
produtos para uso animal). Realidade que aponta para o fenômeno do “culto ao corpo”39
que, nas últimas décadas, tomou formas radicalizadas.
37
Segundo Courtine (1995, p. 83), o “body-building profissional não é mais do que uma das formas,
extremas sem dúvida, de uma cultura visual do músculo”, porém, o simples praticante de musculação (o
body-building não profissional) também corresponde o produto desta cultura dos músculos.
38
Em linhas gerais, muitas pessoas procuram as academias de musculação para realização de exercícios
de força sendo considerado o meio principal (talvez exclusivo) para ganho de massa muscular na intenção
de modificação da forma corporal. Segundo o presidente da “fitness Brasil” Waldyr Soares, o Brasil
possui o maior número de academias de ginásticas da América Latina e não só isso, já representa o
segundo maior mercado de academias de ginástica de todo o mundo. Disponível em:
www.tramaweb.com.br/cliente_ver.aspx?ClienteID=164&NoticiaID=3177 ; acesso em 15/08/2011.
39
Muitos teóricos do corpo (sociólogos e antropólogos) vêm aplicando o termo “culto ao corpo” para
esboçar uma realidade onde o corpo figura como elemento central na vida do indivíduo contemporâneo.
Ana Lúcia de Castro (2007, p. 15), define “culto ao corpo” como “ um tipo de relação dos indivíduos com
seus corpos que tem como preocupação básica seu modelamento a fim de aproximá-lo o mais possível do
padrão de beleza estabelecido”, ligando-se as ações diretas para a busca da modificação da imagem
50
Não é mais novidade dentro da nossa sociedade de consumo a elevada
importância que se tem atribuído à imagem corporal, fazendo com que uma parcela
significativa da nossa população considere o corpo como objeto “sacro”, assumindo um
lugar privilegiado nas referências simbólicas da nossa cultura (BAUDRILLARD, 1995).
Muitos teóricos do corpo (FOUCAULT, 1987; LE BRETON, 2007) afirmam que a
supervalorização corporal que vemos na atualidade e, portanto, o próprio fenômeno do
culto ao corpo é o resultado de transformações históricas ocorridas desde o
renascimento, e que ganharam força com a modernidade. Esta organização social
rompeu com as velhas aparências, formas e posturas corporais criando um novo pensar,
agir, usar e sentir do corpo, substituindo assim, por novas constituições corporais não
mais cristalizadas e sim diversificadas e multifacetadas. Tal contexto deriva de vários
acontecimentos que foram importantes para a edificação deste fenômeno do culto ao
corpo. São eles: 1- a secularização do corpo (a ciência como conhecimento hegemônico
criando novas representações e domínios sobre as ações e habitus dos homens frente ao
corpo); 2- as mudanças no mundo do trabalho (reflexos das revoluções); 3- novos
costumes e estilos de vida colocados pela burguesia (criando novos valores e
imaginários, alterando ações ligadas à higiene, à saúde, às atividades físicas, dentre
outras); 4- a exposição corporal imposta pela indústria cinematográfica (invasão de
novos imaginários corpóreos e fermentação de novos ideais corporais); 5- a revolução
dos costumes (com a difusão da pílula anticoncepcional, com a revolução sexual, com o
movimento feminista, dentre outros); 6- a ampliação da indústria da boa forma e da
beleza; 7- a exposição e valorização do corpo na mídia e publicidade; dentre outros
fatores.
Tais acontecimentos foram estruturantes para que na sociedade contemporânea a
valorização do corpo chegasse ao seu apogeu. O corpo tornou-se objeto de salvação e
adoração (BAUDRILLARD, 1995) em uma nova configuração do culto ao corpo40
corporal como por exemplo, a prática de atividade física, dietas, as cirurgias plásticas, o uso de produtos
de cosméticos e tudo mais que responda à avidez de se aproximar do corpo ideal. Para Michel Maffesoli
(1998) o que parece surpreendente atualmente é que o corpo é tomado em si mesmo; há uma espécie de
culto ao corpo que ganha cada vez mais importância na vida social. Veste-se o corpo, cuida-se do corpo,
constrói-se o corpo, e é neste sentido que se pode falar de culto ao corpo como sendo uma das marcas
deste hedonismo.
40
Diferentemente de outros momentos na história, onde existiu uma valorização da imagem corporal, o
fenômeno do culto ao corpo contemporâneo se diferencia de outros períodos principalmente em termos de
ênfase e expansão. Reflexo da globalização, do avanço científico e tecnológico, além da expansão dos
meios de difusão e da “democratização” das preocupações ligadas ao corpo. Estes fatores faz do culto ao
corpo contemporâneo um fenomeno bastante específico.
51
(GOLDENBERG, 2002; CASTRO, 2007). Seja por questões de saúde ou estética, a
preocupação com corpo virou a tônica de nossa sociedade (BAUMAN, 2010; LE
BRETON, 2004, 2007, 2011), objeto de elevado investimento (físico, temporal e
financeiro), preocupação, manipulação e reflexividade; adquirindo assim, uma
centralidade na vida do indivíduo como jamais visto anteriormente (GIDDENS, 2002;
MARZANO-PARISOLI, 2004).
A busca pelo corpo “musculoso”, denominado pelos entrevistados de “corpo
sarado”, “corpo forte”, “corpo grande” ou “corpo bombado”, representa um desejo
muitas vezes colocado como uma necessidade e até mesmo um projeto de vida. A
obtenção de específico modelo corpóreo é a concretização do corpo, considerado por
eles como “perfeito”. Nas falas dos entrevistados, conceitos como: “corpo sarado”,
“corpo forte”, “corpo grande”, “corpo bonito”, dentre outros, estão intimamente ligados
entre si, dando sinal de que o corpo musculoso seria este modelo de beleza masculina
atribuída por eles41. Durante muito tempo, o significado do corpo musculoso foi
associado negativamente a uma pessoa bruta, grosseira e rude, representava o corpo do
trabalhador braçal, do proletário, ligados a comportamentos sociais primitivos e
agressivos (MARZARO-PARISOLI, 2004; CORBIN, COURTINE e VIGARELLO,
2008). Porém, o corpo é uma construção social e cultural que apresenta significados
diferentes ao longo da história. Na visão de Le Breton (2007, 2011), não existe um
corpo universal em estado de natureza, de forma incontestável e imutável dentro das
várias formações sociais conhecidas pela humanidade. O corpo é para ele (2011, p. 18),
uma realidade efêmera, mutável e, portanto, passível de transformação no que envolve
sua estrutura, representações, valores e signos42. Por isso que o corpo deve ser visto,
como “uma construção simbólica, não uma realidade em si”. Até mesmo as próprias
“técnicas corporais”, no sentido de Marcel Mauss (2003), correspondem a um fenômeno
histórico43, estando ligadas diretamente aos condicionantes sociais e culturais
41
Goldenberg e Ramos (2002), em pesquisa realizada com homens e mulheres das camadas médias da
Cidade do Rio de Janeiro, observaram a elevada valorização da aparência corporal, em um verdadeiro
culto a aparência e a forma física. Nas palavras de Mirian Goldenberg (2002, p. 10), “o corpo invejado,
desejado, e admirado pelos pesquisados aparece como um corpo “trabalhado”, “malhado”, “sarado”,
“definido”, um corpo cultivado, que, sob a moral da “boa forma”, surge como marca indicativa de certa
virtude superior daquele que o possui. Um corpo coberto de signos distintivos que, mesmo nu, exalta e
torna visíveis as diferenças entre grupos sociais”.
42
O corpo neste sentido é um elemento natural e cultural a um só tempo, uma representação da cultura
sobre a natureza que se faz presente nas formações sociais até então conhecidas.
43
Para Le Goff e Nicolas Truong (2006, p. 10), “a concepção do corpo, seu lugar na sociedade, sua
presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreram
modificações em todas as sociedades históricas”.
52
(DOUGLAS, 1976). Nestas condições, a representação do corpo musculoso, mais
precisamente o corpo atlético dos “body-builders” tornou- se, na contemporaneidade, o
modelo cultural positivamente aceito e desejado, associado aos ideais de perfeição,
sucesso e felicidade44 (COURTINE 1995; MARZARO-PARISOLI, 2004; SABINO,
2004; LE BRETON, 2009, 2011). Diferentemente do século passado, onde o corpo
musculoso ligava-se moralmente a uma pessoa que não controlava seus instintos e
impulsos, hoje o “homem musculoso” (body-builder) exprime a força de caráter, a
energia, o poder, o controle dos instintos, a responsabilidade e a capacidade de controlar
sua própria vida45. Neste sentido, o corpo musculoso dos body-builders na
contemporaneidade não representa apenas um ideal estético como também uma retidão
moral (MARZARO-PARISOLI, 2004). Realidade relativamente similar à representação
dos músculos no período da Antiguidade e, por que não dizer, aos próprios contornos
corporais (COURTINE, 1995). Na Grécia antiga, por exemplo, considerada o berço da
história da civilização ocidental, o corpo hegemônico era o corpo masculino. Em tal
cenário, um imaginário de corpo ideal foi criado sobre os moldes de um corpo
musculoso (não exagerado), sinônimo de beleza, saúde e fertilidade. O corpo
musculoso, nesse período, era extremamente valorizado, exposto e adorado, visto como
superior não só fisicamente, como também sexual e moralmente46 (LAQUEUR, 1990;
GOLDHILL, 2007).
De qualquer forma, podemos supor que os ideais corpóreos amplamente aceitos
e valorizados socialmente, juntamente a seus imaginários e representações, influenciam
de alguma maneira as ações dos indivíduos frente a seus corpos, como foi possível ver
no discurso dos entrevistados, no que se refere à valorização dos músculos. Nas falas
dos entrevistados, a busca pela academia de musculação e posteriormente o uso de
44
Para Cesar Sabino (2004, 2007), na contemporaneidade existe uma ética masculinizante que se rebate,
não apenas nas atitudes, nas práticas, mas, também no campo simbólico, refletindo uma estética corporal
valorizando o cultivo muscular a ponto de hierarquizar a realidade a partir dos valores relacionados a este
cultivo.
45
Sabino (2007, p. 7) citando outros autores (Robert Connel em “Masculinities” de 1995 & Miguel Vale
de Almeida em “Senhores de si” de 1995), afirma que na contemporaneidade o corpo “musculoso”
representa a “masculinidade hegemônica”, ou seja, aquela que exerce uma subordinação a outros tipos de
masculinidade, além de perpetuar a tradicional dominação masculina sobre as mulheres.
46
Para alguns autores (GONÇALVES, 1994; GOLDHILL, 2007), na Grécia, o corpo era considerado
importante nas relações entre os indivíduos, pois por sua mediação, o homem poderia ganhar respeito e
prestígio. Um corpo belo e “perfeito” era sinal de admiração e veneração, havia uma divinização da
beleza; uma alma bela deveria habitar um corpo belo. Além do mais, o corpo era também de interesse do
Estado, questão de ordem pública sendo bastante exposto (corpo ideal) em todos os lugares na Grécia
antiga. (BARBOSA, MATOS & COSTA, 2011).
53
esteroides anabolizantes (e outras substâncias) se verificou, em última instância, na
intenção do ganho de músculos como se o corpo humano, ou melhor, o corpo deles
fosse ausente deste elemento fundamental. Ficou claro nos depoimentos que a aquisição
da massa muscular, no que tange ao seu desenvolvimento (hipertrofia), representa a
modelação do self (eu), no sentido de restaurar ou construir um sentimento de
identidade ameaçada. Os músculos para os entrevistados tornam-se o emblema do self e
representam o meio de apresentação mais significativo de si. A tal ponto que a
exposição da hipertrofia muscular seria a verdade sobre si, em uma sociedade que não
consegue mais proporcionar qualquer verdade. Seria o controle e o domínio da sua
existência em um mundo totalmente sem controle e desgovernado. Nas palavras de Le
Breton (2009, p. 41), “substitui os limites incertos do mundo no qual ele vive pelos
limites tangíveis e poderosos de seus músculos” nos quais exerce domínio radical, seja
nos exercícios praticados na academia, como também, no controle da sua dieta. O
músculo seria o seu modo de vida (COURTINE, 1995, p. 85). Desta forma, os
entrevistados colocaram o corpo e seu projeto de hipertrofia como algo “certo” e
“seguro” sobre os quais representa o subterfúgio para descarregar o medo existencial
excedente ou do futuro incerto do mundo e de suas vidas.
“Eu queria ficar definido e musculoso por isso que eu tomo (EAA)...
Hoje, eu vejo meu corpo e me sinto bem melhor, minha autoestima
aumentou bastante, aumentou muito minha autoestima... você se olha
no espelho, você se acha maior, bonito, musculoso... você se sente
mais... masculino, você se sente mais homem...” (Entrevistado, 20
anos).
“Entrei na academia porque não tava mais gostando da minha
aparência, do meu visual... O cara quando entra na academia entra
com o intuito de ganhar músculos... todo mundo é assim, todo
mundo... E comigo foi do mesmo jeito... Entrei na academia com o
objetivo de ficar forte, ficar com corpo malhado, sem gordura
nenhuma, ficar bombado como dizem... entrei com intuito de ganhar
músculos...” (Entrevistado, 22 anos).
Tal modelo corporal se encaixa perfeitamente aos moldes de valorização do
corpo masculino na sociedade contemporânea. Reflexo de algo mais amplo dentro da
nossa cultura de consumo, onde presenciamos a formação e exaltação de formas
corpóreas amplamente aceitas socialmente e que se encontram presentes na vida
cotidiana do indivíduo contemporâneo. Como bem observou Ana Lúcia de Castro
54
(2007, p. 66), presenciamos na contemporaneidade a tendência à supervalorização da
aparência, o que leva os indivíduos a uma busca incansável pela forma e volumes
corporais ideais. Na esteira disso, Lúcia Santaella (2004), em “Corpo e Comunicação”,
afirma que no culto ao corpo (contemporâneo) “a palavra de ordem está no corpo forte,
belo, jovem, veloz, preciso, perfeito, inacreditavelmente perfeito”.
É importante salientar que as formações de ideais corporais fazem do corpo um
valor especial, desenvolvendo um negócio bastante lucrativo em uma ordem
consumista. O corpo, dentro da nossa sociedade de consumo, corresponde a um objeto
de rentabilidade, assumindo aspecto mercadológico como qualquer outra mercadoria,
sendo produzido, consumido, divulgado e valorizado em uma dimensão simbólicocultural. Analisando pela ótica da sociedade de consumo, Baudrillard (1995, p. 136)
assinala que o corpo é “o mais belo, precioso, e resplandecente de todos os objetos...”.
Ainda para este autor, o corpo (belo) consome e é consumido; detentor de uma função
econômica e ideológica que fornece o suporte para venda de outros objetos. E por
possuir aspectos mercadológicos, ele se enquadra dentro da lógica da propriedade
privada, do valor e do fetichismo como qualquer outra forma mercadológica. Além do
mais, a retórica do corpo vem com a promessa de individualização, diferenciação,
inclusão social, status, poder, prazer e felicidade.
A mídia e a indústria da beleza desempenham um papel estruturante no processo
de hipervalorização do corpo na contemporaneidade, onde “constitui-se num dos
principais meios de difusão47 e capitalização48 do culto ao corpo como tendência de
comportamento” (CASTRO, 2007, p. 31). A mídia em geral e a publicidade
desempenham um lugar de destaque na formação de modelos corpóreos, imaginários,
signos e representações do corpo, como já discutido em vários estudos49
47
Difusão no sentido de mediar a temática, mantendo-se sempre presente na vida cotidiana do indivíduo
contemporâneo, levando as últimas novidades no que se refere a imagem corporal, ligados ao avanço
tecnológico e científico ditando e incorporando tendências (CASTRO, 2007).
48
Segundo Castro, (2007, p. 31 ) no sentido de garantir a materialidade da tendência de comportamento,
que – como todo traço comportamental e/ou simbólico no mundo contemporâneo – só pode existir se
contar com um universo de objetos e produtos consumíveis, não podendo ser compreendido desvinculado
do mercado de consumo.
49
“São, de fato, as representações nas mídias e publicidade que têm o mais profundo efeito sobre as
experiências do corpo. São elas que nos levam a imaginar, a diagnosticar, a fantasiar determinadas
existências corporais, nas formas de sonhar e de desejar que propõem.” (SANTAELLA, 2004, P. 126).
Para Mirian Goldenberg (2002, p. 8), “a mídia adquiriu um imenso poder de influência sobre os
indivíduos, generalizou a paixão pela moda, expandiu o consumo de produtos de beleza e tornou a
aparência uma dimensão essencial da identidade para um maior número de mulheres e homens”. Já
Yoshino (2007, p. 112) afirma que “os meios de comunicação em massa emitem valores estéticos e
55
(GOLDENBERG & RAMOS, 2002; SANTAELLA, 2004; CASTRO, 2007,
YOSHINO, 2007), sendo capaz de comunicar valores da sociedade contemporânea,
como também homogeneizar os gostos, as preferências e os comportamentos dos
indivíduos, mesmo em diferentes camadas sociais (MAZARO-PARISOLI, 2004). Para
Boltanski (1984), a publicidade e a mídia participam de maneira decisiva na difusão das
normas e dos estilos de vida das classes superiores para o conjunto das outras classes e
frações de classes, ajudando a produzir e reproduzir novas necessidades de consumo e
impondo as condições burguesas de satisfação, felicidade e beleza por via do consumo
de produtos corporais, desencadeando mudanças nos comportamentos e habitus dos
indivíduos de outras classes. Consequentemente amplia-se o consumo de produtos e
bens de serviço que prometem a adequação aos padrões estabelecidos e valorizados
socialmente (ideologicamente). Porém, apesar da força homogeneizadora desse
processo, Luc Boltanski (p. 145) afirma que quando se passa das classes populares para
as classes superiores, a tendência é uma maior valorização e preocupação com a
imagem corporal. Desta forma, por mais que indivíduos de diferentes classes busquem
uma melhora da imagem corporal, a própria busca não é a mesma, em todos os sentidos,
pois, tanto as condições materiais como as regras de decoro50 estabelecidas pela cultura
somática não são as mesmas para todas as classes. Além do mais, a preocupação como a
imagens de corpos e rostos perfeitos” que acabem influenciando as ações dos indivíduos frente aos seus
corpos na intenção de se adequar aos valores estéticos e as imagens perfeitas.
50
As classes sociais possuem o que Luc Boltanski chamou (1984, p. 145) “regras de decoro”. Elas são o
sistema de regras que direcionam os comportamentos físicos (corporais) estando inscritos na hexis
corporal, ou seja, no habitus corporal como elemento estruturado e estruturante da ação humana. O
habitus corporal organiza implicitamente a relação dos indivíduos de uma mesma classe social com seu
corpos. Por ser uma estrutura estruturada e ao mesmo tempo estruturante, ele permite a criação e
apresentação de conduta física diferenciada entre os indivíduos dentro de uma mesma classe social,
entretanto, a unidade permanece ancorada na cultura somática específica do grupo social. Desta forma,
essas regras são específicas para cada classe social que direciona a forma adequada de se posicionar
frente aos atos corporais (físicos) da vida cotidiana, definindo a maneira de andar, vestir, cuidar do corpo,
transformar o corpo e não só isso, também direciona a busca pela beleza, pela saúde entre outros. A
própria maneira que o indivíduo deve proceder fisicamente em relação aos outros também é determinada
por estas regras e normas, seja ao cumprimentar, na forma de olhar, tocar, etc., levando em conta o sexo,
a idade, a classe social e as representações dentro da sua relação social (amigo, pai, mulher, namorada,
parente, estranho, etc.). Tais regras colocadas por Luc Boltanski pode determinar muitas vezes “a maneira
correta de falar do corpo, de seu aspecto exterior e das sensações física”, pois cada classe social possui
uma espécie de “código de boas maneiras para viver com o corpo, profundamente interiorizado e comum
a todos os membros de um grupo social determinado” (1984, p. 146). Assim, os usos do corpo, segundo a
classe social, atuam como sinal de status social, de modo que atos que para alguns estratos sociais são
considerados como sinal de educação e civilidade, em ouros estratos sociais, pode representar condutas
sociais inadequadas aos papeis sociais exigidos para certos segmentos ou grupos Neste sentido, as regras
e normas típicas a cada segmento ou grupo social, atuam como mecanismos de controle das ações e uso
do corpo.
56
aparência corporal não difere apenas nas classes ou grupos, mas também, no que
envolve o gênero e a idade.
Conforme o discurso, ficou claro que a totalidade dos entrevistados ao praticar
exercícios de força (musculação) em academias de ginástica, (localizada em um bairro
popular da capital), estava em busca, em última instância, de modificar a forma
corporal, para assim, construir um modelo corpóreo mais adequado à ideia que eles têm
de si mesmos e aos ideais estéticos amplamente valorizados e ligados à adoração física
vigente em nossa sociedade. Tal realidade é um indicativo importante para se pensar
que a busca por uma melhor imagem corporal não se restringe apenas às camadas
sociais mais elevadas da sociedade51, apesar de se manter arraigada na ação a
especificidade de classe.
“(...) Eu entrei na academia porque eu me preocupava com minha
aparência... foi a primeira coisa que eu pensei: “vou entrar na
academia para ganhar peso, ganhar músculos...” aí eu entrei na
academia pra aumentar de peso... teve uma hora aí... tive que entrar na
academia mesmo... mas, enfim... o porquê de querer malhar é
justamente isso... por estética mesmo...” (Entrevistado, 26 anos).
“(...) Aí comecei a me olhar no espelho, olhava umas fotos que eu
tirava com a galera e via a diferença entre eu e os outros caras amigos
meus... e cheguei à conclusão que eu tava feio demais e precisava
melhorar a aparência... queria melhorar minha aparência (...) Aí
comecei a malhar com a intenção de ficar forte, ganhar massa
muscular, pra ser mais aceito, ficar mais bonito, ficar presença pra
mulheres e também causar mais respeito entre as pessoas.”
(Entrevistado, 23 anos).
“Eu quis malhar por vaidade, vaidade mesmo... quis entrar na
academia pra crescer.” (Entrevistado, 23 anos).
A preocupação com a estética não apenas motivou os entrevistados para a
prática da musculação, mas também, para o uso dos esteroides anabolizantes e outras
substâncias, (suplementação alimentar e produtos de uso veterinário), na tentativa de
concretizar a transformação e construção da forma corporal. Como observado no
capítulo segundo, os EAAs são substâncias sintetizadas derivadas da testosterona
51
Realidade observada em outros estudos recentes como de Iriart & Chaves & Orleans em “Culto ao
corpo e uso de esteroides anabolizantes entre praticantes de musculação” (2009).
57
(hormônio masculino). O consumo intenso dessas drogas masculinizantes produz, além
de outras coisas52, efeitos anabólicos, proporcionando o crescimento da massa muscular.
Apesar de não existir um estudo preciso para quantificar o consumo dessas
drogas, é visível o aumento no uso dos EAAs com a intenção puramente estética.
Realidade presente em diversos países, inclusive no Brasil, como apontam os dados do
CEBRID. O consumo dos hormônios esteroides anabólicos androgênicos, que no
primeiro momento era restrito apenas a pacientes em alguns tratamentos terapêuticos e
depois passou a ser utilizado indevidamente por atletas, atingiu um novo segmento,
correspondente aos frequentadores de academias de ginásticas, na sua utilização para
fins estéticos. E por ser uma poderosa (e perigosa) ferramenta capaz de proporcionar o
crescimento da massa muscular em um curto espaço de tempo, fazendo com que seja
um meio rápido de obtenção de uma forma corporal objetivada, os entrevistados viram
nos esteroides anabolizantes a sua “esperança”, a sua “tábua de salvação”, não só para
resolver seus problemas imediatos, mas para potencializar e realizar os objetivos
traçados.
Para muitos dos entrevistados, o EAA é um composto capaz de realizar
milagres, e nele é depositada toda a confiança na esperança de transformar e construir
uma forma corpórea idealizada. Em tese, como foi relatado no discurso da maioria dos
entrevistados, o uso dos esteroides anabolizante desencadeou uma transformação não só
na forma corporal, mas também, na própria vida como um todo. Como observa Le
Breton (LE BRETON, 2009, p. 22), de maneira sucinta, mesmo que a ciência e a técnica
estejam passando por uma crise de confiança, elas ainda são consideradas por alguns
como a tábua de salvação e, a partir destas ferramentas, muitos indivíduos acreditam
que “mudando seu corpo, pretende-se mudar de vida” conseguindo assim a suposta
liberdade e salvação.
Na contemporaneidade é comum vermos uma manipulação constante do corpo,
que implica no uso de ferramentas técnicas (que incluem os EAAs, suplementos
alimentares, cosméticos, dentre outros) desenvolvidas pelo mundo moderno,
extremamente comum na vida cotidiana em que os indivíduos usam de remédios para
dormir, até próteses químicas para o corpo, para assim corrigir suas “falhas” impostas
pelas exigências contemporâneas e, com isso, se adequar a um mundo cada vez mais
dinâmico e exigente (LE BRETON, 2009; 2011).
52
Ver efeitos colaterais capítulo II.
58
Os avanços científicos e tecnológicos disponibilizados pelo mundo moderno são
por muitas vezes considerados como “maravilhas”, contribuindo para que o homem faça
do seu corpo “uma possível matéria prima” na busca de transformar e construir uma
aparência corporal valorizada pessoalmente e socialmente (LE BRETON, 2007, p. 71).
Portanto, nos dias atuais, não é mais novidade, músculos definidos e inflados através do
uso de EAA, suplementos alimentares e produtos para uso animal. Além de tatuagens,
piercings, implantes de silicone, botox, bronzeamento artificial, cirurgias plásticas,
consumo de cosméticos e dietéticos, dentre outros meios capazes de modificar a
aparência corporal, estando esta realidade presente no cotidiano das grandes cidades e
na mídia atual (SABINO, 2004, 2007).
“Eu uso (EAA) porque eu quero ficar forte, uso pra... crescer, pra ficar
bonito, pra ter um corpo sarado... pra ser diferente...” (Entrevistado,
25 anos, bairro popular).
“Um motivo que me motiva (ao uso dos EAAs) é em relação às
meninas, né?... que... você quer se apresentar mais forte, mais bonito...
é um dos motivos pra tomar (EAA). (...) [também]... hoje a pessoa
quer crescer e ficar com um corpo legal, bonito que antes eu não tinha
e hoje é diferente, entendeu?” (Entrevistado, 20 anos).
“O que me motivou para fazer uso... (EAA) foi que o cara quer
crescer, quer ficar grande, quer ficar com um corpo legal, um corpo
assim... bonito pra chamar atenção das mulheres... pra pegar as
mulheres, né?” (Entrevistado, 23 anos).
Em nossa sociedade de consumo, não só as pessoas são transformadas em
mercadorias, mas elas próprias se comportam como tal, na medida em que as relações
sociais passam a ser mediadas cada vez mais pelo consumo (BAUMAN, 2009). O
mercado expõe e impõe os padrões (de beleza, de consumo, de estilo de vida, dentre
outros) em que os indivíduos sentem-se impulsionados ao consumo de mercadorias e de
bens simbólicos. Segundo Mirian Goldenberg (2002), muitos indivíduos dentro da
sociedade do consumo buscam conseguir se adequar aos padrões corporais
estabelecidos e impostos socialmente. Estes padrões são como qualquer outro
estabelecido pela cultura do consumo e chegam com a promessa de felicidade e
satisfação para assim preencher o “vazio” em que se encontra o indivíduo
contemporâneo, despertando neste o sentimento de pertencimento social (MAZAROPARISOLI, 2004; BAUMAN, 2009). A recusa à aceitação dos padrões estabelecidos
pela sociedade dos consumidores é vista como atitude desvirtuada, passiva de
59
preconceitos e discriminação como forma de punição social. Surge, assim, o medo de
específica “punição”, colocando o “infrator” como uma criatura não vista, não aceita e
não reconhecida e, portanto, à margem da sociedade dos consumidores; transpõe a razão
e condiciona os indivíduos a buscarem incessantemente os meios para se adequar o mais
rápido possível aos modelos de consumo estabelecidos socialmente (BAUMAN, 2008,
2009). Situação que se agrava em um mundo onde impera o individualismo e a
competitividade dentro da cultura do imediatismo característico da sociedade de
consumo.
Vivemos em uma sociedade que a dinâmica da mudança se torna radicalizada
(GIDDENS, 1999, 2002), ampliando a intensificação do transitório, do efêmero, do
momentâneo, (BAUMAN, 1999, 2008,) fazendo da espera algo penoso e doloroso,
gerando um “mal-estar”, não havendo mais espaço para a espera dos acontecimentos,
vontades e desejos principalmente sobre os pilares de uma sociedade do consumo
(BAUMAN, 2009). Em um mundo cada vez mais competitivo, reflexo do dinamismo
das instituições modernas, a busca pelo reconhecimento, admiração, sucesso e prazer
tomam caráter de obsessão para o indivíduo contemporâneo. A nossa sociedade nos
avalia ao mesmo tempo em que nos julga, nos cobra os resultados a todo o momento
para assim nos qualificar no jogo da realidade social. Para atingir os objetivos tudo se
torna válido, principalmente no contexto moderno marcado por sensações de vazio,
insegurança, incerteza e medo. A cultura do imediatismo, característico da sociedade do
consumo faz do tempo um elemento extremamente importante na vida do indivíduo,
principalmente no que envolve o presente sobrepondo o futuro. Nesta cultura do
instantâneo, o futuro é esvaziado ou colonizado, não havendo mais porque esperar para
realizar (ou não) os objetivos traçados, se as exigências do mundo direcionam os
indivíduos a se preocuparem com presente imediato. Para Bauman (2008), os indivíduos
na contemporaneidade “vivem a crédito”, consumindo o futuro e acertando as contas
com ele depois. Esta realidade reflete não só na identidade como também, na própria
corporeidade contemporânea, fazendo com que muitas pessoas busquem transformar a
imagem corporal “para ontem” ou “para hoje”. Ao começar a frequentar uma academia
de ginástica, por exemplo, muitas pessoas querem atingir seus objetivos o quanto antes,
na busca do corpo esperado e idealizado. Na esteira disso, a sociedade do consumo,
oferece os meios que prometem em um curto espaço de tempo a realização dos sonhos
individuais. Então, existe uma busca dos indivíduos por atingirem os objetivos traçados
em um curto espaço de tempo, utilizando de armas que prometem verdadeiros milagres
60
tanto no resultado quanto no tempo para realização dos desejos e felicidades esperadas
(BAUDRILLARD, 1995; BAUMAN, 2008, 2009). Os EAAs ligam-se a busca pela
transformação da forma corporal em um curto espaço de tempo e com esforço reduzido.
Pra que malhar anos e anos se você pode atingir seu objetivo em questão de meses ou
dias? Por outro lado, é comum no discurso dos especialistas (fisiologista, profissionais
de educação física, nutricionista, dentre outros) que a modificação da forma corporal
exige muito treinamento (contínuo) e uma alimentação balanceada associada a um
período de tempo consideravelmente longo.
Conforme os depoimentos dos entrevistados foi observado demasiada
importância atribuída para o “agora” como tempo determinante da ação. No discurso,
foi possível perceber que o presente tem o poder de se sobrepor ao futuro e o agora
mesmo provocando certa angustia e ansiedade, corresponde o elemento primordial das
preocupações pessoais. Todos os entrevistados alegaram que começaram a fazer uso dos
esteroides anabolizantes com o propósito de concretizarem os objetivos traçados o mais
rápido possível, transformando e construindo a imagem corporal almejada. Em suma, o
sentimento de confiança e esperança nos EAAs estava visível no discurso dos
entrevistados, como meio capaz de impulsionar a modificação corporal, principalmente
devido ao tempo demasiadamente acelerado. Outras substâncias também são usadas por
alguns entrevistados com a intenção de modificar a forma corporal em tempo acelerado,
como foi o caso das vitaminas de uso veterinário (ADE), anabolizantes para uso animal
(Equipoise) e suplementos alimentares. A extrema relevância para o presente de acordo
com os depoimentos está ligada ao que Michel Maffesoli (1998) chamou de
“presenteísmo”, que significa o descarte do futuro em detrimento do vive-se o agora, o
presente e o instante imediato, reflexo da nossa sociedade do consumo.
“Olha, eu tomei (EAA) porque quero atingir meu objetivo o quanto
antes... quero ficar torando (forte) nas festas de fim de ano... no verão,
no carnaval e São João...” (Entrevistado, 26 anos).
“... Aí por isso que eu tomo (EAA e outras substâncias) hoje... eu não
sou um profissional mais eu tomo todo ano com certeza...
principalmente quando chega as festas, tá ligado?” (Entrevistado, 24
anos).
“(Eu uso os EAA para) Acelerar o crescimento mesmo... porque o
cara fica na academia e tem um período que o cara dá aquela parada...
sente que não ta crescendo mais rápido... e também porque eu não
tenho muita calma, muita paciência para esperar os resultados... eu
quero crescer o mais rápido possível... e isso me fez com que eu
61
tomasse logo os EAA para crescer e se amostrar logo... ficar me
exibindo mais por aí... entendeu?” (entrevistado, 27 anos).
“A minha procura pelos anabolizantes foi porque eu queria o
crescimento rápido., queria ficar grande logo, ficar com um corpo
bonito o mais rápido possível... Sabia que só malhando não... não ia só
adiantar , teria que ter alguma ajuda, algum meio de crescer mais
rápido.” (Entrevistado, 23 anos).
Em nossa sociedade contemporânea a atenção está voltada para o corpo
(BAUMAN, 2010), nunca o invólucro corpóreo foi tão mimado e adorado como hoje
(LE BRETON, 2011). Inúmeros são os domínios onde isso é observável, mostrando que
na sociedade de consumo sob a atmosfera do culto ao corpo, o invólucro encarnado é
uma realidade que deve ser levada a sério, na busca de transformá-lo para assim, serem
expostos na “teatralidade” da vida social (MAFFESOLI, 1995, p. 155). A exposição
corporal está em todos os lugares, nas mídias eletrônicas, nas revistas, na moda, na
publicidade, nas ruas e no cotidiano das pessoas, sintoma de uma realidade que o corpo
encontra-se em evidência. É interessante destacar, que no fenômeno do culto ao corpo,
quanto mais se valoriza a aparência corporal em uma dimensão simbólica sócio-cultural,
fazendo com que os indivíduos se preocupem cada vez mais com sua imagem corporal,
mais os modelos corporais hegemônicos parecem elementos irreais, principalmente
porque suas exigências ampliam-se constantemente.
A busca por atingir os padrões estéticos hegemônicos causa certa ansiedade ao
indivíduo contemporâneo, onde o aumento contínuo das exigências dos modelos sociais
do corpo provoca uma discrepância entre os ideais corporais “irreais”53 hipervalorizados e a capacidade física e orgânica subjetiva. Os ideais corporais que são
passados visualmente por várias formas de comunicação (as mídias, revistas, moda,
publicidade etc.) são mensagens que como bem observou Malysse (2002, p. 93),
significam “imagem-normas” que são destinados a todos que vêem e, por meio de um
diálogo contínuo entre os que vêem e o que são (corpo ideal x corpo real), os indivíduos
insatisfeitos com sua imagem corporal são convidados cordialmente a considerar seu
53
Segundo Malysse (2002, p. 93), “o corpo “visual” apresentado pela mídia (e outros mecanismos de
comunicação simbólica) é um corpo de mentira, medido, calculado e artificialmente preparado antes de
ser traduzido em imagens e de tornar-se uma poderosa mensagem de corpolatria”. Ao passo que, para
Camargo e Hoff (2002, p 26), o corpo veiculado nos meios de comunicação de massa não é o corpo de
natureza, ele representa um ideal impossível de ser alcançado (por não existir equivalentes na realidade).
Este corpo passado e realimentado pela mídia corresponde um ideal a ser perseguido, fazendo com que
muitas pessoas fiquem reféns de imagens perfeitas (editadas muitas vazes, pelos programas de
computadores).
62
corpo como um fardo, um peso que não precisa mais carregar, um verdadeiro objeto
defeituoso. Na esteira disso, Le Breton (2004, p. 7) afirma que na contemporaneidade,
“a vontade de transformar o corpo tornou-se um lugar-comum”. O corpo virou
ideologicamente uma matéria que deve se aperfeiçoar, se recuperar, um acessório que se
constrói, se modifica de acordo com os desejos e possibilidades54 (técnicas e materiais).
Ainda segundo este teórico do corpo (2004, p. 7), “nas nossas sociedades o corpo tende
a tornar-se matéria prima a modelar segundo o ambiente do momento”, fazendo do
corpo um acessório de presença e identificação do sujeito.
Um dos efeitos colaterais devastador desta supervalorização da imagem corporal
que vemos na contemporaneidade é o crescimento assustador da insatisfação das
pessoas com sua imagem corporal, no sentido que se pode dizer que a radicalização do
culto ao corpo (corpolatria) desenvolve paradoxalmente a intensificação da insatisfação
das pessoas com sua imagem corporal. Conforme os depoimentos que indicaram a
estética como a principal motivação para o uso dos EAAs e outras substâncias, a
insatisfação do seu invólucro corporal virou a tônica no discurso dos entrevistados, que
apresentou a “magreza” como a grande vilã, considerando esta forma corporal, como
um fardo, um mal-estar, um pesadelo, uma vergonha e sem exagero, a responsável pela
infelicidade pessoal. A categoria magro apareceu como uma das expressões mais
recorrentes no discurso, em que todos (sem exceção) atribuíram de forma negativa esta
característica de modelo corpóreo masculino.
“Eu me achava magro demais, magro demais... aí tomei (EAA e
outras substâncias) por causa disso mesmo... eu era magrelo, eu era
magro e não gostava de ser assim, não gostava...” (Entrevistado, 30
anos).
“... O meu corpo era feio demais... aí me deu vontade de entrar na
academia pra deixar de ser magro... aí tracei meu objetivo de ficar
forte... hoje eu sei o quanto é feio o cara ser magro raquítico, tem até
aqueles magros que tem um pouquinho de massa muscular até que
vai... mas, tem uns que é só o “couro e o osso”... Deus me livre... eu
não sei como esses caras não tem vergonha... é feio demais, pô, feio
demais.” (Entrevistado, 22 anos).
54
A ampliação cada vez maior da corpolatria faz com que um número crescente de pessoas se preocupe
cada vez mais com a imagem corporal. Porém, resguardando a generalizações, a intensidade da
preocupação com a imagem corporal é de nível diferente conforme cada classe social, grupo, idade e
gênero. Para Luc Boltanski (1989), a condição material influencia de maneira considerável as próprias
escolhas e estilos de vida no que envolve a corporeidade, além das especificidades típicas de cada classe
ou grupo social, reflexo da cultura somática no conjunto das suas regras e normas.
63
“... e também pelo fato de também eu ser muito magro né? você vai
ficando mais velho e vai dando conta que o cara magro só se dá mal...
ele não tem muita aceitação entre os amigos né? principalmente entre
as mulheres... você vai se comparando com seus amigos... com as
outras pessoas e se sente diferente... se sente feio entendeu?”
(entrevistado, 27 anos).
“Eu era muito magro, muito magro mesmo, e isso me incomodava
bastante... Quando eu me via em fotos... quando eu tirava fotos com
os amigos, nas fotos eu sempre me via murcho, magro, entendeu? Eu
não me destacava aí foi também o que me motivou querer...
digamos... melhorar minha aparência,” (Entrevistado, 23 anos).
Como se sabe, na sociedade contemporânea o paradigma de corpo em vigor e
supervalorizado é do corpo magro, chegando a tal ponto que para Fischler (2007, p. 70),
vivemos em uma época caracterizada pela “lipofobia” que corresponde à obsessão pela
magreza e a rejeição a obesidade55. Existe uma desvalorização do modelo de corpo
“gordo”, sinônimo de falência moral e física56 (MAZARO-PARISOLI, 2004;
YOSHINO, 2007; FISCHLER, 2007). O corpo do “sobrepeso” é desprestigiado não
apenas no seu caráter estético como também ligado a um modelo de corpo incompatível
com uma pessoa saudável (conforme as instituições de saúde). Diferentemente do
modelo de corpo magro (não exagerado e patológico) visto socialmente como corpo
saudável,
esteticamente
belo,
símbolo
de
capacidade,
felicidade,
agilidade,
responsabilidade e controle. Em uma palavra, o corpo do “sobrepeso” se confronta aos
ideais de saúde e igualmente aos padrões hegemônicos de beleza instituídos pela
sociedade contemporânea. A obsessão moral ligada a “boa forma” intensifica este
processo, principalmente quando exige dos indivíduos o controle radical da sua
aparência física (YOSHINO, 2007, p. 112).
A obesidade na atualidade é associada a uma pessoa preguiçosa, descuidada e
incapaz, colocando o ser obeso como doente, ligando-o frequentemente a ideias de
55
Para Nair yoshino (2007, p. 116), “a conclusão apresentada por Goldemberg & Ramos (2002), se refere
à cultura que julga, classifica e hierarquiza a forma física, não sendo apenas a gordura que incomoda. É
preciso também ter um corpo firme, musculoso, livre da moleza, da gordura e da flacidez, que são
símbolos do relaxamento moral, da indisciplina, da preguiça e da falta de investimento de si”.
56
Como bem colocou Sant’ana (1995, p 20), foram várias as sociedades que acolheram com alegria a
presença dos gordos e com desconfiança a presença da magreza, vista de forma preconceituosa,
associando a doença e a pobreza. Para Fischer (2007), houve um período em que os gordos eram amados,
associados à saúde, riqueza e prosperidade eram bastante respeitados no seu convívio social.
Entretanto, no decorrer deste século, as representações de magreza e gordura sofreram modificações
radicais, reafirmando que o corpo não corresponde apenas um agrupamento de órgãos como acredita a
biologia, a anatomia e a fisiologia, mas antes de tudo, representa uma estrutura simbólica passível de
mudança, conforme cada sociedade e cultura. (LE BRETON, 2007).
64
fracasso pelo ato de transgredir os padrões de beleza e sedução na contemporaneidade.
(MARZANO- PARISOLI, 2004; SANT’ANNA, 1995; FISCHLER, 2007; YOSHINO,
2007). O corpo gordo é desprezado57, é o “desvio” do modelo corpóreo hegemônico
socialmente, é uma forma corporal estigmatizada, um corpo que ameaça as normas e a
valorização vigente. O indivíduo obeso é por muito estigmatizado pelo seu desvio58,
colocado
como
diferente
dos
outros,
motivo
de
“brincadeiras”
e
olhares
preconceituosos. O peso, ou melhor, o excesso dele, é um atributo que coloca o seu
possuidor como criatura estranha, defeituosa, estragada e diferente (YOSHINO, 2007).
Porém, por mais que seja hoje um lugar comum, colocar o corpo magro como o modelo
hegemônico socialmente, algumas ressalvas devem ser colocadas. Como bem elucidou
Marzano-Parisoli (2004, p. 35), o modelo de corpo magro se aplica ao corpo feminino,
o corpo das manequins (apesar de algumas mudanças), já o modelo de corpo masculino
se refere ao corpo atlético do “body-builders” aos quais, estes dois ideais corporais
(diferentes) estão em combate perpétuo contra a obesidade, a moleza e o relaxamento.
Portanto, o corpo magro em todas as suas especificidades não se aplica ao corpo
masculino totalmente, pois o ideal social do corpo masculino direciona o homem para
buscar construir este ideal através da prática de exercícios físicos a fim de torná-lo
compacto e musculoso. Não é à toa, que todos os entrevistados colocaram a “magreza”
como a forma corporal responsável pelas mazelas da sua vida, atribuindo a essa forma
corpórea um lugar de infelicidade, desprezo, incapacidade e insatisfação. Foi uma
composição corporal posta como responsável por diferenciar negativamente os
entrevistados no seu convívio social, por muito, um empecilho na sua aceitação social,
nos seus desejos e necessidades. Ao fugirem dos padrões amplamente aceitos
socialmente enfrentaram a “desigualdade” e a rejeição ressonando de forma dolorosa na
suas vidas individuais desencadeando emoções como o medo, a angústia, a ansiedade e
a frustração. Conforme os depoimentos dos entrevistados, o modelo corporal de
“magreza” corresponde também um desvio, em relação ao ideal corpóreo masculino
57
Para Fischer (2007), existe uma ambiguidade em relação ao corpo gordo na nossa sociedade
contemporânea onde de um lado, “o gordo” representa a alegria, o bom humor, o gosto pela boa mesa e
pelo convívio, por outro lado carrega o estereótipo de doente, depressivo, irresponsável, egoísta e sem
controle de si mesmo. Assim, “o gordo”, por um lado, é simpático e extrovertido e por outro, suscita a
reprovação e a discriminação social.
58
Para Nair Lumi Yoshino (2007, p. 116), “a obesidade pode enquadrar-se no que Goffman designou de
“abominações do corpo”, como as deformidades físicas visíveis que afetam as relações sociais, tornando
os obesos diferentes dos demais, com deformidades na aparência corporal que foge dos padrões
idealizados socialmente (principalmente em nossa sociedade onde a valorização da estética e da beleza
toma caráter radical).
65
valorizado socialmente. Para os entrevistados, ser magro representa ser “feio”,
desprezado, desvalorizado, corresponde um defeito que precisa ser corrigido, “um
rascunho”, uma “matéria prima” que precisa ser modificada (LE BRETON; 2007;
2011).
Portanto, tendo em vista os depoimentos, podemos enquadrar o modelo de corpo
“magro” ao que Goffman (1998) designou de “abominações do corpo”, fazendo desta
forma corporal uma aberração, uma deformidade capaz de afetar negativamente as
próprias relações sociais. Assim, a insatisfação da imagem corporal no seu modelo de
“magreza” foi sem dúvida, um dos elementos fundamentais que direcionaram os
entrevistados para o uso dos esteroides anabolizantes59 e outras substâncias.
“E o cara magro pega ninguém! (...) Rapaz... eu era magro demais...
eu era o mais magro de tudo... da rua, da turma, da galera todinha que
eu andava, que eu conhecia, que eu já tinha visto... quando fui para o
colégio e cheguei na sala os caras ficavam tirando onda porque eu era
magro... essas coisas... aí isso me fez voltar a frequentar academia...
tomei contato com a galera que tomava anabolizantes... eu via como
eles eram fortes... aí eu falei ‘vou tomar esse negócio aí’! porque eu
não aguento ficar assim mais não... aí comecei (fazer uso dos
EAAs)...” (Entrevistado, 24 anos).
“... Minha vida todinha eu fui muito magro... muito magro mesmo...
aí quando eu tinha 17 anos eu comecei a malhar... eu tava muito...
raquítico... muito ranzinza... eu falei ‘tenho que melhorar...’ aí foi
quando eu comecei a fazer uma dieta... fazer exercício... aí comecei a
malhar...porque só a grade (magro) é fei (feio) demais pô... nenhuma
mulher gosta de cara magro não... tu já viu alguma mulher dizer para
uma cara magro que ele é gostoso...? quem gosta de osso é
cachorro...” (Entrevistado, 26 anos).
59
Sabino (2004, 2007), argumenta que apesar dos consumidores das drogas (incluindo os EAAs) serem
consideradas por muitos como desviantes, a utilização dos esteroides anabolizantes se realiza em
contextos e visões de mundo diferenciadas daquelas que comumente são associadas aos usuários
tradicionais de outros tipos de tóxicos. Nas suas palavras (2004, p. 9), “os indivíduos que “tomam
bombas”, como eles mesmos dizem, têm, em geral o desejo de integração à cultura dominante. Seu
“desvio” se realiza por intermédio de um processo que se constitui em tentativa de enquadramento no
sistema social dominante. Processo de construção do corpo onde a forma física apresenta-se como atitude
não-desviante. A utilização destas drogas (EAA) para construção de um corpo musculoso se faz não com
o objetivo de subversão sistemática, mas sim como tentativa de se harmonizar com os padrões estéticos
vigentes na cultura dominante, sintonia que possibilite aquisição de status, não apenas no interior do
grupo, mas na sociedade geral.” Nestas condições postas por Cesar Sabino, os usuários de EAA não se
encaixam (pelo menos momentaneamente) na categoria de estigma no sentido de Goffman que condiz
com a capacidade de não aceitação social plena. Contudo, se consideramos os EAAs como drogas de
“desviantes” tendo em vista os depoimentos dos entrevistados, se pode afirmar que o modelo corporal
“desviante” (corpo magro) colocado nas entrevistas corresponde uma das forças motriz para o uso de
ferramentas “desviantes” como é o caso dos EAAs. Em uma palavra, o “desviante” utiliza-se de
ferramentas do desvio para integrasse.
66
“Eu... sempre fui um cara muito magro (...) quando eu era magro... ia
para festas, shows por aí entendeu? E... cansava vê meus amigos ficar
com as meninas e... eu ficar... sem pegar ninguém ... na praia ficava
com camisa porque... eu tinha vergonha de tirar a camisa, ficavam me
apelidando e... mesmo que fosse na brincadeira eu não gostava. as
meninas nem olhavam pra mim é.... como seu fosse nada
entendeu...?” (Entrevistado, 25 anos).
“Eu me achava magro demais, magro demais... (as pessoas) ficavam
magrelo pra lá, magrelo pra cá... e eu ficava só na minha mente
“vocês vão ver o magrelo quando eu tomar as paradas (EAA)”, aí
quando comecei a tomar bomba (EAA) e fiquei forte no instante
pararam de tirar onda comigo.” (Entrevistado, 30 anos).
Os entrevistados afirmaram que foram alvos de diversas “brincadeiras”,
provocações, discriminações e preconceitos em face do seu invólucro corpóreo. Esta
forma corporal foi vista por eles, como o paradigma estético negativo, sinônimo de
falência moral e física, fazendo deste modelo corporal um “peso” no convívio social.
Conforme os relatos, as agressões (morais e físicas) eram uma realidade comum na vida
cotidiana dos entrevistados devido a sua forma corporal. Esta situação se fazia presente
tanto no círculo de amizade dos entrevistados como também, por pessoas estranhas
(segundo eles) agravando específica realidade. Um dos entrevistados, por exemplo,
afirmou que a porta de entrada para o consumo dos EAAs e outras substâncias foi o
conflito (agressões morais e físicas) sofrido por ele no seu convívio social. Segundo
palavras do próprio entrevistado, ele sofria de bullying, representando importante
evidência para que se possa concluir, que o entrevistado estava como afirma Erving
Goffman (1982, 1993), inabilitado para desfrutar de uma aceitação social plena,
caracterizando assim, um indivíduo marcado, estranho, estragado e diminuído. Portanto,
por sofrer uma espécie de “estigma”60 no sentido de Goffman, o entrevistado se viu
diante da “necessidade” de fazer uso dos esteroides anabolizantes para proporcionar
uma modificação da sua forma corporal, para com isso, intimidar e impor respeito em
face aos indivíduos que o estigmatizavam e os demais. Em conversa informal depois da
entrevista gravada, o entrevistado confidenciou que tinha medo de sair de casa e ir ao
60
Em Goffman (1982), o termo estigma está associado a um atributo profundamente depreciativo. Para
este autor, o termo estigma (otíyua), foi criado pelos gregos, para designar os sinais corporais, que
evidenciavam algum fato extraordinário ou mau sobre status moral de quem o apresentava. Segundo
Goffman (1982, p. 12), o estigma corresponde “um atributo que o torna (o estranho) diferente dos outros
que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos
desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de
considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída”. Tal característica
é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande.
67
colégio para não ficar diante dos meninos da sua rua que os apelidavam, provocavam e
também os batia. Podemos supor, que o modelo corpóreo posto pelos entrevistados
como negativo (corpo magro), violava as normas e regras na sua comunidade social e na
sociedade em geral, passando a existir em um estado de transgressão, ou seja, em um
estado desviante. O modelo corporal de magreza representava um atributo que
diferenciava os entrevistados no seu convívio social, diferenciando eles dos outros,
passando a serem pessoas marcadas pelo desvio.
“É... na verdade tive alguns motivos para começar o uso (EAA e
produto de uso veterinário), um deles foi que quando eu tinha por
volta de 16 pra 17 anos... porque no meu colégio e na minha rua eu
tava sofrendo... o que se chama hoje de bullying, né?... O pessoal me
provocava e me procurava muito pra me bater então... eu achava que
se eu tomasse anabolizante e ficasse com o corpo maior eu poderia
intimidar esse pessoal que tava me provocando né?” (Entrevistado, 20
anos).
A insatisfação com a imagem corporal foi sem dúvida um dos principais núcleos
redundantes colhidos no discurso dos entrevistados. Em suma, a insatisfação da imagem
corporal desenvolve uma relação conflituosa entre o indivíduo e seu corpo,
impulsionando uma severa oposição entre os mesmos. Cria-se um estranhamento que o
indivíduo muitas vezes não se reconhece no seu próprio corpo proporcionando uma
tensão entre indivíduo/corpo. Esta discrepância se amplia em um cenário de
intensificação do culto ao corpo, proporcionando uma maior valorização social e
individual da imagem corporal.
Em nossa sociedade do consumo, a representação de corpo faz deste objeto, uma
propriedade em que cada sujeito é responsável pela sua forma corporal
(GOLDENBERG 2002; LE BRETON 2009, 2011) ou como bem observou Anthony
Giddens (2002, p. 98), na contemporaneidade “tornamo-nos responsáveis pelo desenho
de nossos corpos”. Para Mirian Goldenberg (2007, p 9), o slogan do mercado do corpo
se baseia na afirmação que “não existem indivíduos gordos e feios, apenas indivíduos
preguiçosos”, onde qualquer pessoa com esforço e utilizando as armas certas, pode
alcançar o corpo que sonha. Em outras palavras, a ideologia de nossa sociedade do
consumo, faz do corpo, ou melhor, da forma corporal o reflexo do nosso esforço, na
68
alegação que cada um tem a forma corporal que merece61. Porém, para Lipovetsky
(2000), esta realidade se fundamenta a partir princípios contraditórios, pois, quanto mais
se impõe o ideal de autonomia individual, mais se aumenta a exigência de conformidade
aos modelos sociais do corpo. Na esteira disso, Siqueira & Faria (2007) afirmam que ao
mesmo tempo em que a virtualidade liberta o corpo da massa, da gravidade,
paradoxalmente, há um estímulo cultural para que o corpo seja disciplinado em
academias de ginásticas ou nas salas de cirurgia estéticas, para que assuma uma
determinada forma, culturalmente considerada agradável.
Nesta linha, os entrevistados consideraram o próprio corpo como objeto
imperfeito, como “matéria prima” que precisava ser trabalhada. Alguns entrevistados
afirmaram que sempre foram insatisfeitos com seu corpo, com sua imagem corporal.
Por outro lado, a maioria deles indicou que no primeiro momento, não ligavam muito
para a forma corporal, mas, que as “adversidades” e “influências” ocorridas no convívio
social, impulsionaram uma nova forma de percepção e relação frente ao corpo.
O importante para os entrevistados seria construir uma forma corporal
modificando determinadas partes essenciais do corpo aos seus olhos e também dos
outros, para entrar em conformidade com a ideia que eles têm de si mesmo. Em outros
termos, os entrevistados colocaram-se fora de si para se tornarem indivíduos, em uma
espécie de interiorização constante e auto-regulada para sua exteriorização na
construção de sua identidade em um mundo de identidades descentralizadas62. Como
afirma Le Breton (2003, p. 22), o corpo é um elemento material de presença do homem,
não uma identidade ontologicamente falando, pois, esta hoje só se verifica depois de um
trabalho de transformação e construção da forma corporal como princípio de
reconhecimento de si.
Conforme exposto nos depoimentos, a insatisfação da imagem corporal dava-se
de várias maneiras, seja no sucesso dos outros (amigos, conhecidos ou estranhos) que
detinham uma forma corporal “diferenciada”, nas “brincadeiras” que eram alvo devido
61
Não precisamos ir muito longe para encontrarmos nos meios de comunicação discursos como: “você
pode ter o corpo que deseja”, “mude seu corpo, mude sua vida”, “só depende de você” e dos meios
necessários juntamente com as ações certas, para a obtenção de tal forma corporal desejada. Realidade
esta, que proporciona uma maior reflexividade frente ao corpo, alvo de monitoramento e autocontrole
constante.
62
Para Goldenberg & Ramos (2002, p. 20), em nosso contexto social e histórico onde impera o
dinamismo, a instabilidade e o transitório, “no qual os meios tradicionais de produção da identidade (a
família, a religião, a política, o trabalho, a escola, entre outros) se encontram enfraquecidos, é possível
imaginar que muitos indivíduos ou grupos estejam se apropriando do corpo como um meio de expressão
(ou representação) do eu”.
69
ao seu modelo corporal “desviante”, nas decepções e fracassos em suas relações
(amizade e amorosa), no simples olhar ao espelho ou em uma foto, dentre outros. Nestas
condições, os entrevistados implementaram várias ações ligadas ao corpo, como
reflexos dos seus desejos e necessidade, na busca de transformar e construir um “corpo
que é seu”, ou melhor, uma forma corporal com assinatura própria, na tentativa de criar
ou restaurar sua identidade, uma aparência particular, um sentimento de pertencimento
de si mesmo. Por outro lado, segundo Jean Jacques Courtine (1995, p. 89), seria a
metamorfose para o renascimento individual, assim sendo, o desafio do inato para fazer
de você um outro. Para Le Breton (2003, p. 29), “o corpo torna-se emblema do self. A
interioridade do sujeito é um constante esforço de exterioridade, reduz-se à sua
superfície. É preciso se colocar fora de si para se tornar si mesmo”.
Os esteroides anabolizantes seriam para os entrevistados, a ferramenta
“necessária” e indispensável para construção de um “novo corpo” e portando, de uma
“nova vida” para que esta entre em conformidade e harmonia com seu eu interior. O uso
dos EAAs seria a tentativa de “sentir-se em casa no seu próprio corpo” (GIDDENS,
2002, p. 96) fazendo da modificação corporal um restaurar do self e um fortalecer de
sua identidade ameaçada.
“Hoje eu me reconheço nesse corpo que eu tenho hoje... é o melhor
que já tive” (Entrevistado, 20 anos).
“Eu nunca gostei do meu perfil... do meu corpo muito menos e
quando tive a oportunidade entrei na academia pra ficar diferente...
pra mudar o que eu era... pra ficar com um corpo legal e me sentir
bem, porque eu nunca fui feliz do jeito que eu era (...) hoje (com o uso
dos EAA) me sinto diferente, melhor comigo mesmo...”
(Entrevistado, 25 anos).
Para os entrevistados, a transformação do invólucro corporal através do uso dos
esteroides anabolizantes, foi de fundamental importância para a diferenciação, a
identificação e o reconhecimento no seu meio social. Isso seria possível, conforme
alguns teóricos do corpo (DOUGLAS, 1976; GOLDENBERG & RAMOS, 2002; LE
BRETON, 2004; CASTRO, 2007), porque na contemporaneidade (também em outras
sociedades e culturas) somos alvos de valorização, depreciação, qualificação,
identificação, estigmatização e adoração frente ao corpo. Pois, o corpo está carregado de
símbolos e valores que são compartilhados com outros integrantes da comunidade social
e cultural em que o indivíduo se encontra inserido.
70
O EAA foi à grande arma, a tábua de salvação, a ruptura de certas situações na
vida dos entrevistados, que os causavam mal-estar dentro do seu convívio social. Foi à
responsável pela mudança não apenas na imagem corporal, modificando a relação de si
como o próprio corpo, mas a relação de si com os outros. Assim, a totalidades dos
entrevistados afirmou que a modificação da imagem corporal (via esteroides
anabolizantes e outras substâncias) foi à responsável pela emancipação no nível de
aceitação frente a outras pessoas principalmente mulheres e amigos. Para eles, a
transformação corporal proporcionou uma alteração radical dentro das suas interações
sociais servindo de motivação para as regularidades no uso dos EAAs e outros produtos.
Segundo relatos, a transformação da forma corporal estaria ligada diretamente com a
satisfação pessoal (autoconfiança, autoestima) e reconhecimento dos outros
(intimidação, respeito, poder) principalmente no atrair o sexo oposto como ficou claro
nos depoimentos dos entrevistados.
“(...) hoje, vou pra festas e fico com meninas, as meninas olham pra
mim, tá ligado...? me chamam de gostoso, de bombado e eu gosto
disso... me sinto bem... vou pra praia tiro logo a camisa e vejo que
algumas mulheres olham pra mim e isso me faz muito bem... Pra
minha auto-estima né? pra meu ego... hoje me sinto diferente, melhor
comigo mesmo entendeu...?” (Entrevistados, 25 anos).
“(depois do uso dos EAAs) quando cheguei (nos lugares que
costumava frequentar) já foi outra coisa totalmente diferente... as
negas (mulheres) já ficavam visando já... as meninas já me via né? era
as meninas de olho em mim e os caras com inveja querendo quebrar o
cara... porque o cara tava fortinho... oxe... eu não estava nem aí... não
queria nem saber... eu pegava todas que vinha...” (Entrevistado, 24
anos).
“... na época que eu era magro, muito magro mesmo, saía na avenida e
não pegava (sexo oposto) ninguém... depois que comecei a malhar e
fiquei grande (ao fazer uso dos EAAs), braço grande, peitoral gigante
e barriga trincada... foi tudo diferente (...) as coisas mudaram pra
melhor na minha vida... se antes eu era colocado de lado. hoje as
coisas são diferentes. Além do mais, depois que fiquei diferente
arrumei uma namorada...” (Entrevistado, 23 anos).
Como se sabe, o corpo é considerado por muitos como lócus carregado de uma
multiplicidade de valores e signos determinados pela cultura (DOUGLAS, 1976;
BAUDRILARD, 1995; LE BRETON, 2011). Nestas condições, existem corpos
hipervalorizados como também, existem modelos corpóreos considerados como
desviantes, ou seja, que fogem dos padrões estabelecidos e valorizados socialmente. A
71
insatisfação da imagem corporal apresentada no discurso dos entrevistados estava de
alguma forma ligada ao sentimento de vergonha, que se configurava dentro das
interações sociais. O sentimento de vergonha com a imagem corporal surge quando o
indivíduo percebe que seu invólucro corpóreo não corresponde aos modelos corporais
valorizados culturalmente. E não só isso, quando o próprio indivíduo não é aceito em
certos grupos, sendo colocado como diferente, visto de forma negativa em face aos
outros. Tal realidade, pode proporcionar o aparecimento do sentimento de vergonha
frente a imagem corporal, a ponto de possivelmente considerar a forma corpórea, como
um atributo “impuro” diante da “normalidade” imposta na sua comunidade social. Na
visão de Luc Boltanski (1989), a propagação do sentimento de vergonha frente à
imagem corporal se verifica quando o indivíduo de classes inferiores comparam seus
corpos e estilos de vida aos padrões estabelecidos e valorizados socialmente, providos
das classes dominantes, sendo divulgados e propagados pela mídia e publicidade. Ainda
segundo Boltanski (1984, p. 183), esta vergonha que se propaga pela difusão e
valorização de específicos cânones dominantes, carrega a etiqueta de classe, “pois a
vergonha do corpo assim suscitada não é talvez senão a vergonha de classe”. De
qualquer modo, a forma corpórea correspondeu para os entrevistados o vetor de ligação
ou diferenciação, de rejeição ou aceitação na sua comunidade social, pois como bem
escreveu Le Breton (2003, p. 31), “é por seu corpo que você é julgado e classificado”.
Alguns entrevistados alegaram ter passado por vários constrangimentos, por
possuírem uma forma corporal que não era aceita e bem vista pelos outros, sendo
muitas vezes motivo de piadas, gozações, agressões (físicas e morais) e preconceitos.
Na visão de Giddens (2002. p. 65), a vergonha afeta diretamente a auto-identidade do
indivíduo, sendo estimulada por sentimentos de vivências de inadequação ou
humilhação. Assim para este autor (2002), o sentimento de vergonha pode ameaçar ou
destruir o sentimento de confiança em si, sendo um obstáculo para autoconfiança.
“[Tinha vergonha de ser magro] com certeza... os caras ficava me
apelidando... até as meninas ficavam frescando da minha cara... eu
ficava puto... morrendo de raiva... morrendo de vergonha... tentava
comer tudo que via na minha frente para deixar de ser magro... pra
melhorar... tentar engordar... mais não tinha jeito... eu era magro do
mesmo jeito...” (Entrevistado, 24 anos).
“Não vou mentir, tinha vergonha de tirar a camisa, meus amigos
ficavam dizendo que eu era só o palito, essas coisas... aí, morria de
vergonha...” (Entrevistado, 23 anos).
72
Foi possível perceber conforme os depoimentos, que o sentimento de vergonha
representava um entrave na ação e na participação de certos eventos do cotidiano. O
medo das “brincadeiras”, da discriminação, dos olhares alheios, da simples exibição
corporal, das agressões físicas e morais estavam presentes na vida cotidiana da maioria
dos entrevistados. O medo da vergonha como sentimento paralisante estava presente em
várias situações, seja na escola, na praia, em casa, diante do espelho, no círculo de
amizade e no contato com outras pessoas. Esta realidade foi à força motriz para prática
da musculação na intenção da emancipação do sentimento de vergonha da forma
corporal. Porém, a prática da musculação também pode despertar ou ampliar o próprio
sentimento de vergonha do corpo, tendo em vista o ambiente da academia. Muitos dos
entrevistados alegaram que sentiram vergonha e ao mesmo tempo “inveja” das formas
corporais de outros praticantes de musculação da academia frequentada. Sentiam-se
envergonhados em face aos outros (alunos da academias de musculação) que possuíam
formas corpóreas “privilegiadas”, a ponto de evitar passar pertos deles e de utilizar
paralelamente as mesmas máquinas de exercícios. Um dos entrevistados (em conversa
informal), afirmou que mudou o horário da sua “malhação” para não “dividir” o mesmo
ambiente com os “fortões” da academia e assim, não ficar exposto ao sentimento de
vergonha. Esta realidade é uma faca de dois gumes, que por um lado, é capaz de
potencializar a própria desistência da prática da musculação, por outro, pode
impulsionar a própria utilização de substâncias que prometem acelerar o crescimento da
massa muscular como é o caso dos esteroides anabolizantes e suplementos alimentares.
Para os entrevistados, o “fim” do sentimento de vergonha corporal se verificou
com modificação da forma corpórea graças à utilização dos esteroides anabolizantes
com a intenção de hipertrofia da massa muscular. Em outros termos, os esteroides
anabolizantes formam para os entrevistados, os responsáveis pela emancipação da
vergonha corporal e de todas as “algemas” que este sentimento lhes proporcionava.
Contudo, vemos constantemente pessoas cometerem exageros nos exercícios físicos
além de fazerem uso de ferramentas arriscadas em prol do reconhecimento social e do
expor do corpo sem nenhuma vergonha (GOLDENBERG & RAMOS, 2002;
MALYSSE, 2002).
Por fim, levando em conta o discurso dos entrevistados seguem alguns fatores
que impulsionaram a prática da musculação:
73
• A Insatisfação da imagem corporal no seu modelo de corpo “magro”
• O sentimento de vergonha da forma corporal
• As influências dos amigos
• A importância do corpo na conquista de parceiros sexuais
• A relevância do corpo para aceitação e integração social
• À vontade ou necessidade para se encaixar aos padrões de beleza
massificados.
• A emancipação dos entraves vividos no meio social
• Exposição e desnudamento corporal
• Violência psicológica e física
• Emancipação dos estigmas pelo seu “desvio” (“brincadeiras”, “provocações”,
agressões morais e físicas, discriminações, preconceitos, dentre outros).
No que se refere aos fatores que direcionaram os entrevistados para o uso dos
hormônios esteroides anabolizantes podemos citar:
• Potencializar os objetivos traçados
• Concretizar a forma corpórea idealizada
• A importância do momento presente
• A exibição maior do corpo
• As influências dos amigos
• Melhorar o desempenho na prática da musculação (ampliação da força,
energia, explosão e da performance de modo geral).
Diante de específico cenário, a busca pela transformação da forma corporal ligase a uma realidade cercada de uma multiplicidade de opções e escolhas em que os bodybuilding têm que tomar decisões o tempo todo, tendo como vetor central a própria
forma corporal. Isso é possível, porque o corpo na contemporaneidade é cada vez mais
uma questão de opções e escolhas (GIDDENS, 2002), principalmente no que envolve a
busca pela sua modificação. E diante de uma realidade em que o corpo encontra-se
envolvido em uma pluralidade de possibilidades, ao mesmo tempo, que o indivíduo na
busca pela transformação da imagem corporal situa-se em um mundo cercado por
sensações de incerteza e inseguranças, a noção de confiança e medo tem importância
74
particular. Assim, o medo e a confiança são extremamente relevantes, pois encontram
ligados às decisões que precisam ser tomadas, principalmente em uma existência
repletas alternativas e portanto, se tornam fundamentais na modelagem e no
direcionamento das condutas.
75
CAPÍTULO IV
CONFIANÇA E MEDO NO USO DOS ESTROIDES ANABOLIZANTES
4.1 CONFIANÇA E USOS NOS ESTEROIDES ANABOLIZANTES
O conceito de confiança vem sendo trabalhado por diversas áreas do
conhecimento, desde pesquisas no âmbito da psicologia até a economia. Já nas ciências
sociais tal termo tem sido utilizado e desenvolvido por vários autores relevantes (Georg
Simmel, Niklas Luhmann, Ulrich Beck, Antony Giddens)63. Como enfatizado por
Zamboni (2010, p.26), a noção de confiança é extremamente importante nas ciências
sociais, ligando-se com questões tais como interação social, ordem social, controle
social, entre outras.
A confiança é um mecanismo fundamental para qualquer organização social,
seja nas relações sociais, institucionais, na política, economia, etc. A confiança,
representa um elemento extremamente importante no contexto da modernidade,
principalmente porque vivemos em uma realidade em que as instituições estão
amplamente desencaixadas, ligando práticas locais em um mundo cada vez mais global;
organizando grandes aspectos da nossa vida cotidiana (GIDDENS, 1991). Assim, não
podemos sequer imaginar o mundo moderno sem este elemento fundamental, para
manutenção e desenvolvimento das relações sociais, das instituições sociais e da
sociedade como um todo. Esta centralidade se estabelece depois que a modernidade
demoliu as antigas estruturas tradicionais e junto com elas, as antigas formas de
interação social, sob as bases do parentesco, da religião, da tradição e da localidade
encaixadas. Com o estabelecimento de novas formas de interação social64 criou-se as
condições que faz da confiança algo imprescindível no contexto moderno. (GIDDENS,
1991, 2002).
63
Apesar da sua relevância na discussão atual nas ciências sociais, podemos dizer que esse conceito ficou
por muito tempo esquecido, principalmente se levarmos em conta sua ausência na discussão da sociologia
clássica. Em suma, mesmo com o desenvolvimento no estudo da confiança nos últimos anos, ainda se tem
muito que avançar para uma abordagem mais sistemática da teoria da confiança.
64
Diferentemente das sociedades pré-modernas onde os encontros sociais se davam quase que
exclusivamente no contato face a face, nas condições modernas as relações sociais são cada vez mais
desencaixadas, ou seja, a relações sociais encontra-se amplamente deslocadas dos seus contextos locais e
estão reestruturadas e distribuídas em extensões indefinidas de tempo-espaço.
76
Não é mais novidade colocarmos o mundo contemporâneo como uma época
marcada por sensações de incerteza e insegurança. Em suma, uma das fontes que
colocam em xeque o status de segurança e certeza é a institucionalização do princípio da
dúvida radical em uma realidade cercada por uma diversidade de opções e escolhas. Em
específico cenário, a noção de confiança é considerada decisiva, principalmente porque
na atualidade existe uma dependência crescente dos indivíduos em relação aos sistemas
especializados65. Como bem colocou Anthony Giddens (2002, p. 11), a confiança é um
fenômeno genérico fundamental para o mundo moderno, pois além de ser indispensável
na construção e desenvolvimento da personalidade, ela também tem relevância singular
em uma organização social com mecanismos de desencaixe e sistemas abstratos66.
Ainda segundo Giddens (1991, p. 87), “a natureza das instituições modernas está
profundamente ligada ao mecanismo da confiança em sistemas abstratos, especialmente
em sistemas peritos”.
Estamos cercados por sistemas peritos por todos os lados. Em casa, na rua, no
trabalho ou onde quer que seja, estamos envolvidos numa série de sistemas
especializados nos quais a confiança neles é fundamental. Em tese, a confiança seria o
veículo de interação dos indivíduos com os sistemas especializados. Estes sistemas
contribuem de maneira significativa para a segurança na vida cotidiana, prometendo a
soluções dos problemas (porém pode criar novos problemas com resultados indesejáveis
e não previstos) através da sua eficácia e da “certeza” do risco mínimo.
O indivíduo contemporâneo encontra-se cada vez mais dependente dos sistemas
especializados, tanto nas experiências básicas quanto nas extraordinárias. Estes sistemas
de conhecimentos especializados influenciam de maneira atuante em muitos dos
aspectos sociais vividos na atualidade. Esta dependência se completa quando os
indivíduos recorrem frequentemente aos especialistas para a tomada das decisões em
uma realidade cercada por uma pluralidade de opções e escolhas. Esta realidade se
verifica em amplas extensões da vida cotidiana fazendo parte do contexto dos
indivíduos modernos.
A própria corporeidade contemporânea encontra-se integrada com uma série de
sistemas especializados aos quais as pessoas depositam a confiança em específicos
65
Sistemas especializados ou sistemas peritos se referem a “sistemas de excelência técnica ou
competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos
hoje” (GIDDENS, 1991, p. 35).
66
Para Giddens (2002, p. 223), sistemas abstratos correspondem às fichas simbólicas (sistema monetário)
e aos sistemas especializados tomados em conjunto.
77
conhecimentos. Para Giddens (2002, p. 15), os sistemas peritos afeta de modo difuso o
corpo, onde este “é cada vez menos um dado extrínseco, funcionando fora dos sistemas
inteiramente referidos da modernidade”. Assim, muito da relação do homem com seu
corpo na atualidade passa pela integração e confiança nos sistemas especializados.
De maneira específica, a própria transformação da forma corporal liga-se à
confiança em um conjunto de sistemas especializados que são considerados por muitos
indispensáveis, considerando certos objetivos traçados. Os sistemas especializados
disponibilizam os meios técnicos necessários que prometem (através dos mecanismos
de informação), modificar a forma corporal para satisfazer os anseios do sujeito na
busca pela realização do prazer e uma dose de boa segurança, estando “disponível para
qualquer um, desde que tenha os recursos, tempo e energia para adquiri-lo” (GIDDENS
2002, p. 35). Estes sistemas estão presentes, por exemplo, nas cirurgias plásticas e
estéticas, nas dietas e regimes corporais, em muitas das atividades físicas, nas
academias de ginásticas e musculação, no consumo de suplementação alimentar, dentre
outros, dando o suporte “necessário” na busca para modificação do invólucro corpóreo.
Por isso, Giddens (2002, p. 201) afirma que “o corpo está agora plenamente disponível
para ser ‘trabalhado’ pelas influências da alta modernidade”, principalmente porque
vivemos em uma organização social que ninguém pode optar por sair completamente da
influência de tais sistemas abstratos, diferentemente do contexto das sociedades prémodernas, onde os indivíduos poderiam ignorar os pronunciamentos de sábios e
sacerdotes, (GIDDENS 1991, 2002).
Ao frequentar uma academia de musculação, por exemplo, o indivíduo toma
contato com um conjunto de sistemas especializados com a função de modificar a forma
corporal. Assim, ao executar uma série de exercícios nas mais diversificadas máquinas,
seguindo o roteiro preparado por um profissional de fitness (instrutor da academia e
personal trainer), envolve-se em uma rede de sistemas especializados aos quais deposita
confiança. Depois, ao consumir alguns produtos referentes à sua dieta e ao projeto
corporal, a exemplo dos suplementos alimentares, dietéticos, anabolizantes naturais e
até medicamentos, embarca em um universo diferente de outros sistemas especializados
com a intenção de modificar a forma corpórea.
A confiança torna-se fundamental diante desta relação dos indivíduos com os
sistemas especializados na busca pela transformação da forma corporal. Mas, para o
estabelecimento da confiança (da pessoa leiga) em tais sistemas não se faz necessário a
78
“plena iniciação nestes processos nem o domínio do conhecimento que eles produzem.
A confiança é inevitavelmente, em parte, um artigo de ‘fé’.” (GIDDENS, 1991, p. 36).
Tomamos como exemplo o consumo de suplementos alimentares. Normalmente
um frequentador de academia de musculação (ou qualquer praticante de atividade
física), ao fazer uso de suplementação proteica (ou qualquer outro tipo de
suplementação), confia no consumo deste produto, mesmo não estando presente no
local onde foi produzida a embalagem do produto, nem quando o produto estava sendo
fabricado. Ou seja, ele estava ausente no momento da fabricação da embalagem, do
produto e ainda se encontra alheio às condições de higiene, a qualidade, e desconhece os
participantes do processo produtivo67. Além do mais, tem pouco ou nenhum
conhecimento das técnicas de produção e das substâncias contidas no produto, etc.
Mesmo assim, faz uso do produto na confiança, não necessariamente de quem fez ou
vendeu o produto (porém a confiança na competência e credibilidade também é
importante para o fortalecimento na confiança em sistema), mas no conjunto de
conhecimentos técnicos de específico sistema perito.
Os indivíduos nas sociedades modernas tendem a confiar relativamente nos
sistemas especializados (confiabilidade relativa aos mecanismos de desencaixe), mesmo
sob as bases da ignorância prática e do conhecimento em tais mecanismos sociais. Isso
só é possível porque no contexto moderno “só se exige confiança onde há ignorância”,
fazendo de toda confiança “num certo sentido confiança cega” (GIDDENS, 1991, p. 92
e 41). Em relação aos sistemas especializados, a confiança coloca entre parênteses a
própria ausência de conhecimento técnico que a pessoa leiga possui em face aos
sistemas especializados (GIDDENS, 2002). Porém, esta relação de ignorância dos
indivíduos com os sistemas especializados é um fenômeno ambivalente, podendo haver
respeito pelo conhecimento técnico ou medo como reflexo das inseguranças e
incertezas. Assim, a ignorância fornece o terreno para a confiança ou para o ceticismo e
cautela. Segundo Giddens (1991, p. 93), o respeito para com o conhecimento técnico
existe paralelamente em conjunto com uma atitude pragmática pelos sistemas abstratos,
baseada em atitudes de ceticismo ou reserva. Hoje em dia são poucos os indivíduos que
mantêm uma confiança nos conjuntos de sistemas especializados de forma
incondicional.
67
Nas palavras de Giddens (1991, p. 87), “em certas circunstâncias, a confiança em sistemas abstratos
não pressupõe encontro algum com indivíduos ou grupos que são de alguma forma ‘responsáveis’ por
eles”.
79
A confiança ou sua falta para com os sistemas especializados são passíveis de
serem fortemente influenciados por experiências, como também, por atualizações de
conhecimentos devido à revisão constante a que estão sujeitos. Um partidário da prática
da musculação, por exemplo, ao ter uma experiência infeliz com o consumo de um
específico suplemento alimentar pode decidir vedar o contato com o representante
responsável pela venda, como também, com o próprio produto utilizado. Ele ainda pode
decidir não fazer (ou fazer) uso de determinado produto a partir de novos
conhecimentos expostos nos meios de comunicação.
De forma oposta, existem outras situações que o próprio conhecimento dos
sistemas especializados pode ser ignorado. Se por um lado pode existir desconfiança
para com o discurso “positivo” apresentado pelo conhecimento especializado, também
pode ocorrer o contrário, ou seja, que o leigo pode não levar em conta o lado “negativo”
apontado por esses mecanismos sociais. Tomamos como exemplo os adeptos da
musculação. Essas pessoas, ao desempenharem esta modalidade de exercício físico,
encontram-se integradas a um conjunto de sistemas especializados, ao qual, além de
disponibilizarem os meios práticos, também expõem os conhecimentos que são filtrados
pelos mesmos para o direcionamento do discurso e da ação. O conhecimento
especializado diz o que deve e o que não deve ser feito, em prol da redução dos riscos e
consequentemente de uma maior “segurança”. Contudo, o partidário da musculação
pode abandonar o posicionamento do conhecimento especializado, ignorando o risco ao
seguir o direcionamento oposto do indicado.
Ao decidirem fazer uso dos EAAs na intenção da modificação da forma corporal
para fins puramente estéticos seguem o direcionamento oposto ao indicado pelo
conhecimento especializado. A finalidade colocada por tais sistemas especializados para
o uso dos EAAs é exclusivamente de caráter terapêutico, ou seja, no tratamento médico
de várias doenças. Assim, as informações filtradas nos sistemas que são passadas a
comunidade leiga gira em torno de que o uso dos EAAs tem indicações específicas para
área da medicina e não devem ser utilizados com intuito puramente estético ou
esportivo. Para o fortalecimento do argumento, são passados através dos meios de
comunicação e de outras fontes os riscos na utilização dos esteroides anabolizantes com
caráter estético (ou esportivo), expondo os possíveis efeitos colaterais, as alterações no
quadro metabólico, dentre outros68. Além disso, a apresentação de experiência associada
68
Em relação aos efeitos colaterais, ver capítulo II.
80
às consequências graves em vários eventos do uso indevido destas substâncias. Esta
realidade serve como mecanismo de ampliação dos medos e controle do discurso e da
ação sobre os leigos.
Estes pronunciamentos dos sistemas especializados são minimizados pelos
usuários de esteroides anabolizantes para fins estéticos, podendo até existir
desconfiança nas “verdades” lançadas por esses mecanismos sociais. Por outro lado,
usar EAAs, com caráter estético, implica em confiar numa ciência (mesmo contra o
próprio pronunciamento da ciência) que transformará rapidamente o corpo na busca por
construir um modelo corpóreo “perfeito”. Nestas circunstâncias, a estruturação da
confiança se faz a partir de condições bastante específicas, conforme o “rompimento”
com o discurso apresentado pelos sistemas especializados.
Todos os entrevistados afirmaram confiar nos esteroides anabolizantes no que
envolve suas manifestações anabólicas, ou seja, como ferramenta capaz de proporcionar
alteração da forma corporal, no sentido principalmente da sua hipertrofia muscular. A
confiança encontra-se presente, neste caso, ao depositarem específica forma de crença
no funcionamento do conhecimento técnico, seja para o crescimento da massa muscular,
ganho de força, energia, dentre outros. Sendo assim, “é mantida a fé no funcionamento
do conhecimento em relação ao qual a pessoa leiga é amplamente ignorante”
(GIDDENS, 1991, p. 91). Porém, quando ligado ao risco do aparecimento de algum
efeito colateral, a confiança no uso dos EAAs diminui, mesmo não sendo suficiente para
o abandono da utilização. Conforme observado nos depoimentos, a confiança nos
resultados é maior do que a desconfiança no não aparecimento de algum efeito colateral.
Grande parte dos entrevistados “desconsiderou” os EAAs como medicamentos
para uso exclusivamente terapêutico no tratamento de diversas doenças, utilizando-os
como produtos para desenvolvimento da hipertrofia muscular, portanto, próprios para
uso humano, seja em nível esportivo ou estético. Outros reconheceram os esteroides
anabolizantes como medicamentos, porém, também com a finalidade de hipertrofiar o
tecido muscular. Estas características citadas por alguns entrevistados são uma das
fontes da canalização do fortalecimento da confiança no uso dos EAAs em níveis
ampliados, ao mesmo tempo, uma forma de elevação da “segurança”, das “certezas” e
esperanças ligadas à utilização. Além do mais, esta visão dos hormônios esteroides
anabolizantes serve como mecanismo de “controle” dos medos, no que se refere ao
sentimento capaz de alterar o discurso e paralisar a ação. De modo geral, os esteroides
81
anabolizantes são para os entrevistados a “chave mestra” capaz de proporcionar a
mudança da forma corporal ao qual foi objetivada subjetivamente.
“Confio sim! Porque sei que se eu tomar, vou crescer, se eu mantiver
a disciplina tanto das dosagem como também na malhação, vou
conseguir o que eu quero, né? vejo meus amigos fazerem uso e
ficaram gigantes... eu, por exemplo, como já falei, era magrinho e
hoje estou bem melhor... entendeu? Vejo hoje a mudança de forma
visível no meu corpo o que eu era e o que eu sou hoje”. (Entrevistado,
20 anos)
“Confio. O cara cresce com certeza. O cara vê o resultado das outras
pessoas, aí você já fica confiante que se tomar as paradas vai crescer
também. Aí quando o cara toma e vê que ficou massa, que deu
resultado, aí a confiança em tomar aumenta, sabe? Hoje eu sei por
experiência própria, que se tomar anabolizantes não tem erro, o cara
cresce mesmo, fica grande...” (Entrevistado 23 anos)
“Confio, pô!... com certeza!... anabolizante cresce... porque se eu
tomar cresce... se tomar cresce tem erro não. Pode ser qualquer
pessoa... porque isso foi feito pra desenvolver a massa muscular, tá
ligado? Aí o cara toma pode malhar com força e esperar alguns dias
que você já vê a diferença... uns vinte dias o cara já percebe a
transformação do cara...” (Entrevistado, 24 anos)
“(confia?) Lógico que sim! Consegui esse corpo graças a eles, tá
ligado? Eu sei que se eu tomar vou crescer, e por isso continuo
tomando seguindo as dosagens certas, os ciclos das dosagens e dos
exercícios...” (Entrevistado, 25 anos)
“Tá... todo mundo sabe que se tomar anabolizantes o cara cresce,
pô... não tem nem pra onde correr... todo mundo que eu conheço
cresceu... uns mais... uns menos, porque é normal... mas eu confio
sim... todo mundo sabe que se tomar os anabolizantes o cara cresce...
eles foram feito pra isso mesmo...” (Entrevistado, 26 anos)
Além da crença de que os esteroides anabolizantes são produtos destinados à
própria transformação da forma corporal, outros fatores são extremamente relevantes
para o fortalecimento ou não da confiança na própria utilização das drogas
masculinizantes. Um fator que serviu (ainda serve) como divisor de águas para
aceitação ou rejeição na utilização dos esteroides anabolizantes para o conjunto dos
entrevistados foram os resultados da contingência do uso, tendo em vista os amigos,
conhecidos e a própria experiência subjetiva. Em outras palavras, o conjunto dos
entrevistados tomou como parâmetro para o posicionamento das escolhas a própria
experiência da utilização do uso dos esteroides anabolizantes por pessoas próximas no
82
seu convívio social, sejam eles amigos ou conhecidos. Como bem observou Giddens
(1991, 41), a confiança leva em consideração a credibilidade em face aos resultados
contingentes, porém, conforme os entrevistados, os acontecimentos mais significativos
para tomada das decisões não eram os fatos gerais, e sim os particulares ligados às
pessoas de confiança como os próprios amigos também usuários. Contudo, os eventos
levados em consideração não são aqueles ligados aos sistemas especializados
(divulgados pelos meios de comunicação e outras fontes), mas aqueles presenciados no
próprio convívio social. Esta realidade para os entrevistados é de fundamental
importância para os níveis de confiabilidade na própria utilização e escolha das drogas
da imagem corporal.
Portanto, todos os entrevistados afirmaram que a decisão de fazer uso, como
também, a escolha de específicos esteroides anabolizantes partiu, além de outras coisas,
das experiências alheias, servindo como fortalecimento da confiança ou da
intensificação do medo e da insegurança. Com efeito, muitos dos entrevistados
acreditam que os efeitos (positivos e colaterais) dos esteroides anabolizantes não são os
mesmos em todas as pessoas em que as substâncias utilizadas variam conforme cada
organismo. Esta discrepância servira muitas vezes como argumento a favor do uso,
mesmo que, por ventura, se tenha conhecimento de algum dano com terceiros. De
qualquer modo, esta particularidade não se aplica aos amigos próximos, por serem
importantes referências nas tomadas de decisão.
“... o cara tem que saber mesmo se presta, se um amigo meu já tomou,
como foi, o que ele achou... então o cara analisa pra ver as vantagens
e, se for bom mesmo, o cara toma. Porque o mundo da bomba, o que
tem que aprender é com os erros dos outros... erros e acertos... se ele
tomou e acertou e conseguiu, o cara toma também, se uma pessoa
passou mal, aí o cara já não toma, entendeu? Já apareceu vários para
eu tomar mais eu não tinha nenhum conhecimento, nenhum amigo
meu tinha tomado aí não tomei...” (Entrevistado, 23 anos)
“Confio! Lógico que sim. Por causa dos exemplos dos meus amigos,
entendeu? Eles já usavam e tinham a noção de como fazer... as
dosagens, o ciclo, o anabolizante certo para o principiante... essas
coisas... Já que eles tomavam e não acontecia nada de ruim com eles,
me dava mais vontade de tomar... Já se alguma bomba fez mal a
algum amigo meu, eu não tomo não.” (entrevistado, 23 anos)
“É... eu confio porque eu vejo o resultado nos meus amigos, né? eles
tomavam e crescia e não acontecia nada de ruim com eles... aí me
dava mais confiança em tomar também. já que eles tomaram e não
aconteceu nada de mal... eles ficavam grandes, aí vou tomar também...
83
fazia do mesmo jeito que eles falavam. Por que eles sabiam o que tava
fazendo”. (Entrevistado 27 anos)
Em situação posterior à contingência dos resultados alheios (dos amigos e
conhecidos), a própria experiência subjetiva dos entrevistados também se configurava
como elemento relevante para a aceitação ou reprovação de específicos esteroides
anabolizantes. O próprio contato direto com a substância serviu para os entrevistados
como novo parâmetro para as decisões que precisariam ser tomadas posteriormente, não
se atendo apenas à sua visão dos EAAs, à contingência dos resultados alheios e às
indicações dos amigos também usuários. A experiência subjetiva fundamentaria a
abolição de “antigas verdades” para a introdução de “novas certezas” como mecanismo
integrante da ação. Agora, o fortalecimento da confiança na utilização dos EAAs não se
concretizaria somente a partir da transformação da forma corporal de pessoas próximas,
mas na própria “mutação” que foi alvo ao tomar contato com as substâncias esteroides
anabólicas.
“Aí, depois que tomei a primeira e cresci... e o cara se olha no espelho
e vê que ficou maior, que o resultado no final das contas foi bom e
não ocorreu nada de ruim... aí tudo certo! aí o cara continua tomando
porque deu certo...” (Entrevistado, 23 anos)
“... Depois que tomei e vi que deu resultado e saiu tudo bem... Aí o
cara confia mais ainda e deixa um pouco o medo de lado.”
(Entrevistado, 27 anos)
A própria relação na utilização destas substâncias pode canalizar a possibilidade
do desenvolvimento para elevação da confiança, como também a sensação de incerteza
e inseguranças (elementos estes que alimentam o medo). Muitos entrevistados fizeram
referências a específicos esteroides anabolizantes e outras substâncias, aos quais eles
não possuem nenhuma crença. A ausência de confiança se aplica por motivos variados,
conforme foi observado pelo discurso dos entrevistados. No que se refere aos EAAs,
são eles:
1- “Baixa confiança” ou ausência dela em sua eficácia, ou seja, abandono da fé
no funcionamento do conhecimento ao qual é amplamente ignorante, fermentando a
incerteza dos resultados esperados. Assim, alguns esteroides anabolizantes foram
84
apontados pelos entrevistados como “incapazes” de proporcionar o desenvolvimento
esperado da hipertrofia muscular.
2- Por presenciar ou saber de algum dano causado pela utilização de específico
esteroide anabolizante por qualquer amigo ou pessoas próximas.
3- Ao sofrer algum efeito colateral no fazer uso de determinados compostos
sintéticos, desencadeando sensações de aversão e medo.
4- Por colocar em dúvida a legitimidade e procedência dos produtos, suas
funções e indicações.
A ausência de confiança em determinados esteroides anabolizantes, nas
condições observadas, se faz a partir da experiência subjetiva de cada entrevistado, o
que para um é sinônimo de baixa ou nenhuma confiança devido a algumas das
condições postas acima, para outros, são substâncias de alta confiança. Portanto, nas
falas dos entrevistados não existiu regularidade para os tipos específicos de esteroides
anabolizantes como sistemas não fidedignos e competentes, provocando a suspensão da
confiança do grupo entrevistado.
Tanto suplementos alimentares quanto produtos para uso veterinário também
tiveram índices de ausência de confiança. No que envolve os suplementos alimentares,
os fatores principais para a falta de confiança é o valor baixo dos produtos, a localidade
onde são produzidos e a própria marca. Para a maioria dos entrevistados, os produtos
importados são os melhores, pois, normalmente, são aqueles que possuem os valores
mais elevados e as marcas com maior credibilidade. Já os produtos que fogem a estas
características despertam uma tendência nos entrevistados de não confiarem no
funcionamento do conhecimento ao qual são leigos e amplamente ignorantes.
4.1.2 CONFIANÇA E RELAÇÕES DE “AMIZADE” NA UTILIZAÇÃO DOS
ESTEROIDES ANABOLIZANTES
A confiança nos seus diferentes tipos e níveis está na base de muitas das
decisões que tomamos servindo como elemento de orientação das ações em nossas
vidas cotidianas. Neste sentido, a confiança torna-se fundamental em relação aos
sistemas especializados e/ou nas relações pessoais. Em específicas condições, a relação
de confiança pressupõe um salto para o compromisso, estando relacionada com a
85
ausência no tempo e no espaço, como também, com a ignorância. Não precisamos
confiar em alguém quando suas atividades são totalmente transparentes, ou confiar em
algum sistema quando os procedimentos do mesmo forem inteiramente conhecidos e
compreendidos (GIDDENS, 1991, 2002).
Em particular, dentro do universo da relação de amizade, a noção de confiança
tem importância específica para o contexto moderno. A confiança nas relações de
amizade se coloca como elemento fundamental para muitas das decisões tomadas
cotidianamente, estando ligadas ou não aos sistemas abstratos. Nas sociedades
modernas, a natureza da amizade é alterada em relação ao que existia em contextos prémodernos, devido às novas configurações de interação social e à vasta extensão dos
sistemas especializados. Nos ambientes tradicionais, a confiança nos amigos além de ter
importância central era claramente definida, existindo o amigo no seu posto, o inimigo
e, por fim, o estranho. Em circunstâncias da modernidade “o oposto de ‘amigo’ já não é
mais ‘inimigo’, nem mesmo estranho; ao invés disto é ‘conhecido’, ‘colega’, ou
‘alguém que não conheço’” (GIDDENS, 1991, p. 121). Se na ordem tradicional a
amizade tinha como bases fundamentais os princípios de sinceridade e de honra, no
contexto moderno essas bases são substituídas por autenticidade e lealdade69. “Um
amigo não é aquele que sempre fala a verdade, mas alguém que protege o bem-estar
emocional do outro.”
Contudo, a maioria dos entrevistados apontou como influências para a utilização
dos EAAs (e outras substâncias) os próprios “amigos” ou “conhecidos” que fazem uso
dessas substâncias. Os amigos são, normalmente, os principais responsáveis por tudo
que envolve a utilização dos EAAs, seja influenciando o próprio uso, o tipo específico
de esteroides anabolizantes, a quantidade a ser administrada no organismo, a construção
do ciclo de aplicações e até mesmo a própria aplicação das substâncias. Porém, a maior
sensibilidade para a influência dos “amigos” ou “colegas” se dava na fase de
“inexperiência” dos entrevistados nas práticas ligadas à utilização dos EAAs. Vários
entrevistados alegaram que os “colegas” não tinham mais o poder para influenciar nas
suas decisões ligadas à utilização das substâncias, quando os mesmos passavam a
acreditar que seus saberes e experiências práticas já eram “suficientes” para o
69
Para Giddens (1991, p. 121), o companheirismo e a lealdade puramente pessoal existiram praticamente
em todas as culturas, porém, nas sociedades tradicionais a amizade era direcionada a serviços e esforços
arriscados ao qual a relação de parentesco ou comunal eram insuficientes para fornecer os recursos
necessários em diversas atividades.
86
direcionamento da ação, em face ao uso dos esteroides anabolizantes e outras
substâncias. Já no que se refere aos amigos, a influência era relativamente reduzida
pelos mesmos motivos, porém, as trocas de informações direcionadas ao uso
permanecem constantes. De qualquer forma, mesmo não possuindo nenhum
conhecimento especializado, os amigos detinham “total” confiança dos entrevistados,
no que se refere à própria utilização dos esteroides anabolizantes e outras substâncias.
Nestas condições, existe uma confiança pessoal, principalmente no que se refere à
relação com os ditos “amigos”, devido a familiaridade e fidedignidade estabelecida
entre os mesmos. Contudo, em alguns momentos nas falas dos pesquisados, não ficou
muito claro o estabelecimento das fronteiras de amizades dos mesmos, dando a
impressão da irregularidade da sua delimitação.
Tendo em vista os depoimentos, existe uma relação de mutualidade entre os
entrevistados e seus “amigos” usuários, que teve no próprio uso dos esteroides
anabolizantes um forte elo na relação, criando as condições necessárias para o
desenvolvimento e um maior fortalecimento da amizade. Em alguns casos, os EAAs
também foram responsáveis pela construção de laços de amizade em relação a pessoas
que para os entrevistados eram “colegas” ou apenas “conhecidos”. Alguns entrevistados
afirmaram que muitas das pessoas que passavam dicas, conselhos e informações ligadas
ao uso dos EAAs e outras substâncias tornaram-se seus grandes amigos posteriormente,
mesmo que, em princípio, existisse ceticismo e cautela. O uso em comum dos EAAs
serviu muitas vezes de elemento para maior aceitação do entrevistado dentro do seu
grupo de amizade, devido a proximidade dos interesses e práticas ligadas à utilização
dos anabolizantes sintéticos.
“Eu escolhi (EAA e substância para uso animal) por influência dos
amigos da academia, e o próprio instrutor da academia que é meu
amigo, ele toma anabolizantes...” (Entrevistado, 20 anos)
“Meus amigos me dão dicas de tudo, de anabolizantes, suplementos,
alimentação e exercícios.” (Entrevistado, 23 anos)
“Meu amigo que me dá umas dicas de quais são os melhores para
tomar (EAA e suplementação alimentar)...” (Entrevistado, 26 anos)
“Quem me influenciou, na verdade... foi muitos amigos que já
malhavam e frequentavam academia comigo... aí quando eles falaram
para eu tomar pra crescer mais rápido eu tomei também...”
(Entrevistado, 27 anos)
87
“...Você confia nos seus amigos que tomam (EAA) e são grandes,
entendeu? Porque eles tomam e sabem o que acontece (...) aí eles me
falam o que devo tomar, os tipos de anabolizantes, as dosagens e os
ciclos também, essas coisas...” (Entrevistado, 30 anos)
Podemos dizer que os “amigos”, “colegas” e pessoas que utilizavam esteroides
anabolizantes e outras substâncias foram, para os entrevistados, o elo entre a confiança
pessoal e a confiança no EAA (e outras substâncias), pois mesmo tendo crença ou não
no funcionamento correto do sistema especializado (EAAs e outras substâncias), na
busca de cumprirem os resultados esperados, foi de fundamental importância para a
prática da utilização no primeiro momento, a relação com estes indivíduos usuários, no
que diz respeito a seu conhecimento, sua integridade, sua experiência prática, seu
exemplo de vida e estrutura corporal. Ficou bastante claro que o próprio uso dos
esteroides anabolizantes (e outras substâncias) não envolve apenas a confiança no
produto, mas encontra-se ligado, de alguma forma, à confiança pessoal. Porém, a
confiança em pessoas é relevante em determinado grau para a fé nas substâncias
indicadas, contudo, em última instância, sempre se leva em conta a confiança no
funcionamento adequado do sistema para o direcionamento da ação. Já quando as
informações eram passadas para os entrevistados por pessoas fora do seu ciclo de
amizade, elas eram recebidas com certo ceticismo no primeiro instante e passadas por
algum processo de revisão (através de opiniões dos amigos e pesquisas na internet), de
acordo com o nível de ceticismo frente aos informantes.
4.2 MEDO E O USO DOS ESTEROIDES ANABOLIZANTES
Mesmo sendo um sentimento comum em todos os seres vivos, algo bastante
natural e familiar em todas as sociedades conhecidas, o tema “medo” foi por muito
tempo ocultado e esquecido pelas diversas áreas do conhecimento (DELUMEAU,
1989). Contudo, nos últimos anos, a devida atenção para com este sentimento se fez
presente. Hoje, o tema medo está na ordem do dia, sendo objeto de estudo nas diversas
áreas do conhecimento como a psicologia, história, filosofia, ciência política e
sociologia. E não é só isso, ele é facilmente explorado e amplamente encontrado nos
diversos livros de auto-ajuda, na literatura, nos meios de comunicação, nos filmes, nas
88
novelas etc. Portanto, na própria vida cotidiana do indivíduo contemporâneo. Esta
realidade se fundamenta devido a uma maior sensibilidade ao medo como reflexo do
mundo atual sobre atmosfera de inseguranças, ansiedades e incertezas.
O estudo sobre o medo vem ganhando cada vez mais espaço dentro das Ciências
Sociais, em um mundo cada vez mais cercado por esse sentimento que marca a vida
cotidiana das pessoas e molda seus comportamentos e habitus. Na sociologia, por
exemplo, o medo não corresponde apenas a um elemento psíquico ou orgânico, ele é na
verdade, acima de tudo, um fenômeno social. Assim, a sociologia não se interessa pelo
medo que se apresenta na sua forma natural, aquele como elemento da reação do
próprio organismo, ou até mesmo, ao medo que envolve uma abordagem com
pressupostos individuais, subtraindo a relação do medo com a ação humana dentro do
meio social.
O medo, fisiologicamente falando, é um sentimento universal, estando presente
em diversas espécies vivas, sendo compartilhado tanto por seres humanos quanto pelos
animais. Este sentimento comum em todas as espécies corresponde ao “medo natural”
que tem como característica sua universalidade e imutabilidade. Esta específica forma
de medo representa uma grande valia para os animais, tendo sido extremamente
importante para os primórdios da espécie humana, servindo de mecanismo de defesa
para a manutenção da sua espécie (BAUMAN 2008; DELUMEAU, 1989; 2007;
NOVAIS, 2007). Porém, a espécie humana conhece um tipo de medo exclusivo que os
diferencia das demais espécies. Nas palavras de Bauman (2008, p. 9), “uma espécie de
medo de ‘segundo grau’, um medo, por assim dizer, social e culturalmente70
‘reciclado’” que orienta o comportamento humano, quer esteja ou não frente a frente
com o perigo.
Por mais que o medo seja um sentimento natural para os seres humanos, ele não
é uma realidade imutável e invariável, pois os medos específicos e os sentidos que lhe
são atribuídos modificam-se de sociedade para sociedade, fazendo do medo um
sentimento reciclado, passivo de modificações em relação a todas as sociedades e
culturas (DELUMEAU, 1989; 2007; NOVAIS, 2007; BAUMAN 2008). Portanto, os
medos e seus sentidos não são os mesmos historicamente, onde cada período da história,
70
O medo social e culturalmente construído (segunda ordem), aqueles específicos dos seres humanos são
mais complexos e diferenciados em comparação com o medo de ordem primária, comum em todas as
espécies. (DELUMEAU, 1989)
89
como cada sociedade e cultura possui uma fábrica de medos próprios, cada uma
possuindo formas particulares de produção e usos do medo, fazendo com que as
próprias significações do medo sofram variações (DELUMEAU, 1989, 2007). Como
assinala Novais (2007, p. 10), “nada há de mais diferente e mais oscilante no tempo e no
espaço que as formas de medo” e, assim, os medos de hoje não são iguais aos medos de
antigamente.
Em todas as sociedades até então conhecidas ou em toda e qualquer forma de
sociabilidade o medo encontra-se presente (KOURY, 2002). Antropologicamente, o
medo está presente no homem desde seu surgimento, faz parte da sua sociabilidade e da
sua natureza, por isso, “não desaparecerá da condição humana ao longo de sua
peregrinação terrestre” (DELUMEAU, 2007, p. 41; 2007). Na antiguidade, por
exemplo, o medo foi considerado um elemento de poder, capaz de direcionar o destino
dos indivíduos e das próprias sociedades. Desse modo, o medo foi representado como
algo exterior ao indivíduo, sendo considerado um poder maior que o próprio homem, e
não só isso, ele foi visto como um poder capaz de dominar os inimigos e conquistar
novos territórios (DELUMEAU, 1989, 2007).
Já no período da Idade Média, o indivíduo era tomado por medos reais e
imaginários que assombravam toda civilização. O medo da morte, do diabo, dos lobos71,
das epidemias72, da escuridão da noite73, da guerra, da fome, entre outros, foram os
principais perigos enfrentados pelo homem medieval (BEAUNE, 2006; BOURASSIN,
2006; DELUMEAU, 1989, 2007; VERDON, 2006).
Desta forma, nas sociedades tradicionais o medo estava em toda parte e, como
demonstrou Jean Delumeau (1989, p. 12), não só os indivíduos tomados isoladamente,
mas, também, a coletividade estava em um diálogo permanente com o medo. O clima de
insegurança fazia parte das sociedades pré-modernas, fazendo da vida do indivíduo uma
repleta escuridão. Por isso que o homem pré-moderno colocava nas mãos do destino o
71
Segundo Colette Beaune (Os lobos: cidade ameaçada, 2006, p. 48), “os lobos, além do temor real que
causavam, acabavam também por simbolizar os muitos outros medos que marcavam o final da Idade
Média.” Muitas histórias dramáticas sobre ataques dos lobos povoavam e habitavam a imaginação do
homem medieval neste período.
72
Para Bourassin (2006, p. 48), o século XIV marcou a Europa como a época do medo e muito graças a
“peste negra” (conhecida como “o mal”), que matou quase um terço da população européia. A “peste”
ceifou milhões de vidas, sem fazer distinção de credo, gênero, idade e condição financeira.
73
Quando terminava o dia e a noite cobria as cidades e campos, um caldeirão de temores reais ou
imaginários ganhava ainda mais importância e efeitos com a escuridão da noite na Idade Média
(VERDON, 2006, p. 52).
90
seu amanhã (devido à falta de conhecimento), ampliando assim o sentimento de
incerteza.
A modernidade seria o grande salto para a humanidade, o ponto de corte entre o
homem e o medo, a responsável por emancipar todos os homens deste sentimento que
os dominava (DELUMEAU, 1989, 2007). Assim, a modernidade veio com a promessa
de eliminar toda espécie de medo do qual o homem era escravo, subtraindo toda matéria
prima da qual são produzidos e sob o cajado da razão imaginaria, por fim em todos os
temores e incertezas, fazendo do homem soberano do seu próprio destino (BAUMAN,
2008). Contudo, a crença no prestígio da razão moderna não colocou um fim nos medos
e, segundo Novais observando Jacques Rencière (2007, p. 11-12), “o medo é o cúmplice
da razão”, portanto, “uma paixão irredutível, que jamais pode ser suprimida pela razão”.
De certa forma, houve uma frustração nas esperanças da emancipação dos
medos, das incertezas e da escuridão em que caminhavam os homens nas sociedades
tradicionais. Para Bauman (2008, p. 169), a modernidade cumpriu em parte sua
promessa de eliminar os medos, proporcionando uma maior segurança para os homens.
Assim, alguns velhos medos da era pré-moderna foram extintos, controlados e
superados, colocando um fim nas antigas inseguranças que dominava o período. Não
obstante, a modernidade não conseguiu concretizar sua promessa de superar por
completo todos os medos do homem e todos seus elementos constitutivos. A segurança
prometida pela era moderna não apenas deixou de se materializar em sua plenitude, mas
nem sequer chegou perto e pode até ter ficado mais distante.
Se nas sociedades pré-modernas os medos dominantes eram os que brotavam da
natureza, do sobrenatural e da fragilidade do corpo humano, na modernidade o medo
não tem raiz, possuindo uma lógica de desenvolvimento próprio e capaz de intensificarse por si mesmo, não precisando de nenhum estímulo para se difundir e crescer
(NOVAIS, 2007; BAUMAN, 2007, 2008). Para Zygmunt Bauman (2007, p. 15), “é
como se os nossos medos tivessem ganhado a capacidade de se autoperpetuar e se
autofortalecer; como se tivessem adquirido um ímpeto próprio”. Em suma, o ambiente
moderno foi visto como o lugar da emancipação humana dos medos, mas na verdade, se
verificou que os medos modernos e toda sua matéria prima tornaram-se mais complexos
e difíceis de diagnosticar.
No mundo contemporâneo o medo encontra-se cada vez mais difuso sem
endereço nem motivos claros, e isso faz do medo um sentimento mais assustador do que
91
em outros períodos da história74. Vivemos “numa era de temores” (BAUMAN, 2008, p.
9), em um mundo do “medo” e como marca de nosso tempo, paralisa os indivíduos ao
mesmo tempo em que direciona suas ações, orientando seus comportamentos e relações
sociais dentro deste cenário sombrio. O medo na atualidade é uma realidade sempre
presente, um sentimento que acompanha o indivíduo em todas as esferas da sua vida.
Assim, o medo encontra-se presente dentro da própria corporeidade humana na
contemporaneidade, como um dos fatores estruturantes da ação, servindo não apenas
como força paralisante, mas também, capaz de impulsionar ações em prol da
transformação da própria condição. Tomamos como exemplo o medo da catástrofe
pessoal através da insatisfação com a imagem corporal. Como já observamos, a
intensificação da valorização da imagem corporal, como reflexo do culto ao corpo,
desenvolve paradoxalmente o crescimento da insatisfação das pessoas com sua imagem
corporal. Esta insatisfação com a imagem corporal pode provocar, além de outras
coisas, diversos temores principalmente quando o indivíduo credita a imagem corporal
como “divisor de águas” para o sucesso ou fracasso. Com isso, a insatisfação da
imagem corporal pode provocar: o medo do fracasso e da exclusão pessoal, o medo de
ser deixado pra trás e do não reconhecimento social, o medo do estigma frente ao corpo,
o medo de sentir-se estranho, dentre muitos outros. Esta realidade é possível porque,
como dizem vários teóricos da sociologia do corpo (GOLDENBERG & RAMOS, 2002;
LE, BRETON, 2004, 2009, 2011; CASTRO 2007), na contemporaneidade, somos alvos
de identificação, qualificação, diferenciação e valorização frente ao corpo. Além do
mais, como bem colocou Bauman (2008, p. 29), vivemos em um contexto onde vemos a
“inevitabilidade da exclusão” e a luta das pessoas para não serem excluídas, mesmo que
nesta batalha sejam comuns, “pessoas tentando excluir outras pessoas para evitar
serem excluídas75”. Neste contexto, as mídias eletrônicas, a indústria do corpo e a
própria sociedade do consumo tem um papel fundamental na proliferação destes medos
(alimentando a indústria do medo), impondo e divulgando os cânones da imagem
corporal, construindo assim, novos imaginários e representações ligados a estes
modelos corporais.
74
De acordo com Bauman (2008), para se pensar o medo na contemporaneidade temos que levar em
conta não só os perigos reais e supostos, mais também, as nossas inseguranças, incertezas e ignorância,
elementos estes fundamentais para se pensar o medo no contexto atual.
75
Grifo do autor.
92
Em singular situação repleta de medos difusos, podem causar ações paralisantes
onde o indivíduo que se encontra insatisfeito com sua imagem corporal sente-se
impotente e pode decidir “abandonar” o próprio convívio social como indicativo de uma
identidade fragilizada. Isso é possível porque os medos podem nos estimular a assumir
uma ação defensiva (BAUMAN, 2007. p. 15). De outra forma, esta realidade repleta de
medos pode estruturar ações na direção da busca pela superação de tal situação, mesmo
não existindo certeza na sua concretização. Assim, coloca o corpo e sua transformação
(no sentido estético) como objeto de salvação e de emancipação dos medos, um
verdadeiro projeto de vida.
Atitudes extremas contra os medos também podem existir principalmente dentro
da cultura do imediatismo, fazendo da transformação corporal uma verdadeira obsessão.
Este é o caso de muitos frequentadores de academias de musculação que decidem fazer
uso de esteroides anabolizantes para fins puramente estéticos. Estas drogas
masculinizantes podem ser utilizadas por muitos jovens na esperança da eliminação de
algumas situações adversas (apesar de serem capazes de proporcionar novas situações
adversas) que possam despertar o medo, como é o caso, por exemplo, do não
reconhecimento social.
Porém, a própria transformação da forma corporal via uso dos EAAs é uma
realidade cercada pelo medo. Os sistemas especializados (através dos mecanismos da
informação) alertam para o não uso dos esteroides anabolizantes devido ao elevado
risco em que se encontram expostas as pessoas que se utilizam dessas substâncias com a
finalidade puramente estética. Estes mecanismos sociais utilizam-se do medo como
objeto de controle da ação e ainda no processo de disciplinarização e domesticação
corporal ou, no sentido de Foucault (1987), na produção do “corpo dócil”76. Assim, são
expostos (através das mídias eletrônicas) discursos de diferentes especialistas (médicos
de diversas especialidades, profissionais de educação física, nutricionistas etc.), no
76
O corpo, em Foucault, não é apenas biológico, fisiológico, anatômico, mas também histórico-político.
Ele demonstra isso ao afirmar que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes
muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições e obrigações” (1987, p. 118). Portanto, os
poderes presentes na sociedade direcionam, transformam e alteram as condutas individuais, ou seja,
estamos submetidos a um tipo de poder disciplinar modelador, normalizador das condutas. “O poder
penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio corpo” (FOUCALT, 1982, p. 147). Assim, na sua
concepção, o corpo é o lugar privilegiado de poder e controle social, estando mergulhado em um campo
político, alvo de disciplina tanto na sua utilidade econômica como também para a passividade e
submissão. Foucault define um corpo dócil como aquele “que pode ser submetido, que pode ser utilizado,
que pode ser transformado e aperfeiçoado” (p. 118-119).
93
combate ao uso dos esteroides anabolizantes, além da divulgação dos ampliados riscos e
da contingência de eventos trágicos referente ao consumo destas substâncias, afetando
de maneira direta a própria ação e percepção dos indivíduos frente ao corpo.
Possivelmente, esta realidade afeta de maneira única as pessoas que decidem não
fazer uso dos EAAs ao despertar o medo na utilização destas substâncias. O medo, neste
caso, paralisante, se faz devido à possibilidade de uma ameaça que ponha em risco a
saúde do corpo ou a própria vida. Por outro lado, os indivíduos que decidem fazer uso
destas substâncias na intenção da transformação da forma corporal (com caráter
estético), também estão expostos aos pronunciamentos destes mecanismos sociais e por
eles são afetados (direta ou indiretamente), mesmo que a própria utilização represente a
rejeição do conhecimento técnico. Desta forma, o medo pode despertar não apenas a
paralisia frente ao perigo (real ou imaginário), mas também a transgressão77 dos
pronunciamentos dos sistemas de conhecimento, mesmo que o ato de transgredir
direcione para um novo cenário cercado por perigos de diferentes faces.
O corpo como projeto de vida e os medos difusos ligados à insatisfação da forma
corporal podem direcionar para atos de transgressão frente ao conhecimento
especializado, ao mesmo tempo em que exemplos de outros transgressores sirvam de
modelo a serem seguidos ou renegados. A partir de “vitórias” alheias que se deram em
circunstâncias de coragem, ousadia e determinação, e assim enfrentando qualquer outra
indicação dos mecanismos de conhecimento, os transgressores “vencedores” servem
como formas idealizadas para a ação de outros novos transgressores na constituição da
edificação de novas verdades.
A prática da musculação pode envolver uma realidade cercada por medos,
acompanhando a ubiquidade dos medos típicos da sociedade contemporânea. Dentro
desta modalidade de atividade física o medo é um dos elementos importantes para o
direcionamento de muitas decisões, pois o partidário da prática da musculação se vê
diante de uma multiplicidade de opções às quais tem que se posicionar. Esta realidade é
possível porque o corpo neste estágio da sociedade moderna é uma realidade de opções
e escolhas. Assim, o praticante da musculação está diante de situações onde tem que
tomar decisões78: consumir ou não suplementos alimentares; quais consumir; fazer uso
ou não de esteroides anabolizantes; quais usar; utilizar ou não medicamentos de uso
77
Sobre o significado do medo como transgressor, ver Koury (2002).
As escolhas dependem, além de outras coisas, da condição material e da própria cultura somática, como
bem observou Luc Boltanski (1984).
78
94
veterinário; quais utilizar; consumir ou não qualquer outro tipo de substâncias para
prática da musculação; qual consumir. Estes são apenas alguns de muitos outros dilemas
típicos desta atividade. Além do mais, o medo pode se fazer presente não apenas
durante as escolhas, mas depois da própria tomada da decisão em que, a qualquer
momento, pode vazar alguma situação dentro dos sistemas especializados (ou fora
deles) que desperte o temor. Então, apesar dos sistemas especializados “garantirem”
nossa segurança na vida social, com a promessa de risco “mínimo” e eliminação de
nossos medos (reais, imaginários e toda matérias aos quais são produzidos), também são
responsáveis por perigos extremamente novos em que somos totalmente ignorantes.
Nestas condições ampliam-se nossas incertezas e inseguranças, consequentemente,
nossos medos.
Os medos ligados a algum revés que possa prejudicar os objetivos traçados
ligados à construção da forma corporal, também podem ser observados entre os
praticantes da musculação. O medo da impossibilidade da prática da musculação por
algum motivo, o medo da perda dos ganhos adquiridos, o medo da não realização dos
objetivos traçados, dentre outros. Portanto, os medos ligados à prática da musculação
são muitos e difusos, estando em todos os lugares, seja na insatisfação da imagem
corporal; no sentimento de vergonha do corpo; no medo da não aceitação social, da
exclusão, do estigma frente ao corpo; na escolha de alguma ferramenta para
transformação da forma corporal; em algum revés que possa aparecer dentro dos
mecanismos do conhecimento; em situações que prejudiquem o projeto corpo, dentre
muitos outros medos ao qual o partidário da musculação encontra-se exposto na
contemporaneidade.
Neste trabalho, a grande maioria dos entrevistados relatou que sentiu medo antes
de começar a fazer uso dos esteroides anabolizantes. Porém, a insatisfação com a
imagem corpórea (e toda espécie de medo por ele provocado), o desejo de
transformação do corpo e a esperança de mudar de vida fizeram do invólucro encarnado
um projeto, fazendo do medo subjetivo, um sentimento não suficiente para abortar as
metas estabelecidas. Os medos foram colocados de lado devido à necessidade “cega” de
transformar a forma corporal, criando uma “neblina” para a percepção dos perigos
potenciais. Associado a este contexto, a própria relação dos amigos, colegas e das
pessoas em geral com o uso dos esteroides anabolizantes, serviram como exemplos
capazes de diminuir (podendo também aumentar) o sentimento de medo que existia, por
outro lado, ampliava-se a confiança para a própria utilização. Então, os objetivos e
95
anseios ligados à imagem corporal, aos exemplos “positivos” de amigos, colegas e
pessoas também usuários de esteroides anabolizantes, serviram como fiel da balança
para “redução” dos medos e elevação da confiança no uso dos EAAs.
Apesar do sentimento de insegurança e incerteza em algumas situações, os
entrevistados, de certa forma, colocaram nas “mãos” dos EAAs (e outras substâncias) a
sua tábua de sua salvação e escolheram correr o risco porque apesar da pluralidade de
escolhas eles se colocaram em uma realidade sem nenhuma alternativa. Este contexto
corresponde a uma situação muito dramática no que envolve a modificação da forma
corporal, por um lado, os entrevistados declararam sentir medo, por outro, a necessidade
incondicional de transformar a forma corporal.
“Antes de tomar pela primeira vez eu morria de medo, mas eu
precisava (...) tinha medo disso... de um produto estranho entrar no
meu corpo, não sei o que poderia acontecer... porque meu medo antes
era esse, era o medo aquele que... todo ser humano tem... medo do
desconhecido, né? a gente tem medo... como a gente não conhece... a
gente tem medo do que poderia acontecer, então meu medo no
começo era esse de uma coisa desconhecida e eu tinha medo de usar
porque uma coisa estranha tá no meu corpo, um remédio dedicado a
uma coisa e eu usar pra outra coisa, será que vai funcionar? então eu
tinha medo do que poderia acontecer.” (Entrevistado, 20 anos)
“Olha, pra ser sincero, já tive muito medo no começo. Porque muita
gente falava que se tomar pode morrer do coração, ter câncer no
fígado, ficar impotente, essas coisas... aí eu morria de medo. Mas
depois quando eu me aproximei da galera que tomava fazia muito
tempo... e eles eram normais e não tinham tido nada de ruim, eu vi
que tomar anabolizante não é certeza de se dar mal... e fui perdendo o
medo... meus amigos conversavam comigo diziam o que era melhor, o
que eu tinha que fazer e eu fiz e deu certo... aí o medo foi passando...
mais eu já tive muito medo...” (Entrevistado, 23 anos)
“Tinha um pouco de medo sim... (mas) eu entrei na academia pra ficar
diferente, então se for para ficar a mesma coisa era melhor nem ter
entrado. Perder tempo e dinheiro. Eu tinha um objetivo... tinha que
ficar diferente, então se eles (amigos e pessoas usuárias) diziam que
pra crescer tinha que fazer “assim e assado” eu ia fazer...”
(Entrevistado, 25 anos)
“Um pouco antes de você aplicar... o cara sempre sente um pouco de
medo, né? vai que a aplicação sai errado, vai que, sei lá... acontece
alguma coisa de ruim... o cara no começo não sabe de nada, aí tem um
pouco de medo... medo do desconhecido, sabe? O cara não sabe o que
pode ocorrer... Mas aí, quando o cara toma e vê que tá tudo normal, o
medo passa... vê que nos amigos não aconteceu nada e quando você
toma também não aconteceu nada... o medo vai embora.”
(Entrevistado, 27 anos)
96
Com a “experiência” na utilização dos esteroides anabolizantes, alguns
entrevistados afirmaram não sentir nenhum medo, no que se refere ao contato com estas
substâncias, já outros não ocultaram que ainda sentem medo em um nível bem inferior
em comparação com o mesmo sentimento que ocorreu antes do primeiro contato com as
substâncias. Porém, a grande maioria dos entrevistados apontou alguns específicos
esteroides anabolizantes onde não faria uso em hipótese alguma, devido algum efeito
colateral sofrido por eles ou pessoas próximas no caso seus “amigos” e “conhecidos”.
Contraditoriamente, mesmo aqueles que no primeiro momento afirmaram não sentir
nenhum medo no uso dos esteroides anabolizantes, apontaram sentirem medo na
utilização de alguma substância particular.
A redução do nível do sentimento de medo, conforme foi observado a partir da
realidade dos entrevistados, se aplica às seguintes condições:
1- A ausência de conhecimento de algum efeito colateral em pessoas próximas
mais especificamente amigos e conhecidos.
2- Não ter sofrido nenhum efeito colateral na utilização dos esteroides
anabolizantes.
3- O uso “contínuo” proporcionando maior experiência e aprendizado prático.
4- A confiança no uso de certos aditivos, criando uma “zona de conforto” no
próprio contato com substâncias específicas.
5- Ações para a redução dos riscos, por exemplo, consumo de medicamentos
com a função de proteção hepática e também na crença de intensificar ao máximo as
práticas de exercícios na academia de musculação.
6- A consciência dos danos e riscos não serem universais pela alegação que cada
organismo tem uma estrutura particular, existindo incertezas do desenvolvimento dos
efeitos nocivos a saúde etc.
Estas condições ampliam a sensação de “segurança” conforme foi dito pelos
entrevistados, para tanto, a relação com o sentimento de medo fica de certa forma
tolerável (ou posta em parênteses) em contrapartida com o fortalecimento da confiança
nesta prática.
Geralmente, o medo sentido pelos entrevistados antes do primeiro contato com
os EAAs se fundamenta a partir da preocupação com efeitos nocivos tomados como
imediatos, ou seja, as preocupações se voltam para o desenvolvimento de algum efeito
colateral logo após o primeiro contato com as substâncias. Por outro lado, os medos
97
sentidos depois da experiência com as substâncias, se direcionam para uma preocupação
com algum dano que por ventura poderá acontecer no futuro. O caráter difuso e
desconhecido são os elementos de ambas as situações. Uma, tendo em vista o instante
imediato, e a outra o futuro “muito” distante. Contudo, o sentimento de medo préconsumo foi de certa forma controlável devido a alguns fatores já colocados. No que se
refere ao medo ligado às condições futuras, as sensações de incerteza e insegurança se
ampliaram como reflexo da intensificação do caráter difuso e desconhecido da
realidade.
“Hoje, digamos que eu tenho um pouco sim... só do que o uso pode
me fazer no futuro, assim quando eu ficar velho... Só tenho medo do
que pode me fazer no futuro, agora acho que não, só lá na frente.”
(Entrevistado, de 20 anos)
“Tenho! já tive mais medo (do uso dos EAAs)... mas hoje eu ainda
tenho um pouco... medo de acontecer alguma coisa ruim comigo no
futuro... sei lá... desenvolver alguma coisa... uma doença... essas
coisas...” (Entrevistado, 25 anos)
“Se eu falar pra você que eu não tenho medo eu estarei mentindo...
tenho medo sim... eu admito (...) possa ser que dê um problema no
cara no futuro... pode aparecer alguma coisa... sei lá... a pessoa que
toma nunca sabe... mas ainda bem que até hoje não aconteceu nada
comigo...” (Entrevistado, 26 anos)
“No futuro eu tenho... vai que possa ter algum efeito colateral no
futuro... algum efeito colateral que possa vir aí... mais na frente, mas...
a pessoa nunca sabe exatamente, entendeu? Mas eu conto que não, eu
espero que não, né? (rs, rs,rs)” (Entrevistado, 27anos)
“Assim... sempre dizem que os anabolizantes podem fazer mal ao
cara, né? os efeitos colaterais... estas coisas... talvez eu até me lasque
no futuro... mas acho que agora se o cara fizer as coisas certas,
acontece nada não... mas eu tenho um pouco de medo do que possa
me acontecer no futuro...” (Entrevistado, 30 anos)
Como relação ao sentimento de medo no futuro, o imediatismo contemporâneo
direciona a preocupação para o instante imediato fazendo do futuro uma realidade
demasiadamente longe para se pensar. A cultura do instantâneo serve como processo de
“controle” do medo futuro e se atendo a esta estratagema, os entrevistados continuam
fazendo uso de tais substâncias em prol das suas preocupações e objetivos imediatos
(BAUMAN, 2008). Porém, deixando de lado a face negativa do futuro (no que envolve
98
os possíveis danos colaterais futuros), os entrevistados, ao fazer uso dos esteroides
anabolizantes, tentam “consumir” o futuro, ou seja, a utilização dos EAAs seria a força
capaz de trazer o futuro direto para o presente, consumindo a satisfação da
transformação da forma corporal por antecipação.
“... a busca por um corpo bonito, forte é mais importante... porque eu
posso ficar forte agora e daqui a trinta anos não posso mais... então o
cara pensa.. “tomo anabolizante e fico forte hoje enquanto eu sou
jovem que é o melhor momento para curtir a vida, ou não tomo
anabolizantes e jamais vou ficar com o corpo legal? Isso faz o cara
esquecer um pouco dos riscos que a gente corre... entendeu?”
(Entrevistado, 27 anos)
As contradições surgiram no discurso de alguns entrevistados ao afirmarem no
primeiro momento não sentirem medo e posteriormente alegarem este sentimento: na
forma de aplicação, em específicos esteroides anabolizantes, na preocupação com
possíveis danos que poderão surgir no futuro, com a legitimidade do produto, dentre
outros. Além do mais, os mesmos entrevistados que afirmaram não sentirem medo ao
fazerem uso dos EAAs, executaram certos procedimentos para amenizar a possibilidade
de algum tipo de dano.
“... Aí meu primo me disse que se eu tomar a bomba no braço eu iria
perder o braço... aí eu ficava com medo e aplicava na bunda... tá com
a porra de aplicar na bunda e perder o braço (rs, rs, rs)... esse negócio
de perder o braço é foda... até hoje, por causa que todo mundo fala
que tomando estas paradas pra amimais e pra gente, o cara perde o
braço... eu só tomo bomba no braço esquerdo ou na bunda... eu não
tomo bomba no braço direito... porque é meu principal braço, aí, se
caso aconteça alguma coisa com meu braço, será o esquerdo e não o
direito... por isso que quando eu aplico ou chega um amigo meu para
aplicar eu já falo pra aplicar no braço esquerdo e não no direito... por
causa disso, né... porque se acontecer alguma coisa no meu braço será
o esquerdo porque é o direito que eu faço tudo...” (Entrevistado, 30
anos)
Grande parte dos entrevistados alegou ter sofrido pelo menos dois efeitos
colaterais durante sua história de consumo dos EAAs. Em suma, a maioria dos
entrevistados apontou pelo menos uma situação traumática como reflexo de particulares
efeitos colaterais vividos que ampliaram o sentimento de medo. A intensidade deste
sentimento se fundamentou a partir de algumas condições, tais como: a impotência
99
frente ao perigo, ignorância da situação vivida, ampliação das incertezas e inseguranças,
dentre outros. Em uma palavra, ao ficarem frente a frente com o perigo não sabiam
exatamente como agir diante da situação. Ao estarem diante da ameaça real, muitos dos
entrevistados
sentiram-se
vulneráveis
diante
desta
realidade,
despertando
momentaneamente o sentimento de arrependimento. Estes acontecimentos não foram
suficientes para fazê-los cessar definitivamente o uso dos EAAs, de modo geral, no
máximo perder a confiança “definitivamente” em específicos aditivos, fundamentando o
sentimento de medo “permanente” em face da substância utilizada. Porém, como já
exposto, acontecimentos danosos ligados aos amigos dos entrevistados também são
condições para fermentação dos medos e, consequentemente, para a não confiança em
determinado produto. De qualquer modo, a intensificação dos medos sentidos pelos
entrevistados, a partir de qualquer trauma referente à sua experiência particular ou de
outrem (amigo ou conhecido), não foi suficiente para sobrepor a vontade de
transformação da forma corporal via utilização dos EAAs.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se concluir, que a busca pela prática da musculação e, posteriormente, a
utilização dos hormônios esteroides anabolizantes se consolidou a partir de questões
puramente estéticas, reflexos de um período dominado pela supervalorização da
imagem corporal. Desta forma, mesmo que os entrevistados sejam frequentadores de
academia de musculação localizada em um bairro popular da cidade de João Pessoa,
verificou-se que a intenção pela transformação do invólucro corpóreo se deve, em
última instância, a preocupações ligadas à “beleza corporal”, dando forte indício que as
ações para uma melhora da imagem corporal não correspondem apenas a uma realidade
intrínseca das classes privilegiadas e médias da sociedade. Porém, existem diferenças
relacionadas às questões materiais e às regras/normas correspondentes a cada “cultura
somática”, tal como definido por Luc Boltanski (1984).
Durante a pesquisa, foram realizadas observações em duas academias de
musculação, frequentadas por alguns entrevistados. Foi possível verificar que, em
ambas, a própria sociabilidade presente no interior dessas instituições, estimula a busca
pela perfeição corporal, ligadas principalmente aos cânones amplamente valorizados
socialmente, no que envolve suas representações e imaginários dentro desses ambientes.
Apesar de algumas diferenças significativas, entre as duas academias, verificou-se que a
própria sociabilidade presente nelas estimula (direta ou indiretamente) o consumo de
diversas substâncias que incluem suplementos alimentares e esteroides anabolizantes
como importantes ferramentas para a realização dos objetivos traçados frente a forma
corporal.
A insatisfação com a imagem corporal foi, sem sombra de dúvida, a força motriz
para a prática da musculação, uso de esteroides anabolizantes e outras substâncias como
os suplementos alimentares e produtos para uso veterinário. Dentro da insatisfação da
imagem corporal, os entrevistados colocaram o modelo corpóreo “magro” como o
grande “vilão”, responsável pela não aceitação social, estigma, não reconhecimento de
si, insucesso, desprezo e vergonha, portanto, por toda negatividade provocada no seu
convívio social. O modelo corpóreo magro foi visto como um “peso”, o responsável por
muitas das mazelas e medos vividos na vida social. Tendo como princípio o discurso
dos entrevistados, o modelo de corpo “magro” (masculino) liga-se ao que Goffman
101
(1998) designou de “abominações do corpo”, fazendo desta forma corporal uma
aberração, ou melhor, uma deformidade capaz de afetar negativamente as próprias
relações sociais. E desta forma, conforme os depoimentos, o modelo corporal de
magreza corresponde também a um desvio, em relação ao ideal corpóreo masculino
valorizado socialmente. Para os entrevistados, ser magro representa ser feio,
desprezado, desvalorizado, corresponde a um defeito que precisa ser corrigido.
Particular realidade só é possível porque, na contemporaneidade, somos alvos de
identificação, qualificação, diferenciação e valorização frente ao corpo. Além do mais,
segundo Le Breton (2009, 2011), na sociedade contemporânea o corpo é visto como
descartável e imperfeito, um objeto considerado como matéria-prima, um verdadeiro
rascunho que precisa ser melhorado constantemente.
Contudo, os entrevistados colocaram o modelo de corpo “musculoso” como o
ideal a ser buscado, representando um desejo, uma necessidade e até mesmo um projeto
de vida. A obtenção de específico modelo corpóreo denominado por eles de “corpo
forte”, “corpo grande”, “corpo sarado” ou “corpo bombado” é a concretização do corpo
considerado (pelos entrevistados) “perfeito” ou a representação de beleza masculina.
Esta realidade condiz perfeitamente com os padrões corporais masculinos amplamente
aceitos e valorizados na sociedade contemporânea. Segundo Castro (2007, p.66),
presenciamos na atualidade a tendência da supervalorização da aparência, o que leva os
indivíduos a uma busca incansável pela forma e volume corporais ideais. Além do mais,
existe uma ética masculinizante que dentro do campo simbólico valoriza o cultivo
muscular, fazendo do corpo “musculoso” uma espécie de “masculinidade hegemônica”
(SABINO, 2004).
Para os entrevistados, a hipertrofia muscular seria a forma de mudança não
apenas do seu modelo corpóreo, mas na modificação de toda uma realidade vivida. Nas
palavras de Le Breton (2009, p. 2) “mudando seu corpo, pretende-se mudar de vida” e,
desta forma, a transformação do modelo corpóreo “magro” para o modelo corpóreo
“musculoso” representaria a emancipação de toda “negatividade” que se fazia presente
na vida dos entrevistados. Assim, o corpo “musculoso” foi posto como o elemento de
status, poder, prazer e felicidade. Além de representar a passagem para a aceitação
social e do próprio reconhecimento de si, colocando um fim na vergonha e no estigma
corporal. E para que os músculos se transformassem no emblema do self, ou seja, como
meio de apresentação mais significativo de si, os entrevistados decidiram fazer uso dos
102
esteroides anabolizantes como instrumento de realização de todos os seus sonhos,
felicidades e anseios.
Os entrevistados viram nos esteroides anabolizantes a única fórmula capaz de
concretizar a transformação do invólucro corporal e da própria vida. E assim,
compartilham da crença de que a simples prática da musculação sem a utilização dos
esteroides anabolizantes (também dos suplementos alimentares) não seria o suficiente
para concretizar os objetivos almejados. Além do mais, conforme os depoimentos foi
observada a demasiada importância atribuída ao “agora” para o tempo determinante da
ação, fazendo do presente imediato uma força capaz de se sobrepor ao futuro. Todos os
entrevistados afirmaram que a escolha dos esteroides anabolizantes se deu devido à
confiança nessas substâncias, que seriam as únicas capazes de materializar os objetivos
traçados em um curto espaço de tempo. Esta realidade está ligada à cultura do
“presenteísmo” contemporâneo em que o futuro é descartado em detrimento do viver-se
o presente imediato (MAFFESOLI, 1998). Esta cultura do imediatismo, característico
da sociedade do consumo, faz do tempo um elemento extremante importante para o
indivíduo, afetando todas as esferas da sua vida social, inclusive a própria corporeidade
humana. É o que Bauman (2008, 2009) chamou de “viver a créditos”, oferecendo a
possibilidade ao indivíduo de saborear as alegrias futuras no presente momento, para só
depois pensar em acertar as contas. Os EAAs ligam-se a esta realidade: pra que malhar
anos e anos se você pode atingir seu objetivo em questão de meses ou dias? Por que
esperar pra ter um corpo “sarado” se você pode desfrutar deste corpo em um curto
espaço de tempo? Se o futuro está fora do nosso alcance, os esteroides anabolizantes,
em um passe de mágica, trás o futuro para o presente, fazendo com que o indivíduo
desfrute dos “prazeres” e “satisfações” do futuro por antecipação.
Diante da realidade exposta, os entrevistados estavam diante de dilemas,
ansiedades, inseguranças e incertezas. Mesmo que o mundo moderno seja um contexto
marcado por uma multiplicidade de opções e escolhas, muitos dos entrevistados se
colocaram em condições sem nenhuma alternativa, principalmente no que envolve a
mudança de corpo para mudança de vida. A partir destas condições, a relação de
confiança e medo tem valor singular. Aos decidirem fazer uso dos esteroides
anabolizantes, estavam diante desses dois elementos fundamentais para a formação do
discurso e direcionamento da ação.
No que se refere à confiança, verificamos que todos os entrevistados confiam
nos esteroides anabolizantes no que envolve suas manifestações anabólicas, ou seja,
103
como ferramenta capaz de proporcionar alteração da forma corporal no sentido da sua
hipertrofia muscular. A confiança neste caso encontra-se presente, ao depositarem
específica forma de crença no funcionamento do conhecimento técnico (que eles
acreditam ter), seja para o crescimento da massa muscular, ganho de força, energia,
dentre outros. O interessante é que os entrevistados atribuem aos esteroides
anabolizantes, propriedades que são condenadas pelos sistemas especializados, no que
se refere ao seu uso com intenções puramente estéticas. Assim, os entrevistados, ao
decidirem fazer uso dos esteroides anabolizantes, desconsideraram os pronunciamentos
dos sistemas especializados em prol do não uso destes aditivos.
Grande parte dos entrevistados “desconsiderou” os EAAs como medicamentos
para uso exclusivamente terapêutico, e atribuiu a essas drogas, propriedade
essencialmente anabólica, como produtos desenvolvidos para hipertrofia muscular, ou
seja, para uso humano no âmbito esportivo ou estético. Outros reconheceram os
esteroides anabolizantes como medicamentos, porém, também com a finalidade de
hipertrofiar o tecido muscular. De qualquer modo, eles atribuem conhecimento técnico
ao sistema ao qual o próprio sistema perito não legitima ao mesmo tempo em que
condena.
Estas atribuições feitas pelos entrevistados aos esteroides anabolizantes
condicionam de alguma forma o fortalecimento da confiança nestas drogas da imagem
corporal, assim, ampliam-se as sensações de “segurança” e “certezas” ligadas à
utilização. Além do mais, esta visão dos hormônios esteroides anabolizantes serve como
mecanismo de “controle” dos medos no que se refere ao sentimento capaz de alterar o
discurso e paralisar a ação.
Levando em conta a confiança na impossibilidade do aparecimento de algum
efeito colateral, esta diminui em níveis consideráveis e, junto com ela, a sensação de
certeza e segurança, mesmo que de modo geral, não sejam suficientes para o abandono
da utilização dos EAAs. Em síntese, a confiança nos resultados é maior do que a
confiança no não aparecimento de algum efeito colateral.
São observados, também, dois outros fatores que contribuem para o
fortalecimento ou não da confiança na utilização dos esteroides anabolizantes: 1- os
resultados da contingência do uso, tendo em vista os conhecidos e principalmente os
amigos, levando em conta os lados “positivos” ou negativos da experiência dessas
pessoas próximas; 2- a própria experiência subjetiva, levando em conta os lados
“positivos” ligados à concretização do desenvolvimento da hipertrofia muscular, como
104
também, o aparecimento de algum efeito colateral. Estes outros fatores servem como
parâmetro para o direcionamento das escolhas em face do conjunto dos esteroides
anabolizantes. Como bem observou Giddens (1991, 41), a confiança leva em
consideração a credibilidade em face aos resultados contingentes, porém, conforme os
entrevistados, os acontecimentos mais significativos para a tomada das decisões não
eram os fatos gerais, e sim os particulares ligados às pessoas de “confiança”, como os
próprios amigos também usuários. Contudo, os eventos levados em consideração não
são aqueles ligados aos sistemas especializados (divulgados pelos meios de
comunicação e outras fontes), mas aqueles presenciados no próprio convívio social.
Esta realidade, para os entrevistados, é de fundamental importância para os níveis de
confiabilidade na própria utilização e escolha das drogas da imagem corporal de forma
geral e específica.
Podemos dizer, a partir do grupo aqui pesquisado, que muito do direcionamento
da ação e do discurso deles no que se refere ao uso dos esteróides anabolizantes e outras
substâncias contesta em certo sentido, com o argumento que no mundo contemporâneo
cada vez mais os indivíduos levam em consideração os pronunciamentos dos sistemas
especializados e dos peritos para o posicionamento das escolhas (GIDDENS, 1991,
2002). Para os entrevistados, os parâmetros de verdades em face ao mundo do uso dos
EAA e outras substâncias não estão ligados diretamente aos sistemas especializados
(apesar da relativa influência antes da primeira experiência com as substâncias
esteroides anabólicas), mas, aos acontecimentos presenciados e vividos na própria
sociabilidade. De qualquer modo, muitos dos pronunciamentos dos sistemas
especializados e dos peritos em relação ao uso dos esteroides anabolizantes e outras
substâncias foram colocados em parênteses pelos entrevistados, seja devido a vontade
incondicional de transformar a forma corporal para assim mudar de vida, ou até mesmo,
por qualquer condição que de alguma forma desperte algum tipo de ceticismo frente ao
discurso dos sistemas especializados. Assim, para os entrevistados, as verdades
extraídas do próprio convívio social se sobrepõem muitas vezes as verdades distantes
dos sistemas especializados no que se refere ao uso dos EAA e outras substâncias.
Situações de desconfiança que provocaram entrave para usos de específicos
esteroides anabolizantes e, consequentemente, sensações de medo e insegurança
também foram observadas, conforme as seguintes condições: 1- por presenciar ou saber
de algum dano causado pela utilização de específico(s) esteroides anabolizantes por
qualquer amigo ou pessoas próximas; 2- por sofrer algum efeito colateral ao fazer uso
105
de determinados compostos sintéticos; 3- por colocar em dúvida a procedência dos
produtos, suas funções e indicações; 4- em não confiar no funcionamento do
conhecimento técnico ao qual é amplamente ignorante, fermentando a incerteza dos
resultados esperados, ou seja, na “incapacidade” de proporcionar o desenvolvimento
esperado da hipertrofia muscular.
Por fim, no que envolve a confiança no universo do uso dos esteroides
anabolizantes, a relação de amizade tem importância particular. A confiança nas
relações de amizade se coloca como elemento fundamental para muitas das decisões
tomadas cotidianamente. A maioria dos entrevistados apontou como influências para a
utilização dos EAAs (e outras substâncias) os próprios “amigos” ou “conhecidos” que
fazem uso dessas substâncias. Os amigos são, normalmente, os principais responsáveis
por tudo que envolve a utilização dos EAAs, seja, influenciando o próprio uso, o tipo
específico de esteroides anabolizantes, a quantidade a ser administrada no organismo, a
construção do ciclo de aplicações e até mesmo a própria aplicação das substâncias.
Porém, a maior sensibilidade para a influência dos “amigos” ou “colegas” se dá na fase
de “inexperiência” dos entrevistados nas práticas ligadas à utilização dos EAAs. Em
suma mesmo não possuindo nenhum conhecimento especializado, os amigos detinham
“total” confiança dos entrevistados, no que diz respeito à própria utilização dos
esteroides anabolizantes e outras substâncias.
Além do mais, foi possível perceber que existe uma relação de mutualidade entre
os entrevistados e seus “amigos”, também usuários, que teve no próprio uso dos
esteroides anabolizantes um forte elo na relação, criando as condições necessárias para
o desenvolvimento e fortalecimento da amizade. Assim, nestas condições, o uso dos
esteroides anabolizantes não é apenas consequência da relação de amizade, mas um
elemento capaz de fortalecer a relação, como também capaz de potencializar novas
amizades. Em alguns casos, os EAAs também foram responsáveis pela construção de
laços de amizade em relação a pessoas que para os entrevistados eram “colegas” ou
apenas “conhecidos”. Alguns entrevistados afirmaram que muitas das pessoas que
passavam dicas, conselhos e informações ligadas ao uso dos EAAs e outras substâncias,
tornaram-se seus grandes amigos, mesmo que no princípio existisse ceticismo e cautela.
E ainda, o uso em comum dos EAAs serviu muitas vezes como elemento para maior
aceitação dos entrevistados dentro do seu grupo de amizade, devido à proximidade dos
interesses e práticas ligados à utilização dos anabolizantes sintéticos.
106
Podemos dizer que os “amigos”, “colegas” e pessoas que utilizavam esteroides
anabolizantes e outras substâncias foram, para os entrevistados, o elo entre a confiança
pessoal e a confiança nos EAAs (e outras substâncias), pois mesmo tendo crença ou não
no funcionamento correto do sistema especializado (para o qual eles acreditam ter), ou
seja, na busca de cumprirem os resultados esperados, foi de fundamental importância
para a prática da utilização (no primeiro momento), a relação com estes indivíduos
usuários, no que diz respeito ao seu conhecimento, sua integridade, sua experiência
prática, seu exemplo de vida e estrutura corporal. Estes elementos são tomados pelos
entrevistados como parâmetro de “verdades” em substituição das “verdades” postas
pelos sistemas especializados, que são desconsiderados e colocados como “verdades”
distantes.
Contudo, estes pronunciamentos dos sistemas especializados e o próprio
discurso comum, como produto destes pronunciamentos, são extremamente relevantes
na produção e controle dos medos, no que envolve o uso dos esteroides anabolizantes.
Os sistemas especializados (através dos mecanismos da informação) alertam para o não
uso dos esteroides anabolizantes devido ao elevado risco na utilização destes
medicamentos com a finalidade puramente estética. Esta realidade afeta de maneira
única as pessoas que decidiram não fazer uso dos EAAs ao despertarem o medo na
utilização destas substâncias. Por outro lado, os indivíduos que decidem fazer uso destes
aditivos na intenção da transformação da forma corporal (no seu caráter estético)
também estão expostos aos pronunciamentos destes mecanismos sociais, e por eles são
afetados, (direta ou indiretamente) mesmo que a própria utilização represente a rejeição
do próprio pronunciamento do conhecimento técnico. Assim, esta rejeição pode
impulsionar a partir de determinadas circunstâncias atos de transgressão em relação as
indicações dos sistemas especializados.
O corpo como projeto de vida e os medos difusos ligados à insatisfação da forma
corporal podem direcionar os indivíduos para atos de transgressão frente ao
conhecimento especializado, ao mesmo tempo em que exemplos de outros
transgressores sirvam de modelo a serem seguidos ou renegados. Com isso, a partir de
“vitórias” alheias, que se deu em circunstâncias de coragem, ousadia e determinação, e
assim, enfrentando qualquer outra indicação dos mecanismos de conhecimento, os
transgressores “vencedores” servem como formas idealizadoras para a ação de outros
novos transgressores, fundamentado a construção de novas verdades.
107
Esta foi a realidade dos nossos entrevistados, que sentiram medo antes de
começar a fazer uso dos esteroides anabolizantes pela primeira vez. Porém, a
insatisfação com a imagem corpórea, o desejo de transformação do corpo, a esperança
de mudar de vida e, ainda, a vontade de emancipar os medos ligado a estas condições,
fizeram do invólucro encarnado um projeto. Assim, o medo no uso dos esteroides
anabolizantes como reflexo dos pronunciamentos dos sistemas especializados (e
também do discurso comum) não foi um sentimento suficiente para abandono das metas
estabelecidas. Os medos foram colocados de lado, devido à necessidade “cega”, de
transformar a forma corporal, criando uma “neblina” para a percepção dos perigos
potenciais anunciados pelos sistemas especializados. Associado a este contexto, a
própria relação dos amigos, colegas e das pessoas em geral, com o uso dos esteroides
anabolizantes, serviram como exemplos capazes de diminuir (podendo também
aumentar) o sentimento de medo que existia e, por outro lado, ampliava-se a confiança
para a própria utilização. Então, os objetivos e anseios ligados à imagem corporal, aos
exemplos “positivos” de amigos, colegas e pessoas também usuários de esteroides
anabolizantes serviram como fiel da balança para “redução” dos medos e elevação da
confiança no uso destas substâncias.
Com a experiência prática, alguns entrevistados afirmaram não sentir mais medo
na utilização dos esteroides anabolizantes, porém, outros afirmaram ainda sentir medo
em níveis bem inferiores, em relação à fase anterior da primeira experiência. De modo
geral, a maioria dos entrevistados apontou algum específico EAA ao qual não faria uso
por hipótese alguma. Esta realidade se deve à experiência com algum efeito colateral
sofrido, seja por eles ou pessoas próximas, no caso, seus “amigos” e “conhecidos”.
Estes eventos fundamentaram o sentimento de medo ampliado, paralisando a ação do
uso em específicos esteroides anabolizantes, porém, não suficiente para vedar a ação
frente a estes medicamentos em geral.
Conforme a realidade estudada, foi possível perceber que os níveis do medo se
reduzem a partir das seguintes condições: 1- na ausência de conhecimento de algum
efeito colateral em pessoas próximas, mais especificamente, amigos e conhecidos; 2não ter sofrido nenhum efeito colateral na utilização dos esteroides anabolizantes; 3- no
uso “contínuo” proporcionando maior experiência e aprendizado prático; 4- na
confiança no uso de certos aditivos, criando uma “zona de conforto” no próprio contato
com substâncias específicas; 5- em ações para a redução dos riscos, por exemplo,
consumo de medicamentos com a função de proteção hepática e também na crença de
108
intensificar ao máximo as práticas de exercícios na academia de musculação, dentre
outros. Estas condições ampliam a sensação de “segurança”, conforme foi dito pelos
entrevistados, para tanto, a relação com o sentimento de medo fica de certa forma
tolerável ou posta em parênteses, em contrapartida com o fortalecimento da confiança
nesta prática.
Um detalhe interessante em face da natureza do medo, no que se refere à
antecedência do primeiro contato com os EAAs, é que as preocupações ligadas ao uso
normalmente giram em torno dos efeitos nocivos tomados como imediatos. A maioria
dos entrevistados antes da primeira experiência com as substâncias esteroides
anabólicas afirmaram que sentiram medo devido o risco do aparecimento de algum
efeito colateral logo após o primeiro contato. Realidade diferente dos medos sentidos
depois da experiência com as substâncias, que se direcionam para uma preocupação
com algum dano que, por ventura, poderá acontecer no futuro. Portanto, a partir do
momento que os entrevistados tiveram o primeiro contato com as drogas da imagem
corporal, novos medos mostraram sua face, como consequência de um cenário bem
mais imprevisível e difuso. O caráter difuso e desconhecido são os elementos de ambas
as situações: uma, tendo em vista o instante imediato e a outra o futuro “muito” distante.
De qualquer modo, o sentimento de medo pré-consumo foi de certa forma controlado
devido a relevância do projeto corpo e todas as suas consequências. Já em relação ao
medo ligado às condições futuras, as sensações de incerteza e insegurança se ampliaram
como reflexo da intensificação do caráter difuso e desconhecido de tal realidade.
O imediatismo contemporâneo que direciona os indivíduos às preocupações com
o “agora” faz do futuro uma realidade muito distante para se preocupar. A cultura do
instantâneo serve como processo de “controle” do medo futuro e, se atendo a este
estratagema, os entrevistados continuam fazendo uso de tais substâncias em prol das
suas preocupações e objetivos imediatos.
Foi possível observar na pesquisa que, além dos medos ligados aos
pronunciamentos dos sistemas especializados e aqueles do discurso comum, existem
outros tipos de medos no que envolve o universo do uso dos esteroides anabolizantes.
São eles os medos existenciais relacionados à insatisfação da imagem corporal, tão
comuns na contemporaneidade. O medo do não reconhecimento social, da rejeição, do
fracasso, de ser passado pra trás, da infelicidade, dentre muitos outros temores típicos
dos dias atuais. Estes medos existenciais ligados à insatisfação da imagem corporal, de
certa forma ajudaram a impulsionar os entrevistados para a própria prática da
109
musculação e, posteriormente, utilização dos esteroides anabolizantes. Assim, os
entrevistados, ao decidirem fazer uso dos EAAs como forma de solucionar os medos
existenciais relacionados à insatisfação da imagem corporal, embarcam em um outro
universo, cercados por medos de todos os lados. Esta realidade mostra as diversas faces
do medo no que envolve o universo da utilização dos esteróides anabolizantes ligado
por razões puramente estéticas.
Podemos concluir que os entrevistados encontram-se diante de uma situação
muito dramática, considerando os elementos que envolvem as suas ações: 1- a vontade
que muitas vezes se torna uma “necessidade” de transformar sua forma corporal através
da hipertrofia muscular. 2- a “crença” que a mudança da forma corporal acarretaria a
emancipação de muitos dos problemas vividos no cotidiano, além, da eliminação dos
medos existenciais provocados por estes problemas; 3- a confiança nos esteroides
anabolizantes como a única ferramenta capaz de realizar os objetivos traçados frente ao
projeto corpo, em um período de tempo consideravelmente curto; 4- o medo no uso dos
esteroides anabolizantes produzido pelos sistemas peritos; dentre outros.
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Body- Building e a confiança e medo no uso dos esteroides