O Peso da Forma.
Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas.
Cesar Sabino
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS.
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia – PPGSA.
Orientadora: Prof.a Dr.a Mirian Goldenberg. Doutora em
Antropologia Social. Museu Nacional.
Rio de Janeiro
2004
2
Sabino, César
O Peso da Forma. Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas.
Rio de Janeiro:UFRJ/PPGSA, 2004.
366p.il.
Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGSA
1.Esteróides anabolizantes. 2. Drogas. 3. Fisiculturismo. 4. Corpo. 5.
Construção de Identidade. 6. Antropologia. 7. Tese Dout – (UFRJ/PPGSA) I
Título
3
Agradecimentos
Uma tese de doutorado nunca é uma produção individual, sua
elaboração envolve a participação direta ou indireta de muitas pessoas. O
exemplo de profissionalismo, atenção e dedicação tive a sorte de encontrar
aqui no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) na pessoa da minha
orientadora Mirian Goldenberg. Não tenho palavras para agradecer sua grande
paciência, valiosa orientação e também o grande e constante incentivo que nos
momentos mais difíceis sempre me proporcionou, não me deixando esmorecer
no meio do caminho.
Também, gostaria de agradecer à Professora Madel Therezinha Luz
pela oportunidade de ter participado como bolsista na sua pesquisa sobre
Racionalidades Médicas no Instituto de Medicina Social da UERJ e de suas
exemplares aulas na mesma instituição. Durante este rico período de
aprendizado desenvolvi não apenas meu interesse pelas estudos sobre corpo,
gênero e saúde, mas também o interesse pelas Ciências Sociais. Com ela
comecei a desenvolver o gosto e o respeito pelo ofício de pesquisador e
professor nos idos de 1994.
Para com as professoras Madel Luz e Mirian Goldenberg tenho uma
imensa e inefável dívida. A elas minha incomensurável gratidão, respeito e
admiração.
Agradeço muito, também, aos professores Marco Antônio Gonçalves e
Elsje Maria Lagrou as sugestões fundamentais, o atencioso carinho, as aulas
repletas de questionamentos antropológicos, nas quais a tecitura do
pensamento se fazia sempre presente, e as revistas importadas sobre cultura
física do início do século XX
trazidas da Europa – que me foram gentil e
generosamente presenteadas. Documentos fundamentais na elaboração de
parte dessa tese.
Ao professor Luis Fernando Dias Duarte gostaria de agradecer os
conselhos e as pacientes sugestões sobre textos e temas importantes por ele
4
indicados e que também foram fundamentais para a elaboração desse
trabalho.
Agradeço ao programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ) pela acolhida em
suas instalações e às funcionárias da secretaria, e amigas, Denise e Cláudia
pela atenção e o carinho sempre dispensados.
À CAPES agradeço a bolsa concedida, sem a qual a dedicação ao
trabalho de pesquisa não poderia ter sido realizado com o aproveitamento
devido.
Aos meus amigos Marcelo Peloggio, Washington Dener, Marcus Siani,
Andréa Osório, Sônia Beatriz e Marcelo Silva Ramos agradeço a vivacidade do
pensamento (não apenas crítico, mas criador), o companheirismo e a paciência
que só amigos de verdade possuem. A eles também agradeço as indicações
bibliográficas, as sugestões e as críticas que foram muito úteis para a
elaboração deste trabalho.
À Cláudia Bomfim da Fonseca não tenho palavras para agradecer sua
dedicação, a inestimável ajuda com a informática, as fotografias tiradas durante
o trabalho de campo, as sugestões temáticas, o companheirismo, a paciência,
e a compreensão. Á ela minha admiração, meu amor e meu carinho.
Agradeço a minha mãe Irani Sabino, meus amigos e familiares, que
suportaram minha inconstância (e aparente distância) durante a elaboração
desta tese, mesmo sem entender o porquê dela, ou mesmo sua finalidade.
Agradeço, também, a atenção de todos os amigos das academias que
freqüentei durante o trabalho de campo: os professores Gustavo Lopes e
Ricardo Barguine, Rafael Pacheco, Wolney Teixeira, Renata Bérenger, Márcia
Novak, Tatiana Amaral, Nina Aielo, Luca Paes Leme, Rafaello, Fabrício, Luís,
Rafael e tantos outros que aturaram o olhar intrometido e as perguntas
freqüentes de um pesquisador.
5
ABSTRACT
The aim of this thesis is to comprehend the word vision and the social
organization of
bodybuilders at the Rio de Janeiro’s Gyms. It intends to
understand the sense of the drugs use (steroids), remedy use, diets use, and
health marketing to makes the bodybuilder person through the passage rituals.
It
enphazise, also, the transit among the steroids and other drugs like
marijuana and cocaine at the gyms, exploring the interfaces of
drugs
consumerism and a new health ideology with anomic violence.
Resumo
O Objetivo desta tese é compreender a visão de mundo e a organização
social dos fisiculturistas das academias do Rio de Janeiro. Procura entender o
sentido do uso de drogas (esteróides anabolizantes), remédios, dietas e o
mercado da saúde. Itens que participam na construção da pessoa do
fisiculturista por intermédio de rituais de passagem. Enfatiza, também, nestas
instituições, a relação entre o uso de esteróides e drogas como maconha e
cocaína, explorando a ligação do consumo destas com a nova idologia da
saúde
e
a
prática
da
violência
anômica.
6
“Nous avions conscience que la connaissance du sport est
la clé de la connaissance de la societé ”.
Norbert Elias
“Nosso corpo é apenas uma estrutura social de
muitas almas”
Nietzsche
7
ÍNDICE
Apresentação 10
O Corpo Utópico 13
Capítulo I
O Surgimento do Bodybuilding 28
Heróis Fundadores 37
A Gesta de Arnold Schwarzenegger 60
Capítulo II
O Surgimento dos Esteróides 67
No Reino de Dionisos 76
Droga Hierarquizante 82
Apolo Rei 87
Entre Apolo e Dionisos 91
Capítulo III
Ética e Estética do Esteróide 97
Do Ascetismo ao Hedonismo 110
Drogas Masculinizantes e Individualismo 121
O Complexo de Piegan 124
Ritual e Construção de Pessoa no Fisiculturismo 127
Capítulo IV
Fármacos e Formas. Breves Notas Etnográficas 131
8
A Química da Forma 141
A Farmácia de Adonis
158
A Forma da Dor 169
A Lógica Classificatória Muscular 178
Séries de Repetição: A Divisão do Trabalho Muscular 199
Capítulo V
Comendo como Bicho: Publicidade, Mito e Grastro(a)nomia 207
Dieta Forte 211
Publicidade e Forma 224
Mito e Mídia 228
Mitos da Forma 233
Mercadorias Classificatórias 238
Imagens e Palavras 244
Raios e Leões
248
Fábrica e Mecânica de Corpos 250
Capítulo VI
Tatuagens: A Hierarquia da Epiderme
Pele de Homem. Pele de Mulher
257
262
Tatuagem e Lógica da Identidade 271
Magia Capilar ou A Louridade da Loura
O Cabelo do Malhador 279
A Loura Virtual 283
276
9
Capítulo VII
Elogio à Barbárie
Violência Difusa
292
295
O Status da Briga
Violência Anômica
298
309
Considerações Finais
325
Referências Bibliográficas 329
Anexos
343
10
Apresentação
Este trabalho tem como objetivo compreender a construção social do
corpo nas academias cariocas de musculação e fisiculturismo, buscando
aprofundar questões levantadas durante a elaboração da dissertação de
mestrado “Os Marombeiros. Construção de Corpo e Gênero em Academias de
Musculação”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS) no ano
de 2000. A dissertação, uma etnografia que buscou focalizar o cotidiano das
academias de musculação da Zona Norte do Rio de Janeiro (Tijuca, Andaraí,
Grajaú e Vila Isabel), destacou as relações de gênero e o uso de esteróides
anabolizantes relacionado à construção da forma física nestas instituições. A
análise de tais questões, embora ainda ligadas ao estudo sobre a hierarquia
estética do grupo e o uso de drogas, deteve-se no subgrupo específico dos
fisiculturistas (e não nos freqüentadores das academias de musculação, em
geral,
como
havia
sido
desenvolvido
anteriormente),
focalizando
e
aprofundando aspectos tais como o simbolismo relacionado à alimentação do
grupo, o uso de suplementos alimentares, o trânsito do uso de esteróides
(denominados drogas apolíneas na dissertação de mestrado) para o consumo
de drogas como a maconha e a cocaína (estas, por sua vez, denominadas
drogas dionisíacas), as perspectivas míticas suscitadas pela propaganda e pelo
marketing direcionado à manutenção da saúde e boa forma, o sistema
simbólico expresso pelas tatuagens, o simbolismo ligado à coloração capilar e
o elogio à violência. A pesquisa da tese de doutorado ampliou o espectro de
academias incluindo instituições do bairro de Copacabana. O direcionamento
da pesquisa para tais academias ocorreu devido ao fato de
neste bairro
localizar-se o maior número de academias freqüentadas por fisiculturistas,
homens e mulheres, na cidade do Rio de Janeiro, atualmente. Entendendo-se
por fisiculturistas, não apenas os freqüentadores de academias de musculação
e fitness, em geral, mas indivíduos que se destacam do resto dos
freqüentadores por dedicar grande parte do seu tempo desenvolvendo massa
muscular
muito
acima
da
média,
além
de
participarem,
mas
não
11
necessariamente, de campeonatos ou competições de bodybuilding. Sendo tal
grupo o maior representante de aficcionados pelo desenvolvimento muscular,
tendo a forma física como, se não a maior, a principal preocupação de suas
vidas, determinadas dimensões existentes de maneira não muito significativa
em outras academias (nas quais participam em número reduzido) puderam ser
melhor analisadas e pesquisadas nestas instituições de Copacabana nas quais
representam contingente significativo.
Esta tese de doutorado é o resultado de 54 meses de pesquisa (trabalho
de campo) em 10 academias de musculação e 2 de fisiculturismo da Zona
Norte e Zona Sul cariocas: 4 academias no bairro de Vila Isabel; 3 academias
no bairro da Tijuca; 2 no bairro do Grajaú; 2 em Copacabana e 1 no Andaraí.
As duas academias de Copacabana pesquisadas são exclusivamente
freqüentadas por fisiculturistas. No entanto, também foram pesquisados os
grupos de fisiculturistas que freqüentam as academias de musculação da Zona
Norte. Foram realizadas 310 entrevistas com homens e mulheres (200 homens
e 110 mulheres) com idade entre 16 e 55 anos. Porém, apenas duas
entrevistas foram gravadas e transcritas, sendo todos os outros relatos e
conversas escritos em cadernos e diários de campo, imediatamente após o
pesquisador deixar os locais de pesquisa. Foi priorizada a abordagem baseada
na observação participante. Os comportamentos e as falas descritas são os
dos fisiculturistas, e simpatizantes do fisiculturismo, em seu mundo cotidiano ou
“habitat natural”, como escreveu Wacquant (2001) em seu livro sobre os
boxeurs.
A tese está organizada em sete capítulos. É apresentada uma breve
etnografia
ressaltando
determinadas
características
consideradas
fundamentais para a construção do modelo de academia descrito no relato.
Esta pequena
etnografia ressalta a importância, relatada pelos próprios
usuários, do uso dos esteróides anabolizantes e outras drogas para a
construção da identidade do grupo relacionada às suas aspirações e visão de
mundo, considerando-se seu histórico e a dimensão simbólica do seu uso.
Inicialmente é apresentado um breve histórico do fisiculturismo, seu
surgimento, a consolidação do campo, seus ícones e sua projeção
12
internacional, destacando a função de um mito de referência para os
bodybuilders: a gesta do “herói” Schwarzenegger. A história do fisiculturismo no
Brasil não foi abordada, pois não encontrei nada de significativo sobre ela. Fato
que já sugere a realização de outra pesquisa abordando apenas este aspecto.
Logo após é considerada a dimensão simbólica do uso de esteróides tratado
como um novo tipo de uso de novas drogas. Uso relacionado ao processo de
medicamentalização de parcela significativa da cultura atual. Cultura que tende,
como sugeriu Sfez (1995), a elaborar uma utopia da saúde. Também é
realizado um breve histórico do surgimento dos esteróides introduz a questão
do uso do discurso científico pelo mercado da forma física e dos suplementos
alimentares.
Em outro capítulo destaca-se o papel da publicidade relacionada à
construção e manutenção dos mitos corporais modernos e sua relação com as
práticas
alimentares
dos
freqüentadores
assíduos
das
academias
de
fisiculturismo. A pesquisa enfatiza o papel simbólico da alimentação e sua
relação com a manutenção da forma pelos fisiculturistas, o aspecto
sagrado/profano da comida, a demonização da gordura, as classificações
alimentares, a consubstancialidade animal (ligada ao uso, por parte dos
pesquisados, de vitaminas e drogas para animais por causa da crença de que
tal compartilhar confere aquisição de propriedades animalescas consideradas
virtudes pelo grupo). Também focalizam-se os significados das dietas e sua
relação com o uso dos esteróides - o elixir-mor dos bodybuilders - , o papel da
publicidade sobre a comida, os suplementos alimentares e a forma física e sua
função classificatória cotidiana ligada à fabricação dos mitos fisiculturistas.
Neste ponto, a
pesquisa (pautada sobre a análise de propagandas
publicitárias) foi influenciada pelo trabalho de Rocha (1995).
No capítulo seguinte é relatada também, de forma breve, a experiência
pessoal do pesquisador no campo, sua relação com o seu próprio corpo e com
as estruturas dos dois campos de inserção profissional: o campo da academia
e o insurgente campo do fisiculturismo carioca. É destacado o papel da lógica
classificatória das competições e dos exercícios e a relação que estes, e sua
lógica, têm com a ordenação da realidade cotidiana do grupo. Nesse âmbito, o
13
simbolismo relacionado a crenças em mau-olhados, superstições e azar
marcam sua presença de reencantamento de um mundo onde o ascetismo
apresenta-se constantemente. O significado, por exemplo, dos números
ímpares na lógica classificatória do grupo é bastante sugestivo.
O capítulo posterior dá continuidade a essa análise simbólica
focalizando, porém, a hierarquia inscrita não apenas nos músculos, mas na
pele dos fisiculturistas por intermédio de suas tatuagens. É ressaltado de que
forma tais desenhos e inscrições possuem uma gramática própria traduzindo
relações de violência simbólica específicas do grupo, demarcando papéis
sociais relacionados ao gênero e à classe social. A seguir, é focalizada a
função simbólica do cabelo, a importância do cabelo louro e dos pêlos
alourados situados em determinadas regiões do corpo feminino e sua relação
com a hierarquia estética das academias. Também é destacado o sentido
positivo para os homens da ausência de pêlos, enquanto que para as mulheres
a presença de tais itens pode, ao contrário, ter o mesmo sentido positivo. Por
fim, o aspecto da violência simbólica traduzida em práticas físicas surge no
último capítulo da tese com a análise do cultivo e da exaltação do estilo rústico,
por vezes antiintelectual e violento, por parte destas pessoas que cultivam os
músculos e o consumo da forma.
O corpo utópico
Atravessamos uma época na qual o culto à forma corporal ganhou
amplitude inédita. Não é mais novidade: músculos definidos e inflados,
tatuagens, piercings, implantes de silicone, botox, bronzeado artificial, cirurgias
plásticas, estão constantemente presentes no cotidiano das grandes cidades e
na mídia atual. Uma espécie de cultura do corpo – nos dois sentidos: da forma
física e sistema subjetivo – vem se consolidando, ao menos em parte, nas
sociedades complexas hodiernas, articulando padrões estéticos perseguidos
por um crescente número de indivíduos insatisfeitos com seu corpo. Estes, ao
buscarem a construção de um corpo mais adequado aos ideais estéticos
hegemônicos ligados à adoração física vigentes nestas sociedades, acabam
14
por construir também uma ética singular diretamente radicada na estética.
Corpo como axis mundi. Este processo tem conduzido indivíduos e grupos de
determinados extratos sociais a buscarem uma perfeição física – obviamente
inalcançável - radicada na proliferação de imagens, ideologias terapêuticas,
métodos milagrosos e consumismo de produtos da indústria químicofarmacêutica como esteróides e suplementos alimentares, além de vitaminas e
“fortificantes” dos mais variados tipos (Luz, 1997; Del Priore, 2000; Pope,
Phillips & Olivardia, 2000; Nascimento, 2003). A preocupação não apenas com
a aparência, mas com a forma física, - com o entalhe muscular lapidado a ferro,
suor, exercícios, dor, dietas e mesmo cirurgias-, apesar de ser poduzida
coletivamente, torna-se carregada de investimento individual. Homens e
mulheres famosos anunciam na imprensa e nos programas de televisão, as
transformações corporais que decidiram realizar lançando mão de recursos tais
como
personal
trainners,
nutricionistas,
cirurgiões
plásticos
e
outros
profissionais do rejuvenescimento, do embelezamento e da saúde – entendida
aqui como “boa forma física”. De acordo com tal ideal, cada indivíduo é
considerado responsável (e culpado) pela sua juventude, beleza e saúde: só é
feio quem quer e só envelhece quem não se cuida. Cada um deve buscar em si
as imperfeições que podem - e devem - ser corrigidas (Goldenberg, 2002; Luz,
2000). Neste âmbito, o corpo encontra-se diante de um crescente mercado que
o tem como principal produto e produtor. Estar em e manter a forma pode
significar, neste fluxo somatófilo coletivo, sucesso pessoal, disciplina e talento
para vencer, galgando os patamares da hierarquia social. A saúde torna-se um
mandamento com efeito normalizador e adquire características de uma utopia,
entendida, segundo Sfez (1995), como projeto que supera, por sua natureza
praticamente religiosa – dado seu caráter universalista -, a ideologia. Esta,
embora pretenda universalidade é reconhecida pelos teóricos enquanto
discurso particular, ou seja, discurso originário de uma parcela específica da
sociedade, sendo portanto discurso parcial. No caso das práticas corporais
ligadas primordialmente ao paradigma estético esta utopia está atravessada
por representações de beleza ancoradas nos valores individualistas da cultura
contemporânea. Assim,
15
“é a estética, mais que a racionalidade médica e seus
modelos (normalidade/ patologia, ou vitalidade/ energia) o critério
sociocultural
maior
de
enquadramento
dos
sujeitos
para
determinar se realmente são ‘saudáveis’, ou se precisam exercer
alguma ‘atividade de saúde’, através do estabelecimento de
padrões rígidos de forma física. Aqui, o comedimento, tomado
como mandamento da saúde, está mais ligado à boa forma do
corpo que ao modelo doença/prevenção” (Luz, 2003: 5. Grifos da
autora).
Tais imperativos relacionados a estratégias sociais impelem um
crescente número de indivíduos a lutarem contra sua genética e o processo
inexorável de envelhecimento levando alguns a cultivarem uma espécie de
obsessão com a magreza, a musculatura e a juventude. Tal obsessão pode ser
percebida pela multiplicação de academias e métodos de exercícios novos
lançados a cada verão nos grandes centros urbanos, pela expansão de dietas
inovadoras de todos os tipos, pela disseminação da lipoaspiração, dos
implantes de silicone e cirurgias estéticas de nariz, glúteos e panturrilha, do
consumo de substâncias químicas de tipos variados para diminuir a
porcentagem de adiposidade localizada, além do uso de vários subterfúgios em
forma de cremes para atenuar as marcas de expressão. Este poder
normalizador, padrão de atuação coletiva que leva inconscientemente milhões
de pessoas a desejarem se enquadrar em um poderoso imperativo estético,
paradoxalmente vai de encontro ao ideal de liberdade individual inerente à
representação do individualismo da cultura
ocidental1 (Luz, 1988; 2000;
Dumont,1985).
1
-Apesar de todas as discussões a respeito da legitimidade dos termos cultura ocidental, modernidade e
Ocidente, consideramos, da mesma forma que Duarte (1999:22), viável a utilização do ponto de vista
comparado da hipótese de que participamos de um sistema de significação específico a que se pode
chamar, tentativamente, de “cultura ocidental moderna”, que implica uma certa maneira de perceber e
compreender os fenômenos de nossa vida e, sobretudo, imaginar que podemos perceber e compreender
fenômenos das outras culturas.
16
Este processo gerontofóbico e somatófilo no caso da sociedade
brasileira pode apresentar características peculiares ressaltadas por diversos
sociólogos, antropólogos e historiadores. Em relação ao bodybuilding 2amador,
as brasileiras e brasileiros articulam recursos técnicos universais para otimizar
partes específicas do corpo valorizadas pela sua cultura. Partes tais como
nádegas e coxas, no caso das mulheres, ou braços e peitos nos casos
masculinos, são “trabalhados” por exercícios com pesos para alcançar forma e
volume adequados ao padrão estético vigente (Da Matta, 1996). De acordo
com Malysse (1999; 2002), a atual expansão das técnicas de construção do
corpo no Brasil – ao menos no Rio de Janeiro onde o autor realizou trabalho de
campo – tendem a reiterar as profundas hieraquias sociais disfarçadas pela
cordialidade das interações nas quais o contato corporal se realiza sem
significar, contudo, proximidade social, de fato. Diz o autor:
“no contexto do culto carioca ao corpo, este é o portador de
valores de distinção social. No Rio, não é apenas a beleza em si
que constitui o valor fundamental da distinção social, mas também
a energia empregada por cada indivíduo para (re)construir sua
aparência...essa relação de espelho com o corpo confirma de
maneira visível os valores hierárquicos da sociedade carioca (...).
Insatisfeito, privado de seu corpo, o indivíduo é convidado a
retomar a posse daquilo que lhe escapa socialmente. Nesse
contexto, o
corpo torna-se o símbolo social da pessoa. A
corpolatria seria então uma ensomatose (uma queda em direção
ao
2
corpo),
mas
uma
ensomatose
controlada,
dosada
e
- O Bodybuilding ou fisiculturismo pode ser sumariamente definido como uso de exercícios
progressivos de força e resistência com o objetivo de controlar, administrar e desenvolver uma
musculatura específica. Este desenvolvimento é conseguido através de exercícios contínuos realizados
com pesos acoplados a barras – que podem ser curtas ou longas – e/ou em máquinas projetadas para tal. O
uso de tais pesos é controlado em conformidade com o objetivo estético do executante. Em geral, a
quantidade de pesos aumenta progressivamente com o passar do tempo. Relacionado a tal prática existe
todo um saber sobre nutrição, fisiologia e uso de remédios e substâncias diversas que circula nas
academias de musculação. Este saber geralmente tem por base os conhecimentos científicos ligados à
ciência médica ou biomedicina. Contudo, grande parte do conhecimento articulado pelos fisiculturistas e
personal trainers é prático, ou seja, apreendido e produzido no cotidiano de tais instituições por
intermédio da experimentação intuitiva ou por simples imitação. Assim, uma substância (remédio,
17
esteticamente
orientada
por
imagens-norma
ou
por
uma
iconologia desse culto corpo.” (2002:131).
Tocar-se em quantidade maior do que outros povos em espaços
públicos e privados não equivale à proximidade social efetiva, como uma
análise apressada poderia concluir. Paradoxalmente, o contato físico com o
outro,
neste
caso,
pode
significar
distanciamento
hierárquico
e
instrumentalização egoísta da alteridade. Neste processo, o problema das
representações sociais relacionadas à estética do corpo brasileiro aparecem
ligadas à concepção de que este corpo encarnaria uma beleza inigualável, tida
como produto nacional (inclusive “para exportação” como diz o senso comum)
que não estaria associada diretamente às questões de reivindicação étnicopolítica3. Este aspecto alude a uma percepção falsa de democratização,
radicada mais em um movimento estetizante, e acima de tudo mercadológico,
que de fato político (Fry, 2001; 2002). Não havendo no Brasil vínculo direto
entre práticas cosméticas e contestação às formas de opressão sexual ou
racial, a questão da beleza surgiria enquanto produto final da miscigenação -,
valorizada, neste caso. Essa lógica opera da seguinte maneira: se o corpo da
mulher brasileira, com sua “cintura fina, seu quadril largo e empinado, suas
pernas grossas e seu andar malemolente” são produto da “mistura de raças”,
tal mistura tornar-se-ia (em um caso de doxa da eugenia invertida) um item
indicativo da “democracia racial” brasileira, cultura supostamente capaz de
sintetizar diferenças transformando-as em produto esteticamente diferenciador:
“não há beleza maior do que a da mulher brasileira”, diz o senso comum
nacional. Esta ode à “beleza miscigenada” da brasileira (Freyre, 1986), - clichê
suplemento ou alimento) ou variação de exercício que algum fisiculturista percebe ter funcionado no seu
aprimoramento estético é repassado para todos aqueles que desejam alcançar tal aprimoramento.
3
- O trabalho de Bomfim (2002) sugere como prática comum à cultura nacional a manipulação
circunstancial da identidade étnica denominada “etnia virtual”. Este processo ocorre quando indivíduos
ou grupos manipulam uma suposta ascendencia minoritária – ciganos (no caso específico do trabalho da
autora), negros, etc - com o intuito de construir um papel vantajoso em determinado contexto social. Este
esteticismo populista pode ser claramente percebido no caso polêmico das cotas ou reserva de vagas para
negros em universidades públicas no Brasil – mais especificamente no Rio de Janeiro -, situação na qual
vários indivíduos considerados brancos se declararam afrodescendentes garantindo, estrategicamente,
vaga em universidade pública. (cf. Revista Época. N.o 244. 20/jan/2003. p.p. 36-7). Rezende e Maggie
também destacam que no Brasil ser negro, branco, preto, moreno, etc. , tornam-se atribuições que podem
variar “de acordo com quem fala, como fala, e de que posição fala.” (2002:15).
18
de guia turístico que esconde o fato de as percepções estéticas serem produto
da socialização -, é imagem dominante na representação da identidade
nacional
(Edmonds,
2002)
radicada
no
senso
comum;
muitas
vezes
contrabandeado para os estudos sociológicos. Tal representação que concebe
a beleza da brasileira como produto da miscigenação esquece que a grande
maioria daquelas mulheres aqui nascidas e reconhecidas mundo afora pelo
seu padrão estético, em geral, nada, ou quase nada têm de musas mestiças,
ao menos em sua aparência, ostentando nomes e aspecto que dariam ao
incauto a sensação de estar diante de mulheres alemãs ou italianas: Gisele
Bündchen, Daniella Cicarelli, Shirley Mallmann, Mariana Weickert, Ana
Hickmann, etc.
E é justamente tal padrão eurocêntrico de beleza feminina que impera
na mídia e que domina, se não na morfologia ao menos na etnia, o campo das
academias de musculação. Sendo instituições de classe média as academias
pesquisadas expressam as idiossincrasias relativas às visões de mundo dos
seus freqüentadores. Tais concepções a respeito das relações étnicas estão de
acordo com o que foi percebido por John Norvell. O trabalho do autor coloca
em xeque as conclusões apressadas sobre as chamadas relações raciais nas
camadas médias urbanas brasileiras, mais especificamente a carioca,
destacando a ambigüidade presente no discurso deste grupo que usa de
eufemismos para si mesmo quando referido a sua cor: denominam-se “claros”,
“alvos”, “morenos claros”, e assim por diante, quando confrontados com suas
características européias4. Como a representação do Brasil é a de uma nação
totalmente miscigenada, não se fala de brancura – ao menos em discursos
oficiais e “politicamente corretos” - como característica valorizada; assim os
informantes evitam referir-se a si mesmos como “brancos”, mesmo quando
descendentes diretos de imigrantes europeus
com todas as características
inerentes a tal fato. Poucos aceitam o rótulo, e quando o fazem,
4
é com
- Farias (2002) escreve que no Brasil ser bronzeado é símbolo de status. A cor bronzeada, o estar
moreno, ou ser moreno, com toda ambigüidade que tal termo possui (e por isso mesmo) é sinônimo de
positividade, beleza e mesmo saúde, contrastando com a cor branca vista como palidez ou o vermelho
entendido como castigo do sol aos muito brancos. Contudo, como tais classificações são voláteis, este
discurso é utilizado em determinadas circunstâncias, por exemplo, quando relacionado às praias na época
do verão. Em outras condições, quando convém, o moreno bronzeado vira branco, ao menos no discurso.
19
incômodo ou constrangimento. Apesar de tal constatação discursiva o trabalho
de campo do autor esclarece que há duplicidade na fala e que a prática difere,
algumas vezes, daquilo que é dito:
“os cariocas de classe média observam que não partilham
os valores culturais que constituem o núcleo da nação...em algum
momento começam a falar sobre o passado de imigrantes de sua
família...apontam, quase com melancolia, que não gostam
particularmente de carnaval, festa tão brasileira e miscigenada de
inversão, sexo e entrega. Muitas vezes saem da cidade nessa
época, fugindo para locais elegantes de veraneio nas montanhas
ou na praia. Confessam que não sabem dançar samba. Só as
mulatas do morro sabem realmente sambar. Falam sobre o
povão, as massas racializadas, e seu jeito livre, solto, sua gíria,
sua irreverência. Um advogado de classe média alta me disse:
‘Assim como você é gringo aqui, eu também’. Apontou para rua e
explicou: ‘Meu nome não é da Silva. No uso gíria o tempo todo.
Não sambo. Não tenho sangue negro.’ Este último ponto, relativo
à ausência de sangue negro, é uma parte crucial dessa narrativa
que fala de si mesmo como alguém que está de fora. Embora se
descrevam como produtos de uma sociedade de raça mista,
essas origens tendem a desaparecer no plano concreto. Eles
preferem fazer referências a parentes imigrantes específicos, e
não a parentes negros, mulatos ou indígenas. Reconhecem que
sua família de fato não é tão misturada quanto a norma brasileira,
embora haja muito provavelmente um parente indígena ou negro
‘em algum lugar do passado’. Às vezes admitem que haveria
tensão na família se eles ou seus filhos tivessem uma relação
sexual pública com uma pessoa de pele escura. Embora a maioria
dos homens aponte a mulata como padrão de beleza e alvo de
desejo sexual no Brasil, seus contatos sexuais reais com mulatas
parecem
limitar-se
ou
a
representações,
como
desfiles
20
carnavalescos ou em filmes, ou a ligações ilegítimas, prostituição
e casos secretos, por exemplo.” (Norvell, 2002:261).
Compreensível, portanto, o fato de as classes alta e média alta, e
conseqüentemente a mídia, articularem discursos sobre a beleza miscigenada
que não condizem na prática com a realidade que elas mesmas reproduzem.
Da mesma maneira, entre os fisiculturistas e freqüentadores das academias de
musculação em geral, tal processo é similar. O padrão de beleza apresentado
nas representações dos indivíduos mostra-se eminentemente europeu.
As representações sobre o corpo não apenas ajudam a construí-lo, mas
algumas vezes, também a oprimí-lo. Sobre a tríade conceitual beleza –
juventude
5
– saúde
6
um número crescente de indivíduos tem sido, cada vez
mais, empurrados ao consumo de práticas ligadas à boa forma (Del Priore, Op.
5
- A categoria juventude apresenta-se como portadora de ambigüidade que lhe é inerente pelo fato de não
gozar de consenso entre os especialistas nem mesmo em termos de delimitação etária. Certo é que, nas
sociedades complexas ocidentais, mais especificamente entre as camadas médias urbanas, ela é um signo
que reúne um conjunto de categorias relacionadas ao corpo, à vestimenta e ao estilo de vida, ou seja, o
conceito juventude assume o aspecto de produto, tendo um valor simbólico calcado em uma estética
específica que gera, por usa vez, a produção de significativa variedade de bens e serviços que têm
impacto direto sobre os discursos sociais que a identificam, e que também podem ser consumidos por
adultos no intuito de estender no tempo sua capacidade de portarem tal signo de juventude. Este aspecto
exclui do processo as classes baixas, posto que são os indivíduos de setores médios e altos aqueles que
possuem acesso à educação de fato podendo postergar as responsabilidades inerentes à vida adulta, sendo,
por isso, capazes de emitir por mais tempo os signos sociais da juventude. Assim, o signo juventude está
praticamente restrito, ao menos no Brasil, às camadas média e alta, as quais possuem acesso à educação
superior e à moratória na plenitude do termo (Reis, 2000). Nas academias de musculação é possível notar
outra manifestação deste signo relativo aos indivíduos da chamada meia idade. Tais indivíduos, por já
terem se desfeito das responsabilidades relativas à idade adulta – formação de família, criação de filhos,
conquista de determinados bens, etc. – ou seja, por já terem passado, com relativo sucesso, por tal fase,
rearticulam o signo da juventude, como se tentassem readquirir um tempo perdido. Desta forma, em
academias de classes mais altas é comum, por exemplo, a presença de senhoras quase sexagenárias com
corpos portando todos os símbolos relacionados à juventude. O mesmo pode ser dito dos homens.
Certa vez, ao chegar a uma sala de musculação em uma academia da zona sul avistei, virada em
minha direção de costas, uma loura alta vestindo colant vermelho. O corpo curvilíneo, definido e
bronzeado chamava atenção. Repentinamente ela virou o rosto e percebi que, apesar do corpo jovem, suas
feições pareciam ter nascido décadas antes do resto do corpo. Esta mulher lembrava uma pintura cubista
a qual os retoques da cirurgia plástica haviam definido as caracterísiticas anacrônicas das partes do corpo.
Imediatamente lembrei de um trecho do poema de Bandeira – poema no qual o autor ironiza outro
trabalho de Castro Alves - chamado Teresa (1996:136): “... Quando vi Teresa de novo/ Achei que os
olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo/ (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando
que o resto do corpo nascesse)...”
6
- A OMS define saúde como “estado de bem estar físico mental e social”, ou seja um estado ideal e,
portanto, inexistente em sua plenitude. Na prática, a saúde surge como um paradigma polissêmico e
polifônico, um “aparente monolito simbólico, até certo ponto ideológico em sua homogeneidade...
[representando] um conjunto híbrido de imagens, representações, significados, diretrizes, e práticas
sociais sintetizadas (ou sincretizadas)...” (Luz, 1999:2. Grifo da autora).
21
Cit.). Longe de desembaraçar-se dos esquemas tradicionais de dominação, o
corpo hoje nas sociedades complexas, pode sofrer restrições gradativas
levando indivíduos e grupos a construirem suas identidades associadas a tal
tríade conceitual citada. As representações sociais atuais tendem a impelir os
indivíduos e grupos a se colocarem a serviço da forma física ou, no mínino, a
articular estratégias de interação tendo em vista tal demanda coletiva pela “boa
forma”7. Tal controle, diferente do passado, possui a tendência a se articular
por intermédio da mídia, da propaganda e do marketing. A proliferação de
“corpos perfeitos” em revistas, outdoors, telas de televisão, cinemas e internet
tecem uma trama cotidiana de agenciamentos coletivos que, respaldados no
discurso sobre a saúde, leva indivíduos e grupos a construírem rituais de
adoração à forma que colocam em risco as suas próprias vidas. Neste caso,
todo o possível tende a ser investido no aperfeiçoamento e na manutenção da
aparência. A forma oblitera o conteúdo, em uma sobrecarga sensorial, como
pode demonstrar Samuel Fussel escrevendo sobre a época em era
fisiculturista:
“ Músculos, grandes, expressivos músculos – bem, eles
são algo mais. Obviamente uma rápida olhadela no meu corpo
enorme já me garante imunidade mesmo contra a criminalidade
mais insana. E a beleza de tudo isso é que provavelmente eu
nunca serei obrigado a utilizar realmente esses músculos. Eu
poderia permanecer um covarde e ninguém saberia!” (Fussel,
1991:25).
Ou ainda o depoimento de um fisiculturista brasileiro entrevistado por
mim em :
7
- Essa parte do trabalho tem por objetivo destacar a dimensão de agenciamento coletivo presente nas
normas e regras da construção do corpo nas academias de musculação nas quais impera uma ética
estetizante. Contudo, tal abordagem não tem por objetivo generalizar as conclusões, posto que no próprio
campo estudado apresentam-se estratégias, articuladas por indivíduos e grupos, de subversão desta lógica
do esteticismo por vezes anti-solidário. Assim, se há por um lado, uma espécie de obediência e
passividade por parte daqueles que tendem a seguir, um tanto irrefletidamente, as modas e costumes, por
outro lado, sempre existem, mesmo em minoria, os que articulam práticas inventivas, estratégias de
22
“ Eu gasto muito para manter esse corpo...em alimentação
e esteróides eu gasto por mês uns dois mil reais só com isso. Já
vendi dois carros e uma moto para poder malhar, quando não
tenho dinheiro arrumo de um jeito ou outro, vendo o que eu tenho,
depois compro de novo... são fases, o que eu não deixo é de
crescer, isso é a minha vida, nada vai me desviar disso, nem
dinheiro, nem mulher, nem médico... sofri um acidente de moto
em 96 e fiquei em estado grave, quebrei perna, costela, braço,
fiquei entrevado no hospital, cortei minha cara toda... o médico me
disse que eu não ia mais poder malhar pesado, disse que eu ia
ficar aleijado; dois meses depois eu tava ‘malhando’ e seis meses
depois da alta eu já estava bom, não adianta, não deixo de
malhar, por nada.” (Marcos 28 anos. Personal trainer).
Para que seja viável a busca de entendimento de uma instituição, seja
ela qual for, é necessário “estudar em detalhes a estrutura e o funcionamento
da organização que a sustenta” (Wacquant, 2002: 31). Do mesmo modo, para
que seja possível a busca de entendimento deste processo de adoração à
forma presente nas sociedades complexas atuais se faz necessário elucidar o
significado e o enraizamento das práticas corporais realizadas em academias
de musculação e ginástica com todas as suas incessantes variações de
práticas de exercícios que vem se espalhando de maneira crescente pelas
grandes cidades. Examinar a trama das relações sociais e simbólicas tecidas
no interior e ao redor das salas de exercícios de hipertrofia muscular é tarefa
imprescindível para que tal processo de compreensão desta realidade seja
possível.
A musculação tornou-se, a partir da segunda metade do século XX, uma
prática em expansão conferindo à massa muscular hipertrofiada o status de
novo item da moda associado à crescente indústria de suplementos,
esteróides, publicações especializadas e tecnologia de máquinas para
subversão fazendo dobrar as forças das estruturas de dominação simbólica propondo novas práticas e
23
exercícios. Vasta parafernália do suor tem se desenvolvido ao redor do globo
construindo os ditames da fibra muscular como um modo de vida (Courtine,
1995). Se na segunda metade do século XIX homens hipermusculosos eram
símbolo do desvio, - em geral apresentados (na Europa e América do Norte)
em freak shows - , na primeira metade do século XX passaram a representar
um ideal relacionado àconstrução do caráter empreendedor e progressista tido
como necessário para a manutenção da família e do ideal de nação,
concepções caras às sociedades disciplinares (Foucault, 1988; Costa, 1989;
Rabinow,1999). Atualmente, ostentar massa hipertrofiada e definida8 pode
significar a adesão ao consumo e ao paroxismo da aparência. De meio para
atingir um ideal, o corpo tornou-se, para muitos, um projeto. Revistas, TV,
cinema, outdoors, reiteram a importância da imagem corporal e dos exercícios
para a articulação do chamado marketing pessoal: corpo-empresa, corpomáquina, corpo-produto de consumo. Neste processo, o mercado do corpo
amplia-se e as academias de musculação surgem como instituições onde uma
parcela das camadas médias urbanas tenta aprimorar a sua forma em nome de
um ideal de saúde, não menos respaldado pelo consumo.
Desta forma, a musculação enquanto instituição – e portanto enquanto
elemento que extrapola, e muito, a dimensão apenas biológica – é uma das
oficinas na qual são forjados corpos. O local onde são elaboradas,
experimentadas e sistematizadas as habilidades técnicas que permitem
construir e conformar este material feito de sangue, músculos e desejos. A
competência
esportiva
transmitida
pelas
academias
está
diretamente
relacionada à estética (salvo raras exceções nas quais a musculação é usada
como apoio ou fortalecimento muscular para a prática de outros esportes); e
nisto ela possui uma função institucional que é extra-esportiva, pois as
interações sociais realizadas em seu interior estão ligadas mormente ao culto
da forma física. De fato, o bodybuilding resume-se a um conjunto de técnicas
corporais (Mauss, 1974) e de aprimoramento da forma muscular, e as
academias – umas mais outras menos- apresentam-se como espécies de
representações (Certeau, 2002; Bourdieu, 2001; Luz, 1999; 2003).
24
santuários da estética física onde a performance, grosso modo, dita a norma
alimentando o atual processo da construção da aparência.
O fisiculturista (também conhecido popularmente no Rio de Janeiro
como “marombeiro”9), espécie de ícone do culto à forma, síntese das
tendências corpólatras, depila seu corpo, cuida de sua pele, aprende a
caminhar de forma dramática ressaltando os seus detalhes musculares, treina
poses no espelho, faz dieta, vai ao esteticista e fica deprimido quando engorda
ou perde massa muscular. Sua vida, em geral, gira em torno da forma física
sendo o olhar do outro a maior recompensa para ele que acredita ser o livre
construtor de sua própria morfologia. É possível perceber tal aspecto no relato
a seguir: “Quando tô na rua e todo mundo fica olhando espantado para mim por
causa do meu tamanho é a verdadeira glória... não ser percebido é o fim! Se
ninguém te olha, você é um qualquer, um ninguém, um nada...” (Carlos. 33
anos. Advogdo).
Se, por intermédio da adoração à muscularidade, o fisiculturismo acaba
por
exaltar um paradigma de masculinidade que pode ser denominada
hegemônica, por outro lado, subverte o cuidado de si, introduzindo práticas
tradicionalmente femininas no cotidiano masculino ao transformar a forma física
em objeto de sedução, de atenção e admiração, articulando uma espécie de
feminização da masculinidade (Kimmel, 1998; Ramos, 2000), porém sem
alterar a ética andrólatra da formação desta.Talvez estes homens sejam uma
espécie de amostra da crescente onda de pressão estética que a sociedade
atual tem feito incidir sobre a masculinidade. A mesma pressão para adquirir a
forma física perfeita, que as mulheres sofrem há séculos, agora tem sido, cada
vez mais, enfrentada pelos indivíduos do sexo masculino. Estes têm utilizado
todos os tipos de recursos para construir uma forma adequada às
8
- Definir musculatura significa não apenas fazê-la crescer, mas diminuir a porcentagem de gordura para
que as fibras musculares se tornem visíveis, por exemplo o abdômen deve estar em forma de gomos e
isso apenas é possível se o indivíduo tiver baixo percentual de gordura e não apenas massa muscular.
9
- A palavra origina-se de maromba: vara que funâmbulo usa para se equilibrar na maroma: corda na qual
caminha. Maromba pode significar também o(s) peso(s) com o qual o funâmbulo se mantém em
equilíbrio. Como no fisiculturismo e halterofilismo são utilizadas barras com pesos (halteres) removíveis,
ou não, nas extremidades, não é difícil perceber a associação das imagens do homem que anda na corda
bamba, utilizando o peso da maromba para se equilibrar, e daquele que utiliza os pesos para otimizar sua
forma e força. Marombeiro, na cidade do Rio de Janeiro, tornou-se sinônimo de freqüentador assíduo de
academias de musculação, o mesmo que “rato de academia” (Sabino, 2002: 139).
25
representações sociais10 de beleza: musculação compulsiva, uso de esteróides
anabolizantes, produtos redutores de adiposidade, cirurgias plásticas, cuidado
com pele e cabelos, tudo para cultivar uma imagem hipermasculinizada11.
Neste processo de produção dos músculos, os marombeiros ou fisiculturistas
servem também como cobaia para a indústria da forma. Assim (com licença da
metáfora mecanicista) como os carros de fórmula 1 servem de experimento
para a indústria automotiva aplicar nos carros de passeio seus avanços
tecnológicos, da mesma maneira o corpo dos fisiculturistas serve para as
indústrias farmacêuticas, de suplementos alimentares, de aparelhos de
musculação e moda esportiva, como veículo de teste para a eficácia de seus
produtos. Os saberes e as práticas sobre o corpo são produzidos e
reproduzidos no cotidiano das academias. Tais técnicas do corpo estruturam e
organizam um processo crescente de expansão do cuidado com a forma e a
força física, organizando também as relações sociais dentro e fora das
instituições de exercícios físicos (Sabino, 2003).
Enquanto muitas instituições esportivas isolam os seus freqüentadores
da rua, da violência social e da ação do crime organizado, apresentando-se,
não raro, como o único caminho possível de ascensão social, como é o caso
das academias de boxe nos guetos americanos (Wacquant, Op. Cit.) e dos
clubes de futebol no Brasil, a academia de musculação ou de bodybuilding
opera por lógica invertida. Em sua maioria pertencentes à classe média, médiabaixa urbana, é comum entre os frequentadores destes recintos repletos de
pesos e máquinas o cultivo de uma certa admiração por um submundo do qual
10
- Representações sociais, coletivas ou culturais: segundo Durkheim, criador do termo “...maneiras de
pensar, de agir e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se
lhe impõe” (1972: 4); proseguindo: “designam a camada mais antiga, e também a mais estável e a mais
implícita da visão de mundo dos indivíduos. Nas representações coletivas encontram-se categorias de
classificação, imagens e símbolos que organizam as relações dos indivíduos entre si e com a natureza.
Essa visão de mundo apresenta-se como natural não exigindo qualquer justificativa” (Bozon, 1995:1234). Ainda: “são esquemas de pensamento impensados que sob forma de um conjunto de pares de
oposição binária [por exemplo, forte/fraco, alto/baixo, masculino/feminino, bom/ruim, rico/pobre, etc]
funcionando como categorias de percepção, constroem as relações de poder do ponto de vista daqueles
que afirmam sua dominação, fazendo-a parecer natural...(Bourdieu, 1990:34).
11
- Se há uma forte corrente que hipervaloriza a masculinidade construíndo uma espécie de androlatria
na sociedade atual, existem reações nesta mesma sociedade, como aponta o trabalho de Osório sobre o
movimento wicca. Nas representações deste grupo o valor atribuído ao que é feminino é sempre positivo,
ao contrário do que se observa em sociedades tradicionais. Se, nestas sociedades, o corpo da mulher é
perverso e impuro, na wicca ele é fonte de vida e criação e, portanto, sagrado (Osório, 2002).
26
eles não fazem parte ou que presenciam eventualmente através do noticiário
sobre os crimes da cidade ou distante das janelas de seus apartamentos em
condomínios. Se é possível alguém tornar-se um fisiculturista de competição
hoje no Brasil, devido a expansão gradativa desta prática, em sua maioria tais
indivíduos não buscam a profissionalização12, apenas organizam seu cotidiano
por intermédio do sistema simbólico e prático da educação corporal e estética
que confere um certo sentido às suas vidas. Se a representação deste sistema,
construída por intermédio da mídia especializada, apregoa uma existência
ilibada, independente de vícios, ligada à família e à ordem, na prática ocorre o
inverso. Este paradoxo, como será possível perceber adiante, é parte da
própria constituição do devir fisiculturista. Pois ao mesmo tempo em que o
fisiculturista deseja ser aceito socialmente, estampando através de seus
músculos disciplina e dedicação, cultiva um certo ar estigmatizado, de alguém
que tem relação obscura com o lado marginalizado e misterioso da sociedade o que por vezes pode comportar uma certa romantização do crime.
Obviamente, tal relação confere àquele que cultiva seus músculos um certo
sentimento de poder, já que o estigma também porta um quantum de força
simbólica que não é apenas negativa (Douglas, 1976; Goffman, 1983). Ou,
para repetir Foucault, se o poder reprime e exclui disciplinarmente ele também
produz:
“o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito
é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não,
mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer,
forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma
rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do
que uma instância negativa que tem por função reprimir” (1993:8).
12
- A profissionalização efetiva do fisiculturismo não existe no Brasil. Os atletas mais famosos (José
Carlos Souza Santos, tetracampeão mundial, por exemplo) são internacionalmente conhecidos como
amadores e não recebem prêmios em dinheiro – o campeonato norte-americano Mister Olympia paga ao
vencedor o prêmio de 1 milhão de dólares – porém, podem receber patrocínio de redes de lojas de
suplementos alimentares (o atleta citado recebe apoio da Probiótica) e fazer propaganda de produtos
ligados ao fisiculturismo e a outros esportes.
27
O lado marginal e estigmatizado muitas vezes admirado pelos
fisiculturistas
é
reforçado
pelo
contínuo
uso
das
drogas
(esteróides
anabolizantes) que são inerentes à própria construção de pessoa dos
frequentadores assíduos das academias. O uso ritualizado de tais substâncias
é parte integrante da existência daqueles que desejam se integrar ao grupo;
embora os próprios freqüentadores não assumam tal fato diante de indivíduos
estranhos ao seu grupo social. Por serem substâncias proibidas por lei, a
construção de pessoa do fisiculturista envolve um sólido e crescente
relacionamento com redes de tráfico de substâncias químicas. Estas surgem
atualmente como novas drogas no cenário mundial.
28
Capítulo I
O surgimento do Body Building
“É a sociedade inteira que ensina a seus membros que, para eles, só
existe oportunidade, no seio da ordem social, à custa de uma tentativa absurda
de saírem dela”
Lévi-Strauss
O fisiculturismo, ou bodybuilding, originou-se na Europa – mais
especificamente na Inglaterra Vitoriana
13
- do final do século XIX, e pode ser
percebido como representando um dos possíveis desdobramentos, por um
lado, do processo civilizatório destacado por Elias (1990;1993) em sua obra, e
por outro, pelo surgimento dos processos disciplinares e biopolíticos
destacados por Foucault (1993;1997). Seu surgimento coincidiu com o advento
da fotografia e o fortalecimento da indústria cultural, a qual distribuiu
gradativamente as imagens dos corpos musculosos (e as crescentes técnicas
para transformá-los em tais) para uma audiência cada vez mais espalhada pelo
mundo. Dizer que o surgimento do fisiculturismo significou um desdobramento
do que Elias designou como processo civilizatório significa repetir, com o autor,
que a esportificação das atividades de luta existentes na Idade Média –
maneiras populares, e violentas, de resolver conflitos, assumiram a partir de
um determinado período, uma forma estilizada. É necessário destacar, ao
13
Os termos vitoriano e eduardiano referem-se ao período no qual os monarcas ingleses Rainha Vitória
(1837-1901) e Rei Eduardo VII (1901-1910) exerceram seus reinados. O termo vitoriano pode referir-se,
além de outros aspectos, à arte e à arquitetura que grassou no último período do reinado da rainha Vitória
permanecendo durante o breve reinado de Eduardo VII. O estilo foi fortemente influenciado pela
austeridade e pelo interesse em torno do classicismo greco-romano que levou à promoção das grandes
excavações arqueológicas na Grécia e na Itália. Apesar da inspiração classicista, o estilo vitoriano foi
marcado pela busca de maior opulência e ornamentação se comparado ao prévio período “clássico” da era
napoleônica. Neste contexto, o fisiculturismo insurgente na Inglaterra mostrou-se como uma tentativa de
retorno à estética atlética da estatuária grega.
29
menos brevemente, as mutações pelas quais passaram as práticas de
atividades físicas para melhor compreensão da gênese destas, no caso
específico o bodybuilding, e seu lugar em alguns contextos sociais hodiernos,
sem esquecer, contudo, que não é possível divorciar a análise do esporte e das
práticas corporais do contexto social no qual estão inseridos. Tais práticas
apenas fazem sentido quando relacionadas com os sistemas simbólicos que
representam e que as constituem e com outras dimensões da sociedade.
A princípio é preciso delimitar, como fizeram Elias e Dunning (1994), as
singularidades entre jogo e esporte. O jogo apresentar-se-ia como universal,
presente em todas as culturas, atuais ou não. Seria prática tradicional,
existente em todas as sociedades ao longo do tempo e do espaço. Já o esporte
é o produto de uma descontinuidade produzida no ocidente europeu, que –
para usar um certo acento metodológico weberiano – racionalizou as práticas
corporais,
regrando-as,
regulando-as, administrando-as, buscando delas
estirpar a violência presente nessas atividades. O esporte é, portanto,
moderno; produto da modernidade. Não se pode dizer, por isso mesmo, que
sua existência tenha sido sustentada como prática universal. Ao menos em seu
período inicial, ele seria a liberação controlada das emoções, tentativa de
amenizar violentas disputas que, não raro, estariam presentes nos jogos
guerreiros ou rituais das sociedades européias tradicionais. A existência de
regras escritas e uniformes codificando as práticas, a autonomização do jogo e,
conseqüentemente, do espetáculo do jogo, além de severas punições contra
atos violentos, seriam algumas das características constituitivas das práticas
esportivas surgidas na modernidade (Idem ; Chartier, 1994). Se existe uma
disposição psico-social relacionada às práticas de jogos presente em todas as
sociedades e culturas ao longo do tempo e do espaço (Huizinga, 1988), a
prática esportiva, embora relacionada diretamente aos jogos tradicionais,
destes
se
destaca
pela
sua
singularidade.
O
esporte,
produto
da
disciplinarização e racionalização, transformou o jogo em prática distinta, com
configurações
específicas,
em
outras
palavras.
Tal
racionalização
da
competição e disciplinarização dos corpos proporcionou o surgimento dos
30
campos esportivos com toda atual profissionalização que lhes é característica,
seus locais (ginásios, academias, clubes e estádios), saberes e tempos
específicos
14
.
Ao calendário religioso e folclórico dos rituais coletivos, o
esporte passou a opôr, ou conjugar, um calendário próprio de competições nas
quais as datas passaram a existir em consonância com os ritmos anuais de
cada disciplina. A implantação e a arquitetura dos estádios, ligada também à
criação de normas para gestão da intimidade dos indivíduos, relacionou-se ao
propósito insurgente de gestão populacional (Foucault, 1987; Costa,1989) e à
extração do máximo de lucro possível do espetáculo. O calendário esportivo,
então, passa a depender das exigências da propaganda, do ritmo do trabalho
e dos hábitos de lazer característicos do capitalismo em consolidação (Elias &
Dunning, Op. Cit.). Surgem regras fixas que visam permitir a realização
uniforme e potencialmente universal das práticas esportivas: “A história de
cada esporte é portanto, fundamentalmente, a história da constituição de um
corpo de regulamentos cada vez mais detalhados e precisos, que impõem um
código único às maneiras de jogar e de competir que eram, anteriormente,
estritamente locais ou regionais” (Chartier, Op. Cit.:16). A diferença entre o
esporte e o jogo tradicional se manifesta, por um lado, por regras uniformes
que suplantam progressivamente os usos locais e circunstanciais dos jogos
tradicionais, por outro, pela existência de especialistas que têm a função de
constituir um direito específico para reger as práticas esportivas. Segundo Elias
e Dunning, é a partir destas regulamentações que dois aspectos fundamentais
podem ser compreendidos: a redução do nível de violência tolerável nos
enfrentamentos físicos, e o desenvolvimento de uma ética da lealdade que não
14
- O exemplo do futebol popular (folk football,soccer), praticado na Inglaterra antes do século XIX, é
sugestivo deste processo de mutação jogo-esporte. Tal prática era realizada através do enfrentamento de
duas identidades sociais previamente definidas como a residência em uma mesma comunidade citatina ou
domínio senhorial, o exercício de uma mesma profissão , o pertencimento a uma grupo de ‘jovens’ – ou
seja, celibatários possuindo mais ou menos a mesma idade – ou o grupo dos homens casados. O jogo
reproduzia, portanto, as perspectivas que lhe eram anteriores e exteriores, e que organizavam os rituais
festivos. Tais jogos inscreviam-se nos calendários das festas religiosas e folclóricas, sendo, contudo,
negociados conforme as partes em questão. Desprovidos de um tempo próprio, independente de outros
eventos, eles se realizavam sempre aos domingos após as missas não tendo também espaço específico,
definitivo, para ser realizado. Qualquer espaço comunitário podia ser utilizado para o jogo que não
apresentava regras uniformes, fixas e demarcadas. As convenções que permitiam o jogo eram
rudimentares, locais e costumeiras: “de uma região a outra, de um vilarejo a outro, de uma partida a outra,
todos os elementos podiam tornar-se diferentes: o número de participantes, a duração do jogo, as regras
aceitas, os objetos utilizados, os critérios que decidiam a vitória,etc. ” (Chartier, 1994:15).
31
separa o desejo de vitória do respeito às regras e do prazer do jogo como
objetivo final. Para os autores, esse processo de descontinuidade social
demonstra a transformação das estruturas da personalidade possibilitando o
relaxamento dos controles emocionais sem deixar totalmente livre os
movimentos espontâneos e perigosos das pulsões e dos afetos, “descontrole
controlado das emoções” (Op. Cit.: 18). O prazer da prática ou do espetáculo
esportivo coloca em jogo corpos que disputam e pelejam, devendo realizar tal
processo de maneira respeitosa para com a vida; mesmo as peripécias e
demonstrações de lutas severas não devem passar de um simulacro das
batalhas violentas. Esta excitação bem controlada - batalha controlada em um
espaço projetado – ligada às práticas esportivas, supõe duas condições:
primeira, o aparecimento de práticas de lazer com características miméticas
permitiu o relaxamento, a liberação do controle ordinariamente exercido sobre
as emoções; controle diretamente equacionado ao mundo opressor do trabalho
no capitalismo e da existência pública que instaura a separação entre a vida
privada e esta. Nos espaços de disputas esportivas seria permitido expressar e
dar vazão às emoções que cotidianamente deveriam ser censuradas e
administradas para que a manutenção da ordem social fosse possível. Desta
forma, o surgimento das tecnologias esportivas com todo seu saber que acaba
por constituir a ciência do esporte pode ser visto, também, em uma ótica
foucaultiana, como mais um dispositivo da insurgente sociedade disciplinar que
se consolida a partir do século XVIII na Europa, ou ainda, como mais um
processo
de
racionalização
–
entendido
enquanto
técnica
e
cálculo
administrativo da vida - inerente às sociedades européias, de acordo com
Weber (Foucault, 1997; 1993; 1988; Weber, 1992;1995). Ao conceito de
processo civilizatório de Elias poderia ser somada a idéia de disciplinarização
de Foucault e crescente racionalização do mundo da vida de Weber.
A segunda condição
sustenta que esta admistração dos afetos
violentos pela tecnologia esportiva só se faz viável por intermédio da
interiorização dos sistemas simbólicos de constrangimento que se traduzem
em mecanismos de autocontrole ligados ao surgimento de uma nova economia
emocional. Os estádios e os ringues nos quais os dispositivos de autocontrole
32
comandam de maneira universal e regular
todos os comportamentos dos
participantes e as liberações emocionais surgem como instâncias nas quais a
sociedade pode efetuar certas atividades de expressão de disputas sem
colocar em perigo um retorno da agressividade destrutiva e da violência
gratuita. Do duelo sangrento às partidas esportivas, o processo de
disciplinarização tem por objetivo a pacificação do espaço social, embora
parcial e tendenciosa, assegurando o monopólio sobre o uso legítimo da força
pelo Estado, transferindo para o interior do indivíduo os constrangimentos que
deveriam evitar os confrontos sangrentos e abertos; dispositivo interiorizado de
censura efetivado em práticas e comportamentos coletivos e individuais
(habitus)
que
não
tem
mais
por
base
a
autoridade
exterior
dos
constrangimentos punitivos15.
O processo civilizatório surge, também, como um processo de
esportização: mudança que transforma os passatempos e as atividades de
enfrentamento tradicional, sem regras fixas nem restrições severas contra uma
possível violência anômica, em práticas estilizadas e controladas por regras
universais. Este processo poderia ser definido como a tentativa de codificar
normas com o objetivo de suspender o perigo contra os corpos e a vida
produzindo relaxamento controlado das disposições emocionais com a
exclusão definitiva da violência destrutiva do adversário. Uma prática esportiva
que não condiz com tal definição estaria fugindo dos parâmetros da estilização
da violência e, possivelmente, representando um retrocesso no controle da
violência anômica, ou como Elias diria, um “processo de descivilização” (Op.
Cit.:59. Grifo nosso).
O surgimento do sport (e do processo de esportificação) teve início na
Inglaterra
15
durante o século XVIII entre a aristocracia do campo e a gentry.
- Elias em 1939 publicou sua tese (Über den Prozess der Zivilisation. Sociogenetische und
psycogenetische Untersuchungen, 2 tomes, Bâle, 1939) sobre o processo civilizatório destacando que “as
normas sociais definidoras dos comportamentos e das sensibilidades, mais precisamente nos altos
círculos da sociedade, começaram a mudar radicalmente a partir do século XVI , e em uma direção bem
precisa: elas passam a ser mais estritas, mais diferenciadas e onipresentes, mas também mais iguais e
mais moderadas, posto que elas eliminam o excesso de auto punição como a autocomplacência. Esta
mudança é traduzida pelo termo de ‘civilidade’, lançado por Erasmo de Roterdã, que em inúmeros países
simbolizará um novo refinamento que dará mais tarde nascimento ao verbo ‘civilizar’... esta mudança do
código de sensibilidades e dos comportamentos está ligada ao processo de formação do Estado, e, em
33
Nessa época, o termo não estava limitado apenas aos esportes de
participação, mas incluia os jogos competitivos que tinham o objetivo de
conferir distração e prazer aos espectadores, o esforço físico principal era
realizado mais pelos animais do que pelos competidores humanos. O
surgimento destas práticas coincide com o surgimento e fortalecimento do
Estado e a conseqüente tentativa de pacificação do espaço social
caracterizada pelo monopólio da violência legítima por este mesmo Estado. O
esporte apresenta-se como parte de toda uma conformação social na qual a
tentativa de organizar e reger o espaço público se consolida; ele torna-se
possível primeiro na Inglaterra devido ao fato de a
sociedade inglesa
expressar tal esforço ordenatório. Sua configuração política, calcada no regime
parlamentarista, apresenta já uma estilização das lutas sociais com tendência a
amenizar o confronto violento 16. No regime parlamentar, as lutas não violentas
obedecem a regras estabelecidas representando efetivamente o nível de
tolerância da tensão que caracteriza a cultura inglesa na época, seu habitus
social (Elias, Idem ). A similaridade dos jogos políticos do regime parlamentar
com os jogos esportivos não é acidental. De fato, segundo Elias, no início do
século XVIII na Inglaterra se chamará sport às antigas assembléias de Estado
– a Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes, representantes das pequenas
particular, à sujeição das classes guerreiras a um controle mais estrito pela ‘curialização’ dos nobres nos
países da europa continental” (1994: 27).
16
- A formação do sistema parlamentar na Inglaterra e sua capacidade de moderar as disputas pelo poder
data da época do rei João Sem-Terra (1199-1216). Após ser derrotado em conflitos com a França e com o
papado, João Sem-Terra foi obrigado, pela nobreza inglesa, a assinar um documento denominado Magna
Carta que limitava sua autoridade. Ele não podia, por exemplo, aumentar os impostos sem a autorização
dos nobres. A Magna Carta estabelecia que o rei só podia criar impostos depois de ouvir o Grande
Conselho, corpo político então formado por condes barões e bispos. Esta disputa entre nobreza e realeza
foi acirrada no reinado do filho de João Sem-Terra, Henrique III (1216-1272) que além da oposição da
nobreza enfrentou forte oposição popular. Neste período, o nobre Simon de Monfort liderou uma revolta
da aristocracia e, para conseguir adesão popular, convocou um Grande Parlamento que reunia, além do
clero e nobreza, representantes da burguesia insurgente. No reinado de Eduardo I (1272-1307), a
existência do Parlamento foi oficializada e continuou a se fortalecer como instrumento mediador durante
o reinado de seus sucessores. Em 1350, o Parlamento foi dividido em duas câmaras : a Câmara dos
Lordes, formada pelo alto clero e nobreza, e a Câmara dos Comuns, formada pelos cavaleiros e
burgueses. Desta forma, desde cedo na Inglaterra o rei teve sua autoridade restringida pelo surgimento
deste instrumento mediador denominado Parlamento. Para Elias (Op. Cit), o surgimento da gentry, classe
de proprietários de terra que não pertenciam à alta nobreza e que não eram representados pela Câmara
dos Lordes, mas pela Câmara dos Comuns, teve conseqüências consideráveis para a repartição do poder
político na Inglaterra a partir do século XVIII. Esta classe, ao disputar o poder com os outros extratos
dominantes da época, proporcionará a articulação de estratégias políticas no Parlamento que permitirão a
“pacificação das classes superiores inglesas” e, simultaneamente, “a transformação dos antigos passatempos em passa-tempos do tipo esportivo” (: 39).
34
seções privilegiadas da sociedade – que constituiam o principal campo de
batalha onde se forma o Governo. A articulação do poder pelos partidos
através das regras do jogo político imposta a partir do voto de assembléia ou
de uma eleição pública representaram as condições fundamentais para a
constituição do
regime parlamentar tal como surge na Inglaterra do século
XVIII. Tal organização não seria viável se as facções antagônicas não tivessem
a mediação do instrumental político para amenizar suas hostilidades, e mesmo
ódio, controlando – através da violência autorizada (simbólica) – seus
enfrentamentos:
“ os dirigentes não abandonariam de bom grado aos
seus rivais os imensos poderes que lhes conferiam as
funções governamentais sem a condição assegurada de
que eles mesmos – seus inimigos políticos – uma vez
empossados, não se empenhariam em lhes atacar,
perseguir,
ameaçar,
exilar,
aprisionar
ou
matar”
(Ibidem :36).
Essa administração das práticas políticas permitiu legalmente a
formação do campo político parlamentar definindo os elementos principais para
a formação, a manutenção e o possível aprimoramento do jogo partidário da
mesma forma que o campo esportivo articulou regras administrativas para a
produção dos espetáculos permitindo uma estilização dos enfrentamentos
violentos.
O esporte, a princípio, se consolidará como atividade nobre, ou melhor
dos nobres. A alta sociedade dispondo de grande capital social e simbólico se
empenhará em práticas como a caça, a equitação, o tênis, o pólo,mais tarde as
corridas de automóvel. Além de afirmar o status social do desportista, as
práticas do esporte consolidavam uma ética na qual as afirmações das
disposições e dos valores de classe estavam presentes e se colocavam como
exemplo a ser seguido pelas classes inferiores. O fair-play apresenta-se como
o conceito que subsume a concepção de que as atividades esportivas devem
35
ser gratuitas e desinteressadas, nas quais a maneira de ser, de aparecer e de
fazer contam muito mais que a vitória. O gosto pelo risco, o culto à proeza e o
desprendimento relacionado ao tempo, que deve sempre estar livre para
treinos e práticas, representam uma condição aristocrática singular. Os meios
(a exibição da prática) constituem os próprios fins. Ao contrário do esporte
atual, reduzido a uma prática profissional e
mercantil, e por isso mesmo
plenamente dependente da vitória, o esporte dos séculos XVIII e XIX davam
prioridade ao savoir-vivre e ao savoir-faire e não à busca da vitória a todo
custo. Eram, como prática da nobreza, uma ritualização, estilização da
existência (Saint-Martin, 1989). Paralela a essa concepção, surgia outra
relacionada às atividades administrativas dos Estados preocupados com a
saúde de sua população e, por isso mesmo, buscando constituir uma
pedagogia do corpo disseminada nas escolas através da Educação Física
visando gerir a vida, processo que Foucault denomina biopolítica. A prática de
exercícios físicos, relacionada a esta educação física, terá por objetivo formar o
caráter do indivíduo mais do que sua inteligência, educá-lo, mais que instruí-lo,
incitá-lo a cultivar a coragem e a força e, sobretudo, a iniciativa mais que o
saber. Enfim, formar um corpo forte com caráter obediente e dócil (Foucault,
1987). É uma educação de certa forma relacionada às instituições militares do
Estado Moderno. Neste aspecto, há, portanto, dois tipos de ethos relacionados
às práticas corporais: 1) aquele relativo à nobreza e sua ritualização da
tradição;
2)
o
referente
à
burguesia
e
à
manutenção
de
corpos
institucionalizados e funcionais17. Para os nobres, o esporte não era apenas
uma forma de inculcar nos jovens os valores aristocráticos que, nesta altura
das práticas esportivas, estão inscritos, senão nas regras que regem
explicitamente as práticas, ao menos nos princípios codificados que definem a
maneira de praticar. O esporte permite acumular e articular o capital social que
é transmitido por herança, reproduzindo a condição social no qual foi
17
- De acordo com Luz (1994; 2003 a), tais atividades historicamente conhecidas como ginástica, têm
uma tradição milenar na cultura ocidental, tendo tido grande desenvolvimento na sociedade urbana
durante as últimas décadas do século XIX e no século XX sob a tutela do Estado. Associada à prática do
esporte, a ginástica moderna nasceu sob o signo do paradigma saúde/ vitalidade, estreitamente ligada ao
modelo higienista (posteriormente eugenista) do último terço do século século XIX, recuperação moderna
nacionalista da concepção latina do mens sana em corpore sano.
36
produzido. Enquanto a nobreza olha para a tradição e sua reprodução no
presente 18, a burguesia fita o futuro, preocupando-se com o fortalecimento do
contingente humano de seus Estados. Assim, há uma relação entre as
transformações de práticas e de consumo de esportes (invenção ou importação
de esportes ou equipamentos novos) e as transformações da demanda social
e dos estilos de vida (Bourdieu, 1981).
Também uma terceira corrente de práticas relacionadas ao corpo, além
das destacadas acima, deve ser demarcada: aquela ligada aos tradicionais
exercícios circenses,
provavelmente com existência anterior às práticas
esportivas da nobreza e a ginástica promovida pelo Estado burguês. De fato,
os espetáculos de força e destreza física faziam parte das apresentações dos
saltimbancos nas feiras medievais. Tais apresentações se consolidaram
institucionalmente nas chamadas práticas circences - circos de lona. No século
XIX, tais apresentações deram origem a outra vertente do espetáculo: os freak
shows. Apresentações de extravagâncias nas quais a força de alguém ou sua
característica física fora do normal ou, ainda, a sua incrível flexibilidade era
demonstrada para um público específico. Como toda prática supõe um saber
determinado, os exercícios no trapézio e as performances físicas foram
constituídos pelo aperfeiçoamento repassado de geração para geração de
artistas de circo. Tais saberes e práticas, distante do processo de
esportificação empreendido pelas classes dominantes, acabaram migrando
para as práticas de ginástica que vieram a conformar o que veio a se tornar a
Educação Física (tornada depois ensino superior) aplicada à busca de eficácia
dos exércitos e depois à busca da otimização da saúde dos cidadãos
empreendida pelo Estado Moderno (Arnaud, 1991; Andrieu, 1992). A prática do
fisiculturismo finca suas raízes nestas três correntes. Em primeiro lugar, se o
esporte é a estilização dos combates, os torneios de fisiculturismo (e
18
- Este “espírito” de tradição, por exemplo, é que engendrará a fundação dos clubes. Para os nobres do
século XIX na europa ocidental, a prática de esportes como o golf, a equitação, o polo , etc. , se
constituirá como meio de trocas mundanas, bailes, jantares, festas, soirées, rallyes, etc., conjunto de
atividades “gratuitas” e “desinteressadas” que possibilitam a socialização escolhida e, através desta, o
aumento do capital social. Neste processo, serão criados os clubes organizados em torno de uma atividade
esportiva. Assim, por exemplo, na França em 1834 é criado o Jockey Club com o título de Cercle de la
Societé d’ Encouragement pour l’amèlioration des races des cheveaux en France; em 1858 Le Yatch
37
inevitavelmente a musculação) constituem-se como a estilização da estilização,
“puras lutas de aparência” (Courtine, 1995:83), simulacro do simulacro, posto
basearem-se apenas na apresentação estética, sem nenhum enfrentamento
físico concreto. Em segundo lugar, seus precursores, no final do século XIX,
exaltavam a funcionalidade da prática de exercícios com peso para o
aperfeiçoamento da saúde populacional, dos exércitos e dos trabalhadores.
Terceiro, os torneios e apresentações de bodybuilding são produtos diretos
dos freak shows já transformados em espetáculos para as massas no final do
século XIX. Nestes circos de horrores, homens fortes, gigantes exóticos
apresentavam seu tamanho e força descomunais para uma platéia ávida por
novidades consideradas bizarras19 (Bogdan, 1994; Courtine, 1995). Assim , o
campo20 do fisiculturismo originou-se de outro campo, o das artes e
espetáculos circenses – estes por sua vez originaram-se dos saltimbancos
medievais.
Heróis Fundadores
As publicações sobre a história da musculação e do fisiculturismo (ou
culturismo como algumas apresentam) sofrem de uma tendência comum aos
escritos realizados por indivíduos pouco afeitos ao trato com as ciências
sociais: tendem a criar super-heróis descolados do contexto histórico-social,
como se fossem verdadeiros prometeus, resolvidos a doar aos simples mortais,
Club; Le Cercle des Patineurs em 1865 e assim por diante. Locais que tinham por objetivo, entre outros
aspectos, constituir espaços reservados para associação de nobres e notáveis (Saint-Martin, Op. Cit.).
19
- O artigo de Bogdan (1994), além de apresentar a gênese social da categoria de “monstro” no século
XIX – indivíduos com aparência e capacidades incomuns, – indica a organização de um comércio de tais
indivíduos e suas imagens relacionado à formação do campo do show business na Europa e nos EUA . De
acordo com o autor, empresários construíram vários discursos – na maioria das vezes ficitícios e repletos
de hipérboles – sobre a origem e as capacidades dos “monstros”, não raro apelando para o imaginário
pseudo-científico, radicado no evolucionismo social, que representava tais indivíduos como resquícios de
trogloditas ou selvagens de terras inóspitas.
20
- O conceito de campo criado por Bourdieu pode ser entendido como um sistema social constituído por
termos em “relações de força e monopólios... lutas e estratégias, interesses e lucros”. Tais características
podem ser consideradas como sendo “ invariantes que revestem formas específicas” de conformações de
campos. Assim, o “campo é um sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas
anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo nessa luta é o
monopólio da autoridade [no campo determinado] definida de maneira inseparável, como capacidade
técnica e poder social; ou... o monopólio da competência... compreendida enquanto capacidade de falar e
38
por conta própria, o saber pertencente aos deuses. Tais trabalhos eivados da
ideologia individualista do self-made man esquecem que cada vida, apesar de
toda sua singularidade, deve ser vista como expressão da história social
representativa de seu tempo, seu lugar, seu grupo, “síntese da tensão entre
liberdade
individual
e
o
condicionamento
dos
contextos
estruturais”
(Goldenberg, 1997:37). Cada indivíduo é o produto individualizado e ativo de
uma determinada sociedade localizada no tempo e no espaço. É a
reapropriação singular do universo social e histórico que o envolve (Bourdieu,
2001; Elias, 1994; Goldenberg, 1995; 1997; 2001; Denzin, 1984; Certeau,
1982). Analisar, mesmo que brevemente, o processo de surgimento do campo
do fisiculturismo é perceber as modulações entre o mito e a história, como esta
última pode ser utilizada como teoria-mito para justificar e reproduzir práticas
sociais; isso se não for percebido o fato de que o indivíduo se faz por suas
atividades e pelas condições que dispõe para realizá-las no contexto social em
que existiu (Elias, Idem ).
Friederich Wilhelm Müller, nascido na Prússia em 1867, é considerado
por todas as publicações sobre fisiculturismo e musculação como o pai do body
building. Este homem é tido, por aqueles que escrevem sobre o tema, como
sendo o primeiro fisiculturista famoso de que se tem notícia. Mais do que isso,
a ele é creditada a base da organização das regras do fisiculturismo tal como é
praticado hoje, tendo retirado do âmbito circense e dos freake shows a prática
do espetáculo dos chamados “homens fortes”. Müller, que – para a época - era
grande e musculoso desde os 16 anos devido os exercícios realizados como
artista de circo, adotou desde cedo o nome artístico de Eugen Sandow. Na
década de 1880, o circo no qual trabalhava viajando pela Europa, foi à falência
em Bruxelas, deixando-o então desempregado e sem rumo específico. Nesta
cidade, Sandow conheceu um pequeno empresário de nome Oscard Attila
(nascido Louis Dularcher em 1847). Sendo homem de negócios e atleta, Attila
realizava apresentações profissionais de exibição de força também em arenas
circenses e em espetáculos que ele mesmo promovia. Obcecado por
exercícios físicos, havia, de forma inovadora, transformado uma sala de
de agir legitimamente (isto é de maneira autorizada e com autoridade), socialmente outorgada a um
39
concertos musicais em uma espécie de academia de musculação da época.
Percebendo que Sandow tinha um físico propício, já trabalhado pelos
exercícios no picadeiro, para levantar pesos, resolveu treiná-lo com o objetivo
de transformar seu corpo de ginasta das lonas em um corpo de levantador de
pesos, dando-lhe também emprego de atendente em seu salão de cultura física
em Bruxelas. Com o tempo, Sandow e Attila passaram a aprimorar os
instrumentos de exercícios do salão, criando, entre outros itens, uma barra
(barbells) com duas bolas ocas de metal nas extremidades que podiam ser
preenchidas com areia ou esferas de chumbo com o objetivo de graduar o
peso. Este invento tornou-se o precursor das atuais barras longas com anilhas
(pratos de ferro) descartáveis (Chapman, 1994; Emery, 2003).
Após intermitente preparação no salão-academia Sandow e Attila
resolveram organizar uma espécie de empresa de espetáculos físicos e
passaram
a exibir-se em várias cidades européias com números de força
desafiando oponentes e vencendo-os. Talvez seja esse o marco inicial da
indústria do músculo. Com isso, a situação financeira dos dois começou a
melhorar. Em 1889, os dois parceiros de exibição de força se separam,
mantendo, porém, contato freqüente um com o outro. Em Veneza, Sandow foi
convidado para posar para um artista plástico americano chamado Aubrey Hunt
que o pintou em um lenço, hoje de posse do mais influente empresário do
fisiculturismo Joe Weider. Mas o que deve ser ressaltado neste acontecimento
é que Sandow, posando como modelo para o artista, percebeu que além da
apresentação da força física, a exibição estética dos seus músculos – e não
apenas as demonstrações de destreza e força bruta -
também poderia
interessar às pessoas, sendo, portanto, um possível meio de promoção
econômica. Passou, então, a imaginar uma competição estética na qual a
harmonia muscular, e não a força física, como era realizado até então, pudesse
ser avaliada.
Neste ínterim, Sandow continuava sendo desafiado para disputas de
força por aqueles que tentavam amealhar alguma fama e uns poucos
proventos buscando vencê-lo. Fixando-se em Londres acabou por aceitar um
agente determinado” (Bourdieu, 1976 : 88-9. Grifos do autor)
40
desafio de dois gigantes da época que ofereciam 500 libras esterlinas para
aquele que conseguisse vencê-los em um embate. A força dos dois nunca
havia sido superada por ninguém, até Sandow aparecer. Após ter vencido os
concorrentes e aumentado ainda mais sua fama entre os ingleses, Sandow
passou a apresentar-se em competições de força, além de exibir-se em poses
estéticas para o público. Durante quatro anos ganhou a vida e crescente fama
desta maneira (Chapman, op. Cit. Emery, Op. Cit.). Em 1893, Sandow viajou
para os Estados Unidos para tentar ampliar sua carreira de atleta e artista,
fracassando, contudo, no empreendimento. Retornou para a Alemanha
conhecendo um dos mais importantes empresários de espetáculos da época
Florenz Ziegfeld. Percebendo o sucesso das apresentações de Sandow entre o
público feminino, Ziegfeld resolveu investir em tais apresentações promovendo
turnês mundiais nas quais seu astro era exibido apenas com uma sunga ou
folha de parreira fazendo poses que destacavam seus músculos. A
confirmação do sucesso entre as mulheres se realizou quando o empresário
resolve levar Sandow para apresentações nos Estados Unidos por ocasião da
Exposição Mundial Comemorativa do Descobrimento da América, realizada em
Chicago. Ziegfeld alugou um teatro e convidou o público para assistir “The
World’s Most Perfectly Developed Man”, “A Living Greek Statue”. Na época, as
apresentações habituais de homens fortes nos EUA eram realizadas com
homens vestidos em peles de leopardo. Ziegfeld e Sandow empreenderam
outro tipo de demonstração física: Sandow invadiu o palco vestido apenas com
uma sunga. O público feminino manifestou-se ruidosamente parecendo ir à
loucura (Gianolla, 2003)21. O êxito da apresentação foi grande, o que fez com
que Sandow e Ziegfeld empreendessem uma turnê não só pelos EUA, mas
também através do Canadá. Em São Francisco, Sandow chegou a apresentarse lutando contra um leão – desdentado e dopado. Após anos percorrendo os
21
- Necessário se faz notar que tais apresentações parecem representar um relaxamento das interdições
puritanas que censuravam a exposição da nudez corporal permitindo acesso à cultura de massa do
espetáculo estético. Tal ambigüidade era respaldada pelo discurso da busca de realização do ideal da
estatuária grega. Tal discurso servia como álibi estético para a apresentação dos corpos nus contornando
as resistências puritanas. Contudo, tais resistências não cederam de imediato aos apelos da nudez. Mac
Fadden, por exemplo, enfrentou inúmeros obstáculos e brigas com as ligas americanas de virtude e em
particular com Anthony Comstock, secretário da Sociedade para a Supressão do Vício, quando quis
organizar em 1904, no Maddison Square Garden, um campeonato de fisiculturismo (Courtine, 1995).
41
principais países do hemisfério norte ocidental, Sandow sofreu um colapso
nervoso retornando à Inglaterra onde casou-se com Blanche Brookes,
recuperando-se fisica e mentalmente. A partir de então, dedicou-se à expansão
das atividades de fisiculturismo, inaugurando academias, elaborando métodos
de exercícios, estudando nutrição e publicando dietas, livros e revistas sobre o
assunto. Em 1898 publicou a primeira revista de bodybuilding – termo
inventado por ele 22. A revista chamava-se: Sandow Magazine. A fama de
Sandow tornou-se tamanha que ele foi convidado para administrar atividades
físicas com pesos para os reis Eduardo VII e George V, da Inglaterra, tornandose o primeiro personal trainer da modernidade e recebendo de George V o
título de “Professor da Ciência da Cultura Física de Sua Magestade”. Passou,
então, a entusiasta do insurgente ensino de Educação Física obrigatória nas
escolas, colégios e indústrias da Inglaterra (Gianolla, Op.Cit.).
Neste processo, Sandow passou a estudar e aperfeiçoar métodos de
musculação e criou o primeiro campeonato de fisiculturismo que se tem notícia.
Em 14 de setembro de 1901 realizou o que foi chamado
“The Great
Competition” em Londres, no Royal Albert Hall, reunindo 156 atletas que
apresentaram seus músculos para um juri composto pelo próprio Sandow, por
um escultor de renome na Inglatera da época, Charles Lawes, e por Arthur
Conan Doyle, o famoso criador de Sherlock Holmes. O vencedor da
competição foi Willian Murray que posteriormente tornou-se ator e músico,
além de promotor de campeonatos de musculação na Inglaterra (Gianolla,
Idem ; Chapman, Op. Cit.). O prêmios para os três primeiros lugares foram
estatuetas de ouro, prata e bronze, idealizadas pelo escultor Frederick
Pomeroy em 1891, representando a figura do próprio Sandow segurando a
barra com pesos nas extremidades por ele inventada. Esta estatueta – a de
ouro conquistada por Murray - nunca foi encontrada e suspeita-se que tenha
sido derretida ou destruída durante a II Grande Guerra. Sandow mandou fazer
várias cópias das estátuas para ofertar aos amigos ou vender para
admiradores, além de expô-las em suas academias. A cópia desta estatueta de
22
- O termo bodybuilding advém do título de um livro de Sandow: “Bodybuilding, or Man in the
Making”, publicado em Londres em 1898 (cf.Emery, 2003).
42
Sandow hoje serve como troféu de um dos maiores campeonatos de
fisiculturismo da atualidade: o Mr. Olympia.
Segundo a versão oficial, Sandow faleceu em outubro de 1925, aos 58
anos, de uma hemorragia cerebral devido a um acidente de carro. Após
derrapar com o veículo na estrada – confiando em sua enorme força - foi retirálo com as próprias mãos do buraco no qual havia caído. O esforço foi fatal
para o primeiro organizador dos campeonatos de cultura física, que, naquele
momento,
atravessava
sérios
desentendimentos conjugais.
problemas
pessoais
Curioso destacar
ocasionados
por
que, apesar de toda a sua
fama, Sandow foi enterrado como indigente no cemitério londrino de Putney
Valle.Além da importância simbólica do seu corpo musculoso, Sandow também
causou impacto no mundo
dos empreendimentos empresariais da cultura
física, inovando neste ramo dos negócios. Seus interesses comerciais incluiram
a publicação
de numerosos livros de fisiculturismo, oito volumes de uma
revista de bodybuilding (Sandow’s Magazine of Physical Culture), inúmeros
cursos por correspondência e a fabricação de máquinas e aparelhos para
musculação.
O trabalho de Chapman(1994) – considerado a melhor biografia sobre o
pai do fisiculturismo - apresenta a tese de que Sandow foi enterrado em um
túmulo anônimo, devido ao fato de sua mulher Blanche Brookes e suas duas
filhas Helen e Lorraine terem o objetivo de apagar as lembranças deixadas por
ele. Para confirmar tal tese, Chapman escreve que, logo após a morte do pai
do fisiculturismo, elas venderam todos os bens da família, mudando-se
rapidamente de Londres. De acordo com o autor elas não enfrentavam, na
época, qualquer dificuldade financeira, ou outro tipo de pressão que as
obrigasse a vender suas propriedades. Além de desfazerem-se dos bens
deixados por Sandow, também destruíram quase todos os documentos
(correspondências e papéis em geral) pessoais do atleta, (o que causa certa
dificuldade para os historiadores e pesquisadores atuais interessados em
compreender melhor sua vida), isso porque “o ódio que elas alimentavam por
ele as acompanhou até o fim de suas vidas” (1994 :188). Tal ódio, segundo o
autor, poderia estar ligado a dois fatores: primeiro, antes de morrer, Sandow
43
apresentava um problema de saúde, atestado pelo seu empresário Florenz
Ziegfeld, que indicava um quadro agudo de sífilis adquirida por uma vida de
inúmeras parcerias sexuais. Talvez a doença tenha sido o fator decisivo para
sua morte causada pelo aneurisma; segundo, a despeito de seu casamento e
de suas duas filhas, Chapman afirma que Sandow tinha comportamento
bissexual: “certas coisas são... inegáveis. A verdade é que Sandow era
definitivamente um mulherengo. Mas é verdade também que seu gosto
direcionou-se para o outro lado” (:51). Tal certeza do autor advém do fato de
que Sandow viveu, até casar-se, com o pianista Martinis Sieviking, que era seu
parceiro em números nos palcos e que rompeu a relação quando soube que
Sandow iria se casar com Blanche Brooks. Chapman destaca ainda a
insinuação de uma conhecida de Sandow - que por ele nutria interesse
amoroso - a qual teria dito: “eu deveria ter entendido quando o Sr. Sandow
recusou beber da minha fina champagne... ele deve ter tido momentos
aborrecedores comigo antes de eu mandá-lo de volta para o jovem com o qual
ele vivia” (:25). Verdade ou não, tal tese ao menos ajuda a compreender o
suposto ódio que a família nutria por Sandow e que repercutiu no fato dele ter
sido enterrado como indigente, embora tenha sido, na época, um dos mais
famosos atletas na Inglaterra e Estados Unidos.
Outros dois grandes nomes do fisiculturismo insurgente foram Bernarr
Mac Fadden e Angelo Siciliano, mais conhecido como Charles Atlas. Mac
Fadden inventou um instrumento de exercício para os músculos do peito,
publicando no mesmo ano que Sandow – 1898 -, uma espécie de revistamanual para práticas de exercícios com o objetivo de divulgar sua invenção e
seu método de treinamento. Como a Inglaterra era o centro das atividades
físicas da época, Mac Fadden, que era norte-americano, para lá viajou com o
objetivo de popularizar o invento e a revista (Physical Development) que havia
criado. Mac Fadden retornou para os EUA com o objetivo de empreender a
expansão das suas atividades, o que o levou a promover o primeiro
campeonato de fisiculturismo dos Estados Unidos no Madison Square Garden
em Nova York, no ano de 1903. As poses que os fisiculturistas realizam
atualmente em suas competições foram desenvolvidas ao longo dos
44
campeonatos promovidos por Mac Fadden que tornou-se o grande promotor de
eventos de fisiculturismo nos Estados Unidos (Courtine, 1995). Em 1921, um
jovem imigrante italiano foi o vencedor do primeiro lugar na competição que
Mac Fadden promovia ganhando o prêmio de U$1000. Este jovem era Charles
Atlas que a partir de então passou a ostentar, até a década de 1950, o título de
“O Físico mais bem Desenvolvido da América”. O que deve ser destacado
neste processo empreendido por Mac Fadden é o sentido que as competições
de fisiculturismo foram adquirindo a partir dessa época. Quando Eugene
Sandow inicia a promoção de suas atividades pela Europa e Estados Unidos,
não buscava necessariamente a separação de força e estética. De fato, as
suas apresentações eram um misto de halterofilismo – pois levantava grande
quantidade de pesos, demonstrando força – com fisiculturismo – exibição, em
trajes sumários – de sua forma corporal para o público. Sandow seguia a
tradição de apresentação dos saltimbancos conhecida desde a Idade Média e
dos freak shows circenses do homem monstruosamente forte. Assim, por
exemplo, Arthur Saxon, artista circense, no final do século XIX era conhecido
por conseguir levantar um peso de 203 kg acima da cabeça apenas com um
braço (Arquivos Weider. Apud.: Schwarzenegger & Dobbins:8). Também a
publicação bimensal parisiense La Culture Physique , exemplo de promoção de
atividades físicas neste período, em seu número 216 de primeiro de janeiro de
1914 escrevia sobre os “Acrobatas e os Jogos de Circo” em sua página 6:
“ Les Rasso [grupo circense] foram célebres atletas até
1890.
O
primeiro
representante
deste
grupo
tinha
uma
extraordinária força naquela época: Henri Herzog podia levantar
100kg com uma mão e lançar 110 kg com as duas...”
também na página 25:
“Jean Lebedew, mais conhecido pelo pseudônimo de tio Jean, é
um professor de pesos e halteres que treinou um grande número
de lutadores e homens fortes de todos os tipos. Lebedew nasceu
45
em 1879 em S. Petersburgo. De pequena altura (1m 65) ele
possui as formidáveis medidas que se anunciam a seguir: braço
direito: 49 [cm], esquerdo 47, ante-braço 35 ½, peito 128, coxa
75, panturrilha 49. Nos pesos ele realizou, é atestado, valorosas
apresentações à moda alemã: levantou 135 kg cinco vezes sem
largar a barra”.
Mac Fadden em suas publicações começa já a apresentar uma
mudança neste aspecto. Fanático pelo conceito de saúde associado à
aparência e à moral do indivíduo, ele passa a promover a idéia de que a
fraqueza física era imoral e, visto que os métodos de cultura física estavam
começando a tornar-se disponíveis para todas as pessoas, segundo ele,
apenas não era forte e saudável aqueles que escolhiam o fracasso
representado pelo desprezo aos exercícios. Fortalecia-se, assim, uma espécie
de ética associada à cultura física. Suas apresentações, - assim como a de
todos aqueles que passaram a seguir tal prática -, eram acima de tudo
estéticas. O uso da força passou a restringir-se às apresentações de
halterofilismo, enquanto o bodybuilding construiu-se gradativamente tendo por
objetivo apenas as apresentações da forma muscular. Mac Fadden marca
desta maneira uma nova configuração de práticas não apenas de exercícios e
valorização da forma musculosa mas também o surgimento e a consolidação
do campo do fisiculturismo, para usar uma categoria de Bourdieu.
Um dos principais itens que contribuiu para a consolidação desse
campo foi o caráter puritano anglo-saxão que muito cedo associou obstinação,
ascetismo e trabalho, com aparência física e moral. As tradicionais
preocupações religiosas, segundo Coutrine (1995), permearam as estratégias
de desenvolvimento da forma física tentando apagar qualquer cesura entre
trabalho e lazer. A antiga repreensão puritana às distrações e ao tempo ocioso
encontram na prática diária do exercício físico a possibilidade de
“enquadrar o tempo individual em um modelo de atividade
contínua : o exercício físico passa a ser um lazer às margens do
46
tempo de trabalho e um trabalho instalado no coração do tempo
de lazer. Ninguém ficaria mais sem fazer nada. Lutar contra o
tempo morto, a vacuidade, a desocupação: esses prolongamentos
da
ética
puritana
da
‘tarefa’
marcaram profundamente o
desenvolvimento de uma civilização... do lazer, tendendo a nela
confundir
o dever e o prazer, o útil e o agradável. A herança
desse conjunto de práticas e desses modelo psicológico pesa
ainda, com todo o peso do seus paradoxos, sobre a cultura do
corpo.” (: 94).
Trabalhar o corpo, construí-lo, moldá-lo, transformá-lo continuamente em
busca de um ideal, eis a lógica da ética protestante do trabalho deslocada para
o mundo do esporte e das atividades físicas. A salvação inscrevendo-se na
aparência de saúde muscular conquistada pelo self-made-man, ícone do
esforço ascensional burguês23.
Um dos exemplos de aplicação dessa ética do trabalho muscular foi o
italiano imigrado para os Estados Unidos chamado Angelo Siciliano (Charles
Atlas). Dizia ter criado um método de musculação devido a um fato ocorrido
com ele, quando adolescente, em Coney Island Beach. Atlas, passeava pela
praia com seus exígüos 44 kg, quando um indivíduo bem maior
resolveu
caçoar da sua forma esquálida gritando: “Ei, magrelo, suas costelas estão
aparecendo!” Tal provocação gerou uma discussão que acabou com Atlas
levando um punhado de areia na cara. O pequeno ítalo-americano então
empenhou-se em desenvolver musculatura para não apenas encarar os mais
ousados oponentes, mas amedrontar aqueles que possivelmente pudessem
tornar-se seus adversários. Criou o “método de tensão dinâmica”, que o
23
- O aspecto ascético do trabalho muscular organizado para atingir um fim específico se contrapõe à
ética da prática esportiva enquanto mera diversão. Tal apologia do trabalho lembra aquele trecho de A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo: “a aversão do puritanismo pelo esporte [como diversão] não
era devido a uma questão de princípio. O esporte tinha que servir a uma finalidade racional: ao
restabelecimento necessário à eficiência do corpo. Mas, era-lhe suspeito como meio de expressão
espontânea de impulsos indisciplinados, e, enquanto servisse apenas como diversão ou para despertar o
orgulho, os instintos, ou o prazer irracional do jogo, era evidentemente estritamente condenado” (Weber,
1981:120).
47
permitiu mais que dobrar de tamanho em musculatura. De fato, segundo
contam os biógrafos, e os relatos do próprio Atlas em suas propagandas,
tempos depois ele voltou à praia e deu uma surra no grandalhão que tinha
atirado areia em seus olhos.
Após ter vencido a competição promovida por Mac Fadden em 1921,
Atlas passou a propagandear seu método e a se apresentar como “o homem
mais bem desenvolvido do mundo”, ganhando fama internacional e publicando
revistas em vários idiomas nas quais apresentava a si mesmo e outros homens
musculosos que diziam ter conquistado tal forma utilizando seu “método de
tensão dinâmica”. Além de apresentar tais fotos de “homens desenvolvidos”,
contava, sua história da praia. Uma das singularidades de Charles Atlas é que
dizia-se contra os exercícos realizados com pesos, contra a musculação
tradicional que, segundo ele, dava ao indivíduo um aspecto artificial. Seu
método de exercícios baseava-se na utilização do próprio peso corporal –
isometria, para o desenvolvimento muscular. Em uma de suas revistas de
1947, Saúde e Força Duráveis, Atlas anuncia na página 28:
“tenha cuidado com o desenvolvimento produzido por meio
de aparatos! Porque usar pesos com o fim de adquirir
desenvolvimento muscular , é o mesmo que usar muletas para
ajudar a caminhar, pois quando se usa muletas muito tempo,
chega logo o momento que não se pode andar sem elas. .. o tigre,
o leopardo e o leão, com suas fulminantes forças e energias, não
as ganharam, por certo, por meio de pesos... só USAM O
SEGREDO QUE EU DESCOBRI – o princípio da TENSÃO
DINÂMICA – ou seja, um meio natural para desenvolver e manter
devidamente todos os músculos de seu corpo... o esforço
contínuo que se requer para manejar os vários aparelhos de um
ginásio chega a ser tão excessivo quanto daninho para os orgãos
vitais. Você não tem mais do que um corpo, que é sua mais
preciosa possessão. Trate-o,
pois, como se deve tratar! Meu
sistema não faz uso de aparatos. Só utiliza a resistência do
48
próprio corpo. O segredo deste sistema se baseia no fato de que,
quanto mais forte você se torna, maior será sua resistência. Mas,
os aparatos debilitam depois de algum tempo de uso e, no geral,
podem romper-se e produzir feridas distenções no exercitante.
Que os meus métodos de tensão dinâmica me hão dado melhor
desenvolvimento físico que aqueles que se pode obter com todas
as classes de aparatos se PROVOU quando me foi concedido o
meu título, em competição leal, com os melhores que usaram
aparatos (Grifos do autor).”
Atlas procurava, por certo, demarcar sua autoridade no campo
insurgente das práticas institucionalizadas de exercícios da época; embora seu
método sem pesos e aparelhos não tenha feito sucesso, seu discurso rendeulhe influência durante tempo significativo devido a sua projeção na mídia. A
postura que mantinha é o exemplo de atitude do agente em disputa pelo poder
em um campo profissional específico: demarcar sua singularidade diante da
tradição consagrada, no caso os bodybuilders de então. Por intermédio da
figura e da postura de Atlas, a história do fisiculturismo sugere que ela mesma
se constitui enquanto luta entre os concorrentes no interior do campo
(Bourdieu, 1977; 2001a), luta para conquistar e impor seu ponto de vista sobre
a prática e a conduta a ser adotada no meio. Luta por um lugar na tradição e na
história do sistema de práticas e representações que caracterizam o grupo.
Luta pela autoridade. Este período da história do surgimento das práticas de
musculação pode ser considerado exemplar no sentido de preconizar as
intermináveis e crescentes disputas, tanto no campo das ciências do exercício
dentro das universidades através das faculdades de educação física, pela
disputa dos cientistas do esporte em descobrir e inventar práticas mais
eficientes, quanto no campo das academias de musculação e fisiculturismo nas
quais, cada ano, professores e fisiculturistas tentam impor novos métodos de
exercícios como invenção mais eficaz que as outras anteriores, ocasionando
modas de verão que na maioria das vezes não vingam.
Por outro lado,
esboçam o que Foucault definiu como a articulação do saber-poder produto de
49
sociedades disciplinares que, ao intervir no corpo individual, acaba por produzir
uma tecnologia de agenciamento populacional em nome da saúde (1993).
O criador da “tensão dinâmica” mostrou-se, também, empreendedor
eficaz, consolidando, durante quase cinqüenta anos, o comércio do seu método
de exercícios físicos por correspondência, propagandeado em revistas em
quadrinhos e outras publicações, além de viajar pelo mundo apresentando-se
em espetáculos estéticos e de demonstração de força. Na época, a indústria do
exercício e da forma consolidava-se com o aparecimento de diversos métodos
e cursos que prometiam a qualquer um a rápida construção de um corpo
musculoso. Charles Atlas parece ter contado com a insurgente indústria da
propaganda e com o seu talento e capacidade para conquistar e fazer perdurar
relações pessoais influentes. Além de encarnar, de certa forma, o sonho
americano por ser um imigrante que na América consegue tornar-se, através
do seu esforço e mérito, rico e famoso. Talvez tais características ajudem a
explicar o seu longo sucesso. Um dos fatores da grande popularidade de seu
método era o fato de não necessitar de freqüência a qualquer instituição ou
compra e utilização de pesos. Contudo – apesar de ter vencido o concurso de
Mac Fadden e ter um corpo relativamente forte para a média dos homens
comuns da época – Atlas não era, nem de longe, um gigante musculoso, e a
ausência de exercícios com pesos do seu método certamente limitava o
crescimento muscular – Schwarzenegger e Dobbins escrevem em seu livro que
Atlas, apesar de se dizer contra o uso de aparelhos de musculação e pesos,
utilizava-os ele mesmo (2001:11). Assim, homens bem maiores e mais
musculosos que Charles Atlas, como George Jowett, por exemplo, dono do
Jowett Institute of Phisical Culture de Nova York, localizado, na época – década
de 40 do século XX - na 5A Avenida N.o 230
24
, não conseguiram alcançar a
fama e o sucesso do ítalo-americano, sendo até mesmo esquecidos nas
citações sobre o tema.
24
- Conforme propaganda veiculada na revista How to Achive Nerves Like Steel Muscles Like Iron do
próprio Jowett, publicada em Nova York em 1950.
50
Após a Segunda Grande Guerra, os EUA se consolidaram como o
centro do fisiculturismo no mundo. Durante os verões da década de 1940, uma
praia da Califórnia, Santa Monica, começou a ser cada vez mais freqüentada
por fisiculturistas que durante o verão se aglomeravam diante da multidão de
banhistas para praticar seus exercícios com os pesos livres colocados à vista
do público. Esta espécie de exibicionismo muscular ficou tão famosa que
recebeu o nome de Muscle Beach. Um dos freqüentadores desta praia,
aficcionado por pesos e músculos, Joseph Gold, resolveu abrir uma academia
de musculação na região (Venice Beach) denominada Gold’s Gym. Esta
acabou por se tornar uma espécie de meca dos fisiculturistas e modelo para as
outras academias que vieram a se espalhar pelo mundo. O vencedor do
concurso Mr. America em 1940 e 1941, John Karl Grimek, era assíduo
freqüentador desta região. Grimek foi um propagandista do treinamento com
pesos em academias tentando sempre demonstrar – ao contrário do que
muitos diziam (como Charles Atlas, por exemplo) – que o treinamento com
peso
não
oferecia
qualquer
tipo
de
problemas
se
fosse
realizado
adequadamente. Na época, os detratores da musculação diziam que os
treinamentos com pesos prejudicavam a coordenação motora e a flexibilidade.
Grimek tentou aprimorar poses que exigiam elevado grau de flexibilidade e
coordenação. A partir deste período (década de 1940 em diante), devido o
intenso treinamento com pesos em academias, o físico daqueles que
praticavam o bodybuilding começou a se distingüir efetivamente da forma de
outros esportistas e desportistas. A partir de John Grimek, a musculatura dos
fisiculturistas tomou, cada vez mais, identidade própria, devido a baixa
porcentagem
de
adiposidade
e
grande
volume,
ocasionado
pelo
aprimoramento de exercícios e dietas.
Paralelo a todo este processo, ocorria um forte desenvolvimento da
indústria da forma e do espetáculo nos EUA. O cultivo da forma física tornavase cada vez mais expressivo alimentado pela crescente propaganda da saúde.
Se, durante o século XIX, ter força e físico musculoso estava relacionado ao
acaso e à genética, - o indivíduo já nascia diferente dos outros e por isso
apresentava-se como exótico (Bogdan, 1994) -, a partir do início do século XX,
51
cresce a concepção de que qualquer um, de posse de métodos desenvolvidos
por experts, pode transformar seu corpo para melhor. De fato, nas
propagandas da época, percebe-se que a idéia é a de que só não transforma
seu corpo quem não quer.
Em conformidade com este movimento, a AAU (American Athlete Union)
havia fundado, em 1939, o campeonato Mr. America com sua regras
definidoras das competições de bodybuilding. Mas foi um empresário
canadense, Ben Weider, que em 1946 consolidou as estruturas das
competições de fisiculturismo atual, fundando a IFBB (International Federation
of Body Builders). O irmão de Ben Weider, Joe Weider, também envolvido com
o culto à forma física, chegou a vencer algumas competições de fisiculturismo
durante a década de 1950 e passou a publicar revistas com entrevistas e fotos
de fisiculturistas, dicas de treinamento com pesos e alimentação. Joe Weider,
seguindo a tradição dos atletas empresários, criou também o método Weider
de treinamento e boa forma no qual, além de exercícios físicos, promovia o que
denominou sua filosofia de vida. Um conjunto de princípios que lembram os
principais mandamentos do Velho Testamento. Tais princípios estão escritos
nos editoriais das revistas públicadas pelo grupo Weider.
Dentre todos aqueles que investiram no mercado da musculação e
fisiculturismo, nenhum conseguiu superar o êxito dos irmãos canadenses Ben e
Joe Weider que criaram um império da forma física. Publicações (as principais
revistas de fisiculturismo do mundo atual são de propriedade de Joe Weider),
fábricas de pesquisa e produção de suplementos alimentares, além de fábricas
de pesos e máquinas para academias no mundo todo. Joe Weider também foi
o criador, de fato, da profissão de bodybuilder. Ainda em 1965, empreendeu o
primeiro campeonato profissional, até hoje considerado por muitos o principal
campeonato de bodybuilding do mundo, o Mr. Olympia, que desbancou, na
época, as competições das organizações rivais, incluindo o Mr. Universe
sustentado pela NABBA (National Amateurs Body Building Association),
dominando, a partir de então, o cenário do fisiculturismo americano e
internacional. Os Weider ainda hoje dominam o cenário mundial dos negócios
de bodybuilding. A IFBB tem atualmente mais de cem países membros filiados,
52
sendo a sexta maior federação esportiva do mundo e o Mr. Olympia continua o
principal
campeonato
de
fisiculturismo
da
atualidade
(Emery,
2003;
Schwarzenegger e Dobbins, 2001).
O principal expoente do fisiculturismo de todos os tempos despontou nos
campeonatos do Mr. Olympia. Tendo sido vencedor de sete títulos até 1980 ele
era um jovem imigrante austríaco de nome Arnold Schwarzenegger, nascido
em 30 de julho de 1947 em Thal, área rural da Áustria. Schwarzenegger
tornou-se o maior mito do bodybuilding de todos os tempos, sendo atualmente
adorado como um semi-deus em academias de musculação do mundo inteiro
que não raro estampam suas fotos nas paredes. Dono de personalidade
carismática e capaz de manter contatos pessoais com os indivíduos mais
importantes e influentes do mundo artístico e político, Arnold Schwarzenegger
consolidou de vez a popularidade do fisiculturismo ao levar o mundo e o corpo
das academias para as telas de Hollywood. Além de toda apologia ao trabalho
muscular. Schwarzenegger também tornou-se empresário de sucesso do
fisiculturismo criando em 1989, o campeonato anual denominado Arnold
Classics que em 2002 pagou U$ 300.000 aos vencedores masculinos e
femininos de suas competições.
A figura de ícone-mor do fisiculturismo encarnada por Schwarzenegger
não se deve apenas às suas atitudes e tamanho físico. Toda a conjuntura
sócio-histórica dos anos 80 do século XX confluiu para a consolidação do mito.
A adoração do físico musculoso e sua relação com a representação de saúde
se deve, dentre outros fatores, ao surgimento devastador da epidemia de AIDS
e da aparência esquálida que os doentes de então apresentavam (Gontijo,
2002). Devido a epidemia, o público gay rapidamente adotou o ideal musculoso
dos bodybuilders como veículo de aceitação social; esse processo, (com a
expansão da doença) ampliou-se para outros grupos, propiciando, a partir de
então, - com toda sua prescrição de exercícos físicos para a “manutenção da
saúde” e a “qualidade de vida” - a crescente expansão do bodybuilding. A tal
fator também pode ser somado o surgimento da era Reagan, que consolidou o
poder dos Estados Unidos como império mundial tendo a demonstração da
força e da conquista bélica como amostra desse poder. A consolidação
53
hollywoodiana da figura de heróis (Rambo, Conan o Bárbaro e, principalmente,
o Exterminador), além do surgimento da era yuppie com jovens dedicados ao
trabalho, ao lucro e ao cultivo da aparência musculosa.
Schwarzenegger, nesse âmbito, passou a encarnar a realização do
sonho americano. Assim como Charles Atlas, foi um imigrante que chegou
praticamente sem nenhum dinheiro à América e tornou-se não apenas
milionário, mas famoso astro de Hollywood. Entrou para um dos clãs mais
influentes da política norte-americana casando-se com a sobrinha (a jornalista
Maria Shriver) do ex-presidente John Fitzgerald Kennedy. Após uma vida de
sucessos no esporte, no cinema e nos negócios, entrou para a política e
conseguiu eleger-se pelo Partido Republicano, em 8 de outubro de 2003,
governador do estado da Califórnia com 55% de votos contra 45% do seu
adversário Gray Davis, do Partido Democrata. Arnie, como é chamado pelos
americanos, sustenta uma postura política conservadora, embora diga-se
moderado, aliado às políticas de George Bush filho. Ao ser eleito disse aos
jornalistas do Daily Telegraph: “somente na América um agricultor austríaco
sem um tostão pode construir uma vida tão fantástica”.
A vida de Arnold Schwarzenegger, ao menos aquela que é veiculada
pela imprensa, encarna mitologicamente toda a lógica inerente à ética
protestante do esforço, da obstinação e do trabalho. Filho de um policial que
era ex-membro do Partido Nazista, aos 15 anos começou a levantar blocos de
concreto com o objetivo de trabalhar sua já avantajada massa muscular e a
sonhar em ir para os Estados Unidos, mais especificamente para a Califórnia.
Em 1968 chegou lá, sem saber falar inglês e sem dinheiro com o objetivo de
tornar-se figura de destaque no fisiculturismo, campo dos esportes que estava
se consolidando. Começou, na companhia de um jovem imigrante italiano,
Franco Columbo, a exercer a função de pedreiro nas mansões de Los Angeles.
Percebendo que não conseguia arrumar trabalho, mesmo cobrando mais
barato que os outros, partiu para outra estratégia que apontava já para a
percepção de que na sociedade americana dos espetáculos e simulacros mais
vale a propaganda, a forma, que o conteúdo: colocou o anúncio “pedreiros
europeus especializados” e passou a cobrar mais caro do que toda a
54
concorrência. Em pouco tempo, já havia amealhado, com seu sócio, um milhão
de dólares, e fundado uma empresa de construção. Os dois imigrantes, nesse
ínterim,
continuavam
treinando
e
participando
de
campeonatos
de
fisiculturismo. Schwarzenegger começou a vencer os principais concursos
aplicando o dinheiro que recebia como prêmio. Ao contrário da maioria que
fazia fortuna na califórnia eem sua época, não comprou uma mansão
Californiana, e sim um prédio de apartamentos para alugar. Desta forma,
passou a viver em um pequeno apartamento
e usar o aluguel que lhe
pagavam para cobrir a hipoteca do prédio. Em seu primeiro filme da série O
Exterminador do Futuro, Schwarzenegger disse apenas 73 palavras. Sempre
enfatizou que nunca pretendeu ser ator. Seus filmes são apenas diversão e
não arte, como sempre reiterou. E foi com a imagem que tornou-se um astro de
fama internacional. Schwarzenegger demonstra articular um dos mais puros
exemplos de ação racional com objetivo a fins ao modelo de análise weberiana
(Weber, 1995). Por outro lado, seu sucesso apenas foi possível pelo fato de
viver em uma era em que a admistração imagética faz parte das práticas e
representações vigentes nas sociedades. Sempre soube escolher ou criar
papéis em que sua carência dramática não faria diferença – seu principal
personagem é um robô. Soube, desde sua época de atleta, calcular todos os
meios possíveis para tornar-se campeão, buscando aliar-se e relacionar-se
com pessoas que poderiam ajudar em sua projeção para o sucesso. Através de
seus papéis no cinema é possível perceber como ele diversificou atividades e
maximizou lucros. Neste processo de construção imagética, o campeão de
fisiculturismo que chegou a governador demonstra que soube sempre calcular
os meios para atingir seus fins fazendo política, partidária ou não. Encarna,
dessa forma, o modelo de self-made-man, espécie de ás daquilo que se tornou
o cerne da ação na era dos simulacros e das imagens: o marketing pessoal. A
história de sua vida está diretamente relacionada ao desenvolvimento e
expansão do bodybuilding pelo mundo, além de constituir um prisma pelo qual
uma época pode ser analisada. O ícone-mor do fisiculturismo pode sugerir,
para aqueles que tentam analisar sua carreira, a forma como os mecanismos
disciplinares se instalam no corpo e através dele se reproduzem. Demonstra
55
em entrevistas, filmes, livros e manuais de exercícios, técnicas de fisiculturismo
(muitas desenvolvidas ou aprimoradas por ele), que podem ser percebidas
como representando “uma maquinaria de poder que esquadrinha [o corpo], o
desarticula e o recompõe [em] uma anatomia-política que é também uma
mecânica do poder“ (Foucault, 1987 :126), desenvolvida com o propósito de
produzir o aumento das habilidades musculares submetendo o corpo à
obediência e à manipulação, aprofundando sua sujeição. Mas tal processo não
apenas submete o corpo, também torna-o útil, aplicável, maximizado
esteticamente e submetido aos polifônicos e mesmo paradoxais discursos da
saúde. Essa articulação micropolítica não deixa, como Foucault (1990)
demonstrou, de se articular em uma dimensão macropolítica. Ao se
constituírem de forma capilar em instituições específicas – no caso as
academias de musculação e fitness – elas organizam determinados aspectos
da vida social refletidos nos registros molares da sociedade. A passagem de
Schwarzenegger de uma dimensão política cotidiana para aquela da política
partidária, não deixa de ser, portanto, reflexo de uma articulação possível do
biopoder e da biopolítica, pois, “o corpo ... está diretamente mergulhado num
campo político” (Idem :26). Portanto, “ter-se-ia, por um lado, uma espécie de
corpo global, molar, o corpo da população, junto com toda uma série de
discursos que lhe concernem e, então, por outro lado, e abaixo, os pequenos
corpos, dóceis, corpos individuais, os microcorpos da disciplina” (Id.Ibid.1993
:124). Essas duas dimensões das tecnologias de poder estão profundamente
articuladas e, pode-se dizer, estão presentes na história de vida de
Schwarzenegger. Sua associação com as políticas de Estado não deixam de
ser um reflexo do poder micropolítico que incidiu, desde cedo, sobre seu corpo,
e que ele desdobrou, - sem deixar também de ser por essas forças desdobrado
-, em reflexos macropolíticos; processos que o construíram como ícone
daqueles que percebem na disciplina do exercício corporal levado à exaustão,
na dedicação física e mental a um propósito, na abnegação e no cálculo
racional o sentido mesmo da existência. Assim, a história de Schwarzenegger
pode representar o desenrolar de um processo social específico analisado por
Foucault. O autor, ao longo de sua obra, constrói uma teoria social que pode
56
fornecer instrumentos para a uma melhor compreensão dos processos de
desenvolvimento com o cuidado do corpo.
O exemplo Schwarzenegger de trajetória social e de vida sugere a
articulação de micropoderes disciplinares que atravessam o cotidiano dos
indivíduos nas sociedades complexas. Tal disciplina pode ser definida como
uma arte de distribuição espacial dos indivíduos – o que seriam, a princípio,
estas instituições de bodybuilding e fitness nas quais os indivíduos constroem e
hierarquizam suas potencialidades físicas e estéticas? – exercendo seu
controle
não
sobre
o
resultado
de
uma
ação,
mas
sobre
o
seu
desenvolvimento. Desta forma, ela implicaria uma técnica de exercício de
poder que exige uma auto-vigilância constante dos indivíduos rebatida em uma
rede de olhares (panópitco) escrutinadores que regulariam as ações individuais
e coletivas pelo controle, além de outras características, do tempo (Foucault,
1987; Rabinow,1999; Maia, 2003). A história de vida de Schwarzenegger é o
exemplo de atualização dessa potencialidade disciplinar cotidiana: “ a disciplina
é de suma importância para o sucesso no fisiculturismo. Da mesma forma o é a
capacidade de concentrar-se, de estabelecer uma meta e não permitir que
nada se coloque no seu caminho” (Schwarzenegger e Dobbins, 2001: 243;).
Um fisiculturista de uma academia de Copacabana certa vez me disse:
“cara, o negócio aqui é de dedicação continuada... eu
sonho com meus exercícios, com a dieta, com o que eu devo
comer e fazer para crescer, para definir, qual técnica que eu tenho
que usar para expandir o quadríceps, o bíceps, o peitoral... sigo
uma dieta rigorosa, quando o verão vai chegando... eu tenho uma
balança para pesar alimento lá em casa, tudo que eu como,
carboidrato, proteína, é pesado...também não falto ao treino,
venho seis vezes por semana, sempre na mesma hora” (Mário, 30
anos. Instrutor de exercícios).
A administração cotidiana do corpo, de sua forma, da perseguição de
uma estética lipofóbica e de um padrão de saúde radicado em uma concepção
57
específica de beleza sugere a prática disciplinar de gestão dos corpos
individuais ressaltada pelas análises de Foucault; mas também remete aos
seus conceitos de biopoder e biopolítica
visto que tal disciplina não está
dissociada da atuação de toda uma máquina abstrata articuladora de
dispositivos coletivos de ações voltadas para a suposta manutenção de uma
saúde populacional (Foucault, 1990; Deleuze, 1995). As práticas corporais
parecem assumir, por intermédio dos meios de comunicação, o caráter de
dever coletivo voltado para a busca da otimização da saúde. A figura de
Schwarzenegger tem sido também um exemplo de afirmação desse poder
voltado para o gerenciamento populacional. Sua vida cotidiana, das academias
de musculação da California à política, pode esboçar um trajeto que articula as
duas dimensões da tecnologia do poder acima citadas. Se o poder disciplinar é
aquele que esquadrinha, desarticula e recompõe o corpo visando otimizá-lo,
extraindo dele sua utilidade através de um saber acumulado pela observação
perene em instituições específicas, a trajetória de Arnold Schwarzenegger é o
exemplo de um esquadrinhador que utiliza seu próprio corpo para produzir um
saber colocado em circulação através de filmes de fisiculturismo, livros e
enciclopédia. Por outro lado, tal conhecimento acaba se articulando com o
mecanismo molar de aplicação coletiva de saberes para a saúde, ou seja, a
biopolítica da população e o biopoder; este definido como tendo uma função
diferenciada daquela disciplinar, embora desta não se separando; sua função
poderia ser definida como sendo a de “gerar e controlar a vida dentro de uma
multiplicidade desde que ela seja numerosa (população), e o espaço estendido
ou aberto” (Deleuze, Op.Cit.:79).
Com efeito, a utilização do conceito de campo de Bourdieu pode ser
associada aos conceitos de disciplina, biopoder e biopolítica de Foucault,
ampliando o instrumental teórico para a compreensão de determinados
fenômenos relacionados ao corpo na sociedade ocidental. O surgimento do
campo do fisiculturismo, com todas as suas práticas específicas de
musculação, não está dissociado do surgimento dos mecanismos disciplinares
e da constituição da biopolítica e do biopoder – que também podem ser
associados ao conceito de processo civilizatório de Elias. De fato, os campos,
58
sendo dimensões sistêmicas específicas, estariam ligados a processos de
ordem macrosociais que forneceriam a base de suas articulações. Assim, por
exemplo, a consolidação do fisiculturismo só foi possível de ser realizada no
século XIX porque havia significativo movimento de expansão das tecnologias
corporais capitaneadas pelas políticas dos Estados europeus ocidentais
preocupados com a saúde populacional e com a formação de cidadãos fortes,
resistentes e destemidos. No número 216 do ano de 1914 da já citada revista
La Culture Physique, o articulista Edmond De Geoff após criticar a falta de
exercícios das crianças francesas escreve:
“quase sempre o homem é uma cópia do que foi na
infância... cuidemos de nossas crianças educando-as...tornandoas fortes pelo uso dos haltéres, habilidosas, tenazes para o
trabalho e para os projetos de construção que preparam
os
homens para a grandeza da pátria...todos os verdadeiros
descendentes da raça gaulesa me compreenderão...” (:14).
Tal preocupação com a saúde populacional e com o futuro da nação,
representa o espírito de agenciamento corporal voltado para as políticas
públicas que se fortaleceram a partir da segunda metade do século XIX na
Europa e nos Estados Unidos. Houve um aumento do controle e da busca de
uma espécie de estabilidade social radicada nas potencialidades do corpo da
população. De acordo com umas das teses mais radicais de Foucault, a
associação entre saber e poder se constituiu devido ao processo inicial de
isolamento vigiado que acabou por produzir um conhecimento sobre o homem
– verdadeiro nascimento de homem enquanto conceito – as ciências humanas:
psiquiatria, psicologia, sociologia, etc (Foucault,1974). Essa articulação entre
as práticas discursivas e as práticas não discursivas – relações econômicas,
sociais e políticas – postas em funcionamento no regime da biopolítica vinculase intrinsecamente à emergência do Estado do bem-estar social na Europa do
final do século XIX. A densificação da malha de relações de poder
perpassando o tecido social acompanha um outro estágio de desenvolvimento
59
da acumulação capitalista. Se tais modulações políticas produzem uma espécie
de domesticação do capitalismo, por outro lado, implementam os mais
insidiosos e sutis mecanismos de controle social (Maia, 2003).
O processo coletivo de preocupação crescente com o corpo, a saúde e
a vida produz
um crescente aprimoramento de tecnologias de gestão
populacional e o controle das ações cotidianas individuais. Essas articulações
entre as dimensões micro e molares, denominadas por Deleuze “máquinas
abstratas” (1995), poderiam ser compreendidas como articulação entre ação e
estrutura. O excesso de biopoder que marca o acirramento atual da disciplina
sobre a
vida passa não apenas a
organizá-la, mas modificá-la, abrindo a
possibilidade da fabricação de algo vivo. Nesse âmbito, o campo do
bodybuilding não passa de uma manifestação, e, portanto, um exemplo, da
manifestação desse biopoder na atualidade. Sua eficácia sobre os corpos, a
proliferação das academias e lojas de suplementos para atletas, as pesquisas
voltadas para o desenvolvimento de substâncias que possam melhorar o
desempenho atlético e a forma corporal, a crescente produção midiática sobre
musculação e boa forma não seriam possíveis sem a nova organização
econômica da saúde, sem os projetos de intervenções genéticas. A ritualização
crescente do uso de drogas e fármacos específicos entre os praticantes de
esportes com o intuito de melhorar sua condição físico-estéticas se processa
também nesse movimento de dominação e biopoder atual.
A tentativa de análise deste grupo de fisiculturistas de academias de
musculação e fisiculturismo do Rio de Janeiro atual pode, talvez, sugerir
algumas tendências sociais específicas de uma época em que a corporeidade
tem grassado entre as camadas médias urbanas cariocas; mas não apenas.
Até a década de 60 do século XX o bodybuilding era visto como sinal de
capacidade, disciplina moral, densidade emocional e sentimental representada
na concepção de homem integral e integrado (participante dos ideais de nação,
família, política e progresso), sendo o corpo exercitado o signo de lealdade e
fidelidade, abnegação e tenacidade, companheirismo e sociabilidade – por
mais ambígüas e obscuras que tais categorias pudessem ser. A partir da
década de 80 do mesmo século, o surgimento de um outro sentido ligado às
60
práticas de musculação se fez presente. Na era do “marketing pessoal”, na
qual a lógica da economia monetária do lucro (em geral, imediato) invade
progressivamente os espaços que antes eram das relações solidárias, a forma
física basta a si mesma, sendo a imagem do corpo a tradução da capacidade
imediata de viver mais e intensamente, consumir ao máximo os prazeres da
existência, ostentar juventude e beleza perenes. Corpo-produto consumidor de
outros corpos-produtos, vetores de novas hierarquias estéticas relacionadas ao
mercado.
A Gesta de Arnold Schwarzenegger
Estando repleta de heróis, a sociedade moderna os apresenta em
jornais, programas deTV, filmes, shows de música ou eventos esportivos. A
presença destes ícones remete à noção de que eles são referências de ação e
respaldo dos
valores constitutivos desta sociedade. Mas quem é o herói?
Segundo alguns estudiosos, ele é aquele que vive por sua causa, intermediário
entre os deuses e os homens, guardião, defensor, aquele que nasceu para
servir (Brandão, 1993; Helal, 1998). Campbell (1995), por exemplo, ressalta
que o herói parte do mundo cotidiano aventurando-se pelas regiões
sobrenaturais
onde enfrenta forças fabulosas e arrasta vitórias decisivas,
regressando de seu périplo com o poder de conceder dádivas aos seus
semelhantes. Ele é aquele que ultrapassa as condições medianas da
existência comum, abrindo caminho para o novo e trazendo com seus atos a
glória e a redenção de um povo ou grupo social específico. Para que a
trajetória heróica seja bem sucedida é necessário que as pessoas acreditem
nas representações que os feitos do herói reiteram. (Helal, Op. Cit.) Portanto, o
mito é parte de um sistema no qual as estruturas subjetivas (representações,
valores, normas) e objetivas (a prática cotidiana dos grupos sociais) interagem
(re) produzindo as condições de existência de um determinada sociedade. O
herói é a síntese das várias representações coletivas, ele é o emblema de um
grupo e de uma época. Uma breve tentativa de análise do mito mais difundido
entre os fisiculturistas, o das realizações de Arnold Schwarzenegger (Arnold
61
como é referido por todos os fisiculturistas) será efetuada adiante. Esta
narrativa, com algumas variações, é veiculada tanto em publicações
especializadas quanto nas conversas dos bodybuilders das academias. Não se
questiona aqui a veracidade dos fatos que compõem a narrativa, mas reitera-se
o aspecto mítico da construção desta.
Em uma pequena cidade dos Alpes austríacos vivia um jovem que
desde criança adorava fazer exercícios e levantar pesos. Seu pai, um policial
pobre, reunia os filhos, quase todos os dias, para a prática de flexões de braço,
caminhadas pelas montanhas e abdominais. Ensinava a estes que a
abnegação, a disciplina e o trabalho duro eram o caminho certo para alcançar
a felicidade, sendo os exercícios item fundamental nesta busca. Certo dia, o
irmão mais jovem do herói morre em um acidente de carro. Muito triste, este
dedica-se ainda mais aos exercícios prometendo a si e aos pais alcançar o
mais rápido possível o sucesso. Neste processo é um filho e aluno exemplar:
exercita-se muito, tira notas excelentes no colégio e ajuda sua mãe a fabricar
conservas.
Quando se torna adolescente, Arnold percebe que o lugar onde vive é
escasso em oportunidades de trabalho. Se continuar ali, não irá muito longe.
Quer vencer na vida, tornar-se famoso e ajudar seus pais, e não levar uma vida
de dificuldades como estes levavam. Aos quinze anos toma contato com os
filmes vindos da América, fica fascinado com todo o glamour que cerca os
astros norte-americanos, principalmente dos personagens que demonstram
força e poder, e passa a almejar ainda mais a fama. Simultaneamente, fica
sabendo que na América existem campeonatos de bodybuilders criados por um
descendente de germânicos como ele, Joe Weider, que havia se tornado
empresário famoso e rico cultivando seus músculos. Arnold resolve então que
deve ir para a América, atrás da fama e do sucesso. Está decidido a tornar-se
campeão de fisiculturismo. Em 1968 chega aos Estados Unidos com apenas
alguns trocados no bolso, uma grande massa muscular e quase nenhum
conhecimento de inglês. “Na Áustria não havia desafios para mim”, diz Arnold,
“a América, ao contrário, era um grande desafio, era o futuro.”
62
Em suas primeiras competições em Miami, forças adversas atrapalham
seu caminho em direção à
glória. Não consegue se preparar de forma
adequada, devido a falta de recursos, e acaba perdendo as
disputas.
Disciplinado, não desiste facilmente, tenta fazer contatos com pessoas
influentes, até que em seu auxílio intervém o sumo sacerdote do fisiculturismo,
Joe Weider,
que percebe seu talento e o convida para ir com ele para à
Califórnia – meca americana do músculo – dispondo-se a auxiliá-lo nos
treinamentos e a investir nos campeonatos e apresentações. Rapidamente
nosso herói passa a ganhar campeonatos e a ficar cada vez mais famoso.
Torna-se o primeiro a ganhar seis vezes consecutivas o título mundial de Mister
Olympia e passa a ser reconhecido no mundo inteiro pelos praticantes de
musculação. Em 1972 estréia no cinema com o documentário Pump Iron, no
qual relata sua trajetória e a de outros fisiculturistas famosos como Lou
Ferrigno e Frank Columbo. Neste filme são dadas dicas para a construção de
um corpo musculoso: dedicação, trabalho intermitente, abnegação, super
alimentação e fé em seus próprios objetivos. A fórmula para a construção do
self made man dos músculos estava, ao menos supostamente, traçada. Logo
em seguida faz o papel de Conan, o bárbaro, em filme homônimo, e torna-se
ainda mais rico e famoso. Daí em diante, Schwarzenegger passa a ser
considerado a maior autoridade em fisiculturismo do mundo, atuando em mais
filmes que são sucessos de bilheteria e sendo convidado pelo presidente dos
EUA (George Bush I) para ocupar o cargo de consultor de assuntos para a
Educação Física. Nesse ínterim, Schwarzenegger casa-se com uma destacada
aristocrata da famosa família Kennedy entrando para o high society. Apesar de
tornar-se cidadão americano, o herói dos músculos retorna glorioso em visita a
sua terra sendo alardeado como o filho pródigo dos Alpes. Além de tornar-se o
maior ícone do bodybuilding, astro de Hollywood e empresário bem sucedido,
Arnold Schwarzenegger conseguiu em 8 de outrubro de 2003 coroar sua
carreira de sucesso tendo sido eleito governador da Califórnia, o estado mais
rico dos Estados Unidos.
A façanha do herói começa com alguém de quem algo foi usurpado ou
que percebe que está faltando algo entre as experiências cotidianas das
63
pessoas comuns na sociedade. O herói parte, então, para uma série de
aventuras, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir
algum elixir doador da vida. Normalmente faz um círculo com partida e retorno
glorioso. Em biografias de heróis midiáticos é comum a presença de uma perda
ou dificuldade séria na infância. No caso, a pobreza, a perda do irmão, a vida
difícil nos Alpes. Essa construção da narrativa com ênfase nas dificuldades
torna-se o fio de identificação do ídolo com as pessoas comuns (fãs,
seguidores, admiradores).
Em sociedades capitalistas, nas quais a mídia exerce uma forte
influência, a princípio, podem ser destacados dois tipos de heróis: os heróis por
acaso e os heróis preparados; os primeiros são lançados heróis, defrontados
com a aventura, que neles desperta uma qualidade que ignoravam possuir. O
segundo tipo é o do self made man, aquele que persegue com todas as suas
forças a glória. As provações, neste processo, são concebidas para ver se o
pretendente a herói pode realmente ser um herói. O passado difícil, cheio de
provações, repleto de forças maléficas, é ressaltado e superdimensionado em
todas as gestas (Helal, 1998). O mito de Arnold, ampliando veiculado de forma
intermitente nas revistas e filmes, e contado pelos fisiculturistas das
academias, reflete este processo estrutural inerente às sagas míticas. Arnold
vive uma infância difícil tendo que partir do lugar onde nasceu para iniciar sua
aventura. Lévi-Strauss mostra que, nos mitos, o herói tende a se separar dos
seus realizando um périplo que é seguido pela maioria daqueles que almejam o
sucesso. O mito estabelece, então, uma regra, um exemplo, para aqueles que
objetivam realizar o mesmo processo (Lévi-Strauss, 1984).
Estudando mitos ameríndios, o autor (Op. Cit.) demonstra também a
existência de outros dois tipos de heróis, um criador, o demiurgo, e outro
administrador e organizador. Por exemplo, a organização social dos Bororo
está dividida em duas metades denominadas Tugare e Cera. Seus heróis são
provenientes destas metades sendo que os heróis Tugare são demiurgos e os
Cera administradores. Os Tugare “são em geral responsáveis pela existência
das
coisas
:
rios,
lagos,
chuvas,
vento,
peixes,
vegetação,
objetos
manufaturados...os heróis Cera intervém num segundo momento, como
64
organizadores e administradores de uma criação cujos autores foram os
Tugare... ” (Idem :55). Comparando com o mito do bodybuilding aqui analisado,
é possível dizer que o papel exercido por Joe Weider25 é o do herói demiurgo,
enquanto Arnold Schwarzenegger surge como organizador e divulgador maior.
Weider, um rapaz de entregas, tornou-se um empresário multimilionário do
fisiculturismo criando laboratórios de pesquisas e fábricas de suplementos
alimentares e de halteres e máquinas de musculação, academias e concursos
de boa forma e bodybuilding que movimentam anualmente mais de 300
milhões de dólares. Além de ter criado inúmeras publicações sobre
bodybuilding (livros e revistas mensais), institucionalizou o fisiculturismo nos
EUA e já era reconhecido como uma das maiores autoridades quando ajudou
Arnold em sua aventura americana. Este último é hoje conhecido pelo seu
empenho em expandir e preservar as conquistas de Weider levando “a saúde e
a boa forma a todos” através de suas próprias empresas e de seus próprios
campeonatos, além dos de Weider. Arnold Schwarzenegger começou seguindo
os conselhos e os métodos inventados por Weider, seu protetor, e hoje é o seu
maior aliado, reproduzindo em seus próprios métodos tudo o que Weider lhe
ensinou e indicou. A ética produzida pelos dois heróis do bodybuilding está
resumida em inúmeras publicações produzidas por eles e por seus
admiradores. Esta visão de mundo consiste em uma mistura de cientificismo,
conselhos bíblicos e prática capitalista, radicando-se nos itens fundamentais
constitutivos do imaginário das sociedades capitalistas atuais. Abaixo um
trecho do editorial da revista mensal Muscle e Fitness, presente em todas as
edições:
“Este estilo de vida pauta-se pela educação e o
desenvolvimento da pessoa em sua totalidade – corpo, mente e
espírito.
25
O
desenvolvimento
muscular
supervisionado
- Weider é de fato o fundador de toda uma corrente de fisiculturismo que está claramente calcada na
ética protestante. No editorial de suas revistas mensais de musculação(Muscle e Fitness, por exemplo)
aparece o princípio Weider de vida (principles of the Weider lifestyle) : “Busque a excelência, exceda a si
mesmo, ame seus amigos, fale a verdade, pratique a fidelidade e honre seu pai e mãe. Estes princípios o
ajudarão a tornar-se mestre de si mesmo, o farão forte, darão esperança e o colocarão no caminho da
grandeza”.
65
desempenha um importante papel na nossa sociedade e Muscle
and Fitness serve como orientação. Nossos princípios estão
fundados na resistência progressiva, treinamento com peso,
nutrição apropriada, condicionamento aeróbico, boa forma,
controle de stress e recuperação. O músculo é a marca plena da
saúde e da boa forma na ética Weider – além de ser a marca da
construção da imunidade, do funcionamento adequado do
metabolismo,
e
do
desaceleramento
envelhecimento.
O
superior
do
processo
desenvolvimento
de
muscular
acompanhado do apelo visual representa um alto estado de
saúde livre da gordura. Boa forma representa músculos em
ação pautados na fisiologia do exercício que auxilia a reduzir os
múltiplos fatores de risco para a saúde que prevalecem em nosso
mundo moderno. Deixe o estilo de vida Weider fazê-lo forte, belo,
cheio de energia, com melhor saúde e mais eficiente, dando
simultaneamente a você uma auto-imagem perfeita. Deixe
o
bodybuilding ser parte de sua vida” (1998:12. Grifo nosso).
Estas regras ditadas pelos mitos da musculação descrevem o que vem a
ser boa saúde, beleza, sucesso e longevidade, prescrevendo ações que
produzem e reproduzem a realidade não apenas dos fisiculturistas, pois
gradativamente tais preceitos têm se tornado mandamento divino, com
respaldo médico, para toda a sociedade, cada vez mais preocupada com a
saúde e a beleza. Esta héxis ou habitus corporal surge enquanto distinção e
emblema de excelência, demarcando, nos sistemas classificatórios das
sociedades complexas, o espaço social no qual dominantes e dominados
encontram seus lugares específicos (Bourdieu, 1976). Ter sucesso, ser nobre,
saudável e belo está subsumido a praticas e estilos de vida ligados ao cuidado
do corpo e de si. Esta ética muscular protestante radica-se em um sistema
simbólico no qual a muscularidade e a ausência de gordura aparecem como
signos de nobreza e de status elevado. Neste processo de busca pela
excelência inscrita nos músculos e na pele, - processo respaldado pela
66
autoridade científica - os indivíduos alimentam um sistema de produção de
bens simbólicos de consumo que os atrela a um processo de reprodução de
valores radicados na aparência. Nunca na história os indivíduos estiveram, em
tão grande quantidade, submetidos a uma dominação estética de tamanha
proporção. Se, por um lado, a ciência médica desenvolveu técnicas e
tecnologias para curar e preservar vidas, por outro, ela viabilizou a criação de
uma nova dimensão da dominação
construída pelas representações de
juventude, beleza e saúde. Conceitos e ideais que devem ser perseguidos a
todo custo por todos aqueles que querem ser aceitos como símbolos de
superioridade, sucesso e excelência. Luta inglória, já que os próprios itens
constitutivos
desta
estética
são
voláteis
inevitavelmente com o passar do tempo.
e
efêmeros
dissolvendo-se
67
Capítulo II
“No mundo contemporâneo em que o Ser se tornou
de uma leveza insustentável, pois não impõe nenhuma
autoridade que possa prescrever e na qual se possa crer,
nem natureza, nem Deus, nem tradição, nem imperativo
kantiano, apenas o eu pode conferir-se leis e apresentar-se
como único ponto de apoio; tudo desapareceu, mas restou
o eu... eu cara a cara com o que me nega, a morte, que
não é nada se o eu decide que, para ele, não é nada.”
Paul Veyne
O Surgimento dos Esteróides
Por
intermédio
do
avanço
telecomunicações, a imagem da
tecnológico
e
da
expansão
das
perfeição corpórea expande-se para o
cotidiano de várias culturas. A suposta imperfeição física dos indivíduos
comuns passa a defrontar-se, a cada instante, com imagens de “corpos
perfeitos” (musculosos, magros, bronzeados, sempre expressando felicidade)
em telas de cinemas, TVs, computadores
e outdoors. Tais imagens de
modelos, minuciosamente selecionados, retocadas e aperfeiçoadas por
técnicas de computação gráfica e fotografia, tendem a induzir à perseguição
deste tipo de corpo sob a égide do consumo e do hedonismo auto-ilusivo
(Campbell, Op. Cit.; West, 2000). Esta exaltação da imagens produz culturas
que investem na construção física levando milhões de pessoas a consumirem
cotidianamente todos os tipos de produtos materiais e simbólicos: remédios,
filmes, revistas, exercícios, dietas e suplementos alimentares, movimentando a
gigantesca e crescente Indústria da Saúde. As academias de musculação
surgem como usinas de produção da forma, fabricando corpos para serem
consumidos pela lógica do mercado. Estas formas musculosas apresentar-seiam como espécie de totens midiáticos, visto que a publicidade exalta tais
68
modelos contribuindo assim para a construção da identidade das tribos
urbanas que identificam-se com o paradigma apresentado. Ela, a publicidade,
surge como um operador totêmico (Rocha,1995) dando sentido a todo o
processo ascético de produção física direcionado para o mundo do consumo.
Tal como um “selvagem” saberia identificar o comportamento de uma pessoa
do clã do Urso ou da Águia, podemos identificar, através da aparência ou da
conduta,
alguém
que
é
fisiculturista
ou
“marombeiro”,
dedicando-se
regularmente ao mundo da musculação e das academias. Assim, “os estilos de
vida atuais, hieraquias de valores e modelos de comportamento possuem na
publicidade um dos mais lúcidos espaços de divulgação didática” (Canevacci,
2001:154).
Como produto do processo de aprimoramento dos saberes e práticas
sobre a saúde e a fisiologia humana, os esteróides anabolizantes sintéticos
apresentam-se como fármacos26 (drogas) específicas que hoje têm sido
consumidos de forma crescente com o objetivo de otimizar a forma, mudando a
morfologia individual. Estas substâncias surgiram de pesquisas farmacêuticas
realizadas no final do século XIX e primeira metade do século XX.
No dia 1 de junho de 1889, Charles Edouard Brown-Séquard, um
proeminente médico e cientista francês, anunciou à Sociedade de Biologia de
Paris
que estava descobrindo uma terapia rejuvenescedora do corpo e da
mente. O professor de 72 anos estava experimentando, em si mesmo, injeções
de líquidos tirados dos testículos de cachorros
e porcos da guiné. Tais
injeções, segundo seu próprio relato, haviam aumentado sua força física e sua
energia intelectual, fazendo recrudescer suas constipações e “aumentando o
esguicho de sua urina” (Hoberman e Yesalis, 1995:76). Através de suas
experiências, Brown-Séquard
percebeu a existência e a importância de
substâncias liberadas por determinadas glândulas (no caso específico os
26
- É conhecida a ambigüidade da palavra fármaco: phamakón em grego significa ao mesmo tempo
remédio e veneno. Droga, expressa tanto a idéia de medicamento quanto de substância entorpecente,
como ainda de coisa desagradável e de pouco valor. Outro termo, tóxico, origina-se do grego toxon, que
representa uma tigela ou recipiente onde se colocava veneno para banhar a ponta das flechas. Venenum,
em sua origem latina, significa beberagem, tintura, corante, algo que modifica aquele que o usa
(Nascimento, 2003).
69
testículos)
e de sua atuação como reguladores fisiológicos. Tornou-se,
portanto, um dos fundadores da moderna Endocrinologia.
Após os experimentos de Brown-Séquard, uma verdadeira corrida em
busca do isolamento dos hormônios (nome dado a tais substâncias em 1905)
tomou conta do cenário científico. Em 1896, dois químicos austríacos, Oskar
Zoth e Fritz Pregl, perceberam que as injeções de extratos testiculares de
touros produziam um significativo ganho de força em seres humanos. Eles
injetavam tais substâncias em si mesmos e mediam, através de um
instrumento denominado ergógrafo de Mosso, a força de seus dedos médios.
Diante de tais resultados estes cientistas passaram a realizar palestras nas
quais afirmavam que tais substâncias poderiam ser consumidas por atletas
para melhorar seu desempenho em competições. Rapidamente, tais extratos
testiculares apresentaram-se como uma espécie de elixir da força e da
juventude e equipes de pesquisa na Europa e nos EUA foram formadas para
aprimorar as investigações sobre como produzi-los em laboratório. Antes de se
conseguir tal objetivo, várias experiências sobre o uso dos hormônios
masculinos foram realizadas. Em 1913 o médico norte-americano Victor
Lespinassse, de Chicago, transplantou um testículo humano para um paciente
que havia perdido os seus e sofria de disfunção sexual. Quatro dias após a
cirurgia, a capacidade sexual do paciente havia sido, segundo o médico,
recuperada. Tais experimentos tiveram continuidade e, em 1920, outro médico,
Leo Stanley, residente da prisão de S. Quentin na Califórnia, passou a
transplantar testículos de animais em presos com problemas de impotência,
diabetes, asma, senilidade, paranóia, e grangrena, afirmando que tais
operações causavam considerável melhora em seus pacientes. Também,
durante a década de 1920, o médico russo Serge Voronoff realizou
transplantes de testículos de macacos em seres humanos. De forma paralela a
tais procedimentos, que logo caíram em desuso, outros pesquisadores
procuravam isolar, de forma sintética, o hormônio testicular. Em 1911 A.
Pezard descobriu que as características sexuais masculinas cresciam
proporcionalmente à aplicação de substâncias testiculares em animais,
percebendo os efeitos androgênicos – masculinizantes – de tais extratos.
70
Durante as duas décadas posteriores, inúmeros cientistas procuraram
aprimorar
os estudos sobre efeitos de substâncias androgênicas tentando
isolar o componente químico presente nos testículos de animais e urina
humana. Em 1931, o cientista alemão Adolf Butenandt conseguiu isolar 15
miligramas do hormônio não testicular, que ele denominou Androsterona
retirando-os de 15.000 litros de urina de homens que trabalhavam como
policiais. Contudo, a Testosterona, hormônio natural masculino mais poderoso
que a Androsterona, só foi isolada em laboratório através da ação de três
grupos
de
pesquisadores
subsidiados
pelas
grandes
companhias
farmacêuticas multinacionais. Em 27 de maio de 1935, Karoly Gyula David e
Ernst Laqueur, financiados pela Organon Company da Holanda, apresentaram
o artigo “Sobre o Hormônio Cristalino Masculino Proveniente dos Testículos Testosterona”
como
resultado
de
suas
pesquisas
no
isolamento
da
Testosterona. Em 24 de agosto do mesmo ano os pesquisadores alemães
Butenandt e Hanisch, financiados pela Schering Corporation de Berlim,
apresentaram os resultado de suas pesquisas denominado: “Um Método de
Preparação de Testosterona a partir do Colesterol” ; e em 31 de Agosto de
1935, os pesquisadores da companhia farmacêutica Ciba, Leopold Ruizicka e
Alfred Wettstein, anunciaram sua descoberta no artigo “Sobre a Preparação do
hormônio Testicular Testosterona (Androsten-3one-17-ol)”. A testosterona
sintética estava inventada e a patente de tais drogas em posse das indústrias
que financiaram suas descobertas. Ruizicka e Butenandt receberam, em 1939,
o Prêmio Nobel de Química (Hoberman e Yesalis, Op. cit.). A partir de então, o
mercado do uso de testosterona sintética e seus derivados cresceu tanto para
usos medicinais quanto estéticos; ainda mais após 1940, ano em que Charles
Kochakian descobriu as características anabólicas da testosterona, ou seja, a
facilidade de crescimento muscular possibilitado pelo uso desta .
Após esta descoberta, os fisiculturistas amadores e profissionais da
costa oeste americana, no início dos anos 50 do século XX, passaram a utilizar
testosterona para aumentar massa muscular e força. Este uso espalhou-se na
década de 1960 entre os atletas profissionais e amadores de outros esportes,
já sendo comum, na época, a sua utilização entre alunos de colégios
71
secundários e universidades americanas. Nos esportes olímpicos, durante o
mesmo período, tais substâncias passaram a fazer sucesso entre atletas do
leste europeu comunista e China, certamente auxiliando-os na conquista de
muitas medalhas.27 A partir de 1970 o Comitê Olímpico implementou métodos
de testagem para detectar o uso de tais substâncias, além de outras similares,
por atletas, banindo dos jogos aqueles descobertos como sendo usuários
destas drogas. Contudo, desde então, um número significativo de atletas de
elite e técnicos tem encontrado meios de burlar tais testes.
O que deve ser ressaltado em todo este processo é a expansão do uso
de tais drogas. A princípio direcionadas para a terapêutica, elas acabaram
incrementando
ilegalmente
os
esportes
profissionais
e
amadores
e,
atualmente, têm se tornado objeto de consumo cotidiano de pessoas comuns
que buscam otimizar sua aparência.
Este movimento de pesquisas e descobertas científicas sobre a
testosterona
está
ligado
ao
desenvolvimento
de
saberes
e
práticas
relacionados ao gerenciamento do corpo individualizado, do envelhecimento
populacional e da saúde, concepções surgidas no século XVIII,
e que
construíram o sentimento da necessidade de preservação do corpo,
considerado, a partir de então, pelas culturas ocidentais, mônada isolada do
todo social (Rodrigues, 1999). Este saberes e estas práticas aprimoraram-se
desde então: enquanto a proposta racionalista dos religiosos dos séculos XVI e
XVII era disciplinar o corpo para libertá-lo das paixões, promovendo uma
estética da alma, a proposta racionalizante do saber leigo que se desenvolve –
27
- O uso de esteróides (Dianabol) foi detectado de fato em 1956 nos jogos de Moscou (Pope, Phillips &
Olivardia, 2000). Desde então o uso de tais substâncias tem crescido entre os atletas, não apenas fazendo
parte dos rituais de treinamento e competições, mas contribuindo para a formação de uma espécie de
indústria de subversão de testes antidoping . Esta indústria, formada por técnicos, médicos, laboratórios e
pesquisadores e nutricionistas, busca subverter os testes criando substâncias esteróides que não podem ser
detectadas, a princípio, em exames de sangue e urina. O último caso, divulgado em outubro de 2003 na
mídia, foi a da tetrahidrogestinona ou THG; essa nova molécula reúne os esteróides Gestrinona e
Trembolona. Em seu núcleo, há quatro anéis de benzeno aos quais o methyl e o hidroxyl estão ligados.
Grupos adicionais de methyl ou ethyl – átomos de três carbonos e seis de hidrogrogênio foram somados
para criar esse novo esteróide. Tal combinação possibilitou que o novo esteróide sintético não fosse
detectado nos exames tradicionais antidoping. O uso da substância foi descoberto devido ao fato de um
técnico, não identificado, ter feito a denúncia à Agência Americana Antidoping de que atletas americanos
e estrangeiros estavam utilizando uma substância que não era detectada. O técnico enviou uma seringa
com resquícios da substância que foi analisada pelas autoridades que detectaram a nova droga (O Globo.
23 outubro de 2003. Caderno dos Esportes).
72
embora radicado nas premissas lógicas de origem religiosa - é a de administrar
paixões (eventualmente controlando-as) com o objetivo de otimizá-las. Em
outras
palavras,
investir
em
paixões,
poupando-as, em determinados
momentos, com o objetivo de aplicá-las, em outros momentos, nos quais as
mesmas paixões maximizadas poderão vir a se concretizar de forma mais
ampla; multiplicando e efetivando, assim, uma espécie de lucro na satisfação
dos desejos(Campbell, Op. Cit.). Nova economia libidinal que potencializa as
paixões e que é estabelecida pela lógica do consumo. Neste movimento, o
anabolizante
apresenta-se como um meio, dentre outros, concretizador das
estratégias instrumentais de manutenção deste corpo considerado veículo do
prazer e da auto-expressão, corpo produzido por, e produtor de, uma
sociedade individualista e racionalizante. A estética da alma tornou-se
circunscrita apenas ao corpo, ressaltando a disciplina não como elemento
oposto ao hedonismo, mas como auxiliar deste. Assim, a época atual não
apresenta potencialmente apenas a dimensão de um paroxismo dionisíaco ou
período de expansão da reflexividade e da razão comunicativa (Mafesolli, 1995;
Giddens, 1991; Habermas,1985), mas as atuais sociedades globalizadas
podem, também, encontrar-se em um processo de acirramento sutil do poder
disciplinar que possivelmente vem sendo aprimorado através do exercício do
controle intra e extra muros institucionais – através de novas tecnologias da
comunicação - e por intermédio do agenciamento dos sistemas simbólicos,
(valores, normas e percepções) radicados, de certa forma, na lógica da troca
comercial e do consumo (Bourdieu, 2001a). O novo racionalismo e suas
técnicas de criação de corpos e expansão de desejos consumistas caracterizase por submeter e subjugar, em determinadas circunstâncias, o corpo e suas
afeições28 aos ditames do ascetismo disciplinar, porém, normalizando-o com o
objetivo
28
de
potencializar
sua
capacidade
de
diversão
e
consumo
- Aqui é adotado o conceito de afecção elaborado por Espinosa: “Por afecções entendo as afecções do
corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada,
assim como as idéias dessas afecções” . As afecções podem ser ativas se “agimos quando se produz em
nós, ou fora de nós qualquer coisa que somos causa adequada... mas, ao contrário, digo que somos
passivos (sofremos) quando em nós se produz qualquer coisa ou qualquer coisa se segue da nossa
natureza, de que não somos senão causa parcial”. Esclarecendo: “o corpo humano pode ser afetado de
numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída...” (Espinosa, 1979:
73
(Featherstone,1995; Courtine,1995). Ascetismo e hedonismo caminham, agora,
de mãos dadas. Tal aspecto pode ser percebido nos supermercados de
imagens em expansão onde os heróis-produtos são atores, cantores, modelos
e atrizes, pessoas produzidas e que reproduzem os padrões de beleza
hegemônicos e que professam a ética do consumo e de um suposto savoir
vivre, conquistado, porém, com esforço ascético, segundo os discursos de tais
ícones. Em tal sistema de economia imagética, indivíduos comuns são
impulsionados ao consumo e à submissão calculada a dietas, exercícios,
anabolizantes, clínicas estéticas e academias, enquadrando-se em uma
espécie de controle disciplinar ímpar na história, com o objetivo de
conquistarem a admiração e o respeito. Há o esforço de se chegar ao paraíso
das imagens e formas tendo o mercado da saúde como coadjuvante no
processo de busca de ascensão social. Passaporte que permite aproveitar
aquilo que o mundo do consumo oferece àqueles que são considerados
vencedores. Hedonismo racionalista. O saber e a prática relacionados ao uso
dos
esteróides
anabolizantes
fazem
parte
inerente
deste
processo,
constituindo-se como um dos instrumentos manejados por determinados
indivíduos e grupos na busca deste paraíso na terra onde os corpos e suas
imagens são intercambiáveis à maneira de uma simples moeda.
Simmel (1983; 1989; 1991; 1993) apontou o domínio do dinheiro como
instituição fundamental do mundo moderno, ou, mais de acordo com suas
palavras, o advento da economia monetária significou
uma redefinição da
consciência subjetiva individual. Com a troca monetária nos parâmetros
modernos as noções básicas de tempo e espaço se modificaram, e, com a
modificação de tais noções, modificaram-se também as economias emocionais
dos indivíduos. A
vida afetiva individual e as relações sociais em geral
passaram a ser regidas pela necessidade de distanciamento interno e externo
– relacionados às exigências dos contatos interpessoais na metrópoles- e pela
instauração da calculabilidade como fenômeno da personalidade dos
indivíduos. Relacionada a esse processo, a atitude “blasé” passou a afigurar-se
como uma característica típica da indiferenciação qualitativa operada pelo
178). O marketing talvez possa ser apresentado como um dispositivo moderno para a soma ou subtração
74
dinheiro transformado em meio universal de troca. Assim, a crescente
velocidade das trocas, nas grandes metrópoles, provocaria nos indivíduos a
também crescente indiferença devido ao estímulo permanente do meio urbano
(Stecher, 1995). Para Simmel, as trocas monetárias com objetivo primordial do
lucro não apenas produziam indiferença nos indivíduos em relação aos seus
próximos como caracterizariam um movimento de dissolução das instituições
tradicionais e relações sociais produzindo, por sua vez, um grande movimento
de indivíduos no espaço. Neste contexto, a relação monetária conectaria
estreitamente o indivíduo com o grupo como um todo abstrato, mas, colocandoo na mesma dimensão dos objetos, dissolvendo-o como personalidade própria.
O dinheiro separaria o lado econômico da personalidade integral. Em sentido
parecido ao fetichismo da mercadoria trabalhado por Marx no primeiro volume
de O Capital (1983), Simmel destaca que a frieza e a impessoalidade das
trocas econômicas, que visam primordialmente o lucro, transformariam os
próprios indivíduos em coisas, objetos. As associações tornar-se-iam, nas
sociedades
modernas,
calcadas
nesta
economia
monetária,
meras
associações instrumentais motivadas pelo interesse do lucro. O dinheiro criaria
entre sujeitos e objetos uma “desconexão objetiva” e na relação inter-subjetiva,
uma “desconexão pessoal”. Em ambos os casos, uma nova relação estaria
sendo reconstruída a partir do uso do dinheiro na modernidade (Stecher. Op.
Cit.: 184). Esta nova relação se caracterizaria pelo fato de que a personalidade
individual seria afetada pelo próprio processo social calcado na troca objetiva e
objetivante fazendo o indivíduo ver o outro como meio para alcançar seus fins:
“o importante, entretanto, é que o dinheiro é percebido em
toda a parte como fim e, com isso, muitas coisas que têm o seu
fim em si mesmas são rebaixadas a simples meios. Ao mesmo
tempo que o dinheiro, por definição, é o meio, os conteúdos da
existência se colocam num profundo contexto teleológico sem
começo e sem fim” (Simmel, 1989:593. Apud. Stecher, 1995:185)
de determinadas afecções, administrando-as.
75
O estudo da coisificação do outro presente na obra de Simmel remete e
ressalta o fato do surgimento de uma ética que concebe o mundo e o próximo
como objetos a serem consumidos. A epifania da forma realizada pela
publicidade e atualizada nas instituições de práticas de exercício ressalta o fato
- como sugeriu Foucault (1997) - de que, em contraposição a outros tipos de
liberalismo, a marca singular do liberalismo de origem norte-americana,
enquanto teoria e prática econômica, é “a busca de estender a racionalidade do
mercado a domínios não exclusivamente ou não prioritariamente econômicos”
(:96). A lógica solidária das trocas simbólicas não fundadas em uma economia
que visa o lucro, a todo custo, encontra-se afrontada pela mercado-lógica
midiática que tem se estendido com sucesso para a maioria das relações
sociais, inscrevendo-se no corpo e na pele de cada indivíduo das sociedades
de consumo. Portanto, se no início, o processo de racionalização e
disciplinarização corporal estava relacionado a práticas e saberes religiosos,
passando, logo após, para a administração estatal, hoje são o marketing e o
mercado os novos senhores desta administração. O puritanismo traveste-se de
hedonismo produzindo uma espécie de repuritanização das práticas corporais
(Campbell, Idem ).
Tal repuritanização hedonística expressa um paradoxo que é o de
associar a construção da saúde ao consumo de substâncias químicas –
fármacos. Lutando para alcançar um ideal inalcançável, os indivíduos cada vez
mais consomem produtos “mágicos” lançados no mercado com o aval da
ciência para aprimorar a saúde e a estética. Essa medicalização da sociedade
tende a eleger o fármaco como fetiche, fórmula milagrosa que pode trazer a
felicidade àqueles que não se enquadram nos padrões estéticos culturalmente
estabelecidos. Além de sacralizar a ciência e a tecnologia, tal processo cria o
mito da saúde perfeita (1995), e radica no consumo dos produtos o caminho
para a felicidade. O problema está no fato de que em uma sociedade
causadora de doenças - e causadora justamente porque radica apenas na
dimensão da economia econômica do lucro as suas relações constitutivas - , as
chances de saúde individual são mínimas. A crise de valores, sustentada no
individualismo hedonista, no próprio consumismo, na competição acirrada, e
76
em mecanismos de hierarquização e exclusão social, ameaça os elos de
solidariedade social, gerando isolamento e sofrimento. Portanto, a noção de
que a felicidade e/ ou a saúde possam ser encontradas e compradas em
consultórios, drogarias ou contrabandeadas em academias de fitness ressalta o
paradoxo de uma época singular que busca a felicidade na própria ameaça da
sua destruição.
No Reino de Dionisos
Diferente de drogas como maconha, cocaína, heroína, entre outras,
consideradas substâncias causadoras da perda de autocontrole, ocasionando
suposta irresponsabilidade e violação de imperativos morais básicos (Becker,
1971) sendo responsáveis pela concepção, por parte da sociedade e das
instituições em geral, de que seus usuários são pessoas com conduta sem
freios beirando à loucura, enfim, conduta que poderia ser denominada
dionisíaca, o uso de esteróides apresenta, a princípio, processo inverso. Seus
consumidores tentam construir, associando tais drogas a pesados exercícios
físicos, imagem de autodomínio, disciplina e racionalidade. Imagem que
podemos denominar, de forma provisória, apolínea, na conduta e na forma
musculosa (considerada saudável por muitos), já que as representações de
saúde nesses grupos têm sido atualmente relacionadas à ausência de
adiposidade e à musculatura rígida e aparente.
O consumo de drogas vem sendo associado à transgressão das normas
e busca de supressão de estados que oprimem indivíduos e grupos, à
contracultura e à busca de potencialização do prazer e reencantamento de um
mundo desencantado, além de estar associado à expansão triunfante da
realidade psíquica. (Velho, 1998; Perlonger,1994; Birman, 1993; Morgado,
1985; Becker, 1971). Na Antropologia, mais especificamente, o uso das drogas
poderia estar associado à teoria dos ritos e rituais relacionando-se a
experiências místicas ou de desvio perpetradas por determinados grupos que,
de uma forma ou outra, tendem a promover uma espécie de suspensão
momentânea da estrutura social dominante, seja para reafirmá-la ou para
77
antever sua modificação, além de constituírem itens que podem estar
presentes em ritos de passagem nos quais um indivíduo transita de um
determinado status para outro (Turner, 1974; Da Matta, 1983; Bourdieu,1996).
Em geral, tais
abordagens tendem a ressaltar o aspecto dionisíaco desse
consumo. Há a tendência dos estudos se deterem sobre a dimensão eufórica
acionada pelo uso destas substâncias, referindo-se – no caso das sociedades
complexas ocidentais - ao início dos anos 60 do século XX como período no
qual houve significativa transição nos hábitos de utilização de entorpecentes,
na medida em que, por intermédio do que se constituiu como o movimento da
contracultura, um novo ethos29 surgiu, entre os jovens principalmente, no qual
as drogas passaram a ocupar posição estratégica de subversão da cultura
dominante (Salem,1991). Elas representariam o acesso a um "outro mundo"
causado pelas transformações perceptivas provocadas. Espécie de “fuga” do
sistema, mesmo momentânea.
Diversos grupos sociais iniciam o consumo de tóxicos regularmente,
utilizando-os como parte de códigos éticos e estéticos precisos, inscrevendo
este uso em uma cultura onde supõe-se que a crítica e a negação de
determinados valores tradicionais se realizaria, ou, no mínimo, se inscreveria
em uma atitude hedonista contraposta a qualquer laivo de ascetismo (Velho,
1998). As drogas tornar-se-iam "signo emblemático de uma visão de mundo
underground" (Birman, 1993:5).
Velho (1994), escrevendo sobre o “mundo das drogas”, indica a
necessidade de ressaltar a heterogeneidade deste “mundo” nas sociedades
complexas. Segundo ele, não há como pressupor comportamentos e atitudes
homogêneos sobre a utilização de drogas, visto que existem categorias sociais
e indivíduos que as consomem de modo diferenciado havendo “n maneiras de
utilizar as substâncias, em função de variáveis culturais e sociológicas” (Idem ,
1980:355). Múltiplos significados são atribuídos à utilização de diferentes tipos
de drogas. É possível afirmar que o atual uso de esteróides anabolizantes
surge como uma nova forma de consumo de novas drogas apresentando a
29
- Ethos de acordo com Bateson é “a padronização culturalmente sistematizada de organização de
emoções e instintos dos indivíduos”. Esta padronização está inseparavelmente associada à “padronização
78
configuração de um novo objetivo no ato coletivo de consumi-las. O “mundo” da
musculação e do bodybuilding, da cultura fisicalista em geral, que cada vez
mais
tem
afirmado
sua
presença
nas
sociedades
contemporâneas
globalizadas, criou um espaço próprio, com imaginário e rituais específicos,
representando uma progressiva mudança de atitude e comportamento em
relação ao corpo. Como tais drogas são produtos diretos das indústrias
farmacêuticas (remédios), e seu uso associa-se a uma dimensão institucional
(academias de musculação e ginástica), ligadas ao saber médico ocidental,
ocorre a tendência do senso comum, e dos meios de comunicação em geral, à
generalização de explicações baseadas em premissas biologizantes, ignorando
o aspecto cultural da utilização de tais substâncias. O surgimento do novo uso
de novos produtos que assumem significado muito específico para um
determinado
grupo
social,-
grupo
que
é
construído
e
constrói,
simultaneamente, esse significado -, aponta para o processo de constante
mudança que caracteriza as culturas e sociedades. Mudança, porém, que
atualiza no novo a plenitude do antigo, ao concretizar, através das constantes
estruturas sócio-culturais, novas configurações coletivas variáveis. Portanto, o
consumo de esteróides anabolizantes vem se enquadrando, de forma
específica, nos mesmos parâmetros que configuram o consumo e o tráfico
tradicional de drogas. Com a crescente estigmatização, as substâncias
anabolizantes e androgênicas, em geral, tendem a se articular a atividades
ilegais misturando-se a atividades oficiais de exportação e importação,
apresentando-se como negócio promissor para “aplicadores de capitais
[supostamente] menos éticos” (Ibidem , 1994:88). Também as tradicionais
premissas culturais aplicadas ao uso de drogas dionisíacas têm sido
atualizadas, apresentadas e re-apresentadas, pelo consumo coletivo de
anabolizantes. Para esclarecer esse processo, se faz necessário examinar
melhor o que se denomina aqui uso dionisíaco de drogas, ou o que aqui se
denomina, drogas dionisíacas.
Segundo Nietzsche (1992), a exaltação dionisíaca arrasta o indivíduo, e
sua subjetividade, em direção ao esquecimento de si. Em sociedades
dos aspectos cognitivos da personalidade dos indivíduos”. Esta ele denomina eidos. (1967: 118-176, 22).
79
primitivas, a droga, conjugada à dança e a rituais de cunho religioso, tem sido a
via para a concretização da dimensão extática na qual o indivíduo, principium
individuationis, dissolve-se momentaneamente na coletividade30. Este aspecto,
presente na primeira fase da obra de Nietzsche, foi aprofundado pelos estudos
de Durkheim que postularam a hipótese de um começo efervescente-extático
das religiões. Os estados modificados de consciência, causados pelos usos de
drogas,
relacionados ao êxtase religioso e à procura de libertação
momentânea
da
condição
individual
sempre
estiveram
presentes
em
sociedades simples. Porém, nestas sociedades, especificamente, o uso de
drogas está inserido em contextos institucionais nos quais a tradição do uso
ritual reitera a afirmação das estruturas sociais objetivas e subjetivas. Já nas
sociedades complexas ocidentais e ocidentalizadas o uso de drogas
representa, não raro, a busca de ruptura com tais estruturas, invertendo-as.
Enquanto nas primitivas o uso ritualizado tende a reafirmar os valores
e
práticas culturais, nas complexas este uso opera como linha de fuga e de
rompimento desafiando normas e valores tradicionais e
configurando uso
marginal destas substâncias (Perlonger, 1994).
Pode-se detectar, no caso específico das sociedades ocidentais, durante
os anos 60 e 70 do século XX, a existência destas duas vias acima
mencionadas. É possível perceber o surgimento, neste período, de movimentos
contraculturais libertários que exaltavam a dimensão de uma mística dionisíaca
representativa de uma certa “nostalgia do infinito” (Perlonger, Op. Cit. : 18) ao
buscar dissolver determinados aspectos do individualismo ocidental em
movimentos e aspirações de cunho coletivista. Por outro lado, no cerne deste
mesmo processo, surge simultaneamente, uma espécie de “individualismo
psicologizante-libertário” (Salem, 1991:62) apresentando a impossibilidade da
Também: Velho, 1998:58-60.
30
- Em seu clássico Patterns of Culture, publicado em 1934, Ruth Benedict utiliza as categorias
nietszcheanas de apolíneo e dionisíaco para analisar a variação dos tipos culturais. Benedict ilustrará seu
método estudando de modo comparativo dois modelos culturais contrastados, o dos índios Pueblo do
Novo México, sobretudo os Zuñi (conformistas, tranqüilos, profundamente solidários, respeitadores,
comedidos nas expressões dos sentimentos) e o modelo dos seus vizinhos, os Índios das Planícies entre os
quais os Kwakiutl, (ambiciosos, individualistas, agressivos e até violentos, manifestando uma tendência
para o exagero afetivo). Ela chamará o primeiro tipo de “tipo apolíneo” e os segundo de “tipo dionisíaco”
considerando que estes dois tipos extremos, em maior ou em menor grau, se ligavam a outras culturas e
que entre as duas existiam tipos intermediários (Cuche, 1999: 78)
80
ética moderna se livrar da radical oposição indivíduo/sociedade que a
caracteriza. Os dois tipos de dionisismo, portanto, encaravam as estruturas
sociais tradicionais como cerceando a possibilidade de um horizonte melhor
para a humanidade. Mas suas propostas se diferenciavam, já que enquanto
um
propunha
a
formação
de
novas
estruturas
mais
coletivistas
em
contraposição ao individualismo consumista, o outro concebia como libertação
a supressão, através do esforço individual, das estruturas que oprimiam os
desejos individuais mais profundos. Para essa corrente, o mal–estar presente
na sociedade capitalista estaria representado por qualquer tipo de coerção
exterior. No campo intelectual, tal tendência foi representada pelas teorias de
Wilhelm Reich, A. S. Neill, Herbert Marcuse, entre outros. Percebe-se, então,
que é possível destacar dois tipos de comportamentos dionisíacos que se
apresentavam naquele período da história, um dionisismo coletivista e outro de
cunho individualizante. O uso das drogas que neste momento se propaga e se
concretiza assume significado relacionado a tais posturas. Para os dionisíacos
coletivistas elas representariam a busca por uma socialidade mística,
psicodélica, que dissolveria os ditames individualistas na busca por uma
coletividade superior (hippies). Para os dionisíacos individualistas (junkies) a
droga teria o fim de abrir as percepções individuais ampliando a busca pela
atualização dos desejos, reiterando-os, ampliando-os e otimizando-os. Nesta
última concepção acabar-se-ia por fabricar “linhas de fuga ativas ... [porém,]
que se embaralham, se põem a dar voltas em buracos negros, cada viciado em
seu buraco” (Deleuze,1979 apud.: Perlonger, Idem .). Ao contrário do
xamanismo, por exemplo, esse uso caracteriza, através da busca hedonista e
narcísica da ampliação do desejo, a solidão drogada.
Desta vertente individualizante outra corrente se concretizou e tem
crescido a partir do final da década de 1970 e início dos anos 1980. Com o fim
das utopias coletivistas e individualistas e a consolidação
do império do
mercado, que se realiza mais efetivamente a partir de 1990, surge o uso
generalizado de novas drogas - não apenas dionisíacas como a cocaína, o
crack e o ecstasy -, mas drogas apolíneas (esteróides anabolizantes) que, em
um contexto totalmente diverso, passam a simbolizar
posturas, visões de
81
mundo
e
práticas
sociais
distintas
e,
algumas
vezes,
opostas
às
representações coletivas presentes nas sociedades das décadas de 60 e 70
do século XX. O fim das utopias coletivistas dá início a um individualismo
radical que vê na instrumentalização do corpo e da forma a via de afirmação do
instante e tem na representação social
da saúde a chave para uma nova
utopia do agora. A concepção de saúde-mercadoria, muitas vezes reiterada
pelos usos e abusos da medicina estética, acabam por corroborar com a
transformação do corpo em objeto descartável, pois implantes de orgãos e
próteses diversas confundem a fronteira do que é mineral, máquina, e do que
está vivo (Lévi, 1996). Também o uso do conhecimento científico, no caso
específico o das ciências biológicas e médicas,
coisas, em
traduzido, dentre outras
remédios, suplementos alimentares e vitamínicos por ele
produzidos, serve à composição da poderosa e crescente indústria da saúde
31
,
fornecendo os itens para a construção de um sistema simbólico no qual
dogmas, crenças e substâncias produzem (e são produzidas por) um crescente
comércio-adoração de imagens, formas e juventude. Em uma cultura na qual o
entretenimento, o consumismo e a publicidade tornam-se pilares existenciais, a
espetacularização passa a constituir o cotidiano dos indivíduos preocupados
com seu marketing pessoal. O corpo, além de representar a verdade deste
indivíduo, é também sua vitrine. A imagem por ele exposta pode apresentar-se
como suposta via para o sucesso ou fracasso. Diante do imperativo de
permanecer sempre jovem, forte, magro, bonito e com aparência saudável,
muitas vezes não há hesitação em consumir drogas, exercícios e produtos com
o objetivo de otimizar esta vitrine-máquina que sustenta a esperança individual
da vitória na guerra intermitente pela conquista da felicidade prometida pelo
consumo cotidiano.
31
- Essa indústria é composta por grandes impérios multinacionais de medicina, academias de ginástica, e
musculação e indústrias farmacêuticas, formando uma espécie de nova máquina capitalista que fabrica
não apenas os itens concretos do consumo, mas também aqueles simbólicos, através da propaganda,
alimentando o mercado internacional da adoração à saúde. Um exemplo claro é o do grupo Weider.
Fundado, no final da década de 30 do século XX, por um rapaz de entregas aficcionado por músculos,
Joe Weider, esse grupo teve em 1995 o faturamento de 300 milhões de dólares. Emprega mais de 2000
funcionários, entre eles cientistas, e é, atualmente, a mais poderosa multinacional de bodybulding do
mundo, produzindo máquinas de musculação e pesos, produtos nutricionais, filmes, revistas
especializadas(Flex, Muscle e Fitness, Shape, etc.) e o maior e mais respeitado campeonato de
82
Droga Hierarquizante
A pesquisa sobre os freqüentadores assíduos de academias de
musculação (fisiculturistas ou bodybuilders) pode servir como amostra deste
processo mais amplo de construção do corpo e uso de fármacos que vem se
concretizando na cultura hodierna, já que tal grupo realiza uma espécie de
síntese dos itens acima abordados. Em uma época em que a velocidade
predomina entre as multidões anônimas, o corpo musculoso do fisiculturista
marca presença, destacando-o do anonimato pela sua forma, tamanho e peso,
promovendo o espetáculo da suposta força e hipervirilização radicada na
estética. O bodybuilder pode ser considerado a exemplificação exacerbada das
representações e práticas do corpo presentes em nossas sociedades. Ele se
apresenta não apenas como um laboratório ambulante para os testes de uso
de drogas anabolizantes e seus efeitos, como representa o paroxismo de uma
cultura que tem tido “obsessão pelos invólucros corporais” (Op.Cit.:86). Mas
como se produz socialmente esse ícone de massa muscular?
A construção da identidade de marombeiro ou fisiculturista se realiza por
intermédio de um processo de aprendizagem de socialização no que denomino
campo da musculação. Utilizo a categoria campo em conformidade com a
teoria de Bourdieu. Para o autor, campo se refere aos espaços em que se
manifestam as relações de poder simbólico. O campo se organiza a partir da
distribuição desigual de capitais, sendo que a quantidade de capitais
(econômico, social, cultural ou de competência) que um indivíduo detém
determina sua posição na hierarquia deste campo (Bourdieu,1986). É possível
afirmar que o campo da musculação se insere nos espaços das academias e é
hierarquizado tendo como base determinados papéis que os indivíduos
ocupam. Estes papéis podem ser resumidos em três, no que se refere aos
homens e mulheres. Classifiquei da seguinte maneira os papéis constitutivos
do campo, seguindo a ordem hierárquica dos mesmos. 1) Os fisiculturistas:
senhores do campo, são atletas semi-profissionais ou profissionais que exibem
bodybuilding do mundo, o Mister Olympia, criado pelo próprio Weider, além de ser ele também o
83
musculatura
exercitada,
durante
anos,
até
a
distorção.
Possuem
um
conhecimento efetivo (capital de competência) de como produzir um corpo
musculoso e, em geral, são os que vendem anabolizantes nas academias.
Quando não o fazem, sabem onde conseguir as drogas. Disputam a
legitimidade de seu discurso com os professores de Educação Física que são
formados
em
universidades
e
não
reconhecem
sua
autoridade.
Os
fisiculturistas, por sua vez, também, não costumam reconhecer a autoridade
dos professores dizendo que “o conhecimento deles se resume à teoria”.
Representam, em sua forma física, o modelo de masculinidade hegemônica
ampliada, isto é, são os maiores em
dimensão corporal nas academias.
Exercitam-se pelo prazer de se exercitar. Seu objetivo é o cultivo de músculos
cada vez maiores. São os que mais consomem as drogas masculinizantes e
constituem o menor grupo de status
(Weber,1995) nas academias; 2) Os
veteranos: são indivíduos com massa muscular considerável porém distante
daquela exibida pelos anteriores. É o grupo mediano, constituído por indivíduos
que já têm alguns anos de prática de musculação. Consomem esteróides
esporadicamente e seu objetivo é “manter o corpo bonito”, o que indica uma
espécie de instrumentalização corpórea diferente daquela comum entre os
fisiculturistas que desejam acima de tudo crescer cada vez mais. Os veteranos
seriam o exemplo mais claro da masculinidade hegemônica, pois não são
homens comuns, como a maioria, nem ostentam musculatura
ampliada ao
máximo possível como os fisiculturistas. Segundo as freqüentadoras são os
que possuem o corpo mais bonito, o que lhes confere, ao menos no mercado
sexual, um considerável capital corporal; 3) Os comuns: este é o grupo maior.
Constituído por todas aquelas pessoas sem físico atlético. Neste grupo podem
ser enquadrados os magros, muito magros, os esbeltos, os gordos, gordinhos,
muito gordos, e assim por diante. São a maioria no campo e não desfrutam de
capital de competência e nem capital corporal. Em geral são novatos que
entram nas academias quando o verão se aproxima ou têm pouco tempo de
prática de musculação (Sabino, 2000b).
Em relação aos papéis femininos a hierarquia é parecida. Os papéis são
fundador da Federação Internacional de Bodybuilding presente em 136 países (Courtine, 1995) .
84
os seguintes: 1) As fisiculturistas: seguem o mesmo processo que os homens
na construção de um corpo musculoso. Chamam muita atenção, mesmo nas
academias, pelo seu tipo físico que se assemelha ao de um homem
musculoso. Para conseguirem tal quantidade de músculos consomem muitas
drogas masculinizantes, em maior quantidade até que os homens, além de
terem muitos anos a mais de musculação que estes. Escutei relatos nos quais
diziam que por vezes eram confundidas com travestis masculinos, pois, devido
a testosterona destas drogas, têm pêlos no rosto e voz grossa, além de corpo
masculinizado, com costas largas e ombros amplos. Necessário se faz
ressaltar que apesar desta aparência masculina não percebi qualquer
fisiculturista feminina alegadamente homossexual. Todas que conheci eram
casadas com fisiculturistas homens ou eram namoradas destes. Estas
mulheres, que se assemelham aos homens fisiculturistas, não desempenham,
como eles, um papel ativo no domínio do campo. Em número muito inferior que
os fisiculturistas masculinos, elas limitam-se a acompanhá-los ou ajudar outras
mulheres desempenhando a função de treinadoras particulares eventuais. Os
homens pesquisados disseram não gostar do padrão estético destas mulheres,
da mesma forma que as mulheres, em sua maioria -excetuando-se as
fisiculturistas-, disseram não gostar do excesso de músculos dos fisiculturistas;
2) As veteranas: são as “gostosas” das academias, segundo os pesquisados.
São aquelas que têm “o corpo sarado”, como dizem. Há que ser ressaltado que
estas mulheres são as que “mandam” no campo. Exercem o poder de
dominação na economia das trocas imagéticas, já que ostentam o padrão
estético tido como exemplar pela cultura dominante e veiculado por toda a
indústria cultural. Seu poder, contudo, diferente do masculino, reside totalmente
em sua estética, em sua forma corporal. São invejadas e tidas como modelo
por aquelas que desejam construir forma física ao menos parecida à delas, e
desejadas pelos homens das academias, que não perdem oportunidade de
lhes dedicar toda atenção, quando solicitados ou não. O tipo veterana pode ser
dividido em dois subtipos : a) a magra, que cultiva músculos com menor
intensidade; b) a forte, mais musculosa. As veteranas constroem o papel de
mulheres ativas e independentes que desejam reconhecimento pela sua
85
capacidade profissional, liderando empreendimentos. A beleza entra neste
processo como um item de auxílio à ascensão quando necessário e como um
processo de auto construção de identidade. O “sentir-se bem consigo mesma,
com seu corpo”, é um estado mental muito valorizado que dá sensação de
poder calcado na autonomia. Dentre os inúmeros relatos de veteranas este
pode indicar o que foi dito acima:
“Meu namorado me deu um ultimato: ou eu, ele disse, ou a
academia. Não pensei duas vezes; terminei o namoro de seis
anos. Foi difícil, porque seis anos não são seis dias. Mas a minha
liberdade não tem preço, Eu venho p’ra academia seis vezes por
semana, deixo de comer uma porção de coisas p’ra ficar com o
percentual de gordura baixo e faço isso já tem quatro anos. Fora
os ‘ciclos'. Não vou parar por causa de homem que no fundo quer
aquela mulher que ninguém olha (porque ele tem medo de perder)
e que vai ter filhos e ficar engordando em casa enquanto ele tem
amantes na rua” (Patrícia, 24 anos. Advogada).
O terceiro tipo da hierarquia feminina nas academias de musculação é o
comum que segue, mutatis mutandis, o mesmo processo masculino: são
gordas, gordinhas querendo emagrecer, magérrimas querendo “ganhar massa
muscular” ou mesmo - e aqui já há uma diferenciação em relação aos homens mulheres com o corpo em forma apenas querendo manter seu estado físico.
Outro aspecto deve ser ressaltado em relação às fisiculturistas mais
especificamente. Tais mulheres são o exemplo mais radical de masculinização,
pois consomem em excesso anabolizantes androgênicos a ponto de terem que
fazer barba. Esta busca de construir uma identidade viril, provoca muitas vezes
processo inverso, causando-lhes deterioração da identidade já que passam a
ser estigmatizadas como homossexuais femininas, “sapatão”, ou até mesmo
confundidas com travestis:
“...eu ‘tava muito grande, igual um homem, tava tomando
86
bomba direto... Hemogenin todo dia, Durateston e Testex toda
semana, e malhava feito louca, no mínimo três horas por dia de
domingo a domingo. Me enchia de clara de ovo, tomava 280
claras toda semana, 40 por dia... um dia percebi meu estado.
Estava enlouquecendo, só queria malhar, malhar e malhar, não
me preocupava mais com nada a não ser crescer. Só pensava no
meu corpo... Nenhum cara queria nada comigo, e eu não sou
sapatão... todos me olhavam, porque eu chamava atenção, mas
era porque eu ‘tava estranha... parecendo macho. A gota d’água
foi quando entrei no banheiro d’um shopping e as garotas que
‘tavam lá dentro disseram que ali não era banheiro de homem...
acabaram chamando o segurança...ele veio e disse que era ‘um
absurdo travesti no shopping, ainda mais querendo ir ao
banheiro’.
percebendo
Depois
que
disso,
alguma
entrei
coisa
em
não
depressão...
‘tava
já
certa
‘tava
nessa
história...comecei a fazer terapia...análise... a me cuidar, a tentar
organizar meu corpo ‘tava totalmente doido... não menstruava,
sentia enjôo, não dormia, tive que tomar hormônio... só que agora
feminino... quase morri, porque me dei conta do como eu ‘tava
estranha... só conseguia me relacionar com algumas pessoas da
academia, meu mundo se resumia a essas paredes aqui, mais
nada...(Roberta, 28 anos. Instrutora de musculação).
Esse impacto, causado pelo surgimento de uma espécie de identidade
deteriorada, pode ser percebido no discurso de algumas mulheres fisiculturistas
que ao construírem seu corpo subvertem os códigos de classificação da
sociedade hegemônica. Apresentando-se, fora do contexto dos bodybuilders,
como signo da duplicidade, da ambigüidade, do estranho, elas acabam sendo
cerceadas pela maioria das pessoas, ficando sem papel social reconhecido, ou
melhor, sendo enquadradas em papéis sociais ambíguos. Este processo acaba
por confiná-las ao grupo de amantes dos pesos e da forma, fazendo-as, em
determinadas circunstâncias, perder a identidade, e, conseqüentemente, a
87
aceitação social plena (Goffman, 1982).
Apolo - Rei
Já foi dito que um novo tipo de consumo de drogas vem surgindo. Este
consumo aponta para um ethos ascético com profunda preocupação de
integração
aos
valores
constitutivos da cultura dominante combatidos
anteriormente pelos grupos da contracultura. Neste processo, parece ocorrer,
também, tanto por parte de homens quanto de mulheres, a busca reforçada de
uma ética masculinizante que se rebate, não apenas nas atitudes, nas práticas,
mas, também, no plano simbólico, inscrevendo-se em uma estética corporal
que valoriza a prática do cultivo muscular e hierarquiza a realidade a partir de
valores relacionados a este cultivo. Estes valores, radicados na afirmação
daquilo
que
Connel
(1995)
e
Vale
de
Almeida
(1995)
denominam
masculinidade hegemônica, relacionam-se freqüentemente ao consumo de
drogas específicas associado à prática de exercícios físicos e ao culto do
corpo,
apontando,
possivelmente,
representações sociais
para
o
surgimento
de
"novas"
relacionadas às concepções de saúde, beleza,
sucesso e aceitação social.
O uso de tais substâncias (que no Brasil só devem ser adquiridas com a
apresentação da receita médica, como manda a lei), as quais denomino drogas
apolíneas, coloca, a princípio, seus usuários na categoria de desviantes
(Becker, 1971). Apesar disto, o processo de utilização de tais drogas se realiza
em contextos e visões de mundo diferentes daquelas comumente associadas
aos usuários tradicionais de tóxicos. Os indivíduos que "tomam bombas", como
eles mesmos dizem, têm, em geral, o desejo de integração à cultura
dominante. Seu "desvio" se realiza por intermédio de um processo que se
constitui como tentativa de enquadramento no sistema social dominante.
Processo de construção do corpo onde a forma física apresenta-se como
atitude de não-desvio. A utilização destas drogas proibidas para a construção
de um corpo musculoso se faz não com o objetivo de subversão sistêmica, mas
sim como tentativa de se harmonizar com os padrões estéticos vigentes na
88
cultura dominante, sintonia que possibilite aquisição de status, não apenas no
interior do grupo, mas na sociedade geral. Assim, os marombeiros fogem, ao
menos momentaneamente, do estigma, enquanto incapacidade de aceitação
social (Goffman, Idem ). Estigma que ameaça os usuários tradicionais de
drogas dionisíacas. Isso se realiza porque a estética que os usuários de drogas
apolíneas constroem por intermédio do uso destas não está associada ao
desvio e à marginalidade, embora seu produto de consumo para manutenção
da forma física, de certa forma, esteja. O bodybuilder então é um "desviante"
peculiar, pois não é alguém “visivelmente estigmatizado que prova uma
situação de interação social angustiada” (Ibidem :27). Ele desvia para se
integrar, como, de certa forma, atesta o discurso de um informante fisiculturista:
“...os marombeiros de verdade, os fisiculturistas, não
vão contra a ordem das coisas, contra a natureza. A sua
natureza. Eles apenas fortalecem ela, ajudam ela aumentar
seu potencial para se tornarem seres maiores e mais
fortes. Vencedores. E isso é natural...É isso que a natureza
quer... Os marombeiros não se sentem envergonhados
com seu corpo masculino, têm orgulho dele... isso é
normal! Por isso é que querem manter e aperfeiçoar esse
corpo...Então, é a maior hipocrisia esse negócio de proibir
anabolizante. A maconha, a cocaína, a heroína, vá lá... elas
acabam com o cara... a gente só quer é manter a saúde...
e, se o cara souber usar, ele não vai ter problema nenhum.
Eu uso bomba há 12 anos e nunca tive nada, porque eu me
cuido, sei usar... ilegal, então, deveria ser o implante de
silicone,
dessas
porcarias
que
essas
patricinhas
e
dondocas tão fazendo... também o cara que corta, que
opera o pinto p’ra virar mulher, isso sim é ilegal porque é
anti-natural...” (Bruno, 29 anos. Atleta e segurança).
Este discurso da normalidade indica que o fisiculturista não deseja "fugir
89
do sistema", "viajar" para outra dimensão ou "encontrar uma verdade dentro de
si" como fazem os usuários de drogas dionisíacas. Mas se tornar um
“vencedor” dentro dos parâmetros estabelecidos pela ordem entendida por ele
como natural. Suas representações de saúde e harmonia naturalizam a
construção social que ele faz de seu corpo. Sua viagem - se é que assim pode
ser chamada - é a do esforço para reforçar as normas e os valores da cultura
dominante. Ele, para ser o que é, tem que estar em conformidade com os
padrões estéticos dominantes e buscar otimizá-los, preservando-os ou
aprimorando-os sistematicamente. Suas novas representações e práticas só
são novas se comparadas ao ethos mais acentuadamente hedonista e
desviante peculiar aos usuários das drogas dionisíacas (Velho, 1998). Este
fato, porém, não impede que esporadicamente, ou mesmo freqüentemente,
alguns entre tais indivíduos utilizem drogas dionísiacas.
Até o ano de 1998 as “bombas” podiam ser compradas sem qualquer
tipo de impedimento em farmácias por qualquer um. Com o gradativo aumento
de casos de morte de usuários, além de câncer, falência hepática, entre outros,
noticiados pela imprensa32, afora distúrbios de personalidade, o governo
federal proibiu a venda dessas drogas para pessoas sem autorização médica,
e impôs, mesmo aos médicos, um limite de prescrição aos pacientes, passando
também a combater a entrada no país de anabolizantes importados (art.28
port. 344/98) por reembolso postal e tráfego aéreo, meios utilizados pelo
narcotráfico para burlar a legislação. Já que o consumo encontra-se cada vez
mais limitado por leis que fazem a posse e o uso ou venda dessas drogas um
delito sancionável penalmente, o consumo freqüente de tais substâncias tem
ficado cada vez mais restrito, limitando a distribuição a fontes ilícitas
dificilmente acessíveis às pessoas comuns, além de promover o fortalecimento
de um mercado negro que envolve desde o tráfico internacional até donos de
farmácias que vendem ilegalmente tais substâncias. Desta forma, para que
32
-Em 1995, por exemplo, foi veiculada a notícia da morte do alemão Andreas Münzer, 30 anos, campeão
mundial de fisiculturismo, devido a falência hepática pelo uso de anabolizantes. Em 1998, o fisiculturista
brasileiro Enzo Perondini, 35 anos, foi à imprensa denunciar o tráfico de drogas nas academias dizendo
que estava com câncer de fígado devido o uso contínuo de tais substâncias. Em 1999 a imprensa anunciou
a morte da tri-campeã brasileira de fisiculturismo Lúcia Helena Gomes, 33 anos, também por falência
hepática devido o uso de anabolizantes.
90
alguém possa começar a utilizar "bombas", deve também iniciar sua
participação em um grupo que "se encontra organizado ao redor de uma série
de valores e atividades" (Becker, 1971:65), compartilhando o ethos deste
grupo.
Portanto, a ética ascética dos marombeiros se configura como atitude
peculiar da "geração saúde" fisicalista onde a instrumentalização de
substâncias tóxicas não passa apenas pela busca efetiva do entorpecimento.
Nem todos os freqüentadores de academias de fisiculturismo podem ser
considerados, devido a sua idade, membros exemplares da "geração yuppie"
ou "geração fim do milênio", mas compartilham, em geral, valores radicados na
construção de uma aparência muscularmente “saudável” com todas as suas
conseqüências. Estes indivíduos sustentam um ethos onde há ausência de
utopias sociais,
aceitam a sociedade "tal como ela é", não objetivando
construir nada de diferente do que já existe. Não são politicamente "de
esquerda" como o grupo dos fumantes de maconha e consumidores de
cocaína, "vanguardistas-aristocratizantes", estudados por Velho (1998:186),
nem hedonistas ao modo do grupo de surfistas consumidores de marijuana,
também por ele estudados. São indivíduos que apenas "querem subir na vida"
e conseguir sucesso no que fazem, olhando com total desconfiança atitudes
que não sejam compatíveis com sua ética da disciplina. São pessoas
pragmáticas que não dão muito valor à erudição e sim ao conhecimento prático
que possa trazer retorno financeiro rápido. De fato, há mesmo, entre eles, um
anti-intelectualismo.
Em
geral,
são
profissionais
liberais
(advogados,
administradores, engenheiros, entre outros), estudantes universitários e
secundaristas. Enfim, tais pessoas são representantes de uma classe média
carioca que tem como utopia única a utopia urbana - segundo Velho (1978) de "morar na Barra da Tijuca"33, ostentando o status de “emergente”. Talvez
seja possível afirmar que transitamos da chamada "geração cabeça" da década
de 60 do século XX para a "geração saúde" do início de milênio. Geração que
busca na ostentação da forma a demarcação das diferenças sociais,
33
- De acordo com Velho (1978), Copacabana foi o bairro escolhido pela classe média em ascensão na
década de 1970, representando este bairro na época, a ascensão social ambicionada. Atualmente, o bairro
91
inscrevendo em seu corpo, grosso modo, como os índios Guaiaqui estudados
por Clastres (1989), as visões e divisões de mundo que remetem às relações
de poder e dominação constitutivas da sociedade a qual pertencem.
Entre Apolo e Dionisos
Seria exemplo de ingenuidade acreditar na separação estrita entre os
usuários de drogas dionisíacas e apolíneas incorrendo no erro de confundir o
modelo da realidade com a realidade do modelo. Tais categorias são tipos
ideais não passando de uma acentuação, um exagero, de determinadas
características que não estão presentes de forma pura na realidade social
(Weber, 1995). Portanto, se parecem expressar um binômio estático, isso é um
engano. Tal ilusão é proveniente de serem categorias com limitações
peculiares inerentes à linguagem científica que busca, ao menos nesse caso,
uma aproximação compreensiva de uma realidade sempre dinâmica e por
vezes fugidia. Sendo assim, é necessário ressaltar, por exemplo, que o grupo
de indivíduos classificado como apolíneo não apresenta sempre a conduta aqui
relatada como constituindo tal tipo de socialização. Ocorre, muitas vezes,
trânsito entre o consumo de drogas, o que ressalta o fato de que a divisão
proposta não pode, e não deve ser, estática. Muitos bodybuilders transitam do
uso do Deposteron e da Deca Durabolin, por exemplo, para a cocaína e a
maconha, não apenas com o objetivo de inverter as estruturas, em um ritual
esporádico de contestação estrutural, mas pelo fato de descobrirem que tais
drogas, apesar de suas características entorpecentes, podem, em alguns
casos, ter efeitos relacionados aos fármacos apolíneos, como o emagrecimento
ou a disposição para suportar um período de treinamento pesado. Da mesma
forma, algumas drogas apolíneas podem surtir efeitos contrários como euforia,
estado de alerta e surtos psicóticos. Sintomas denominados na literatura
internacional como “steroid rage” ou, de forma abreviada, ”‘ roid rage” (Fussel,
1991).
O seguintes relatos colhidos durante o trabalho de campo em uma
da Barra da Tijuca exerce este papel na geografia carioca. Não é por acaso que neste bairro existe o maior
92
academia renomada de Copacabana atestam tal interpretação:
“Eu sempre quis ter um corpo perfeito. Malho há
muitos anos. Em 1996 conheci uns caras que me deram
várias dicas sobre como tomar bombas. Fui tomando tudo
que me diziam que era bom para crescer; fiz tudo quanto é
ciclo, tomei todos os esteróides que existem. Comecei a
tomar 1ml por semana. Alguns meses depois comecei a
fazer ciclos completos porque eu queria competir, aí eu
usava quatro tipos de esteróides ao mesmo tempo. Às
vezes eu injetava, às vezes tomava comprimidos. Depois,
como eu queria emagrecer, passei a cheirar; passei a usar
cocaína porque ela inibe minha fome...” (Mário, 28 anos.
Fisiculturista).
Este outro relato é ainda mais esclarecedor:
“Para conquistar um corpo perfeito usei muita coisa
mesmo. Fiz do meu corpo um laboratório. Experimentei de
tudo. Usei todos os esteróides, cocaína, insulina e
maconha. Como eu queria ser um grande fisiculturista
achava que esse era o caminho certo para conseguir
competir com o máximo possível de definição. Aprendi a
tomar bomba, a fazer os ciclos, a usar todos os remédios e
vitaminas para diminuir os efeitos colaterais. Tomei de
tudo; tive hepatite medicamentosa e fiquei careca, [risos].
Mas o pior foi quando descobri que a cocaína fazia a fome
passar... porque quando a gente está em período de preconstest [época de preparação para as competições] a
gente faz de tudo para emagrecer, come peixe cru, passa
fome, usa laxante, bebe água de bateria de carro ao invés
número de academias de musculação da cidade. ( JB.16/05/99.p.3)
93
de água normal...
-
Mas, por que isso?
-
Porque a água de bateria é destilada e então ela não fica
retida no organismo como a água normal que tem sais
minerais. Quando a água fica retida – e é por isso que a
gente não come sal, porque o sal retém água no organismo
– a gente fica sem definição muscular, a aparência fica
meio gorda, só inchada, percebe? (...)
-
E...
-
Pois é, aí fiquei louco para descobrir tudo que me fizesse
emagrecer, porque eu adoro comer doce e tudo que é
comida braba, e, pior, tenho tendência p’ra engordar.
Imagina. Isso é uma tragédia pra quem quer ser
fisiculturista, quer competir: como eu vou manter dieta se
não consigo passar fome? Se não consigo ficar sem comer
doce? Treinava que nem um louco, ficava quatro horas por
dia na academia, às vezes de domingo a domingo sem
descansar e não conseguia uma boa colocação nos
campeonatos. Treinava, treinava e depois comia, pronto! O
trabalho tinha sido todo jogado fora! Aí, conheci um cara
que vendia bomba e que conseguia qualquer coisa:
maconha, pó, tudo! Ele me falou que a cocaína ajudava a
emagrecer porque ele já tinha feito isso. Então passei a
cheirar e foi tiro e queda. Deu certo! Comecei melhorando
logo meu desempenho nas competicões e consegui boas
colocações. Mas eu queria crescer, aumentar massa,
aumentar tamanho p’ra competir na categoria pesopesado. Então reduzi as cheiradas, passei a usar cocaína
só nos períodos pre-contest. Em 99 tirei terceiro lugar
numa competição, porque usei durante três meses antes
de ir p’ro campeonato. Mas, aí eu ‘tava querendo dar uma
parada na coca, porque já ‘tava ficando com medo,
94
comecei a sentir uns troços estranhos, palpitações, sabe?
Então o cara que tinha me indicado o pó me disse que
remédio p’ra diabetes, antiglicêmico, servia p’ra emagrecer.
E dava certo também, toda vez que eu comia qualquer
coisa que não podia comer, eu ia lá e tomava um
comprimido. Aí eu me sentia nas nuvens. O antiglicêmico
impedia que tudo que eu comesse fizesse efeito. Podia
comer tudo que não alterava nada no meu corpo! Mas ao
mesmo tempo que eu ficava feliz naquela hora, porque
sabia que ‘tava tomando um produto que ia manter o meu
shape, eu sabia que aquilo fazia mal também, que eu podia
ficar doente e até morrer. Sei disso. Todo mundo sabe
disso! Então era uma briga na consciência: o troço fazia
bem por um lado e mal por outro. Comecei a ficar
estressado. Era muita coisa na cabeça. Eu tinha que
competir, p’ra competir tinha que treinar profissionalmente,
treinar pesado, muito além das minhas forças, tinha que
me preocupar com os efeitos dos produtos, tinha que
controlar minha compulsão para comer tudo que é proibido
para atleta. Tudo isso me deixava muito irritado, brigava
com todo mundo, perdi três namoradas, saí de casa, criava
problema na academia. Então vi que tinha que ficar calmo.
Um dia fumei maconha! Queimei um baseado e me senti
ótimo! Relaxadão! O estresse passou rapidinho. Me senti
outro. Nos campeonatos, na hora das apresentações no
palco eu ficava outro, tranqüilo, mais solto, desinibido,
relaxado. Passei a fumar todo dia, mas é um círculo
vicioso: a maconha na hora te deixa relaxado, mas ela às
vezes te dá fome, a larica, então tenho que usar os outros
produtos p’ra poder controlar todo o esquema...a maconha
me deixa bem de cabeça, bem psicologicamente para
poder enfrentar os problemas do treinamento... (Daniel, 34
95
anos. Fisiculturista).
Há, nestes casos de uso de entorpecentes por parte de fisiculturistas
e freqüentadores assíduos de academias de musculação, a ausência do
aspecto específico de sociabilidade que os estudos de Velho (1998)
destacaram sobre o consumo de tóxicos por camadas médias urbanas
da zona sul carioca. O que ocorre é um individualismo que
instrumentaliza as drogas – tanto apolíneas quanto dionisíacas - como
meio de otimizar a forma física, por sua vez, instrumentalizando esta
última como veículo de afirmação de status, conquista de parceiros
sexuais em mesmo nível estético e inserção social. Como disse, tais
práticas podem insinuar o surgimento de uma nova dimensão
comportamental relacionada à "geração saúde", fisicalista, do final dos
anos 90 do século XX e início de milênio diretamente associada à classe
média em ascensão e precedida pela "geração dos yuppies" (young
urban professionals) dos anos 80 os quais, assim como esta geração,
desejavam a integração plena ao sistema social como bem sucedidos e
abastados profissionais liberais
Não é possível descartar o aspecto de que os fisiculturistas atuais,
com seu tamanho e muscularidades singulares, apresentem-se (apesar
de uma primeira volição de se integrarem ao sistema dominante, uma
característica física que beira à marginalidade) de forma ambígüa em
relação ao uso de fármacos e drogas em geral. Como Mary Douglas
(1976) ressaltou, tudo o que é profano e marginal é portador de um certo
quantum de poder. Se as drogas dionísiacas são itens profanos para
aqueles que fazem da forma física uma de suas razões de existência,
elas muitas vezes exercem também um certo fascínio sobre tais
indivíduos.
O
álcool,
os
alimentos
gordurosos
e
pesados,
os
refrigerantes e os doces de todos os tipos (comidas proibidas) podem
ser considerados alimentos tabu durante a maior parte do ano para os
fisiculturistas
e freqüentadores assíduos das academias. Porém,
durante festas que poderiam ser consideradas exemplos de rituais de
96
inversão,
tais
alimentos
podem
ser
consumidos
como
uma
demonstração de subversão das regras. Assim, em um aniversário de
alguém no grupo comemorado na academia, não raro pode ocorrer uma
verdadeira orgia alimentar em que são consumidos todos os itens
proibidos durante a maior parte do tempo. Tais acontecimentos
produzem ausências nos treinos nas academias, durante dias, daqueles
fisiculturistas que passam mal devido ao consumo excessivo de tais
alimentos e bebidas. Tal fato é ainda agravado porque o uso constante
de
determinados
esteróides
produz
reações
hepáticas
que,
se
associadas ao consumo de doces e alimentos gordurosos e álcool,
causam “ataques de fígado”, como eles relatam. Da mesma forma que
nessas ocasiões consomem-se alimentos proibidos, em outras acasiões,
também festivas, pode ocorrer o uso de entorpecentes. Uso não
instrumentalizado – com o objetivo de emagrecer ou relaxar – como visto
anteriormente. Contudo, o que marca a singularidade da época atual em
relação ao uso de novas e antigas drogas – ao menos no caso
específico dos fisiculturistas – é justamente a instrumentalização das
drogas dionisíacas direcionadas para a construção da forma. Se, no
passado, eram utilizadas para inverter as estruturas ou mesmo afirmar
uma individualidade libertária, hoje tais aspectos ideológicos perderam o
sentido. O que sobrou resume-se à manifestação de uma prática
instrumental que radica na forma física seu objetivo, seja para aprimorála, seja para relaxar momentaneamente o corpo (preparando-o para
nova carga de exercícios) da busca da manutenção dessa mesma
forma.
97
Capítulo III
“Eu sou corpo e nada mais; a alma é apenas uma palavra que designa uma
parte do corpo...o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade unânime, um
estado de guerra e de paz, um rebanho e seu pastor.”
Nietzsche
Ética e estética do esteróide
Os
fisiculturistas
utilizam
com
regularidade
fármacos
(esteróides
anabolizantes) que poderiam ser denominados drogas masculinizantes, já que
são drogas constituídas, em geral, por hormônios masculinos sintéticos e,
portanto, virilizantes (androgênicos), que proporcionam não apenas a aquisição
de
massa
muscular
acima
da
média,
mas
também
aquisição
das
características sexuais masculinas (surgimento de pêlos por todo corpo, voz
grave, etc)34. Se faz necessário compreender como o uso de tais substâncias
está relacionado à própria visão de mundo deste grupo que apresenta a
tendência para classificar indivíduos em função da sua relação com exercícios
físicos e sua aparência. O uso destas drogas também está relacionado
diretamente à construção ritual da pessoa, além de indicar uma tendência à
hiper virilização da ética e da estética (androlaria) nas instituições de cultivo à
forma física, remetendo, ainda, ao surgimento de um novo tipo de consumo de
novas drogas. Consumo relacionado a representações e práticas opostas mas,
por vezes, também, complementares, àquelas comumente associadas aos
34
- Estas substâncias hormonais são para uso em seres humanos, porém alguns praticantes utilizam
hormônios fabricados para cavalos e para uso veterinário, em geral, como o Equifort e o Androgenol por
acharem mais potentes que as substâncias direcionadas para humanos. Na primeira semana de agosto do
ano de 2000 a imprensa brasileira noticiou a morte do estudante Jean Mendonça de Mesquita, de 23 anos,
lutador de jiu-jitsu que participava de um campeonato no bairro da Tijuca no Rio de Janeiro, devido ao
uso de Potenay uma substância indicada para cavalos anêmicos. O atleta teve infarto quando se preparava
para lutar. Esta substância (Potenay) não é anabolizante, mas indica a tendência, entre os marombeiros, de
usar remédios para cavalos pensando alcançar maior eficácia. O Potenay é uma substância vitamínica
injetável com alto teor de anfetamina podendo causar arritmia cardíaca.
O consumo de produtos para cavalos e animais de grande porte tem aumentado entre os
freqüentadores assíduos das academias de musculação e fitness. Xampus, pomadas, vitaminas, esteróides
anabolizantes e até mesmo rações têm sido consumidos por tais pessoas devido à representação social de
força que tais substâncias portam.
98
consumidores tradicionais de tóxicos35. Pretendo aprofundar a compreensão de
como o uso destas drogas pode indicar não apenas uma tendência de adesão
a uma ética individualista, competitiva e masculinizante, inscrita em uma
estética corporal, mas, também, tentar elaborar uma melhor compreensão da
importância que estes fármacos têm para a construção ritual da identidade
deste grupo, além de destacar as implicações teóricas que este fato social
representa para a análise das atuais sociedades de consumo.
Através da observação participante, ou “participação observante” como
escreveu Waquant (2002), foi possível compreender determinados aspectos do
cotidiano do grupo, como o uso e a venda das drogas citadas, por exemplo,
que seriam impossíveis de serem percebidos apenas com entrevistas,
conversas
ou
observações
etnográficas
superficiais.
Na
observação
participante apresentou-se a nítida percepção da diferença entre o que é dito
pelos informantes e o que é praticado, de fato, por eles (Becker,1971;1994).
Em relação ao consumo de esteróides, por exemplo, raramente os usuários,
quando perguntados por alguém estranho ao contexto, admitem o uso. Dessa
maneira, os dados recolhidos durante o trabalho de campo sugerem haver, em
relação a outros trabalhos que utilizaram surveys, uma quantidade de usuários
que supera os números apresentados em tais surveys (Araujo, Andreolo e
Silva, 2002; Iriart e Andrade, 2002). A pesquisa de Araújo, Andreolo e Silva, por
exemplo, baseou-se em entrevistas com 183 frequentadores de 14 academias
de musculação da cidade de Goiânia. De acordo com o resultado, tais
praticantes de musculação consomem
esteróides e suplementos sendo a
777Creatina o suplemento mais utilizado (24%) e o fármaco denominado Deca
Durabolin o esteróide de maior uso (21%) vindo logo em seguida o Hemogenin
(16%). O consumo maior desses produtos ocorreu em indivíduos com idade
entre 18 e 26 anos (74%) e nível médio de escolaridade (66%). Mais de 70%
usaram tais componentes químicos com o objetivo de ganhar massa muscular.
Os consumidores de esteróides relataram euforia (81%) e aumento de cravos e
35
- Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) tóxicos são substâncias que “acarretam
dependência física e psicológica, tolerância e síndrome da abstinência.” Já droga é definida como
“qualquer substância que, introduzida no organismo, é capaz de alterar seu metabolismo” (Barbosa,
1986:1244). Os esteróides anabolizantes acarretam dependência psicológica e tolerância, além de,
obviamente, alterar o metabolismo orgânico.
99
espinhas (94%) e os consumidores de suplementos aumento de sono (17%).
As pesquisas, em sua maioria, apontam para a ignorância dos pesquisados
sobre os efeitos dessas drogas como o principal fator propiciador do uso.
Em quatro anos e meio de trabalho de campo realizado em 12
academias em bairros de classe média do Rio de Janeiro – da Zona Norte à
Zona Sul – foi possível perceber que a ignorância seria, se não o último, ao
menos um dos últimos elementos que poderia ser considerado causador, ou
mesmo sustentáculo do uso de tais produtos químicos. Foram entrevistadas
310
pessoas
(200
homens
e
110
mulheres) e praticamente todas
demonstraram conhecer os riscos que correm os usuários de tais componentes
químicos. De fato, o conhecimento de tais riscos, ao contrário do que supõem
muitos pesquisadores, é um fator que reitera o uso, posto que o risco surge,
entre o grupo, como algo
positivo que reforça a coragem individual e as
estruturas hierárquicas do próprio grupo, já que usar esteróides é parte de um
ritual contínuo de construção identitária na qual arriscar a vida é fator de
valorização da experiência e reconhecimento social. Reconhecimento ligado ao
status entre tal “tribo urbana”.
Não foram utilizados questionários na pesquisa, porque, conforme dito, o
pesquisador quase tornou-se
parte
do
meio
pesquisado.
Como
dito
anteriormente, as entrevistas foram realizadas de maneira informal durante os
anos de trabalho de campo. Logo após a saída do recinto, as principais
questões surgidas durantes as conversas eram anotadas em um caderno de
campo. Dentre os 200 homens entrevistados, 81% (162 pessoas) disseram já
ter utilizado esteróides anabolizantes. Dos que disseram utilizar esteróides
(muitos dos quais o uso foi observado nas academias), 70% (140 pessoas)
possuíam idade entre 18 e 30 anos, 2% (4 pessoas) idade entre 15 e 18 anos e
9% (18 pessoas) idade entre 30 e 56 anos. 79% (128 pessoas) disseram
utilizar com freqüência aumentando as doses no verão, época de maior
exposição dos corpos. Dentre os 81% que disseram utilizar tais drogas, 58%
(94 pessoas) disseram estar, na época, cursando ou ter cursado universidade.
Das 110 mulheres entrevistadas, 69% (76 pessoas) disseram já ter utilizado
pelo menos uma vez esteróides anabolizantes. Dessas, 30,2% (23 pessoas)
100
disseram utilizar com freqüência, 58% (44 pessoas) apenas no verão. A idade
de 90% das usuárias (99 pessoas) situa-se entre os 16 e 24 anos, sendo 10%
(11 pessoas) entre 25 e 36 anos. Do total de usuárias, 61% (67 pessoas)
disseram freqüentar ou ter freqüentado cursos universitários.
Os principais esteróides anabolizantes – ou “bombas” como são
chamados pelos consumidores - utilizados nas academias pesquisadas foram
os seguintes, com as seguintes funções de acordo com os relatos36:
Deca – Durabolin : (Decanoato de Nandrolona) a mais conhecida e
ingerida pelos bodybuilders nas academias cariocas. É moderadamente
androgênica (capacidade de produzir características masculinas), sendo usada
para ganho de músculos (masssa musucular)
e pré-competição. Alguns
fisiculturistas disseram reter líquidos (ficam com aparência inchada o que
provoca o desaparecimento da definição muscular) com o uso dessa droga. O
que pode ser percebido é que a Deca é utilizada como um esteróide “de base”,
pois é misturada com outras drogas naquilo que os fisiculturistas denominam
ciclos; ou seja: a mistura e o uso crescente ou decrescente de drogas com
objetivos específicos. De todos os esteróides é o que apresenta o menor efeito
colateral, contudo pode ser detectado em exames anti-doping até um ano após
o uso. É encontrado em ampolas de 25mg ou 50 mg. Produzido no Brasil pela
Akzo Nobel Ltda.
Durateston:
(Decanoato
de
Testosterona;
Fenilpropionato
de
Testosterona; Isocaproato de Testosterona e Propionato de Testosterona).
Este esteróide é a soma de quatro compostos de testosterona. A intenção
dessa combinação é de produzir uma ação imediata após a aplicação, e
mantê-la por um período prolongado. É usada para ganho de massa e aumento
de força e peso e quase não retém liquido. Ampolas de 250mg. Também
fabricado no Brasil pela Organon.
Winstrol: (Stanozolol) Esteróide de pouca retenção hídrica, mas com
pequenas
taxas
anabólicas
(“faz
crescer
pouco”,
como
dizem
os
freqüentadores das academias). Por ser considerado fraco pelos usuários, foi
percebido, durante o tempo decorrido da pesquisa, grande uso por parte das
101
mulheres, principalmente mulheres jovens querendo “definir” musculatura, ou
seja, baixar o nível de adiposidade. Esta lógica, fraco = feminino, de certa
forma, reitera as diferenças estruturais contidas nas classificações do grupo.
Esta droga é importada da Espanha e produzida pelo laboratório Zambon.
Hemogenin: (Oximetolona). Tida como a mais perigosa de todas as
drogas conhecidas entre os fisiculturistas. Mesmo assim é muito usada, pois
ocasiona um rápido ganho de força e volume muscular, porém apresenta a
tendência de produzir rápida toxidade hepática, hipertensão e câncer.
Deposteron: (Cipionato de Testosterona)
Droga com alto potencial
androgênico promovendo ganho rápido de força e volume muscular, porém
com perda rápida desses mesmos itens assim que passam os efeitos de seu
uso. De acordo com os relatos é a maior responsável pelo surgimento de
ginecomastia entre os bodybuilders. Também apresenta alta retenção hídrica e
provoca aumento da pressão arterial além de atrofiar os testículos dos
usuários. É produzido no Brasil pela Organon.
Equipoise: (Undecilenato de Baldenona) É de uso exclusivo veterinário,
porém os fisiculturistas utilizam com freqüência para o aumento rápido da
massa muscular e força. Em geral os fisiculturistas utilizam essa droga
misturada à Deca Durabolin ou ao Durateston para aumentar o efeito
anabolizante. A apresentação é em caixas com 6 ampolas de 2ml cada. É uma
droga produzida na Itália pela LPB Pharmaceuticals.
Equifort: (Undecilenato de Baldenona) Tem a mesma composição do
Equipoise e é para o uso exclusivo de eqüinos com problemas de distrofia
muscular, osteoporose, anemia aplástica, coquexia e anorexia. Dizem os
usuários que tal droga apresenta baixa probabilidade de causar ginecomastia.
É produzida pela Bayer.
Androgenol : (Propionato de Testosterona) Outro esteróide para o uso
de eqüinos com deficiência de hormônio sexual masculino. Há entre muitos
fisiculturistas a concepção de que tais drogas, sendo veterinárias, (para
cavalos), têm uma ação “mais forte” que a das drogas para humanos; o que
parece ser uma concepção equivocada, pois os hormônios são os mesmos.
36
- É importante ressaltar que os efeitos descritos aqui são aqueles relatados pelos fisiculturistas e não os
102
O uso de esteróides além de causar acnes, calvície, problemas
cardíacos (infarto do miocárdio), hipertensão arterial, complicações hepáticas,
câncer, aumento de mamas nos homens, atrofia testicular, diminuição da
produção de espermatozóides e diminuição dos hormônios sexuais – e
conseqüentemente da libido -, também provoca distúrbios psicológicos (‘ roid
rages como denominam os pesquisadores americanos) como agressividade e
paranóia. Nas mulheres provoca também atrofia do útero e das mamas,
virilização, como alteração na voz (voz grave), crescimento do clitóris,
suspensão dos ciclos menstruais e crescimento excessivo de pêlos. Como foi
dito, a maioria dos usuários tem pleno conhecimento das conseqüências dos
uso de esteróides anabolizantes – ao contrário do que supõem alguns
pesquisadores.
O fato é que a maior parte dos sintomas acima descritos demoram
alguns anos a aparecer. O que leva a maioria dos jovens a pensar que vale a
pena arriscar para ter um corpo socialmente aceito e símbolo de status e
sucesso agora, no presente:
“Ah, cara, tenho 20 anos, se quando eu tiver trinta, trinta e
dois, eu tiver doente, foda-se... isso é um risco. A vida é isso:
temos que correr riscos, certo?, se quisermos conseguir as
coisas... eu não vou é ficar feio, gordo, sem pegar ninguém,
apanhando dos outros, sem conseguir emprego, sem ser
respeitado agora, esperando chegar aos 30, 40 com saúde... e se
eu não chegar lá, e se eu morrer de tiro na rua, com tanto assalto
e briga que tem por aí... se eu for atropelado? Entendeu? Então
eu uso bomba mesmo e que se dane o mundo!” (Pedro. 20 anos.
Estudante)
ainda:
“(...) de que adianta viver muito e ser um fracassado? Um
infeliz que não pega mulher, não consegue ser respeitado, não
consegue se olhar no espelho? É melhor viver pouco e feliz do
que constam nas bulas de tais medicamentos, os quais não foram criados para o propósito destes atletas .
103
que muito e desgraçado. Se o diabo aparecesse para mim e
dissesse: ‘cara, vou te dar tudo que você quiser, mas vou deixar
você viver só mais dez anos’ eu ia topar na hora! (Mario. 27 anos.
Personal Trainner)
também:
“Bom, no verão eu malho muito mais e tomo uns produtos
aí... tenho que ficar gostosa! A mulher não pode se descuidar, a
concorrência é muito grande. Tem que ‘tá gostosona, sarada, com
tudo em cima, sem celulite, com a barriga sequinha se quiser
arrumar alguém, se quiser ficar com alguém ... homem está
escasso no mercado (risos). Se a mulher não ‘tiver legal ela fica
até deprimida, não dá nem p’ra botar um biquini. Cê já foi à praia
do Pepê? Só tem mulherão lá, então não dá, né? Se quiser
concorrer, se quiser freqüentar os locais legais com gente bonita,
a mulher também tem que ’tá bonita, no esquema...” (Angela. 18
anos. Estudante).
outro:
“comecei a tomar bomba quando tinha 17 anos, porque
entrei na academia e um marombeiro disse que eu tinha uma
estrutura excelente para o fisiculturismo, que eu ia ficar enorme e
definido muito rápido e que se eu quisesse ele podia me treinar,
então comecei a treinar com ele todo dia a partir das 9 da manhã,
já na terceira semana ele me trouxe Deca e Durateston. Tomei e
comecei a crescer, em dois meses consegui ganhar quase 10
quilos de massa seca! Logo comecei a competir, então não tem
jeito. É impossível alguém ser atleta hoje sem tomar bomba, e
não é só no culturismo não, isso é em tudo quanto é esporte. É
impossível! Não existe um atleta profissional que não tome bomba
de vez em quando. (Mário. 29 anos. Instrutor de musculação).
Fussel (1998) escreveu que os bodybuilders não nascem, são
fabricados. Tal fabricação demora anos. No caso de atletas, de oito a dez anos.
104
Quando se trata de amadores, dois ou três anos já bastam para um corpo
recoberto por couraça muscular aparecer. São quatro horas diárias de
exercícios, duas horas pela manhã, duas à noite; seis dias por semana – entre
amadores três horas diárias já produz o efeito desejado. Nesse processo
surgem lesões por esforço repetitivo levando a cirurgias nos ombros, joelhos;
bursites,
tendinites,
artrites,
hepatite
medicamentosa,
hipertensão,
ginecomastia, dores de cabeça e outros problemas associados ao uso
prolongado de drogas. No esforço de fabricação da forma as drogas exercem
papel crucial. Para melhorar o desempenho nas academias não só as
substâncias acima descritas são utilizadas mas também todos outros tipos de
hormônios: HGH (hormônio do crescimento humano), hormônios para a
tireóide, hormônios femininos, além de anfetaminas, remédios para asma, com
o objetivo de acelerar o metabolismo e fazer o indivíduo emagrecer
(Clenbuterol), diuréticos e até mesmo cocaína e maconha. A primeira – cocaína
- para conferir ânimo e “ajudar a emagrecer” a segunda – maconha - para
“relaxar após o treino”.
Após meses de treino pesado, quando o verão está próximo, e, não raro,
as competições, os fisiculturistas começam dietas radicais com o objetivo de
alcançar maior definição muscular. Através do uso de diuréticos, esteróides,
aceleradores de metabolismo (Clenbuterol e Efedrina) e consumo de água
destilada, associado à suspensão da ingestão de sal, carboidratos e todo tipo
de gorduras, a pele dos bodybuilders torna-se fina como o papel-bíblia,
deixando transparecer cada fibra muscular rodeada pelas veias. Nesse período
é muito comum ocorrerem desmaios nas academias. Também, durante as
competições, não é raro perceber nos bastidores, indivíduos com o nariz
sangrando, com ânsias de vômito e tendo desmaios. A dimensão simbólica
desse fato não pode ser desprezada. A dor e o sofrimento aparecem neste
contexto, como dito anteriormente, para reiterar as estruturas do grupo
conferindo autoridade e destaque àqueles que revivem sempre o cálvario da
adoração muscular. Os riscos são recompensas a serem colecionadas e
guardadas; representam barreiras superadas, ascensão, ao menos simbólica,
no crescente mundo do fisiculturismo e das academias. Significa aquisição de
105
respeito entre os neófitos e entre os pares. Corpo e alma são assim
indissociáveis. Produzidos pela prática e na prática social, forjados pelas ações
e aspirações de uma nova época. O esteróide anabolizante está para os
freqüentadores assíduos de academias de musculação e fisiculturistas como a
maconha – chamada de Kaia – está para os rastafaris, ou o chá de ayuasca
para os fiéis do Santo Daime37. A própria construção identitária do indivíduo no
grupo está associada ao uso contínuo ou esporádico de esteróides; e mesmo o
risco de vida que eles apresentam contribui para a valorização do ritual de
construção identitária. De fato, muito mais do que cultivar músculos, sobrehumanos, os fisiculturistas cultivam uma ética representativa da nossa era: O
indivíduo deve estar disposto a pagar o máximo para atingir seus objetivos; o
indivíduo deve ser livre para se projetar e construir seu destino; o indivíduo
deve possuir autonomia para construir seu corpo, subjugando-o a sua mente;
o indivíduo deve submeter e enquadrar a matéria aos ditames da razão
instrumental.
Além dos aspectos relacionados aos preceitos subjetivos e objetivos do
campo das academias de musculação e fisiculturismo, talvez existam outros
fatores sociais que contribuam para o crescente consumo de fármacos entre os
freqüentadores dessas instituições. Um deles está no hábito comum em nossas
sociedades de ingerir substâncias farmacológicas como meio de resolver, ou
ao menos minorar, as dificuldades da vida. Haveria, conforme Nascimento
(2003), um condicionamento das pessoas aos medicamentos fazendo com que
os indivíduos, ainda bebês, sejam tratados com xaropes, sedativos e gotinhas
neurolépticas. As frustações experimentadas tendem a ter uma contrapartida
nos fármacos consumidos. A pessoa cresceria, de acordo com esse ponto de
37
- Como vem indicando a mídia esportiva parece que tal processo tem se extendido para outros esportes,
principalmente os profissionais. Assim, por exemplo, a matéria publicada na revista Carta Capital de 18
de fevereiro de 2004 sugere que o futuro dos esportes está no interior dos tubos de ensaio e nas cobaias
transgênicas. Há que se destacar que testes anti-doping não são realizados, ao menos até o momento, em
campeonatos de fisiculturismo, entre os jogadores de rugby e nem entre os atletas do basquete norteamericano (NBA). Justamente estes esportes têm sido apontados como exemplo de mutação muscular
sofrida por seus atletas nos últimos 20 anos. Segundo a matéria da revista: “qualquer um que tenha visto
alguns minutos de jogos antigos – de cerca de 20 anos atrás – do basquete profissional americano, ficaria
impressionado com a evolução do físico dos jogadores. Hoje, os jogadores da NBA são mais pesados e
notavelmente mais musculosos. O jogo é jogado de acordo com a estética do esteróide. O que antes era
um esporte gracioso e geométrico- atletas procurando espaços abertos, pensando em termos de ângulos de
106
vista, condicionada a buscar resolver seus problemas e angústias com
substâncias farmacológicas, bebidas alcóolicas ou outros tipos de drogas. O
modelo estaria, portanto, na própria família condicionando a vida dos indivíduos
desde a sua tenra infância. De acordo com a autora: “as pessoas tendem a
procurar na medicina as soluções para grande parte de seus problemas e
limitações. Buscam em medicamentos e drogas mudar o seu temperamento, a
sua personalidade, o seu estado de espírito” (:137). Essa banalização do
consumo de drogas, farmacêuticas ou não, teria como argumento central o
período
turbulento
pelo
qual
as
sociedades
globalizadas
estariam
atravessando, e a correlata diminuição da resistência das pessoas em tolerar o
acirramento de pressões. Haveria um mal-estar coletivo que afetaria
principalmente as populações dos grandes centros urbanos
Produto, em grande parte, do capitalismo globalizado, esta espécie de
síndrome coletiva apresentaria também
raízes culturais. Luz (1997:18)
argumenta que transformações recentes observadas na cultura estariam
propiciando a “perda de valores humanos milenares nos planos da ética, da
política, da convivência social e mesmo da sexualidade, em proveito da
valorização do indivíduo, do consumismo, da busca de poder sobre outro e do
prazer imediato a qualquer preço como fontes de consideração e status social”.
Radicada nos meios de comunicação de massa, essa mudança de valores se
traduz em “incertezas e apreensão quanto ao como se conduzir
e ao que
pensar e sentir em relação a temas básicos como sexualidade, família, nação,
trabalho, futuro como fruto de uma vida planejada etc.” Nessa sociedade de
risco e de desencaixes (Beck, 1996; Giddens, 1991) a busca de uma válvula de
escape, que possa estar inserida no consumo, reproduzindo-o, toma vulto
como parte significativa da existência de um número significativo de indivíduos.
Assim, o uso de drogas e fármacos em geral – que Duarte (1999:22) denomina
“medicamentalização”
-
seria
uma
das
respostas
a
esse
mal-estar
generalizado. Para os consumidores, elas agiriam como uma defesa frente às
agressões
impostas pelo estilo de vida contemporâneo.
A decisão de
consumí-las seria o resultado de uma fatalística e ilusória escolha entre droga e
passes – é agora primariamente dominado pela agressão; os jogadores gravitam no mesmo espaço e
107
tensão, formando um trágico círculo vicioso. Nesse movimento de consumo, as
pessoas tenderiam a procurar nas drogas as “soluções” para grande parte de
seus problemas e limitações. Buscariam mudar sua inserção social, seu
comportamento, sua forma física, personalidade e estado de espírito. Na
esteira dessa tendência, a indústria farmacêutica – afora a das drogas
efetivamente ilegais e a indústria de suplementos alimentares que funciona
com a mesma lógica do lucro crescente - amplia seu mercado gradativamente,
recorrendo à forte difusão de informações, com argumentos sedutores para
vender a idéia de que seus produtos promovem a alegria de viver e a saúde. A
cada novo lançamento de produto, estratégias de marketing são direcionadas
aos profissionais da saúde e da estética que exploram a insegurança e os
desejos dos consumidores. Tal fato provoca o aumento gradativo do uso de
tais substâncias entre os freqüentadores de academias e consultórios
(Nascimento, 2003). O já clássico estudo de Dupuy e Karsenty (1979) sobre o
poder dos fármacos esclarece tal processo:
“o medicamento aparece verdadeiramente como um objeto
mágico. A magia consiste, na realidade, em atuar sobre alguma
coisa, dominá-la, atuando sobre um sinal desta coisa. É, de fato, o
que se observa com o medicamento: o sujeito que toma um
produto na intenção de atuar sobre seus sintomas, sinais de sua
fragilidade e de sua condição mortal, tem a ilusão de agir sobre
estas últimas e de dominá-las. Pode, assim, encontrar um
sentimento de segurança sempre que ameaçado. Em nossas
sociedades, onde a técnica é considerada como suscetível de
resolver todos os problemas, os instrumentos de dominação
mágica do mundo que encontramos nas sociedades ditas
‘primitivas’
foram
substituídos
por
objetos
técnicos.
O
medicamento é um deles” (: 191. Grifo nosso).
Assim, a fragilidade e a condição mortal refletida, de imediato, no
processo inexorável de envelhecimento abrem uma possível via de atuação
tentam passar por cima um do outro” (:36).
108
dos
empreendimentos
consumistas
exacerbados
e
reproduzidos
pela
publicidade que exerce papel efetivo, não apenas na construção da identidade
dos freqüentadores assíduos de academias de ginástica e musculação, mas no
cotidiano de milhões de pessoas que são levadas pelos discursos
especializados a procurarem um produto que lhes garanta a saúde, entendida,
não raro, como boa forma e juventude.
Os meios de comunicação, ao mesmo tempo que veiculam e fazem
propagandas dos últimos padrões estéticos em voga, vêm anunciando a
gradativa
transformação
dos
corpos
nas
últimas
décadas.
Periódicos
estampam não apenas fotos das mulheres consideradas as atuais beldades
paradigmáticas, mas trazem também matérias que acusam algumas dessas
mulheres – principalmente entre as famosas formadoras de opinião: atrizes e
modelos – de estarem perdendo uma das principais características do que tem
sido considerado feminilidade em nossa cultura: a cintura; retratando uma
tendência estética fisicalista presente na sociedade atual perpassada pelos
ideais da prática diária de musculação e exercícios para emagrecer conjugados
com dietas, consumo de suplementos alimentares e esteróides. Esforço
individual e coletivo justificado pela propaganda da forma, realizada pelos
ícones da indústria cultural que (re)produzem, e são produzidos por, conjuntos
de representações sociais sobre estética, saúde e boa forma. Tal “imposição”
sócio-cultural da forma física, tem levado ao surgimento de um novo tipo de
consumo de novas drogas e ao fortalecimento da indústria da manutenção da
aparência física. Inúmeros estudos científicos vêm apontando para as
influências culturais produtoras de variações morfológicas em determinados
grupos sociais. McCreary e Sasse (2000) ressaltam que modelos de revistas,
comerciais de TV, atrizes e personalidades em geral, veiculam, implícita e
explicitamente, a concepção de que as mulheres de sucesso devem ser mais
magras, musculosas, exercitadas e submetidas constantemente a dietas.
Escrevendo sobre a crescente obsessão entre mulheres pela aquisição de um
corpo ideal, os autores indicam que até mesmo bonecas têm reforçado a
adoção de um padrão estético fora da realidade. Estudando esta influência
demonstraram que o perfil corporal da Barbie atual, sua constituição física,
109
apresenta significativa distorção, pois se tal modelo fosse transposto para a
realidade, a probabilidade de uma mulher real apresentar tal corpo seria de 1
em 100.000. Ressaltam que o mesmo ocorre com os chamados bonecos de
ação direcionados para os meninos. Tais brinquedos ostentam musculatura
hipertrofiada conjugada, supostamente, a um percentual de gordura baixíssimo,
impossível, ainda, de ser adquirido até mesmo pelos mais destacados
campeões de fisiculturismo profissional do mundo atual, em épocas de
competições (Pope, Olivardia & Phillips, 2000). Essa muscularidade e magreza
(baixo percentual de adiposidade, alto percentual de massa muscular) acaba
significando, em nossa cultura, sinais de positividade, levando número
significativo de homens e mulheres adultos e adolescentes ao consumo de
esteróides anabolizantes, outros hormônios e produtos em busca da forma
física ideal, concebida como a chave para a aceitação e ascensão social, enfim
para o sucesso ( Del Priore, 2000).
No dia 18 de Fevereiro de 2001, um dos jornais de maior circulação do
país (O Globo) veiculou matéria apontando o fato de que a modelagem das
grifes nacionais está diminuindo cada vez mais, tentando obrigar mulheres
mais roliças ou “com corpo violão” a se enquadrarem nos padrões morfológicos
atuais que primam pela aparência magra ou musculosa da atual ditadura da
moda. Perguntados sobre essa tendência, os donos de grifes e costureiros
alegam que é uma onda mundial e que “a mulher magra e longilínea fica
sempre mais elegante.” Em outra matéria, no mesmo periódico, sobre o
carnaval carioca e sua tradicional exposição de corpos nus na mídia, foi
abordado tema parecido: algumas mulheres-ícones na mídia brasileira
(consideradas padrões de beleza) estão cada vez mais perto do modelo
estético masculino devido ao constante uso de hormônios androgênicos e
próteses de silicone, o que as leva a se parecerem cada vez mais com travestis
devido a quantidade de músculos e baixa porcentagem de adiposidade:
“[algumas] mulheres conseguiram finalmente perder a feminilidade. Estão com
pernas de jogador de futebol, braços de estivadores, barrigas de tanque de
lavar roupa e, de tanto tomar ‘bomba’ para secar a gordura [e aumentar a
110
massa muscular], estão parecendo uma drags. É a vitória dos travestis...”
38
.
Não se trata aqui de tomar a doxa midiática como padrão de conhecimento
sociológico, mas de levar em conta o surgimento de novas tendências e
posturas sociais que a mídia expressa. No caso específico, tais matérias são
sugestivas, pois esboçam uma tendência ética (e, obviamente estética)
presente na atualidade que denominei anteriormente androlatria: adoração,
tanto por parte de homens quanto de mulheres, dos princípios morais e éticos
constitutivos da masculinidade hegemônica39, considerados como símbolos de
superioridade e sucesso econômico e social (Sabino 2000a; 2000b; 2002;
2003). O esforço para transformar o corpo em uma espécie de display que
ostenta a volição da eterna juventude, saúde, força e beleza - leia-se tais itens
como músculos e/ou baixa porcentagem de adiposidade - pode ser o indício do
surgimento de uma nova forma de dominação radicada em novos dispositivos
de poder atuantes na sociedade atual. Além de representar também a
efetivação de tendências racionalistas e disciplinares, a princípio, constitutivas
da cultura ocidental (Luz,1988; Foucault, 1993; Weber,1995; Rabinow,1999), e
que
atualmente
parecem
espalhar-se pelo mundo globalizado. Nesse
movimento de apologia ao músculo, o fisiculturismo representaria a síntese
perfeita das tendências somatófilas vigentes.
Do Ascetismo ao Hedonismo
A utilização de esteróides anabolizantes e androgênicos como via de
mudança corporal e construção de identidade em academias de fisiculturismo
é um exemplo de racionalização prática ligada à disciplina corporal. Segundo
Foucault, o crescimento do saber organizado coincide com a ampliação da
extensão das relações de poder, especialmente com a prática do controle
sobre os corpos no espaço social. Desenvolvendo estudos sobre o surgimento
38
- O Globo. Caderno Ela. Sábado 03/03/2001. P. 4.
- Segundo Kimmel (1998), não existe apenas um tipo de masculinidade, mas várias, subordinadas à
representação do que é ser homem bem sucedido (e, portanto, de fato) em nossas sociedades: forte,
competitivo, destacado, bem situado economicamente, resistente à dor física e emocional, viril e que
jamais foge dos desafios. Aqueles homens que não se enquadram nestes parâmetros fariam parte de
39
111
do conhecimento criminológico e seu controle sobre o corpo do delinqüente no
espaço social da penitenciária, o autor apresenta o esquema do panótico de
Bentham
como
o
modelo
posteriormente
adotado
pelas
instituições
disciplinares (escolas, exércitos, hospitais e fábricas), para a elaboração
funcional de “corpos dóceis”, adaptados a então nova conformação de poder
das sociedades européias. Nesse processo, o surgimento da medicina clínica e
da psiquiatria científica coincidiram com o desenvolvimento institucional da
arquitetura dos hospitais, das fábricas e dos manicômios nos quais os corpos
desregrados foram submetidos a uma crescente disciplinarização. Seguindo
este raciocínio, torna-se possível perceber que a organização de determinadas
disciplinas como a demografia, a geografia, a saúde pública, a sociologia, e
outras, podem ter representado um possível fortalecimento do controle social
dos corpos no espaço urbano (Foucault, 1988; 1993; Turner, 1990; Deleuze,
1995; Rabinow,1999; Maia, 2003).
Os estudos de Foucault sugerem – ao contrário da tradição platônica,
para a qual o conhecimento seria o caminho para a supressão da suposta
condição cativa do ser humano aos ditames da natureza (Platão, 1996) - que
os avanços do conhecimento não levam necessariamente à libertação
irremediável dos indivíduos e de seus corpos do controle e da coerção
externos, mas podem significar a intensificação de novas tecnologias de
regulação social (Deleuze, Idem ). Porém, não se deve pensar tal saber-poder
como algo nefasto e coercitivo, sempre negativo e opressor, mas também
como força produtora da realidade social e individual.
É possível perceber o processo de gradativa administração corporal que
se afigura a partir do século XVIII, e que retrata a utilização das tecnologias
disciplinares (dos saberes administrativos aplicados aos corpos), como
empenhadas em aprimorar tais corpos para o uso e adequação à ética
religiosa. Como exemplo de trabalho sobre esse processo de racionalização,
Bryan Turner (Op. Cit), por exemplo, escreve sobre o discurso da dieta
indicando que esta era um componente básico referido tanto à medicina quanto
à religião – como forma de, por um lado, evitar doenças relacionadas ao
masculinidades secundárias, periféricas e subordinadas. Não seriam, assim,
neste conjunto de
112
consumo de alimentos considerados prejudiciais, e, por outro, evitar aqueles
alimentos que também eram considerados estimuladores da libido e
perturbadores do bom funcionamento espiritual geral. Medicina e ética religiosa
estavam, portanto, diretamente associadas. O tratamento do corpo era uma via
para o aprimoramento religioso do espírito. Assim, o ascetismo que
gradativamente toma conta das instituições seculares, escolas, fábricas,
hospital e prisão, é antecipado pelo ascetismo dos monastérios nos quais os
corpos, durante séculos, foram subordinados à disciplina cotidiana.
Os tratados sobre administração dietética combinados com a exortação
religiosa
tornaram-se populares nos séculos XVII e XVIII. Os “regimes”
associados à dieta médica conformaram um perfil específico de administração
do corpo. A dieta conjugada com exercícios ao ar livre apresenta-se no cenário
das sociedades européias como uma solução proposta pelos médicos às
desordens físicas e espirituais (Weber, 1981; Synnott, 1993). A sobriedade à
mesa, relacionada à dietética, refletir-se-ia sobre uma vida regrada e ascética
como meio de alcançar a bem aventurança. Segundo Cornaro, um médico
religioso do século XVIII, a dieta produzia benefícios tais como : estabilidade
mental e controle das paixões, levando à temperança e à sobriedade visto que
as paixões violentas eram consideradas as principais produtoras das doenças
tanto orgânicas como sociais. A dieta, portanto, era percebida como uma
defesa contra as tentações da carne e uma arma para o aprimoramento
espiritual
(Cornaro,1776
apud.: Turner, Idem ). Esse discurso médico,
perpassado de religiosidade ascética, estenderá seus domínios para a então
nascente Saúde Pública que se consolidará no século XIX e que terá nas
disciplinas denominadas Nutrição e Demografia seus pilares principais40. O
representações e práticas sociais, considerados homens plenos.
40
- É importante notar como tal postura ascética já encontrava-se presente nos monastérios medievais. O
consumo de carne em grande quantidade pela nobreza guerreira é atestado pelos historiadores que
ressaltam o fato deste consumo simbolizar força, poder e proximidade com a natureza : “a carne ...tem...
um papel importante na alimentação dos poderosos... a força é identificada à carne [e] também à
quantidade de alimento que se come...a habilidade para comer mais rápido do que os outros é um sinal de
nobreza”. Pelo fato de a carne representar a secularidade os monges buscavam, ao contrário dos nobres,
comer moderadamente evitando a presença da mesma em suas refeições: “ a renúncia à carne – sinal de
violência e morte, símbolo da natureza física e da sexualidade – é uma constante na espiritualidade
monástica desde a origem da experiência cristã” (Montanari, 1998: 294, 298). Mas, também é necessário
destacar que na maioria das sociedades complexas há tradicionalmente maior consumo de vegetais do que
de carne. Segundo o historiador Henrique Carneiro (2003: 63) “à exceção da Europa, praticamente todas
113
adoecimento passa a ser entendido como conseqüência do abuso individual e
do desregramento sanitário e as classes baixas, a região, par excellence, da
doença. Tais classes, segundo a concepção em voga na época, seriam
incapazes de compreenderem e se adequarem plenamente aos avanços do
verdadeiro conhecimento científico proveniente das insurgentes instituições
disciplinares, e, por isso mesmo, necessitariam da intervenção efetiva do
Estado em seu cotidiano.
Com a passagem do capitalismo mercantil para o industrial, o corpo
apresenta-se-á como corpo trabalhador e, em sua forma, estará inscrita o
conteúdo de uma nova administração da vida social. O discursos dietético e
dos exercícios, embora ainda com conotações morais, tomarão perfil científico,
modulando o aspecto religioso
direcionando-se ao laico. O corpo será
chamado a expressar novas demandas surgidas em novos contextos sociais,
econômicos, políticos, culturais e eróticos. A biologia, e toda ciência em geral,
fornecerá a base necessária para a construção do corpo calcado na
sexualidade (Laqueur, 1994). A ciência da nutrição, amparada nos estudos
sobre a entropia relativos à termodinâmica41, passa a elaborar a mensuração
dos efeitos das perdas e aquisições de calorias aplicadas ao aprimoramento da
força dos soldados e da administração carcerária. Busca-se a combinação de
uma dieta mínima com a máxima produção de energia, e isto será largamente
aplicado à administração da força de trabalho, provedora de força muscular
para o então capitalismo industrial emergente (Turner, Ibidem; Featherstone,
1990; Sant’ Anna,1994; 1995; Rodrigues,1999; Del Priore, 2000). O corpo,
nessa sociedade industrial, passa agora a ser informado não mais pela
as civilizações foram essencialmente alimentadas por vegetais”, porém o autor destaca que, mesmo
nestas, ocorria consumo de carne restrito às elites.
41
- Os estudos da termodinâmica, iniciados no século XIX, introduziram nova abordagem na Física que
até então baseava-se na concepção newtoniana de que qualquer estado de um sistema mecânico poderia,
ao menos teoricamente, ser bidirecionalmente reversível desde que se soubesse as trajetórias e as
velocidades dos corpos constituintes do mesmo. Neste sentido, o tempo seria reversível, pois qualquer
trajetória de qualquer corpo poderia ser retraçada em uma ou em outra direção. Com a entropia, grosso
modo, perda de energia no sistema, introduz-se uma diferença irreversível entre os estados deste mesmo
sistema – este passa a ter princípio e fim, que não são intercambiáveis e indiferentes entre si. Com tal
irreversibilidade dos sistemas, introduz-se na ciência a noção de “flecha do tempo”; o que inviabiliza,
portanto, uma série de explicações de fenômenos através da ótica da simples causalidade mecânica,
necessitando-se da adoção de modelos probabilísticos, para sua descrição científica. A medicina e as
disciplinas ligadas à saúde vão adotar tal descoberta em sua forma de representar o corpo humano.
(Camargo Jr., 1993).
114
sobriedade religiosa, mas pelas tabelas de calorias e proteínas e pelas regras
dos exercícios de otimização da força. A moral passando a radicar-se
empiricamente na mensuração da aquisição e perda das energias e da
aplicação destas em instituições disciplinares. Ocorre, portanto, uma espécie
de domesticação física na qual a racionalização progressiva das práticas e
discursos passa a atuar sobre o corpo relacionando-o às necessidades sociais
que se apresentam a este mesmo corpo e à força que ele porta e suporta
(Elias,1990; Elias e Dunning, 1994).
A partir do início do século XIX, as tecnologias simbólicas utilizadas
pelos religiosos passam a ser articuladas com o objetivo laico de produzir bens
para o consumo. Esta insurgente sociedade de consumo preocupa-se, agora,
em preservar o corpo enquanto instrumento não apenas de trabalho, mas
também de lazer. O corpo passa a ser visto como uma ferramenta a ser
preservada, otimizada, administrada; e o indivíduo torna-se o responsável
perante esta sociedade pela manutenção dessa ferramenta. Ele deve
coordenar sua saúde, aparência, higiene. E deve divertir-se. A moral individual
transforma-se em reflexo desse corpo, medida pela forma como o indivíduo
cuida de si, de tal instrumento que passa a retratar sua índole e que se torna,
gradativamente, uma espécie de vitrine de seu ser. Longe de apresentar-se
apenas como um empecilho a ser domado para o bem estar da alma, o corpo,
com a criação do lazer, torna-se veículo do prazer (Sant’Anna, Op. Cit.). E, se
é necessário, ainda, e cada vez mais, administrá-lo, por vezes asceticamente,
para a potencialização da produção, essa administração apresenta-se a par i
passu como um meio de aprimoramento circunstancial das técnicas de
aquisição do prazer, e, portanto, para o direcionamento da maximização deste
nas denominadas “horas de folga” do trabalho. Lazer que torna-se direito e
necessidade de todos, em uma ética romântica do consumo complementar à
ética protestante (Campbell, 2001). Cria-se, portanto, uma espécie de
racionalidade administrativa para o gerenciamento do devir individual com o
objetivo de direcioná-lo para potencialidades dionisíacas que devem ser
liberadas em determinados dias da semana ou momentos de quebra da rotina
de trabalho.
A mesma racionalidade que cria o ascetismo laborioso passa
115
também a ser utilizada para concretizar a diversão hedonista, permitindo uma
espécie de folga na conjuntura do mundo da produção; mas, impondo-se, ao
mesmo tempo, aos indivíduos enquanto dever. Dever de se divertir. No caso da
alimentação, por exemplo, conforme ressaltou Jean-Louis Flandrin (1998), vaise da dietética - retirada dos monastérios e espalhada para a sociedade - , à
gastronomia (ciência do comer bem), libertando-se a gula. Apolo e Dionisos
entrelaçam-se na dança das tecnologias da dominação e do agenciamento
populacional.
A administração da diversão e a diversão administrativa refletir-se-á na
disciplinarização do corpo ao tempo do trabalho, à velocidade social
e às
demandas do sistema. O tempo livre de lazer deverá, segundo os requisitos
dos especialistas, ser utilizado para promover a saúde; passando esta, então,
a ser traduzida pela forma de um corpo jovem, belo, ágil e forte, por intermédio
das técnicas dos exercícios e dietas. Aparece conjugada ao lazer, a lógica da
produção do corpo exemplar. Uma lógica da produção laboriosa nos espaços
de trabalho que transforma-se em uma lógica da produção do corpo saudável
nos espaços de diversão: controle de funções cardíacas, enrijecimento
muscular, enquadramento de peso em tabelas padronizadas, dietas, equilíbrio
emocional, e assim por diante. A saúde,
radicada na excelência da forma,
torna-se um bem valioso a ser conquistado e, simultaneamente, um diferencial,
uma valoração distintitiva entre vitoriosos (bonitos, fortes e saudáveis) e
fracassados (fracos, feios e, portanto, doentes ou propensos ao adoecimento).
Mas, apesar de todo este processo, o mesmo sistema que cria tal construção
da saúde, por intermédio dos exercícios e dietas, tende a ameaçar a vida,
poluindo, congestionando, exaurindo corpos e músculos pelo excesso de
trabalho e exploração de recursos naturais. E o “lazer terapêutico” (Sant’Anna,
Ibidem :83), que reitera a necessidade de um corpo saudável e belo
(confundindo sempre uma aspecto com outro), não passa de um dos efeitos do
poder inerente ao sistema social, criando atividades de cunho lúdico para a
otimização das forças que constituem esse corpo enquanto consumidor e
objeto a ser consumido na produção de uma nova organização social.
116
O
corpo-objeto será brindado com “o desejo de si”, desejo que se
debruça sobre o corpo concebido como conjunto de feixes de músculos e
nervos, instrumento de trabalho e de prazer, máquina que deve se apresentar
limpa, com bons aromas e reluzente. Ao indivíduo se impõe, o dever e a
necessidade de manter as peças dessa máquina nas melhores condições
possíveis por intermédio da articulação do conjunto de saberes relacionados
às, e aprimorados pelas, emergentes ciências da saúde; quais sejam:
exercícios com peso, ginástica, dietas e caminhadas ao ar livre. Todo esse
processo leva parte significativa da sociedade ocidental a criar uma espécie de
cultivo à forma, de somatofilia, “de desejo de seu próprio corpo através de um
trabalho insistente, obstinado e meticuloso que [fruto daquilo que] o poder
exerceu sobre o corpo sadio” (Foucault, 1993:146). Todo esse discurso que
fundamenta a nossa atualidade é sutil por se apresentar sempre como uma
liberação do corpo (Le Breton, 1990; Campbell, Op. Cit. Del Priore, 2000). Essa
liberação, hoje, não é mais do que o elogio do corpo jovem, higiênico, sadio,
esbelto, bronzeado e com definições musculares. Percebe-se que, através de
todo o conjunto simbólico midiático-publicitário, se impõe como liberação de
uma espécie de obrigação de cuidado do corpo: obrigação de se manter belo
que pode levar à estigmatização daqueles que não enquadram sua forma nos
modelos e valores cardeais da cultura contemporânea. Autoridade difusa que
em face da concepção de indivíduo peculiar às culturas ocidentais, talvez
sustente a eficácia de uma administração coletiva. Talvez essa seja uma
possível forma de tentar explicar o crescente sucesso das cirurgias plásticas
“reparadoras”, implantes de silicone, dietas de emagrecimento, academias de
musculação e ginástica, enfim da indústria farmacêutica da estética e de
complementos alimentares e cosméticos.
Esta racionalização instrumental tende a elaborar, mutatis mutandis,
uma cultura hedonista, consumista, respaldada na exaltação da satisfação dos
anseios individuais mais profundos levados ao paroxismo; hiperexaltação, de
desejos tais como aquisição de beleza, vitalidade, segurança. Estes signos
acabam por se transformar em espécies de imagens-objetos, representações
sociais e alimentadas através das técnicas de marketing, apresentando-se
117
como convite a uma suposta satisfação plena (felicidade) e levando os
indivíduos, muitas vezes, a buscarem, a qualquer custo, a realização sempre
adiada de seus desejos insuflados pela máquina da produção de bens
simbólicos.
Este
processo
de
auto-satisfação suprema, que segundo
Christopher Lasch (1979) fundamenta uma espécie de cultura do narcisismo,
torna, por vezes, difícil a prática da reciprocidade solidária devido ao
hedonismo que comporta e conforma. Tal desejo de si parece ter se fortalecido,
tendendo a tornar-se agora uma espécie de mandamento das compulsões
consumistas obviamente radicadas no corpo transformado em possível
instrumento de lucro e prazer; corpo-valor (Goldenberg & Ramos, 2002).
Sobre este processo paradoxalmente simultâneo de ascese e consumo
inerente à cultura ocidental, o trabalho de Campbell (Idem ) apresenta enfoque
singular. O autor investe contra as teorias economicistas que tentaram explicar
as origens da compulsão pelo consumismo típico do capitalismo atual.
Corrigindo um desvio teórico que desprezou a importância do movimento
romântico na história, ele avalia suas conseqüências relacionando-as às
mudanças provocadas pela Revolução Industrial. Campbell argumenta que o
hedonismo auto-ilusivo 42 e o binômio sentimento/intuição – em detrimento da
autoridade/razão – foram determinantes para a constituição da ânsia pela
novidade, típica do consumidor moderno. Assim, a burguesia além de abraçar
uma ética protestante, abraçou, par i passu, uma ética do consumo, produto da
corrente romântica que se queria antagônica ao ascetismo, mas que acabou
por celebrar com ele núpcias, formando um sistema regulado de contenção e
liberação dos desejos, consolidando “uma ética do consumidor” (:18). Essa
ética, longe de ser apenas produto do racionalismo puro – em geral apontado
pelos weberianos como fator primordial para o fortalecimento do capitalismo –,
foi produto contínuo da interação deste com os fatores presentes e expressos
no movimento romântico:
42
- “Anseio de experimentar na realidade os prazeres criados e desfrutados na imaginação, um anseio que
resulta no incessante consumo de novidade. Tal perspectiva , em sua peculiar insatisfação com a vida real
e uma avidez de novas experiências, se acha no cerne de muita conduta extremamente típica da vida
moderna e reforça as bases de instituições fundamentais como a moda e o amor romântico” (2001: 288).
118
“ A lógica cultural da modernidade não é meramente a da
racionalidade, como se expressa nas atividades de cálculo e
experimentação: é também a da paixão e do sonhar criativo que
nasce do anseio. Todavia, mais crucial do que uma e outra é a
tensão gerada entre elas, pois é disso que... depende o
dinamismo do Ocidente. A fonte principal de sua inquieta energia
não provém apenas da ciência e da tecnologia, nem tampouco da
moda, da vanguarda e da boemia, mas da tensão entre o sonho e
a realidade, o prazer e a utilidade” (:318)
Longe de ser asceticamente reprimido, o desejo que impele ao consumo
é administrado, sendo, por exemplo, em um processo que Foucault (1990)
relacionou à sexualidade, incitado a se mostrar, se registrar, se fazer presente,
se tornar objeto de verdade. Afinal, se há poder há sempre contrapoder. Sem o
consumo de mercadorias, que transforma até mesmo os corpos dos
consumidores em objeto de consumo, a razão econômica do capitalismo não
se sustentaria. Paradoxalmente, a jaula de ferro da burocracia (com sua
tendência ao desencantamento do mundo), para a qual Weber disse caminhar
a vida do homem moderno, só se sustenta porque este remitifica seu caminho
tentando conciliar duas figuras que existem nele: o boêmio romântico com o
protestante asceta. A prática do fisiculturismo pode ser considerada um
exemplo de tal postura paradoxal.
Duarte (1999) destaca ainda outros itens referentes à consolidação da
cultura ocidental hodierna que são bastante úteis para a compreensão
sociológica deste processo hedonista de construção da forma. Segundo o
autor, a modernidade conferiu um caráter singular à sensibilidade fazendo com
que esta tenha um história e, portanto, um sentido específico rebatendo-se na
formação ideológica e institucional das práticas nas sociedades ocidentais. A
ideologia, e, consequentemente, a prática, nas sociedades complexas atuais,
sustentar-se-ia sobre três características importantes: a da perfectibilidade, da
experiência e sobre o fisicalismo. A primeira estaria radicada na concepção
– presente de forma clara, desde a obra de Rousseau – de que a espécie
119
humana tem a capacidade indefinida de se aperfeiçoar, de “entrar na senda
disso que nós chamamos de progresso, o desenvolvimento, a transformação
ilimitada, a vanguarda, palavras estas fundamentais para a nossa cultura”
(Idem ).
O segundo item, a experiência, estaria diretamente relacionado ao
primeiro, posto que a perfectibilidade implicaria o uso sistemático da razão,
considerada um “mecanismo de verdade” encontrado impresso no interior de
cada ser humano e que deveria sustentar sua responsabilidade ativa em
relação à divindade, a si mesmo e a outrem. Tais perspectivas poderiam ser
encontradas, mutatis mutandis,
nas filosofias de Descartes e Kant, e
sustentariam que o uso sistemático da razão permite o avanço do ser humano
em suas condições de relação com o meio. Neste processo, a experiência
seria crucial, visto que a razão
só viceja através dela – da experiência –
colocada em prática por intermédio dos sentidos. A razão e, portanto, a
perfectibilidade, só funcionam quando os seres humanos articulam, via
sentidos, sua percepção e relação com o mundo que os cerca. Nesse
movimento consolida-se a concepção de que as novas formas (racionais) de
relação com o mundo
permitem a estes tornarem-se, eventualmente, mais
aperfeiçoados, mais capazes e senhores de seu futuro. Essa exaltação da
experiência, presente na cultura ocidental moderna, estaria, de acordo com
Duarte, na raiz de movimentos filosóficos e artísticos tão díspares quanto o
empirismo e o romantismo. O autor, inspirado na já citada obra de Campbell
(2001), e, em Schivelbusch (1993), escreve que o sentimentalismo inglês,
movimento histórico do século XVIII, influenciou o romantismo conferindo:
“a mediação gnosiológica, epistemológica, analítica nos
‘sentidos’ como veículo de instrução das atividades da mente e a
ênfase vivencial, ‘sentimental’, nos ‘sentidos’ como veículo de
articulação das relações humanas. Os sentidos estão tanto na raiz
da razão como na da ‘imaginação’ ou das ‘emoções’ e ‘paixões’.
O fato cognitivo da ‘experiência’ se reduplica em fato emocional”
(1999:25).
120
Nesse processo, o terceiro item é o do fisicalismo, que completa o
quadro sumário de aproximação entre as formas modernas da sensibilidade. O
fisicalismo “é uma revolução” posto que instaura uma “separação radical entre
o corpo e o espírito (expressa, por exemplo, na filosofia de Descartes)”
permitindo a concepção da corporalidade humana como dotada de lógica
própria, “que deve ser descoberta e que tem implicações imediatas sobre a
condição humana.” O fisicalismo, então, “ é a consideração da corporalidade
em si, como dimensão autoexplicativa do humano” (Idem ). Está aberta a via
para a concepção do corpo como um valor e o surgimento da civilização das
formas (Goldenberg & Ramos, 2002).
Os trabalhos referidos ao bodybuilding, em geral, ressaltam apenas a
dimensão do racionalismo ligado à construção do corpo musculoso. Assim,
Courtine (1995), em sua análise dos fisiculturistas californianos, destaca
apenas o aspecto puritano do que ele considera um narcisismo ostentatório.
Tal abordagem não enfoca, ao menos de forma clara, essa outra dimensão
radicada na exaltação dos sentidos presente no cotidiano daqueles que
constroem a forma musculosa como um dos objetivos de sua existência. A
dimensão festiva, os períodos de desregramento social, as orgias alimentares e
mesmo os sonhos sustentados pela atuais mitologias das sociedades de
consumo repletas de heróis individualistas que buscam realizar o mito de uma
vida sem doenças, viabilizadora do consumo, ou de um suposto corpo imortal;
conforme ressaltou Lucien Sfez (1996) ao diagnosticar o surgimento de uma
nova utopia, a da saúde perfeita, que tende a se contrapor à falência das
grandes narrativas, mitificando os próprios avanços científicos representados,
por exemplo, pelos projetos Genoma e
Biosfera II. O uso de componentes
químicos (esteróides anabolizantes, suplementos e fármacos em geral) para
construir a saúde aparente parece fazer parte desse processo de busca mítica
que tende a ficcionalizar os avanços tecnológicos e científicos na busca de
uma realidade ideal agora radicada no corpo e suas potencialidades. Tal
processo cultural sustentado pela prática específica de agenciamento do corpo
pode hoje significar uma nova modulação nas tecnologias de poder e
dominação de uma sociedade de controle (Deleuze, 1995; Rabinow,1999) na
121
qual não apenas os muros institucionais administram a vida dos indivíduos,
mas também os dispositivos de biopoder radicados e potencializados pelas
novas tecnologias cibernéticas. Dispositivos abertos e contínuos que baseados,
dentre outros aspectos, na busca do controle genético e biotecnológico podem
estar traçando o esboço de uma nova conformação social.
Drogas Masculinizantes e Individualismo
É possível perceber, nas academias de musculação, como o indivíduo é
considerado responsável pelo controle de seu corpo. Controle que é
desenvolvido gradativamente em um crescendo que acaba por se tornar uma
espécie de conversão por ele reconhecida através da análise comparativa que
realiza da sua vida antes de se tornar marombeiro e depois :
“antes
de
começar
a
malhar
eu
era
magrelo
e
envergonhado. Não tinha coragem de chegar numa mulher.
Ficava só na minha, desanimado... Aí, entrei p’ra academia,
porque tinha um cara na minha rua que tinha entrado e tava
ficando grande e todo mundo, as garotas, falavam: ’ fulano tá
ficando bonito, tá ficando com o corpo legal...’ Eu fui e entrei,
comecei a malhar em um ano já tava pegando pesado e tinha
aumentado dez quilos de massa magra (...) minha vida mudou
completamente. Passei a me respeitar, a ter coragem de olhar no
espelho e de olhar o mundo nos olhos e a conseguir o que eu
queria na vida. Hoje eu sei que posso, eu mesmo, traçar meu
próprio destino” (Pedro, 23 anos. Estudante universitário).
Esta concepção individualista que confere à pessoa a capacidade de
fabricar seu próprio destino perpassa o discurso tanto de homens quanto de
mulheres. A ela se soma o dualismo cartesiano entre corpo e mente, matéria e
espírito. O corpo aparece como objeto sobre o qual atua o poder da mente.
Mero instrumento que deve ser aprimorado para que o espírito atinja seus
122
objetivos43. Este aprimoramento deve contar com o imprescindível auxílio da
ciência, e é neste ponto que as drogas apolíneas entram em cena:
“...quando alguém faz exercícios deve concentrar a força
da mente sobre o corpo. Sobre aquele músculo que quer
desenvolver. O corpo obedece ... faz aquilo que a mente manda
(...) você pode construir o corpo que você quer, que você deseja;
cada vez mais a ciência vai desenvolvendo instrumentos que
fazem
as
pessoas
superarem
os
limites
genéticos.
Os
anabolizantes servem p’ra isso, né?! Agora tem o GH [hormônio
do crescimento]44 que faz o cara crescer absurdamente e pelo
que parece não tem efeito colateral... só não fica bonito e forte
quem não quer ou quem não tem dinheiro.” (João, 29 anos.
Professor)
Ainda:
“o corpo pode ser fabricado, produzido, se o cara tem
disciplina, força de vontade. É claro, tem um preço... sem ‘bomba’
não cresce, tem que tomar ‘bomba’. Cê vê, todo mundo tá
tomando anabolizante agora, essas atrizes... os atletas então,
nem se fala. Então tem que tomar, sem bomba não cresce. Já
ouviu aquela frase dos americanos: ‘no pain, no gain’; ‘sem dor
não há ganho’. É isso aí.” (Carlos, 26 anos. Pequeno empresário).
Também é comum a representação do corpo como máquina:
43
- O “poder da mente” mereceria um capítulo a parte no estudo do fisiculturismo, devido às
representações que permeiam a prática dos treinamentos. Em sua encilopédia do fisiculturismo (2001)
Arnold Schwarzenegger dedica um longo capítulo ao que ele denomina “o dínamo, a fonte de energia
vital” que conduz de forma boa ou má o corpo: “aonde a mente vai o corpo vai atrás” escreve, dando
conselhos como “a chave para o sucesso nas sessões de treinamento é transpor a mente para dentro do
músculo” (:229, 232).
44
- Hormônio do crescimento (Growth Hormone). Até a década de 1950 a única maneira de consegui-lo
era através da extração da glândula hipófise de cadáveres de seres humanos. Só a partir de 1979 passou a
ser produzido nos EUA, por meio da modificação do patrimônio genético de bactérias Escherichia coli. A
principal função desse hormônio é estimular a divisão das células, permitindo o aumento dos tecidos
(Bartolini, 1999). O uso desta substância tem se difundido cada vez mais nas academias de musculação,
pois além de ser anabolizante, é considerado um tipo de elixir rejuvenescedor pelos seus usuários.
123
“ ...sem óleo do bom nenhuma máquina funciona legal, não
é? Pois é, com o corpo é a mesma coisa. Se o cara não aplicar
um óleo, um ‘bomba’ de vez em quando ele não fica legal, não
consegue malhar bem, não. Tem que aplicar pelo menos uma
Deca45 de vez em quando p’ra dar força no motor.”
( Afonso, 47
anos. Fiscal de órgão público).
Todas estas concepções estão relacionadas à construção da Pessoa
peculiar às culturas ocidentais como indica a obra de Dumont (1993). O autor
escreve que “o indivíduo faz parte de uma configuração de valores sui generis”,
ou melhor, “o indivíduo é um valor” peculiar do mundo ocidental que o
considera como “ser moral independente, autônomo, e, por conseguinte,
essencialmente não-social” (Idem ,1985:37,57). Mauss, antes dos estudos de
Dumont, já havia tratado desta questão, indicando que pode haver diferentes
sentidos para a vida dos homens em sociedade, em conformidade com seus
sistemas religiosos, seus direitos, costumes, estruturas sociais e mentais,
ressaltando, ainda, a construção histórica desta categoria e demonstrando o
quanto é recente a noção de “pessoa e do eu”, identificada entre nós “com o
conhecimento de si, com a consciência psicológica” (1974:239). A concepção
do sujeito, igualitário e desatrelado de transcendência, livre para escolher seu
projeto de vida, mônada, que associada às outras produziria o conjunto social,
enfim, indivíduo enquanto valor, é produto de um determinado tipo de cultura
situada no tempo e no espaço e não uma verdade biológica e universal, como
atestam, também, estudos sobre o surgimento das concepções cartesianas e
mecanicistas sobre o corpo (Boltanski, 1979; Duarte,1986;1999; Foucault,
1980;1988;1993; Luz, 1981;1993; Rabinow,1999; Onfray, 1999).
45
-Deca durabolin (17 decanoato de nandrolona) droga produzida pela indústria Akzo Nobel Ltda. É um
androgênico com efeito anti-catabólico e poupador de proteína destinado à terapia de recuperação de
pacientes com doenças debilitantes crônicas ou após grande cirúrgia ou trauma. São vendidas ampolas
para injeção intramuscular com apreensão de receita. A posologia indicada na bula, para os casos acima
citados é de 1ampola de 25 ml a cada 3 semanas. Contudo, alguns fisiculturistas me disseram tomar até 3
ampolas por dia durante treinamento pesado.
124
O Complexo de Piegan
Os pares de oposições binárias, acima mencionados - fortes/fracos,
saudáveis/doentios, bonitos/feios - estão diretamente relacionados a uma
weltanschauung específica - não podemos esquecer que os marombeiros são
indivíduos pertencentes às camadas médias urbanas em busca de ascensão radicada em disposições duradouras como gostos de classe. Estes gostos, que
reiteram a distinção social, se traduzem em signos exteriores, sendo a forma
física o signo de distinção por excelência do grupo estudado. A musculatura
rígida e evidente surge como sinal de distinção social e poder, sendo que ter o
corpo trabalhado por máquinas e drogas é diferente de ter um corpo de
trabalhador (Boltanski,1979). Contudo, o aspecto mais intrigante deste
processo de construção corporal da distinção é a adesão feminina ao culto e
cultivo de uma estética e mesmo de uma ética masculinizante. O modelo da
masculinidade hegemônica - o homem forte, destemido, independente e durão
- parece ser adotado por um número significativo de mulheres freqüentadoras
das instituições da boa forma que buscam conquistar posição de respeito no
campo achando que para tal têm que ser fortes (musculosas), independentes e
duronas. Tal fato, - presente não apenas nas academias de fisiculturismo, mas
também em outras dimensões da sociedade atual (ao menos na dimensão
ética), como empresas, por exemplo – poderia ser denominado Complexo de
Piegan. Para a melhor compreensão deste aspecto será utilizado um exemplo
etnográfico: entre os índios piegan do Canadá existem mulheres denominadas
“coração de homem” (Lewis,1941. Apud. Hérritier,1989). Nesta sociedade
patriarcal, o comportamento feminino ideal é feito de submissão, reserva,
doçura, pudor e humildade. No entanto, entre eles, existe este tipo de mulher
que se comporta sem reserva e modéstia, com agressividade, arrogância e
audácia. Os piegan homens aceitam estas mulheres porque elas são
poderosas. De fato, para ser uma “coração de homem” é preciso ter uma
posição social elevada, e uma excelente condição econômica. Tais mulheres,
125
todas casadas, conseguem orientar seus próprios assuntos sem o apoio dos
homens e, por vezes, nem deixam que os maridos empreendam seja o que for
sem o seu consentimento. Algumas chegam a se comportar como homens
urinando publicamente, cantando músicas masculinas e participando das
conversas dos homens. O exemplo desta sociedade é sugestivo. Nela, estas
mulheres conseguiram impor aos homens sua aceitação. Eles, por sua vez,
como indica o próprio termo que utilizam para denominá-las, classificam-nas
como tendo âmago masculino.
Ousando seguir uma sugestão feita por uma frase de Dumont: ”aquele
que se volta com humildade para a particularidade mais ínfima é que mantém
aberta a rota do universal” (1993:52), é possível propor uma breve comparação
da sociedade piegan, nestes aspectos específicos, com a nossa. Entre eles,
como entre nós, apenas as mulheres com respaldo sócio-econômico parecem
conseguir realizar atos que são considerados privilégio masculino e esta
independência é possível devido a este poder que as torna independentes dos
homens. Entre eles, também, como entre nós, estas mulheres independentes
tendem a adotar o ethos masculino. Por fim, existe a questão semântica que
classifica independência, empreendimento e audácia como componentes da
personalidade masculina radicando tais itens na própria natureza biológica
(Goldenberg, 1997), já que o coração de tais mulheres é de homem, isto é, sua
essência - se é que esta palavra pode ser aplicada aos piegan - é masculina.
Tudo se passa como se a masculinidade trouxesse em si todos os atributos
considerados necessários, tanto por homens quanto por mulheres, à gerência
da vida social (Muniz,1992). A positividade de qualquer dimensão parece estar,
portanto, associada à tradicional condição masculina hegemônica. Promotor,
imperioso e desbravador, o sexo masculino representaria o centro irradiador
das virtudes humanas. Essas categorias inconscientes estão presentes tanto
no pensamento de homens e mulheres piegan quanto no pensamento de
nossos fisiculturistas. Talvez isto explique a crescente busca, por parte de
mulheres independentes, da adoção da ética masculina e, de certa forma, do
cultivo de corpos mais magros e musculosos tendendo à masculinização, já
que elas são obrigadas a reutilizar contra os dominantes as suas próprias
126
armas, tendo que aplicar e aceitar as próprias categorias que pretendem
demolir, integrando as mesmas categorias contra a qual se revoltam (Bourdieu,
1996b).
Apesar
de
serem
exemplos
de
independência
feminina,
inconscientemente, tais mulheres - da mesma forma que vêm fazendo os
homens há milênios - semantizam a condição feminina tradicional, e tudo que a
ela se relaciona, como condição incompleta que deve ser evitada por todos
aqueles que querem ser bem sucedidos. Contra a violência simbólica utilizam
as próprias categorias que a constituem enquanto tal. Portanto, não seria todo
este movimento pós-revolução feminista de cultivo à forma musculosa e/ou
magra – e o uso de esteróides
talvez apenas um pequeno exemplo - o
prenúncio, ao menos circunstancial, de uma androlatria que viria marcar uma
parcela das relações de gênero neste início de milênio?
Este processo também indica a radicalização do individualismo presente
nas culturas ocidentais, levando os seres humanos não apenas a considerarem
o corpo de outros seres humanos como objeto, mas o seu próprio corpo como
tal. O corpo alheio (assim como o do próprio indivíduo), e tudo aquilo que ele
representa, da beleza aos órgãos transplantados, é reduzido a uma espécie de
mercadoria, objeto descartável e plástico, passível de ser facilmente consumido
e substituído por outro (Rodrigues,1987; Luz, 1988; Duarte, 1999). A lógica do
consumo, o fetichismo da mercadoria,
invade, desta forma, dimensões
significativas das relações humanas, dos negócios passando pela medicina e
chegando aos relacionamentos amorosos (Simmel, 1993).
Ainda outra questão se apresenta em relação ao consumo crescente de
esteróides anabolizantes por aquele(a)s que buscam a adesão ao modelo
estético veiculado pelos meios de comunicação atuais. Ao contrário de reduzir
sociologicamente o problema do uso de tais substâncias à escolha racional e
livre dos indivíduos, o que tende a perfilá-los como únicos e plenos
responsáveis pela sua condição ilegal de usuários de drogas, torna-se
necessário encarar tal processo como um fato social em toda sua
complexidade, reiterando a força e a plenitude da dimensão cultural na qual
tais indivíduos estão inseridos. Condição que os produz ao mesmo tempo que
por eles é inconscientemente (re) produzida.
127
Ritual e Construção de Pessoa no Fisiculturismo
Em trabalho anterior (Sabino, 2000; 2002) foi sugerido que o artigo de
Goldman (1985), sobre a construção de pessoa e possessão no Candomblé,
descreve e esclarece como o ritual tem a capacidade de elaborar a identidade
dos indivíduos no desenrolar de um processo específico de interação social.
Para o autor, a fabricação da divindade - já que o orixá ou “santo” é feito “corresponde à gênese de um indivíduo ‘novo’” (Idem :39). Esta construção se
processa gradativamente por intermédio de ritos de passagem que fixam orixás
na cabeça do indivíduo e simultaneamente conferem-lhe novo status no grupo já que o orixá é também um componente da pessoa. Após 21 anos somente,
quando o sétimo orixá foi assentado, é que a pessoa está “pronta”. Neste
movimento de ascensão na ordem simbólica, efetua-se também a ascensão na
estrutura social do terreiro. Cada santo assentado significa um patamar
ascendido na hierarquia do grupo. Quando o último assentamento se conclui o
indivíduo torna-se “senhor de si e de outros”. “Senhor de si”, porque controla
seu transe, não sofrendo mais a possessão comum aos neófitos e iniciados
mais novos; “senhor de outros” porque torna-se tata , alguém que chegou ao
ápice da hierarquia social no terreiro e tornou-se uma pessoa completa. A
pessoa, nesta concepção, é considerada fragmentada, folheada, múltipla e
todo o esforço do sistema, realizado ritualisticamente, parece voltado para
fundi-la em uma grande unidade que enfim nunca se realiza plenamente, já
que, segundo a cosmologia do Candomblé, os únicos seres plenamente
unitários são os orixás.
No campo da musculação o processo é parecido. Tal afirmação não
significa que a musculação deve ser considerada uma religião e sim que
determinados processos rituais são similares em instituições diferentes. Como
bem notou Bourdieu, “o rito propriamente religioso é apenas um caso particular
dentre todos os rituais sociais” (1996a:95). A construção da pessoa no
fisiculturismo se realiza através da construção da forma física musculosa. Esta
construção não é tão bem delimitada como ocorre no Candomblé onde o
período de fabricação da pessoa já está mais ou menos estabelecido. Nas
128
academias de musculação o processo é menos longo, levando de dois a quatro
anos – no caso de profissionais pode se estender por até dez anos. Para que
um neófito torne-se um bodybuilder, o mesmo tem que adequar seu corpo à
forma correspondente deste papel social e para que tal processo ocorra, de
forma considerada eficaz, ele necessita utilizar drogas. Assim, o uso da droga
constitui-se aqui como “um fato social total”, acontecimento de dimensões
biopsicosociais como escreveu Mauss (1974). Cabe ressaltar, porém, a
dimensão simbólica deste uso específico. Entre os marombeiros há um rito de
passagem (Turner,1974), ou, como prefere Bourdieu, (1996a), um rito de
instituição, no qual o uso da droga surge como item crucial na transição do
indivíduo de um status para outro no campo da musculação. Este relato, um
entre muitos, é um pequeno indício do que pode significar o uso de
anabolizantes :
“A primeira vez que tomei ‘bomba’ foi o Paulão que me
arranjou e me aplicou também... eu tinha muito medo, mas sabia
que mais cedo ou mais tarde eu teria que tomar se eu quisesse
chegar aonde eu queria. Naquele dia passei a me sentir outra
pessoa... vi que começava a malhar de verdade, que participava
de uma espécie de... acho que... segredo... Fora isso o efeito foi
muito bom. Na mesma semana já tava pegando quinze quilos a
mais no leg press, todo mundo tava dizendo: ‘Aí, hein, tá com
maior pernão... tá sarada. Diante disso só dá p’ra se sentir bem,
né?! Cê se sente forte, gostosa e poderosa [risos].” (Márcia, 29
anos. Economista e Empresária).
O início do consumo de anabolizantes pode ser considerado um rito que
consagra a diferença, instituindo-a. Este rito ressalta a linha de passagem entre
um status - o de indivíduo comum - para a condição de aspirante a outra
posição superior. O que deve ser destacado é que a hierarquia de papéis nas
academias de musculação se inscreve no corpo através da forma que este
gradativamente adota, isto é, a mudança física fabricada significa mudança de
129
status pois esta traduz a aquisição de capital de competência - onde comprar
as drogas, como utilizá-las, com quem, quais os efeitos de cada uma, para qual
objetivo cada uma delas se presta -, além de capital corporal.
Este rito delimita a distribuição de autoridade no interior do campo
através do que Lévi-Strauss (1975) denominou eficácia simbólica, ou seja, o
poder, que é próprio do rito, de agir sobre a realidade agindo sobre a
representação que os indivíduos fazem desta realidade. Portanto, nas
academias, ao adquirir, par i passu, um corpo musculoso, o aspirante a
marombeiro vai sendo consagrado a um novo papel em conformidade com as
camadas musculares que adquire. Sua identidade
fragmentada
vai sendo
construída pelo processo ritual até que o indivíduo se torne um fisiculturista.
Para que isso ocorra ele passará gradativamente por uma escala de papéis
que vai do neófito e passa pelo veterano. Mas, diferente do processo ritual
estudado por Goldman no Candomblé, onde o indivíduo que se torna chefe de
terreiro não necessita mais pagar seu sacrifício que é, no caso, a possessão, o
marombeiro, mesmo que chegue a ser fisiculturista, terá sempre que pagar o
preço do sacrifício de tomar drogas e incorrer nos riscos que o consumo destas
representa, pois sua pessoa está radicada diretamente na forma que seu corpo
apresenta. Como esta forma está sempre em risco de se deteriorar- já que
depende de drogas e exercícios - sua identidade como marombeiro também
está constantemente ameaçada. Este processo de construção social da pessoa
do marombeiro é similar ao processo de construção da masculinidade, já que o
“homem de verdade” tem que estar constantemente provando a si e aos outros
que é forte e macho o bastante. O rito de investidura entre os freqüentadores
das academias se realiza primeiro com o início do uso de esteróides, e,
posteriormente, através de diversos tipos de festas e eventos para os quais
passa a ser convidado. Nestes, o indivíduo começa a desfrutar a sociabilidade
exterior à academia, consolidando sua posição no campo por intermédio do
reforço das relações sociais. O fato de ser convidado já significa o
reconhecimento pelo grupo de um novo status atingido pelo indivíduo devido
sua forma física. Estes ritos vão demarcando as posições entre dominados e
dominantes, entre aqueles que são “fortes, saudáveis e bonitos” e os outros
130
que são “fracos, doentios e feios”. Neste sentido, é possível repetir com
Bourdieu que as instituições são “atos de magia social”, pois “criam a diferença
ex-nihilo” (Idem:100). Nesse processo, os esteróides surgem como um elixir,
uma espécie de infusão mágica que pode transformar a forma do usuário. Tais
fármacos representam item fundamental neste processo de construção estética
diferencial e masculinizante. Todos (as) os(as) usuários(as) sabem que seu
uso pode causar câncer, impotência sexual e até mesmo morte, e, por isso
mesmo, representa papel importante nos ritos de instituição que compõem a
construção de identidade entre os marombeiros. É a utilização do sofrimento
que faz com que estes ritos sejam o que são, pois os indivíduos aderem de
maneira tanto mais decidida a uma instituição quanto mais severos e dolorosos
tiverem sido os ritos iniciáticos a que se submeteram
Turner,1974; Le Breton,1995).
(Bourdieu,1996a;
131
Capítulo IV
“Toda sociedade paga a si mesma com a falsa moeda dos seus sonhos”.
Marcel Mauss
Fármacos e Formas. Breves notas etnográficas
Outubro de 2000. Conheço, ao menos de forma razoável, os esquemas
e “uniformes” utilizados pelos freqüentadores das academias de musculação da
Zona Norte do Rio de Janeiro devido o fato de tê-las pesquisado para a
dissertação de mestrado. Agora outro é o problema: necessito centrar minha
pesquisa no subgrupo dos fisiculturistas, bodybuilders, a chamada “elite da
maromba”. Homens e mulheres que fazem da forma – dos músculos hiperinflados – sua razão de viver ou mesmo morrer. Vou, então, para a meca dos
músculos e das anilhas de ferro no Rio de Janeiro, o bairro de Copacabana.
Como havia ouvido anteriormente nas outras academias dos bairros da Tijuca,
Vila Isabel, Andaraí e Grajaú, Copacabana, é, atualmente, a detentora dos
títulos das academias mais
“pesadas” do Rio de Janeiro, com
“gente
malhando pesado e sério”. Isso significa que, nesse bairro, tais instituições da
forma assumem um caráter acentuadamente profissional na prática; ou ao
menos semi-profissional. “Artilharia pesada”, dizem os freqüentadores.
Chego às três e quinze da tarde em um dia de quarta-feira em uma
espécie de clube da forma, amplo e com três andares, situado em uma das
poucas ladeiras de Copacabana. O som do ferro das anilhas batendo umas nas
outras era ouvido já da esquina. Academia Apolo. Musculação, spinning,
ginástica, jiu-jistu e boxe tailandês,
estampava o letreiro da entrada46. Um
poster com a foto ampliada de Arnold Schwarzenegger vestido de Conan
empunhando uma espada apresenta um letreiro: “Just do it”, cópia do slogan
da Nike. O poster decora a parede em frente à recepção. Descobri, algum
tempo depois, que essa mesma foto ilustra uma página da enciclopédia de
fisiculturismo do ator (Schwarzenegger & Dobbins, 2001:235). Como não
46
- Os nomes dos informantes e da academia foram trocados, a não ser os nomes daqueles que
autorizaram sua divulgação.
132
pareço exatamente um fisiculturista, a recepcionista, uma loura tingida vestindo
bermuda colante e camiseta, me apresenta o “pacote” com preços da ginástica
e da musculação dizendo que na academia também tem dança, “bike in door” e
hidro-ginástica. Digo que quero musculação. Ela, então, se oferece para me
mostrar as salas e as dependências da academia, perguntando se quero ir de
escada ou elevador. Passo por uma roleta que é acionada por um cartão
magnético que minha anfitriã possui. Ela diz: “quando você fizer matrícula vai
ganhar o seu cartão é só trazer uma foto 3 x 4”. Sugiro à minha cicerone
subirmos pela escada (com o objetivo de observar melhor a academia). Já do
lado direito, após a recepção, vejo uma ampla loja de suplementos alimentares
(SNC está escrito na entrada) com centenas de potes e vasilhas de tamanhos
variados – uns chegando a ter quase o tamanho de um balde de lavar roupa –
chamados de suplementos alimentares e alquimias nutricionais feitas de
líquidos e pós para bebidas denominadas shakes, além de centenas de vidros
de vitaminas (de A a Z pude constatar depois), pílulas e acessórios para
exercícios tais como cinturões de couro, luvas e roupas coloridas para
musculação e ciclismo. A decoração dos espaços situados entre as escadas é
um misto de galpão rústico com itens futuristas, os canos, que supostamente
deveriam estar dentro das paredes, podem ser vistos reluzindo, pintados de
prata.
Em cada parte entre um andar e outro antes das amplas salas de
exercícios ficam dez bicicletas ergométricas e cinco esteiras de última geração,
computadorizadas. De frente às bicicletas e esteiras, televisores sintonizados
em canais a cabo passam documentários, videoclipes, e filmes de campenatos
de fisiculturismo e esportes diversos. Em um
grande cesto várias revistas
estão amontoadas, percebo que são revistas nacionais e internacionais de
fisiculturismo, além de revistas sobre boa forma e beleza feminina. Percebo
que alguns adolescentes folheiam uma publicação internacional (Muscle &
Fitness) repleta de fotos de bodybuilders. No canto esquerdo desta pequena
sala de acesso, spots de luz fria saem do chão como se fossem de um palco e
as paredes espelhadas estampam ilustrações com
dezenas de dicas de
alongamento. A decoração às vezes parece uma mistura de laboratório, oficina
mecânica e shopping center. Fernanda – minha cicerone – me mostra a sala de
133
spinning47. Um amplo salão fechado, similar a um estúdio de gravação, com
uma parede de vidro que permite a visão total da sala de lutas e quarenta
bicicletas fixas. No recinto é
vedada a saída ou entrada de som. Ela me
explica que as salas são assim para que a música da sala de dança não
atrapalhe a música da sala de spinning, e assim por diante. O recinto também é
espelhado e as bicicletas são pretas, alinhadas lado a lado e direcionadas para
uma outra de cor amarela, que fica em um tablado. Fernanda me mostra a sala
de dança, a piscina de hidroginástica e a sala de lutas com as paredes
revestidas de um material anti-impacto além do grande saco azul escuro de
areia pendendo do teto, daqueles que existem em academias de boxe. Esta
sala, diz ela, também é usada para a prática de yôga. Por fim, ela me leva
para o galpão de musculação. Antes de chegarmos lá, vejo também um bar do
lado esquerdo à saída do elevador, perto da parte onde se situam os vestiários.
Vejo um “gigante” tomando um copo de vitaminas e engolindo uma pílula de
dimensões bem acima do normal. Percebo que a especialidade ali são os
shakes de proteínas em pó e vitaminas, açaí com granola, sucos fortificantes,
além de suplementos alimentares de todos os tipos desenvolvidos pelas
indústrias de nutrição – os mesmos vendidos na loja de baixo, para serem
consumidos em casa, além dos chamados “sanduíches naturais”.
A sala de fisiculturismo difere do resto da academia, como se dela não
fizesse parte. Inclusive chega-se a tal sala sem ser necessário passar perto
das outras salas e recintos, pois, além do elevador, que pode levar o
frequentador direto ao local, há também outro acesso por escada. Sua
decoração é rústica e singular, misto de galpão com salão de beleza. Ferro e
espelhos. É um vasto mezzanino com grandes janelas de vidro e exaustores
que fazem o ambiente parecer também a linha de produção de uma fábrica.
Toneladas de anilhas (disco com tamanho e peso variado para ser encaixado
em barras) e placas de ferro e muitas máquinas de musculação; máquinas
rudes com capacidade, no mínimo, três vezes maior do que quaisquer outras
que eu já havia visto em academias que freqüentara anteriormente. Os
47
- O spinning é uma aula de ciclismo realizada nos salões (“indoor”) das academias de fitness e
bodybuilding. Foi criado por um sul-africano denominado Johnny G, apelido de Jonathan Goldberg,
134
fisiculturistas dizem que a seriedade e a eficácia de uma academia de
fisiculturismo se percebe pela quantidade de peso que ela tem. Se assim for,
esta parece bastante séria. Nunca havia visto tanto peso livre – anilhas, barras
(barbells) e barras curtas (dunbells) de 70 kilos cada. Eu não podia imaginar
ninguém forte o bastante para fazer exercícios de 30 repetições com cada uma
daquelas em cada mão, até ver um “homem-montanha”, rodeado por dois
ajudantes, realizando um agachamento (exercício em que o indivíduo coloca
uma barra com o peso nas costas e agacha repetidas vezes) com mais de 200
quilos. O sujeito devia ter quase dois metros de altura. Vestia uma camiseta
que parecia estar se rasgando de tão apertada em seu corpo e não
apresentava um fio de cabelo na cabeça ou no corpo repleto de veias
estufadas. Um dos ajudantes – que descobri mais tarde ser uma espécie de
treinador de levantadores de peso – começou a gritar : Vamos!!! Força!!!! Isso é
fácil p’ra você!!!! Vamos!!!! Touro!!! No último movimento, o gigante dá um urro,
já quase roxo, e os dois ajudantes seguram em cada extremidade da barra
para ajudá-lo a colocá-la no suporte. O treinador, mais baixo, muito branco e
também careca, usa uma botina de couro com uma meia esticada até quase o
joelho e uma camiseta branca apertada escrita Wolney Boyz. Soube, com o
tempo de freqüência à academia, que Wolney é o seu nome, na realidade um
halterofilista que treinava todos aqueles que desejassem ganhar força e massa
muscular.
Pago minha matrícula (R$ 40,00) e primeira mensalidade (R$120,00) na
secretaria e me exigem um atestado médico - o qual jamais entreguei. A
recepcionista marca a minha avaliação física para o dia seguinte e me cobra
R$15,00 pela carteira que permite a entrada na academia, reiterando que tenho
que trazer a foto 3x4.
No dia seguinte, chego à academia na hora do rush: 18:14. Dezenas de
pessoas suadas se amontoam no salão de musculação. O barulho de ferro,
música e conversas é intenso. Há um desfile de músculos e roupas sumárias
em frente aos espelhos, além das caretas de dentes trincados dos Hulks se
esforçando para levantar seus pesos em máquinas e barras soltas. Várias
ciclista que em 1995 nos Estados Unidos patenteou sua invenção. Essa atividade simula uma corrida de
135
mulheres que parecem passistas de escolas de samba desfilam para lá e para
cá com outras que parecem seres andróginos. Fernanda, a recepcionista, me
apresenta ao professor de plantão que vai realizar minha avaliação física. Um
gigante que deve ter uns 120 quilos de músculos com uma prancheta na mão
direita. “Opa! Como vai?”, diz. “Meu nome é Oliveira.” “Prazer, Cesar”,
respondo. O gigante parece não estar em seus melhores dias. Vamos para
uma pequena sala com balança, bicicleta ergométrica, uma mesa com vários
utensílios de aferição antropométrica; na parede um quadro mostrando um
corpo dissecado com todos os músculos do corpo humano e seus respectivos
nomes ao lado. O avaliador pede para que eu tire a roupa e fique apenas de
sunga e me manda estender os braços. Primeiro de frente, depois de costas.
Anota observações em uma folha e rapidamente se levanta pegando um
instrumento de duas pontas que serve para medir dobras de gordura. Mede
meu abdômen, depois as dobras do braço, depois a coxa. Manda realizar
exercícios abdominais, depois flexões e depois pedalar na bicicleta durante 20
minutos. Mede a minha capacidade física e composição corporal, com toda a
parafernália tecnológica de que dispõe. Terminado tal processo de triagem me
dispensa dizendo: “amanhã você passa aqui e pega o resultado...”.
Dia seguinte. Seis horas da tarde. É uma tarde quente da primavera de
2000. Chego à Academia Apolo e a calçada que serve de estacionamento para
os freqüentadores está repleta de carros de todas as marcas. Parece que a
classe média está bem representada nesta instituição de construção da forma.
Subo. Escuto o ritmo e o som pesado de “The Trooper” do grupo inglês Iron
Maiden (a letra conta a história de uma batalha da Guerra da Criméia)
misturado com o som dance da sala de ginástica que vaza pela janela aberta e
o barulho dos pesos sendo colocados nas barras e máquinas de exercícios.
Embora seja grande, a academia parece superlotada. Grupos de bodybuilders
com camisetas que mostram mais do que escondem acotovelam-se ao redor
dos cabos de aço que rangem, puxados nos exercícios. Um fisiculturista, de pé
e com um grande cinturão de couro apertado a cintura, levanta uma barra com
vários pesos (anilhas) de 25 quilos em cada lado e urra fazendo careta como
bicicletas (estas são fixas) com subidas e descidas sempre acompanhada de música.
136
se estivesse em um sessão de tortura. Meninas com cabelos presos em rabode-cavalo vestindo micro shorts e a parte de cima do biquini assistem outra
realizar um exercício de subir e descer um tablado com uma barra de pesos
sobre os ombros. Percebo que a atleta tem mais músculos do que eu. Sua
perna, contraída pelo peso, parece a de um jogador de futebol. Conforme as
repetições tornam-se mais dolorosas ela faz diferentes caretas, suando em
gotas, até o momento em que, com uma voz grossa, urra : “puta que o pariu!!”.
Rapidamente, uma das meninas começa a ajudar a subir com o peso na última
repetição, logo, outras duas e um homem jovem que estava por perto ajudam a
baixar a barra até o chão. Nas academias do subúrbio raramente se vê uma
mulher com essa forma. Suas costas em V, a ausência de curvas e cintura,
contrastam com um grande peito provavelmente siliconado. Samuel Fussel, em
sua etnografia sobre os bodybuilders da Califórnia, mostra que tais mulheres
são chamadas, naquela região, de She-Beast (1992:91). Descobri, mais tarde,
que os esteróides anabolizantes, conjugados aos exercícios, fazem o indivíduo
perder adiposidade o que, no caso das mulheres, provoca um significativo
aumento muscular e diminuição de seios levando muitas a optarem pelo uso de
silicone para compensar. No caso dos homens, é comum o uso de siclicone
para aumentar as “batatas da perna” (panturrilhas).
Procuro o professor para me indicar os exercícios e me apresentar às
máquinas e pesos. Parece mais simpático hoje. “Você é mesmo o....?” “Cesar”,
digo. “Ah!, sim. Vamos lá, Cesar”. “O que você quer?”. “Como?”, pergunto. “É.
O que você quer fazer com o seu corpo, com a carcaça, a fuselagem,
entende?”. “Ah, sim, quero crescer e emagrecer, digo, mas não quero ficar
enorme.” “Bom, ficar enorme é mesmo difícil..., tudo bem.” “Vou fazer uma
série para você. Quantos dias da semana você vai vir a academia?” Respondo:
“Bom, uns cinco dias, talvez.” “Não. Seis!”, diz ele. “Vou fazer uma série A e B
para você. Daqui a três meses você me procura p’ra trocar, falou? P’ra eu fazer
outra série. Não adianta repetir o mesmo exercício durante muito tempo que o
músculo não responde mais. Cadê sua avaliação?”, pergunta. Digo: “Você
ainda não me entregou. “ “Ah, sim... ‘peraí, que já volto.” Ele vai à sala de
avaliação e pega umas folhas grampeadas com meus dados. Pára próximo e
137
analisa: “Hummm, cê tá meio gordinho... 17% de adiposidade... Olha só: um
cara desses aí – fala olhando para um gigante de dentes trincados para o
espelho e com um grande cinto de couro apertado na altura da barriga que faz
exercícios para o bíceps com duas barras curtas – tem 2,5% de gordura...”.
Fico calado na minha insignificância muscular. “O negócio é o seguinte, meu
irmão: diz o professor gigante, você vai ter que malhar pesado e fazer muito
exercício aeróbico, além de uma dietinha se tiver a fim de melhorar para esse
verão, tá entendendo?” Balanço a cabeça para cima e para baixo, sinalizando
que entendi. “É, tem também uns produtos que posso te passar, vendem lá em
baixo na loja – da SNC -, tem uns fat burnuning, lá ... agora se você quiser
radicalizar posso te passar outras coisas...., entende, né...?”
“Bomba?”,
pergunto. “É, é isso aí, posso te arranjar o que você quiser; consigo tudo:
Winstrol, Deca, Durateston, GH... tudo, tudo, qualquer coisa.” Finjo que estou
feliz ao ouvir todos esses nomes. “Pô, muito legal, digo, mas acho que ainda é
cedo... eu queria começar a fazer os exercícios primeiro... sabe como é... Mas
finciona mesmo esse negócio?” . “Claro malandro, tu acha que esses caras são
grandes assim por obra do divino espírito santo? Fala olhando para o gigante
do bíceps que agora faz um exercício para pernas.” “Mas não é meio perigoso
tomar essas coisas?” “A vida é perigosa, brother.... Tudo tem seu preço, se tu
tá a fim de ficar sarado tem que arriscar, certo? Tem cara aí que bebe, cheira,
fuma maconha, p’ra se divertir, aqui a gente toma bomba... A vida tem que ser
preenchida com sacrifícios, não é? Tudo que vale a pena é caro. E então, vai
comprar a parada?” Respondo: “Tudo bem, mas não agora, primeiro tenho que
saber como funciona, os efeitos, o que tomar, essas coisas... e você vai ter que
me explicar, certo?” Falo, com o objetivo de conseguir a simpatia de um
informante privilegiado. “Tudo bem, diz ele, vou passar logo tua série de
exercícios e amanhã a gente vê o resto. Mas de qualquer forma vou te passar
uma dieta e um ciclo [de esteróides anabolizantes] leve, se você resolver fazer
é só me falar...”
No dia seguinte retorno com dores nos músculos das costas. Embora já
tivesse freqüentado academias durante um bom tempo para a pesquisa de
mestrado não estava acostumado com aqueles exercícios mais pesados.
138
Como não tinha o objetivo de me tornar um fisiculturista mas apenas realizar
uma pesquisa eu teria que elaborar uma estratégia para burlar aqueles treinos.
Alguns bodybuilders freqüentavam a academia duas vezes ao dia. De manhã e
à noite. Como o fisiculturismo no Brasil não proporciona retorno financeiro
efetivo me perguntava de que forma esses indivíduos se sustentavam.
Descobri que muitos ainda viviam com os pais e faziam cursos universitários,
um
número
significativo
era
composto
de
funcionários
públicos
que
desfrutavam de algum tipo de sinecura na burocracia estatal, ainda outros
trabalhavam na própria academia (e em outras) como instrutores de
fisiculturismo e personal trainers o que permitia que ganhassem algum dinheiro
sem precisar também pagar a mensalidade das instituições da forma. Ainda
outro grupo realizava trabalhos de segurança e eventos. Há também aqueles
que são sócios de suas próprias academias, ou seja, empresários do ramo, e,
por fim, o grupo daqueles que trabalham como garotos de programa. De fato,
para manter um corpo de bodybuilder existe a necessidade de muito dinheiro e
tempo, visto que a alimentação deve ser repleta de proteínas, uma quantidade
considerável de suplementos deve ser consumida (pó, pílulas e shakes) além
dos ciclos de esteróides, alguns custando caro para a maioria das pessoas (em
torno de R$100,00 cada ampola. – por vezes um ciclo consome 18 ampolas).
Nada disso adianta se não estiver associado à dedicação aos exercícios.
Portanto, para se tornar uma montanha de músculos à moda Arnold
Schwarzenegger é necessário dedicação, disciplina, determinação e dinheiro.
Oliveira, o professor, me apresenta ao treinador Wolney. Está de bom
humor, rindo e falando das mulheres da academia. Wolney diz meio sério, meio
brincando, que só quer saber da barra olímpica, a única “fêmea” que lhe é fiel.
“Ando com a foto dela – da barra – na carteira”. Wolney não apresenta o tipo
físico de um bodybuilder. Mas é grande como um estivador. É um levantador
de peso que não se preocupa com a estética, apenas com a força. Logo se
propõe a me treinar. Com o tempo, e com as inúmeras propostas para ser
treinado, percebo que este convite, na realidade,
faz parte de todo um ritual
139
de iniciação das academias cariocas de fisiculturismo, pois quando um
fisiculturista ou um veterano dos pesos se oferece para treinar um neófito ele
também está querendo alguém que esteja ao lado dele para auxiliá-lo em seus
exercícios com peso. Assim, o iniciante torna-se uma espécie de escudeiro, de
Sancho Pança para os Dom Quixotes da forma. Essas relações são
verdadeiras relações de compadrio em que o iniciante é “obrigado” a seguir os
passos, conselhos, receitas químicas e prescrições do mentor, doando em
troca fidelidade – na presença aos treinos, no cumprimento dos horários,
acatando opiniões – e esteróides anabolizantes. Estes são verdadeiras moedas
de troca neste tipo de relação inerente às academias. Em troca de favores e
serviços, dietas, prescrições de ciclos e séries, recebe-se, por exemplo, meia
dúzia de ampolas de Deca Durabolin ou Durateston (esteróides muito usados
no meio atualmente).
Mestre Wolney, como é chamado por alguns, passa a ser um dos meus
principais interlocutores. Diz que tem um emprego no Jardim Zoológico do Rio
de Janeiro, que é casado e tem duas filhas. Fala que tenho que comprar um
cinturão de couro para me proteger de possíveis hérnias causadas pelo
excesso de peso. Fala ainda que está tentando promover campeonatos de
halterofilismo e que, se eu quiser, poderei participar um dia. Pergunta o que
faço e digo que sou professor e estou pesquisando as academias de
musculação. Fala rindo que gostaria que alguém escrevesse sua biografia.
Para a alegria do meu interlocutor, digo que ele aparecerá no meu trabalho.
Wolney fala que o treinamento de halterofilismo é diferente do
treinamento da musculação: são exercícios com muito peso e pouca repetição
que têm por objetivo aumentar a força do atleta. Tais exercícios, porém, com
pesos livres (barras soltas e anilhas) são muito praticados pelos fisiculturistas
porque permitem um grande aumento da massa muscular.
No primeiro dia começo apenas assistindo. Wolney diz que vai me
apresentar a Jair, um atleta que desafia, no programa Esporte Espetacular da
Rede Globo, todos aqueles que estiverem dispostos a levantar mais peso do
que ele. Esperamos a celebridade chegar. Jair chega, tem mais ou menos
1metro e 80 centímetros de altura e deve pesar uns 130 quilos ou mais.
140
Cumprimenta a todos e começa o treino. O atleta tira a camiseta de malha que
estava usando e coloca o cinturão de couro sobre uma espécie de macacão de
halterofilismo que tem o formato de bermuda e camiseta regata em uma peça
inteiriça de cor azul. Retira de uma grande bolsa um pote com pó branco que
passa nas mãos e começa o aquecimento levantando e abaixando 15 vezes
uma barra com 60 quilos. Neste dia, o que mais me deixou intrigado foi o
método de incentivo para treinos de Wolney : além do peso que ele e Jair
levantavam, urrando, batiam com tapas violentos um no outro no exato
momento que levantavam os pesos. Perguntei qual era o objetivo daqueles
sonoros tapas dados nas costas e na cara um do outro - Wolney ainda
aparecia de vez em quando com um pedaço de madeira, uma ripa, para bater
nos ombros do parceiro no instante em que este se preparava para realizar o
esforço. Eles me disseram que tal prática era para dar força na hora de
levantar os halteres. “O sujeito toma a porrada, diz Jair, e parte com toda a
raiva para a barra e descarrega toda a sua ira ali.” Percebi, enquanto os
halterofilistas
realizavam
seus
treinos,
que
algumas
pessoas
olhavam
assustadas os tapas e gritos dados pelos amantes dos pesos.
Depois que Wolney e Jair, acompanhados de seus fiéis escudeiros, se
retiraram fui tentar cumprir minha série de musculação. Quatro séries de peito,
quatro de ombro, quatro de bíceps e quatro de antebraço. Se fosse seguir a
lógica de Oliveira deveria correr uma hora na esteira e ainda quarenta minutos
na bicicleta. Além de seguir uma dieta rigorosa de 400 calorias por dia. Para
virar um Adônis teria que sofrer como Jó. Coisa que nunca consegui fazer
durante todo o tempo da pesquisa. Enquanto pensava sobre isso olhava as
mulheres em volta. O uniforme era o mesmo: cabelos presos em rabo-decavalo, muitas vezes tingidos de louro, bermudas ou calças de lycra e tops ou a
parte de cima de um biquini e tênis de marcas famosas. Os homens usavam
bermudas curtas ou calças largas de tecido apropriado, leve, camisetas e
camisas de malha do exército ou imitando o uniforme militar, cabelos curtos e
nenhuma barba. Nos pés, tênis Adidas, Nike ou Reebok, muitas vezes em
forma de botinas. Apenas alguns do grupo do Wolney, inclusive ele, destoavam
um pouco desse modelo. Algumas mulheres pareciam travestis, she-beasts,
141
devido ao excesso de músculos, outras (era possível perceber olhando mais
atentamente), pareciam ter a pele áspera em partes do rosto, como queixo e
maxilar, por exemplo, como se tivessem o hábito de fazer a barba.
Terminado meu dever cotidiano entro no vestiário e me deparo com um
fisiculturista
solitário semi nu fazendo poses em frente a um dos grandes
espelhos do recinto. Como se eu não existisse, continua se contorcendo e
inflando bíceps, deltóides, abdômen, tríceps e pára apenas quando chega outro
bodybuilder conhecido dele e lhe cumprimenta : “E aí, Zé? Como ‘tá essa
carcaça?” Pergunta tirando a camisa. “Tudo certo, ‘Tô com quatro por cento de
gordura, mas acho que ainda não ‘tá legal...”. “Fala sério! diz o outro, ainda
maior que o primeiro, “eu é que não estou legal, olha só, me sinto pequeno,
tenho deficiência de bíceps... e acho que estou engordando...”. Olhando
aqueles dois montes de músculos se lamentando me senti como um
personagem de Kafka. Nada fazia sentido ali. Ou esses caras eram malucos ou
não enxergavam direito, ou melhor, não se enxergavam direito. Peguei minha
mochila e deixei os dois se lamentando no banheiro. O trabalho de Pope,
Phillips e Olivardia (2000), realizado em academias americanas, ressalta a
tendência de tais indivíduos terem uma imagem distorcida de si mesmos.
Acham sempre que estão pequenos, diminuindo, engordando, etc.,
mesmo
exercitando-se cada dia mais. Os autores denominam este processo
psicológico de “Complexo de Adônis”. Tal percepção equivocada a respeito de
si mesmo leva tais pessoas a realizarem exercícios até a exaustão e lesão
física e a consumirem cada vez mais os novos produtos da indústria de
suplementos e esteróides em busca de uma forma ideal inalcançável.
A Química da Forma
Com o tempo comecei a travar contato com as principais figuras da
academia. A primeira coisa que aprendi foi a lidar com o humor variável dos
fisiculturistas e halterofilistas. No início, achava que todos deveriam ter
problemas, pois, em um determinado dia, cumprimentavam aqueles que os
cercavam
e, em outro, fingiam que não viam ninguém. Percebi que tais
142
variações de ânimo – que não raro provocavam discussões sérias entre eles e
mesmo brigas – eram causadas pelo significativo uso de esteróides.
Principalmente quando o verão se aproximava, as variações de ânimo
oscilavam da euforia à depressão. A testosterona, em grandes quantidades,
pode provocar irritabilidade e até mesmo surtos psicóticos levando o usuário a
quadros de desânimo e depressão quando em abstinência. Por isso, a melhor
atitude adotada por alguém, quando próximo a um fisiculturista em estado de
irritabilidade, é afastar-se. Quando um tipo deles está fazendo seus xercícios
então, é como se aqueles pesos e aparelhos que está utlizando fossem sua
propriedade. Ninguém pode interferir no uso dos instrumentos. O território é
demarcado e qualquer estranho que chega perto corre o risco de ser expulso
com um conjunto de impropérios e rosnados. Certa vez, um adolescente
desavisado começou a desmontar uma barra de supino (máquina de exercícios
para peito) quando um fisiculturista gritou do outro lado da sala com sua voz de
baixo profundo: “Larga essa merda aí, seu pangaré!!!” e direcionou-se com o
andar típico dos bodybuilders – arrastando como um robô sua montanha de
músculos – para o local no qual estava o menino já pálido e assustado que
rapidamente se afastou pedindo desculpas.
Wolney me apresenta a dois fisiculturistas que treinam com ele: um
chamado Vilela e outro Kamal. Em uma tarde de dezembro de 2000, espero os
dois no bar da academia, pois tinham marcado para treinar naquela tarde. Eu
tomava uma vitamina de açaí com Creatina enquanto esperava os dois e ouvia
os sons peculiares dos ferros e gritos da academia. Escutava Wolney
açoitando mais um de seus discípulos e dizendo: “Vamos á
l . Zé!”, Força!”,
“Mais uma!”, “Mais uma, que esse peso é coisa de calcinha! [efeminado na
gíria das academias]”
Ao meu lado, um sujeito parecido com uma montanha de músculos
levava à boca um Shake de morango carbo fuel com albumina e amino whey
protein. Suplementos alimentares para atletas fisiculturistas e que são
adicionados a frutas e, na maioria das vezes, a outros pós artificiais que imitam
o gosto de frutas. De repente, uma loura vestida com roupa justa se aproxima
do gigante e diz: “vou malhar. Se você quiser que eu te aplique ‘o veneno’
143
[esteróide] tem que ser agora...” O sujeito levanta-se e segue a loura em
direção ao corredor dos vestiários onde os fisiculturistas aplicam suas drogas
uns nos outros. Por causa desse corredor e das ampolas de esteróides jogadas
nos vasos – que sempre entopem - e das seringas com agulhas deixadas nos
bancos dos vestiários, os faxineiros de uma empresa terceirizada, não raro, se
rebelam com a direção da academia.
Kamal e Vilela chegam. “E aí, Cesar? Vamos Lá? “Entrando no grande
salão de musculação vejo Wolney apertando o cinturão de couro para
levantamento de peso do seu pupilo, um sujeito bem magro e alto. Meus dois
companheiros dizem que vão treinar perna. O treino de perna é considerado o
pior, “o mais chato”, pela maioria dos homens. Em geral, eles preferem treinar
a parte de cima do corpo, ao contrário das mulheres que preferem a parte
inferior. Kamal diz que está um pouco fora de forma, eu fico rindo e digo: “Bom,
depende do ponto de vista, né?” Ele continua: “ operei pela segunda vez uma
ginecomastia e tive que ficar mais de um mês sem malhar nada...” Pergunto
por que tanta gente fica com ginecomastia na academia – cinco fisiculturistas já
haviam me confessado terem realizado a operação. Kamal responde que a
testosterona
em
grande
quantidade
no
organismo
acaba
tornando-se
estrogênio, ou seja, o hormônio masculino transforma-se em hormônio feminino
– chamam isso de aromatização – fazendo o fisiculturista, que busca acirrar as
características masculinas, apresentar pequenos seios (ginecomastia) e
tendência a aumentar gordura corporal em determinadas regiões como o
quadril. A ginecomastia tem que ser operada para não tornar-se câncer de
mama. Kamal fala, olhando para Vilela: “Lá onde eu operei os caras colocam
silicone, também. Pensei em colocar nas panturrilhas. Minhas panturrilhas não
são boas...” Vilela olha para baixo, para suas próprias panturrilhas e diz: “É,
também preciso, malho que nem um desgraçado e essa merda não cresce de
jeito nenhum, não tem jeito é genético...”. Em sua Enciclopédia do
Fisiculturismo, uma espécie de bíblia de todos os fisiculturistas, Arnold
Schwarzenegger
(2001) escreve que essa região do corpo, quando não
beneficiada por uma “genética privilegiada”, é muito difícil de ser desenvolvida,
demandando muita dedicação do fisiculturista.
144
Kamal veste uma camiseta justa de cor amarelo-ovo rasgada em partes
estratégicas escrita Pitbull Gym com o desenho de um cão da raça pitbull
segurando na boca uma barra olímpica com grandes anilhas na ponta. O
desenho da barra sugere que ela está dobrada devido ao excesso de pesos.
Vilela usa uma camiseta do exército com as mangas arrancadas e um tênis
Reebok roxo. O tênis de Kamal é um Mizuno prateado. Os calçados, nas
academias, mais do que as roupas, representam o status do usuário. Desta
forma, alguns procuram colecionar mais de dez pares dos mais caros. Quanto
mais variedade e quanto maior o preço, maior o status do usuário. As marcas
Reebok, Mizuno, Nike, Adidas são as mais cobiçadas e são verdadeiras
fórmulas mágicas que instauram a distinção entre os frequentadores. Alguns
chegam a ter tatuados tais logotipos na própria pele.
Kamal fala que o treino de perna vai ser de intensidade. Ele é conhecido
por ser um radical em seus treinos, realizando repetições infindáveis nos
exercícios, combinado-as e recombinado-as com outras séries com poucas
repetições e mais pesos. Explica que seu método foi criado por um campeão
do bodybuilder que ganhou o Mr. America48. De acordo com Fussel (Op. Cit.),
muitos fisiculturistas aderem à teoria de que quatro ou cinco exercícios por
parte do corpo, com quatro ou cinco repetições por exercício, é mais do que
bastante para cada treino, durando noventa minutos todo o treinamento.
Kamal, porém, não concorda com tal tipo de trabalho. Para ele, cada parte do
corpo deve “sofrer” cinqüenta repetições, ou mais, e, muitas vezes, ele treina
por duas horas apenas um músculo com o objetivo de “definir a massa
muscular”. Estes treinamentos, conhecidos como “tensão contínua”, causam
intensa dor para o praticante. Assim, Kamal alterna os treinos fazendo a tensão
contínua em um dia e no outro acrescenta mais pesos, menos séries e
repetições aos exercícios com o objetivo também de “aumentar massa”. É
senso comum entre os fisiculturistas que exercícios com muitas repetições e
pouco peso servem para fazer os músculos ficarem definidos e exercícios com
poucas repetições e muito peso aumentam o tamanho do músculo. Chamam
48
- Descobri, lendo a biografia de Samuel Fussel (Idem) – um dos melhores documentos etnográficos
sobre fisiculturismo nos Estados Unidos – que tal método de treinamento foi popularizado por Steve
145
definição de “qualidade” e aumento de massa de “quantidade”. O ideal, dizem,
é o equlíbrio entre os dois: tornar-se grande, mas com definição – baixa
porcentagem de gordura.
Kamal e Vilela começam o treino enquanto observo. Vilela começa
primeiro enquanto Kamal o acompanha, auxiliando-o. Vilela faz cinqüenta
repetições, subindo e levantando. Descansa dois minutos e retorna. Nessa
segunda vez começa a urrar de dor, enquanto Kamal o ajuda segurando-o pela
cintura. Na terceira série Vilela pede para parar e diz que está passando mal,
se joga no chão e logo começa a vomitar. Levanta-se e vai para o vestiário, eu
e Kamal vamos atrás. Vilela está sentado de cabeça baixa. “Esse treino é
foda!”, diz. “Também acho que meu fígado não deve ‘tá muito bom. Tenho que
tomar boldo. Fui tomar Hemogenin, é foda!”. Após uma longa pausa, Vilela nos
olha, sai do vestiário correndo em direção à sala de musculação, agarra a barra
colocando-a nas costas e retorna os exercícios com toda a raiva que parecia
ter dentro dele. Kamal exulta: “Esse é um exemplo de campeão!!! Vamos
Vilela!!! Agora eu tenho um verdadeiro companheiro de malhação!!!”, grita
olhando para mim.
Logo depois, para o meu espanto, Kamal começou a agachar com
duzentos quilos, cem de cada lado da barra, logo em seguida com 300,
berrando como um animal e fazendo as caretas mais assustadoras enquanto
Vilela o ajudava e o alto falante da sala tocava heavy metal. Depois de fazer as
repetições foi a vez de Kamal desabar, ficando no chão uns cinco minutos
estatelado olhando para o teto. Logo em seguida Vilela se prepara de novo
para o processo. Aperta o cinturão de couro que todos os bodybuilders usam e
fica se concentrando em torno da barra suspensa por um apoio de ferro.
Percebi que esse era um tipo de ritual daqueles que levantam muito peso: a)
apertam o cinto; b) se concentram em torno do peso que pretendem levantar;
c) dão um berro e atacam o peso. Foi justamente isso que Vilela fez abaixando
e levantando 320 quilos de uma só vez. Depois foi de novo a vez de Kamal. O
mesmo ritual. Mas havia uma variação. Visto que já começavam a esgotar suas
forças, os dois fisiculturistas deveriam articular mais uma estratégia: Quando
Michalik, campeão na década de 80 do século XX. O modelo do trabalho de Fussel é um exemplo de
146
Kamal colocou a mão nos pesos para levantá-los, Vilela desferiu-lhe um
violento tapa nas costas, logo seguido pelo grito e movimento de Kamal. Dessa
forma, os pesos foram levantados com sucesso.
Durante o treino percebi a articulação de todo o capital de competência
amealhado pelos fisiculturistas durante seus anos de prática. Kamal passava
para Vilela as técnicas de levantamento que produziam resultados específicos
nas partes do corpo as quais correspondiam tais exercícios. Como ajustar a
distância dos pés com o objetivo de mudar a forma do quadríceps. De que
forma contrair os músculos lombares para um melhor desempenho sem risco
de lesão. Qual a maneira de posicionar os pés para um trabalho melhorado de
coxa. Percebi que Kamal, devido a toda sua experiência como bodybuilder, era
um verdadeiro catálogo vivo de exercícios e dicas de musculação. Parecia
conhecer, na prática, a maneira como cada fibra muscular reagia em
consonância com cada exercício realizado. De fato, ele demonstrava posições
variadas para o mesmo tipo de exercício e esclarecia que aquela pequena
variação poderia fazer uma diferença considerável no tipo de forma muscular
que o indivíduo gostaria de construir. Era, e parecia considerar-se, um
verdadeiro designer muscular. Com conhecimento adquirido e praticado em
seu próprio corpo. Após o treino, Vilela e Kamal retornam ao bar. Kamal toma
um Shake repleto de aditivos da indústria de suplementos alimentares. Vilela
recusa ingerir qualquer coisa. Diz temer pelo fígado. O atendente do bar que
presta atenção à conversa oferece um remédio para o fígado do fisiculturista.
Terminado o dia de malhação. Kamal pergunta a Vilela sobre os
esteróides que ele tem; se quer vender e se pode fazer o favor de aplicar nele.
“Tudo certo, diz Vilela. Vamos lá em casa que a gente resolve isso.” Pergunto
se posso ir também. “Óbvio”, diz Vilela. Descemos a rua da academia na tarde
de Copacabana em direção à Rua Ministro Viveiros de Castro onde o
fisiculturista mora. Vou andando alguns passos atrás das duas figuras que
chamam atenção, apesar da população de Copacabana parecer acostumada a
tais tipos. Os dois são mais ou menos da mesma altura e seus corpos hiper
“participação observante” no mundo dos Gyms.
147
desenvolvidos destoam do tamanho das cabeças que parecem não ter crescido
proporcionalmente.
Chegamos ao apartamento de Vilela. É um típico quarto e sala de
Copacabana, mas a decoração – se é que se pode chamar assim – é singular.
Logo na sala, assim que a porta se abre, dezenas de revistas de fisiculturismo,
a maioria delas norte-americanas, podem ser vistas espalhadas pelo chão e
em cima do velho sofá. Muscle and Fitness, Ironman, Flex, Bodybuilding
Magazine, Iron Sport, Muscle in Form . O apartamento cheira à urina de gato,
pois Vilela cria três, mas parece não ligar muito para a limpeza do recinto. Um
gato chama-se Bam-bam, outro Ninrod e, a ainda outro, Creatina, esse último
por ser todo branco como o pó utilizado pelos fisiculturistas. Vários pares de
tênis, três cinturões de couro para levantamento de peso, e cinco faixas para
amarrar articulações, muito usadas pelos bodybuilders para se protegerem de
lesões, todos esses objetos estão espalhados pela sala e pequeno corredor
que dá acesso simultaneamente ao quarto, ao banheiro e à cozinha. Nessa
última, dezenas de potes de suplementos amontoam-se sobre a geladeira e em
um pequeno armário. Creatina, Albumina, BCCa’s, Mt-Rex, Ripped Fuel, são
alguns nomes que posso observar rapidamente. Roupas de academia também
estão espalhadas por toda parte, no sofá, no chão da sala e na janela. Nas
paredes, tanto da sala quanto do quarto, vários posters de campeões
internacionais de fisiculturismo.
Mas, o que mais chama atenção são os
pequenos recortes de fotos de revistas de fisiculturismo mostrando atletas em
poses musculares. Algumas fotos apresentavam apenas algumas partes dos
corpos. Perguntei o que significava aquilo e Kamal respondeu que esse era um
método de mentalização muito comum entre os marombeiros (método aliás
propagado por Schwarzenegger, reitera): aquelas fotos são de ideais de
musculatura a serem perseguidos, então o indivíduo fixa sua mente naqueles
exemplos de forma física e isso dá força a ele para perseguir o objetivo de se
tornar igual a uma daquelas figuras estampadas no papel. Algumas fotos
mostravam um fisicultrista famoso segurando
potes de suplementos
alimentares, outro mostrando seus bíceps em uma praia paradisíaca, ainda
outro segurando uma modelo loura de biquini, outra de um gigante fazendo
148
exercícios para os músculos das costas, e assim por diante. Contudo, o que
havia de mais singular em todo o pequeno apartamento, era o quarto repleto de
caixas e mais caixas de esteróides anabolizantes. Vilela era um verdadeiro
traficante. “Sabe, cara, eu tô começando a ganhar dinheiro com isso, forneço
tudo que os caras da academia precisam... mas, tô começando mesmo, só
agora... mas pretendo ganhar uma grana com isso...”, diz. O quarto parece
uma espécie de almoxarifado repleto de caixas de Winstrol, Dianabol, Esiclene,
Deca-Durabolin, Lipostabil, Clenbuterol, Proviron, Cytomel, não tendo quase
nenhum espaço livre, a não ser para a cama, um pequeno guarda-roupa e um
poster emoldurado que mostra Arnold Schwarzenegger fazendo uma pose de
campeonato. Nem todos os produtos são esteróides, diz meu anfitrião, alguns
são complementos ou remédios usados para emagrecimento. Há drogas para
tudo ali, explica Vilela. Umas para aumentar a força e a massa muscular,
outras para “secar” gordura, ainda outras para fazer inchar por algumas horas
um músculo específico, outras para aumentar a disposição, além daquelas
usadas para minorar dores musculares e problemas de efeitos colaterais
causados pelo uso dos esteróides. Diante de minha surpresa, Vilela abaixa e
puxa de baixo da cama uma pequena caixa de papelão repleta de ampôlas
dizendo: “agora, o ouro mesmo é esse aqui! Isso é GH! Exclama dando um
sorriso. Hormônio do crescimento [growth hormone]”. “E aí, qual a diferença?”
pergunto. Vilela responde: “a diferença é o preço e o resultado, meu irmão !
Cada vidrinho desse aqui custa cento e vinte pratas e faz milagres. Lá fora, os
fisiculturistas usam isso oito semanas antes do campeonato. Rejuvenesce, faz
secar a gordura, aumenta a massa muscular, dá força, mas tem que tomar
cuidado, também, se usar muito faz crescer as extremidades do corpo, o
queixo, a testa, e pode causar morte súbita. Também alarga o espaço entre os
dentes da frente...”. Percebo que as drogas são parte essencial desse mundo
da forma, paraíso da indústria farmacêutica. “Ah!!! Também tem outra coisinha,
Vilela puxa do armário um saco de erva verde musgo. Isso aqui é para
relaxar!!!” Gargalha com Kamal sacudindo um saco que deve ter mais de meio
quilo de maconha. Pergunto se na academia todos os fortões tomam essas
coisas. Kamal responde que todo mundo toma, os fortões tomam mais, mas
149
todo mundo toma: “inclusive as gatinhas para ficarem saradas no verão. E o
Vilela agora tá fornecendo p’ra todo mundo, virou negociante, mesmo”, fala
rindo.
Percebo que os esteróides são o elixir secreto dessa tribo de
musculosos de aparência saudável. Aparência, essa é a palavra, já que,
paradoxalmente por causa dela, causam danos irreversíveis à saúde. Pergunto
aos dois, quais os efeitos colateriais. Kamal responde: “espinha, muita acne,
amento do colesterol ruim, impotência, infertilidade, ginecomastia, câncer de
tudo quanto é tipo, parada cardíaca, úlcera, pressão alta, depressão, calvície
precoce, disfunções hepáticas e da tiróide, sangramento retal, problemas
intestinais e hepatite medicamentosa”. “Só isso?”, ironizo. “E vocês não têm
medo de tomar esses troços?”. “Não tenho medo de nada, Cesar”. Vilela
responde e continua: “se você quer crescer tem que pagar o preço, tem que
correr o risco, certo? O que não mata engorda, aqui, no caso, o que não mata
aumenta a massa”.
Vilela pega então da gaveta uma seringa com uma agulha de mais ou
menos cinco centímetros e prepara-se para espetar Kamal. Quebra com
desenvoltura a parte de cima de uma ampôla de Durateston e puxa com o
êmbolo o líquido oleoso amarelo que vagarosamente escorrega para a seringa
que fica cheia pela metade. Kamal abaixa a parte de trás da bermuda e Vilela
com facilidade injeta o líquido todo no glúteo esquerdo do amigo de
levantamento de peso. Logo se forma um caroço no local já todo marcado
pelas várias picadas de injeção de esteróides. Vilela comprime um chumaço de
algodão com alcóol no local em que agora escorre sangue. Após alguns
minutos o mesmo processo se realiza. Só que Vilela agora é quem está sendo
aplicado por Kamal. A dose de Vilela é dupla, uma em cada nádega, visto que
ele diz ser esta semana a do ápice do ciclo, ou seja, a semana em que o
fisiculturista se aplica as maiores doses para depois ir decrescendo com as
mesmas, até chegar de novo a uma dose por semana. Kamal diz que outro
problema é que tais injeções doem muito e, às vezes, tornam-se abcessos que
têm que ser estirpados pelos médicos com pequenas cirurgias. Fala ainda que
150
desenvolveu toda uma técnica para sentar sem se machucar: ”empino um
pouco a bunda e sento com a parte mais baixa da região [risos].”
Fussel
escreve
que
“bodybuilding
e crescimento muscular são
sinônimos; esteróide e crescimento muscular são sinônimos; logo bodybuilding
e esteróides são sinônimos” (Id.Ibid.:122). Porém, não apenas entre os
fisiculturistas ocorre o uso de esteróides, ressalta o autor, mas também entre
praticantes de outras modalidades esportivas. Uma pesquisa citada por ele
destaca que em 1991, 6% dos estudantes do ensino médio norte-americano
admitiam
utilizar
esteróides
anabolizantes,
enquanto
20%
dos
atletas
universitários também admitiam consumir tais drogas. Com o crescente
incentivo social que induz os indivíduos a buscarem o sucesso e uma forma
musculosa livre de adiposidades, esse uso deve ter crescido, provavelmente.
Não raro, os fisiculturistas chamam o processo de arriscar a vida para melhorar
a forma como “pacto com o diabo”. “Vendem a alma” para suplantar a condição
de comuns mortais, ao menos em relação à forma física; sabem dos riscos que
correm e estes riscos, grosso modo, servem de incentivo para sua ações de
risco.
Para obter mais algumas informações, incentivo Vilela a relatar sua
história, a contar suas experiências de iniciado no mundo da malhação. Ele diz
que “não é mole, não”, mas, “não me sinto arrependido pelo que fiz e faço, até
hoje”. “Sinto dores pelo corpo, todo mundo que malha sério sente, sempre
coloco gelo nas articulações e na coluna, mas a dor me excita, é cara, se eu
não sentir a dor é como se o treino não tivesse adiantado nada, sabe?.
Comecei a malhar aos 15 anos de idade e comecei a tomar bomba já naquela
época. Lembro que quando tomei a primeira Deca da minha vida fiquei olhando
no espelho p’ra ver se eu crescia... [risos]... como se fosse mágica, aí fiquei
grilado com aquilo, pô parece que não tô crescendo nada. Tenho que tomar
mais bomba p’ra incrementar... então passei a tomar uma Deca toda semana
com Durateston, depois passei a tomar uns comprimidos de Winstrol, aí tive um
ataque ferrado do fígado, porque a bomba quando você toma em comprimido
ataca muito mais o fígado, porque a injeção vai direto p’ra corrente sanguínea,
o comprimido, não, ele passa pelo fígado. “ Falo com Vilela: “outro dia vi um
151
maluco lá no banheiro da academia se aplicando sozinho. O cara tinha
encostado a injeção na parede e estava apertando o ombro contra ela quando
eu cheguei... “. “É, devia estar desesperado, como ele era?”. “Um fortão com o
cabelo espetado pintado de louro”. “Era o Mário”, diz Kamal. Vilela acrescenta:
“vai ver que ele procurou alguém para aplicar a parada nele e não encontrou aí
ele fez isso, mas é arriscado, é desespero de causa, porque a agulha pode
quebrar... eu já fiz isso umas vezes, mas é muito arriscado... os caras fazem
isso também quando não conseguem mais aplicar na lateral do ombro, porque
o cara já tomou muita injeção ali e o local está todo ferrado já, então ele tem
que tomar injeção na parte lateral aí ou alguém aplica p’ra ele ou ele recorre a
parede. Quando eu tô fazendo muito ciclo meu ombro fica ferrado também, por
isso tem que fazer rodízio; uma aplicação num lado, outra no outro, outra na
bunda direita, outra na esquerda, mas quando o cara tá tomando muita bomba
é complicado, fica faltando lugar, aí sobra a coxa, mas a coxa é muito pior, só
em último caso, porque a coxa, o quadríceps, é muito duro e dói muito.” “Mas,
Vilela, me conta aí sua história, digo. Desde o início. A bomba adiantou
mesmo, fez efeito?”. “Claro! Comecei com 15 anos e com dezessete tinha
aumentado 12 quilos.tinha 68 passei para 80. Aí participei do primeiro
campeonato de força. O campeonato foi organizado pela prórpia academia que
eu tava e ganhei de todo mundo. Fiquei ainda mais fissurado pela maromba; e
não queria competir só por força [halterofilismo], mas queria também competir
no fisiculturismo. Queria ter um corpo mais definido, uma musculatura melhor e
não só força. Aí tive que mudar a estratégia. Eu tomava um mês de bomba
depois parava três meses e aí voltava de novo, era assim o meu ciclo. Então
como eu queria competir por forma tive que mudar, incrementar os ciclos.
Passei a me turbinar doze semanas seguidas com intervalos de quatro
semanas, então tomava três meses direto de bomba e parava um, três, um,
três, um... só pensava em me preparar para o meu primeiro campeonato de
fisiculturismo...”. “E os efeitos colaterais?”, pergunto. “Bom, são esses aí que
você tá vendo: fiquei careca com 19 anos, agora tenho 32, cheio de espinha...
às vezes dá muita irritação, a gente fica nervoso e dor de cabeça, tenho
sempre, mas o pior de tudo, Cesar, o pior de tudo, p’rum cara que desde
152
criança sempre gostou de comer de tudo, e muito, - minha família é
portuguesa, você entende, né?, mesa farta todo final de semana, muita
comida... - o pior de tudo são as dietas.” Kamal balança a cabeça em sinal de
concordância com Vilela. “Agora já até me acostumei um pouco, não
totalmente, mas no início era o inferno! P’ra acostumar é muito difícil. A vida de
quem compete se divide em duas épocas: a off-season, quando a gente tá
treinando para aumentar massa muscular e a alimentação é rica em calorias,
então a gente come muito, toma shake de tudo quanto é troço, toma
suplemento, come carne adoidado, um quilo de uma vez, e, o outro lado, a fase
pre-contest, ou véspera de competição, quando a gente tem que cortar tudo,
cair de uma dieta de as vezes 5000 mil calorias por dia para outra de 700
calorias, é duro demais. A gente tem que cortar toda a gordura, todo o
carboidrato, cê imagina... o choque é brutal, aí tu fica com sono, irritado,
deprimido, louco p’ra morder todo mundo.... se no off-season o sujeito de
manhã come 6 claras de ovo, 2 maçãs, 6 colheres de aveia com mel, 5
bananas, 4 fatias de pão integral, por exemplo, no pre-contest isso cai p’ra uma
fatia de melão, meia maçã e uma colher de aveia, só, mais nada. No almoço é
a mesma coisa, o cara, no off-season, come 2 quilos de macarrão, é o normal,
com 2 quilos de batata e meio quilo de peito de frango, no pre-contest, vai para
apenas 1 batata, é Cesar, uma batatinha, só, com dois filezinhos de peixe, isso
é pior do que qualquer dor de cabeça, espinha ou dor nas costas. Isso deixa a
gente alucinado, porque nessa fase de competição a gente tem que ficar hiper
definido, seco, a musculatura tem que estar grande e aparecer cada fibra
muscular dela, a pele tem que ficar fininha, então, tem que cortar sal, todos os
derivados de leite, e até a água, para poder perder gordura. Fora isso, o
anabolizante dá mais fome ainda, justo nesse período, então tu fica nervoso,
louco, alucinado, por isso que sai briga na academia nessas épocas. Às vezes
o cara ainda toma remédio para emagrecer junto disso tudo. Eu tomei
Clembuterol que é para asma e ajuda a emagrecer e já tomei remédio p’ra
diabetes pra reduzir o açúcar do meu sangue, só que comecei a ter alucinação,
a ficar com depressão, me dava vontade de chorar, aí parei. Só volto se for p’ra
ganhar muito dinheiro. Mas tem muita gente que toma p’ra competir”. “Quanto
153
tempo dura esse processo?”, pergunto. “Umas 12 semanas, mais ou menos,
pode durar menos, depende do peso que eu tenho que perder. Aí a comida se
torna uma grande obsessão. Eu penso nela 24 horas por dia. Termino de
comer já marco no relógio a hora que eu vou comer de novo. Para evitar
cãimbras e perda de potássio, eu só posso comer uma gema das vinte claras
que eu como por dia. Então, eu como aquela gema lentamente, curtindo cada
segundo do gosto dela. Agora tem a albumina, que é clara de ovo em pó, e
que facilita quem não gosta de comer ovo, mas eu continuo comendo, uso os
dois. Além disso, tem os dilatadores de veias, né? P’ra competir, o cara, além
da musculatura evidente, tem que estar com as veias aparecendo ao máximo,
isso conta ponto, então, o que faço? Uso vaso dilatadores, antigamente eu
usava Vasculat... “. “Isso não faz mal?”, pergunto. “Ah, tudo faz mal. O coração
dispara ... nessas épocas eu acordo e as vezes levo um susto quando me olho
no espelho do banheiro. Eu sou careca, então, minha cabeça fica uma teia de
veias expostas, o peito e a barriga também....” . “Loucura isso”, digo. “É, Cesar,
é isso aí, não é mole, não...”, diz Kamal que se mantém apenas escutando o
relato de Vilela. Kamal ainda lembra a Vilela alguns itens da preparação dos
IronMen : “Fala aí do sal, Vilela...”, diz ele. “É... o sal, é o seguinte: ele retém
água e a água retida embaça o músculo, então ele é um vilão da musculação,
é eliminado, totalmente, então, nessa fase até água a gente evita beber,
porque a água da torneira é rica em sais minerais. O que eu faço, então, – eu e
todo mundo que compete – bebo água destilada, que eu compro na farmácia, e
ela ajuda a eliminar a gordura e o excesso de líquido que impede o músculo
aparecer. Eu perco uns 30 quilos nesse período, fico grande, mas seco. Não é
fácil, tem que zerar o potássio no organismo, eliminar toda a água entre a pele
e o músculo para que ele [o músculo] pareça colado à pele. Nesse estágio, o
xixi fica branco”.
No dia seguinte volto à academia para começar meu treino com Wolney.
Com o passar do tempo tais treinos começam a fazer efeito em minha
conformação física. É o campo agindo sobre meu corpo. Consigo um aumento
de 3 quilos de músculo e perco um pouco de gordura. Nada comparado ao
estado que estaria se tivesse seguido o “tratamento” proposto de início pelo
154
professor da academia. Mas os treinos não são nada fáceis. Começam às nove
da manhã e terminam meio dia. Wolney conversa muito, mas é duro com seus
discípulos ressaltando sempre que aquilo que faz é diferente da musculação
que a maioria pratica na academia. Começo o treino: o primeiro exercício é o
de agachamento, o que acho pior. Primeiro agacho apenas com a barra
olímpica que pesa 20 quilos, depois os pesos aumentam de 20 em 20 quilos,
quando chega aos 80 quilos já estou desesperado. Minhas costas doem muito,
principalmente a região lombar, meu rosto vermelho, parece que vai explodir,
então Wolney, ao perceber a dificuldade, coloca sua técnica de pauladas em
ação: com a ripa desfere um golpe nas minhas costas. A pancada da madeira
faz a região arder com intensidade provocando um susto momentâneo e uma
descarga de adrenalina que, de fato, permite aumentar momentaneamente a
força, auxiliando a conclusão do esforço. Antes disso houve o sofrimento do
cinto usado para proteger de hérnias.
Wolney o aperta com toda a força
colocando uma forte pressão no abdômen do aprendiz. A pressão é tão forte
que quase não dá para sentir a barriga depois de colocá-lo. Em seguida
começa o treino para os ombros. Tenho que levantar a barra sobre a minha
cabeça e baixá-la no mínimo 3 vezes, mas a barra com os pesos tem 60 quilos,
então o processo é o mesmo: cara vermelha, dente trincado e pancada nas
costas acompanhadas de expressões como : “mostra que é homem!” , “Vamos
que isso é peso p’ra florzinha !” e “Tá mole! Dá p’ra fazer mais umas dez”.
Logo depois começamos o exercício mais famoso entre os fisiculturistas e
halterofilistas chamado “levantamento terra” ou dead lifting. Tudo ia bem até o
peso chegar a 140 quilos. Quando tentei levantar e não consegui a paulada
veio da mesma forma, ajudando-me. Contudo, um pequeno estalo na lombar e
uma dor aguda em forma de pontada, me fizeram largar o peso do alto
causando um enorme estrondo. Passei duas semanas sem realizar esse
exercício, colocando bolsas de gelo no local e recebendo dos meus colegas de
treino o consolo : “isso é uma coisa à toa, é assim mesmo, logo passa”.
Começo a perceber em meu próprio corpo as mudanças tão apreciadas pelos
praticantes das academias. Passo a compartilhar com eles – ao menos por
algns momentos -
o mesmo sentimento de dominar meu corpo e poder
155
transformá-lo. Passo, assim, a ser visto como um deles; não um fisiculturista,
mas um simpatizante com quem podem contar para eventuais problemas ou
confissões.
Logo depois que termino o treino com Wolney chega Jair com três
“assistentes” e começam logo a treinar supino. Primeiro aquecem os músculos
com os 20 quilos da barra, depois Jair começa a treiná-los, por fim é a vez
dele. Devido ao peso que ele levanta os três “escudeiros” têm que ajudá-lo a
levantar. Esse processo é o exemplo de aprendizado prático que Wacquant
assinala em seus estudos sobre as academias de boxe de Chicago: “o inculcar
[das práticas corporais] se dá como trabalho de conversão ginástica,
perceptiva, emocional e mental, que se efetua de um modo prático e coletivo,
com base em uma pedagogia implícita e mimética que, pacientemente,
redefine, um a um, todos os parâmetros de existência do [praticante]”
(2002:23). Jair, ao realizar seus exercícios, demonstra aos seus discípulos as
técnicas desenvolvidas por anos de prática. A posição da mão, a pressão do
corpo contra o banco do supino, a distância certa das pernas, o
posicionamento dos pés, a velocidade dos braços, tudo é medido, estudado e
demonstrado, e, portanto, copiado, pelos neófitos.
Durante os treinos, conheço Tatiana, uma loura que está fazendo um
“ciclo de Winstrol” e Felipe, um “viciado em maromba” como ele mesmo diz.
Felipe é um indivíduo que tem um humor quase imprevisível; na academia só
ouve Wolney, mais ninguém. Certa vez, depois do treino, por volta das 12:45,
hora em que a academia esvazia quase completamente, Felipe meteu-se em
um aparelho de remada (exercícios para os músculos das costas) e ficou
sozinho realizando sua série. Todos já haviam se retirado da academia,
restavam eu, na outra ponta da sala de musculação, fazendo um exercício para
braço, Felipe, a recepcionista e o professor. De repente, Felipe deu um berro
raivoso largou o peso, que fez um estrondo assustando a todos e saiu correndo
pela rua como um louco tendo o professor atrás. Logo volta o professor,
pergunto o que aconteceu e recebo a seguinte resposta: “Loucura. Felipe é
totalmente louco, deve ser de tomar bomba”. Passados alguns meses de
convivência com Felipe, este torna-se mais um informante que me desvenda,
156
durante uma tarde após os treinos, mais uma faceta do mundo das drogas das
academias de fisiculturismo. Carioca, 25 anos, ex-estudante de Direito em uma
universidade particular e morador da Zona Sul, me confidencia que já
“freqüentou” por duas vezes uma clínica especializada em tratamento de
viciados em drogas por causa do consumo de esteróides anabolizantes.
Pergunto a ele como isso aconteceu. Responde: “Em outubro agora, depois de
um período sem tomar nada (fiquei em abstinência porque estava com
problemas de fígado), voltei a tomar bomba... o problema é que não consigo
ficar sem tomar, fico deprimido, acho que murchei, não consigo me olhar no
espelho, e a coisa vai piorando, não consigo sair de casa.” Ironizo: “Mas p’ra
você ficar pequeno falta muito... quantos quilos você tem?” Diz: “Entre 100 e
104 quilos”. “Pois é”, digo. Felipe continua: “É foda meu irmão. Já fiquei
internado. Mas não consigo...parar. Agora, você vê minhas roupas, às vezes
chego aqui com um camisão largo por cima da roupa de malhar porque é para
esconder da minha mãe, p’ra ela não perceber que tô crescendo de novo”.
Sabendo que Felipe tinha fama de brigão, inclusive estava sendo processado
por ter espancado o filho de um deputado em uma boate, pergunto se o uso de
esteróides não provoca um certo estado de agressividade. Responde: “ Cara,
eu fico muito irritado, fumo maconha direto p’ra me acalmar... brigo muito,
quase toda semana tem um pancadaria; mas eu prefiro ficar irritado do que
deprimido. Já cheirei [cocaína] quando ‘tava deprimido para melhorar meu
estado, mas aí eu pensei, é melhor a bomba do que o pó”. Pergunto a Felipe
quando ele começou a malhar: “Há 5 anos atrás. Tinha 67 quilos. Na época eu
tinha uma namorada que eu gostava muito dela e ela me largou p’ra ficar com
outro cara. É claro que fiquei atrás dela, aí o cara começou a me ameaçar
dizendo que ia me enfiar a porrada se eu continuasse atrás da Patrícia, esse
era o nome dela. Então comecei a malhar e em um mês já tava entrando na
bomba direto, em poucos dias ganhei mais de quatro quilos de músculo, aí
fiquei com a auto-estima lá em cima e não parei mais, até porque comecei a
fazer sucesso entre as gatinhas e a me relacionar com o pessoal da academia.
Esqueci a Patrícia. Depois, em dois meses, pulei dos 67 quilos para 82, todo
mundo ficava assustado, as pessoas começavam a ficar intimidadas comigo na
157
rua, começavam a me temer e isso foi muito bom, aliás, é muito bom”. “É, você
cresceu muito rápido, digo, que ciclos você fez?” “Cesar, não fiz ciclos... no
início até tentei, mas depois comecei a tomar tudo, toda hora. Hemogenin,
Deca, Deposteron, Durasteston, Winstrol, tudo. Tomo assim até hoje. Todo
mundo diz que pego pesado. Não tô nem aí. Não sou o único. Outro dia vi o
Jair tomando quatro comprimidos de Hemogenin de uma vez só ali no
bebedouro”. “Mas me diz aí porque você foi internado... “ . “Eu percebi que eu
não tava muito bem, toda vez que eu saía na rua eu brigava, tudo, tudo mesmo
era desculpa p’ra brigar. Bastava alguém olhar p’ra mim e eu já mandava na
hora tomar no cu e partia p’ra cima. Depois eu e alguns amigos, o João, o
Carlos...você conhece... começamos a sair toda sexta e sábado para brigar nos
bailes e nas boates, aí o pau comia solto, a gente quebrava tudo, às vezes se
quebrava também, fomos parar várias vezes na delegacia, mas o pai do Carlos
é juiz, sabe como é, né? Então eu comecei a fazer terapia com um psicólogo,
mas nem eu, nem o cara sabia que eu ficava daquele jeito por causa da
bomba. Ele achava que era um distúrbio cerebral, sei lá. Agora, o problema
ficou radical quando depois do carnaval eu tive um surto em casa e quebrei a
casa toda. Minha mãe chamou os bombeiros e os caras me levaram. Fiquei
dois meses lá, internado. Depois voltei p’ra casa e começou tudo de novo, aí
minha mãe chamou a ambulância e eu quebrei o nariz de um enfermeiro, mas
eles me levaram mesmo assim. Fiquei dessa vez três meses de molho. Lá na
clínica é que começaram a relacionar os esteróides com o meu estado.
Naquele dia que eu saí gritando daqui eu estava com vontade de matar o
primeiro que passasse na minha frente, aí o Pedro (o professor que estava
naquele horário) conversou comigo e me levou até perto de casa; é assim, um
surto, agora tô tomando remédio p’ra controlar o humor, naquele dia não tinha
tomado ainda”. “Você disse que se sentia pequeno...”. “Me sentia, não, me
sinto. Hoje eu peço p’ra Tatiana medir meu bíceps e peitoral todo dia. Sempre
acho que posso crescer mais, o problema é esse Cesar, p’ra crescer do jeito
que eu tenho que crescer eu preciso da bomba...agora tô tentando não ficar me
pesando o tempo todo p’ra não piorar a situação, porque acho que tá sempre
ruim, sempre pouco... aí cada vez eu tomo mais esteróide. Porque o corpo se
158
acostuma com aquela quantidade aí você tem que tomar cada vez mais, mudar
de bomba e aumentar a dose se quiser crescer, quando paro de tomar perco
peso aí começo a ficar deprimido, muito deprimido, me sinto um inseto, então
volto a comprar ...”
Esse relato de Felipe, apenas um entre vários colhidos durante o
trabalho de campo, destaca a possível dependência psíquica que o uso dos
esteróides pode provocar. Além dos problemas mais conhecidos, como câncer,
hepatite, úlceras, os esteróides podem causar distúrbios psiquiátricos,
excessiva irritabilidade, acessos de fúria, crises de euforia alternadas com
depressão, transtornos do humor, dificuldades de interromper o uso das drogas
e recaídas após curtos prazos de abstinência. Felipe é um exemplo do
crescente número de freqüentadores assíduos de academias, tanto homens
como mulheres, que vêm consumindo esteróides. Embora não sejam
oficialmente atletas, ou seja, não participam de campeonatos e competições,
tais indivíduos se envolvem com as drogas por causa da aparência e da
socialização. A entrevista a seguir mostra, de forma suscinta, o processo de
utilização dos diferentes tipos de drogas que circulam nas academias cariocas.
Essa entrevista foi realizada no dia 18/06/2002, na academia de Copacabana
com um fisiculturista de 32 anos, que abandonou uma carreira como professor
para se dedicar integralmente ao fisiculturismo e participa de competições.
A Farmácia de Adonis.
-Quando você começou a “malhar” ?
-Há mais ou menos 10 anos... eu era muito magro e me sentia excluído e
fraco...
-Fraco?
-É. Eu tenho 1,90m e tinha, na época 74 quilos. Eu era um esqueleto.
-E agora? Como você está?
-Como assim? Em tamanho?
-É.
159
-Bom, agora ‘tô com 127 quilos. Devo estar mais ou menos com 6% de gordura
corporal, não sei... Em época de competição fico com uns 27 ou 30 quilos a
menos, talvez 2,5% de gordura corporal.
-Quando você começou a usar bomba?
-Há dez anos. Quando comecei a ”malhar”, no primeiro mês que eu entrei p’ra
academia. Embora fosse muito magro sempre fui definido...tinha músculo, mas
pouco... mas tinha. Também tinha bom preparo aeróbico. No exército me dava
bem, apesar da magreza. Depois de duas semanas de academia um
marombeiro bombado, que por acaso era um dos donos da academia, me viu
malhando e ficou impressionado com minha dedicação. Eu conseguia fazer um
agachamento com 100 quilos e seis repetições. Aí o cara me chamou e disse:
Pô meu irmão, você tem potencial, podia até competir, tem estrutura... é magro
mas tem futuro. Você pode imaginar como isso me incentivou... o cara se
ofereceu para me treinar e aí me dediquei totalmente... estudava na UERJ de
manhã e malhava à tarde e à noite.
-E o dinheiro? A gente sabe tem gastos...
- Meu pai me mandava dinheiro, ele não é daqui do Rio, é juiz em outra cidade,
e me mandava uma ajuda. Depois também a tem bolsa de perquisa do CNPq
que já ajudava p’ra comprar suplementos pelo menos.
-
Bom, você tinha 74 quilos. Como você chegou a dobrar de tamanho
praticamente em massa muscular? É impressionante...!
-
Quando comecei a treinar com o Sílvio, esse era o nome daquele cara que
te falei, ele me indicou o caminho dos produtos [risos], entende?
-
Sim, e aí? Como foi?
-
Ele já era um fisiculturista experiente e conhecia as drogas e como
conseguí-las, tinha conexões certas. Então, ele disse: não tem jeito, você
tem que tomar [drogas], se você souber usar, você vai conseguir ficar
grande e seco, definido, sem nenhum efeito colateral, grande e om
qualidade, entendeu?
-
Então ele te guiou no mundo das academias e da massa muscular?
-
Isso mesmo. Mas tinha um preço, é claro. Ele me abriu os olhos para os
esquemas das academias, com quem eu tinha que me associar, o que eu
160
tinha que fazer, como tinha que treinar, que tipo de gente eu tinha que evitar
para não atrapalhar o meu crescimento.
-
Como assim?
-
É, em todas as academias tem aqueles caras que ficam falando, puxando
conversa o tempo todo, aquelas garotas que ficam de ti-ti-ti, conversando,
se você der trela p’ra essa gente, já era, não consegue treinar, treina
errado, perde tempo. Então, a primeira coisa para quem quer crescer é
encontrar a academia certa. O que é isso? É entrar para aquela academia
que tem gente que malha sério, que não fica conversando na hora do treino,
que não atrapalha mas ajuda. Eu tive sorte, entrei de cara para uma
academia de marombeiros. De gente que competia, séria. Agora se eu
tivesse entrado para uma “perfumaria” dessas aí, talvez tudo tivesse sido
diferente.
-
Então o Silvio te indicou os produtos....e...
-
É. Ele me disse os nomes, como usá-los, que combinações eu deveria fazer
para ter os melhores resultados. Quais os remédios tomar para evitar os
efeitos colaterais, quais as dietas que eu devia seguir. Ele me indicava as
dietas dele...
-
E...
-
Eu fui aprendendo. Mas ele não entregava o ouro logo de cara... cada vez
havia uma coisa nova; uma série, um ciclo novo.
-
E todo esse conhecimento aí, esse, digamos, “saber da maromba”, o Silvio
aprendeu na faculdade...?
-
Não, ele não era formado. Só tinha o 2o grau. Era o que ele dizia. Mas
malhava há décadas!
-
Era um saber prático.
-
Isso aí.
-
Me diz, então como funcionava o esquema. Como ele fazia para te passar
as bombas, essas coisas.
-
Como assim? Você quer saber o quê?
-
Como você tomava os esteróides, o que você fazia, sentia...
161
-
Ele me aplicava. Mas o engraçado é que ele, no início não me dava as
ampolas, nada. Eu chegava na academia e ele me levava p’ro banheiro e
aplicava a bomba, eu não sabia nem qual era. Aliás, eu não era o único.
Como eu, Silvio fazia personal de várias pessoas. Homens, mulheres,
garotas.
-
Você não sabia o que ele te aplicava?
-
Não. No início não sabia nada. Só depois, com o tempo ele foi me
passando as coisas. Eu também queria saber, perguntava. Um dia
perguntei o que ele ‘tava me aplicando. Eu chegava na academia, ia p’ro
vestiário arriava as calças e ele aplicava o óleo. Comecei a procurar saber,
até porque aquela droga doía. Aí ele me disse que era Deca Durabolin.
Com o tempo aprendi até a me aplicar e aplicar nos outros também.
-
E o resultado?
-
Ótimo! Em dois meses eu ganhei quase dez quilos de massa! Tudo bem
que ele me fez malhar que nem um cavalo e comer como um elefante, mas
cresci muito e rápido.
-
Ele te aplicava de graça.
-
Claro que não, né. Como é que o cara ia viver? Ele me vendia por um preço
bem mais alto do que o preço da farmácia. Depois comecei a comprar na
farmácia. Mas eu pagava o dobro p’ra ele. Ele dizia que era p’ra ele
comprar bomba também.
-
Naquela época era mais fácil comprar na farmácia, né?
-
Era, mas depois ficou difícil. Você só consegue hoje na base do conchavo.
Tem que conhecer os caras que vendem, as farmácias que vendem. Se
você chegar lá e pedir assim, na cara de pau, sem o balconista ou o dono te
conhecer, eles não te vendem. Tem que conhecer os caras. Ter conchavo...
-
E como isso funciona? Se eu quisesse por exemplo comprar na farmácia
hoje o que eu teria fazer?
-
Você teria que ser apresentado por alguém que compra, e que já sabe qual
farmácia vende, ao dono ou ao responsável pela farmácia, para ele te
vender. Mesmo assim, às vezes os caras ficam desconfiados...
162
-
Voltando ao caso do Silvio. Qual a dosagem que ele te aplicava? Você
lembra?
-
Ele começou me aplicando um ciclo-pirâmide. Na primeira semana ele me
aplicou duas amploas, na segunda quatro, na terceira seis – aí eu já ‘tava
pedindo arrego porque o local da injeção fica dolorido, mas ele falou: sem
dor não tem ganho, mané. Depois ele continuou quatro, três duas e uma no
final. Depois começou a misturar Deca com Durateston, aí é que o bicho
pegou. Cresci mesmo!
-
Depois que você passou a saber o caminho das pedras, os lugares de
venda, você mesmo começou a se aplicar?
-
Isso! Com o tempo a gente aprende a ter autonomia. Ele foi me passando
onde, com quem comprar.
-
Era um mestre da bomba?!
-
Isso aí!! Mas tem coisas que não adianta a farmácia. ... na farmácia você dá
o passo principal mas não é só ela ... existem
produtos que não são
vendidos nas farmácias; só comprando de quem importa, então você tem
que ter os contatos certos.
-
Que contatos são estes?
-
As pessoas certas nas academias que vendem as bombas. Se você quiser
Winstrol, por exemplo, você tem que comprar de alguém que traga de fora
já que não tem no Brasil.
-
Certo. Mas voltando. Por que você acha que o Silvio quis te treinar quando
você era um recém-chegado na academia dele?
-
Eu acho que esse era o negócio dele, como é de muita gente nas
academias. O cara pega alguém, transforma o corpo da pessoa e mostra
p’ra todo mundo que ele é que fez aquilo. Então, o corpo do cara ou da
mulher que ele transformou serve de propaganda para ele. O Silvio vivia, e
vive, disso. Eu, por exemplo, comecei a mudar radicalmente em dois
meses. Isso chamava gente p’ra academia dele. Chega um cara lá a fim de
crescer ele fala: ‘ta vendo aquele grandão ali em seis meses ele ficou
enorme aqui na academia. Então, é como se ele dissesse aqui nós temos o
melhor método para você crescer. Fora isso, os caras que nem o Silvio
163
ganham dinheiro vendendo bombas e dando personal. Ele não me cobrava
o personal, só a bomba, mas em geral eles cobram o personal. Então o
cara, a pessoa que ‘tá a fim paga, além da mensalidade, da bomba, do
suplemento, o serviço de orientação do cara, do instrutor. É um negócio
também. Entendeu? Os donos de academias de marombeiros, de
fisiculturistas, gostam de ter caras grandes para mostrar aos pequenos que
lá eles ficaram assim, com a ajuda deles
-
Certo. Mas em outras academias eu já ouvi os donos reclamando dos
bodybuilders. Dizendo que eles não gostam de pagar, quebram os
aparelhos, são grossos e estão pedindo sempre patrocínio...
-
Por isso que eu falei da academia certa. Se o cara que é marombeiro de
verdade for numa UC [Universidade do Corpo] ou numa Ibeas da vida, é
claro que não vão querer ele lá, porque o público é outro. É uma porrada de
patricinha e mauricinho que vão desfilar roupa e bater papo e pagam uma
fortuna de mensalidade p’ra isso. É gente que ‘tá ali pelo social, entende,
não é marombeiro. É perfumaria...
-
Por que perfumaria?
-
Por que se enchem de perfume p’ra malhar [risos]. Não gostam de suar...
-
Então são públicos diferentes?
-
Claro!
-
Miuito bem. Vamos voltar ao presente. Me diga que tipo de esteróides você
usa, como e quando...
-
Eu gosto de usar de um a seis tipos de esteróides por ciclo, isso depende
do meu dinheiro: Deca, Primobolan, Durateston, Winstrol e Anavar. Às
vezes substituo o Durateston pelo Deposteron. Eu tomo 600mg [uma
ampola tem 50mg] de Deca por semana, 400 mg de Primobolan, Winstrol
eu tomo na segunda, na quarta e na sexta, procuro tomar comprimido
porque é muita injeção, Anavar também, e tomo Durateston...
-
Só isso que você toma....? [risos]
-
Eu uso isso aí por seis semanas direto, depois paro mais seis. Junto eu
tomo 3 gramas de GHB (gamahidroxibutirato. Droga muito usada em raves
européias e americanas e que está chegando ao Brasil. Serve para relaxar
164
e desinibir. Também tomo Creatina e Albumina uma hora antes do treino,
todo dia. Ela funciona muito bem com Anavar. Depois das seis semanas eu
paro e só mantenho Creatina, o Novaldex e o GHB.
-
E como funciona isso, me diz aí, mais ou menos...
-
Bom, o GHB eu tomo para equilibrar a produção de hormônio do
crescimento,
o
Novaldex
é
para
impedir
ginecomastia,
porque
a
testosterona vira estrogênio se você não cuidar, então, o Novaldex não
deixa ter ginecomastia; nunca tive ginecomastia ou fiquei retendo líquido
porque ele também não deixa reter líquido. A Creatina e a Albumina não me
deixam perder força. Por isso, não tenho nenhum efeito colateral da bomba.
Agora também estou fazendo um tipo de terapia celular tomo hemoglobina
(Mioglobyn), na veia, uma vez a cada duas semanas. Ela oxigena o sangue
e me dá bastante disposição p’ra treinar. Já tomei também insulina....
também tomo Clomid (remédio para infertilidade feminina) nas duas últimas
semanas para ter certeza de que tudo vai ficar bem.
-
Você não sente nada mesmo?
-
Só espinha, acne e insônia. Não tenho problema de fígado nem pressão
alta. Nada diso. O GHB equilibra resolve o problema do sono. Tem atleta
que usa maconha para relaxar [risos]. Eu não gosto. Outro dia li que o GHB
deve ser proibido também, estão querendo proibir. Vou te dizer uma coisa,
essas proibições são ridículas, tudo hipocrisia...Quanto mais proibe pior,
mais dinheiro rola. As drogas, todas tinham que ser liberadas. É pura
politicagem. Tudo interesse de alguns setores da polícia e principalmente
dos médicos e das companias de suplemento alimentar. Quando se proibe
um remédio o que se faz é reforçar o poder do médico.
-
Por quê?
-
Porque, Cesar, eles continuam receitando, e não é só isso, se você quer
usar bomba
mesmo, você vai ter que fazer exame, vai ter que ser
controlado. Não digo nem os fisiculturistas, porque aqui no Brasil isso não
dá dinheiro; mas os outros atletas, todos tomam esteróides, todos, posso te
afirmar. Não tomam como nós, é óbvio, mas tomam e quem passa? Quem
administra? O médico! O médico que cuida deles, junto com os treinadores.
165
Então, é uma máfia, uma indústria que lucra com a proibição. Por outro
lado, se você tem dinheiro, você consegue tranqüilamente com um médico
especialista uma
terapia de reposição hormonal, e esses médicos são
caros, porque quem faz isso são os atores, os ricos, as dondocas que ficam
se enchendo de hormônio do crescimento, para rejuvenescer. Então, se
você quer conseguir a droga de forma legal você tem que pagar o médico:
a consulta, os exames, cada vez que você vai lá, então o cara ganha para
ficar administrando sua vida. É interessante, porque proibem os esteróides
androgênicos e não proibem os hormônios femininos? Então se o cara quer
virar travesti ele pode se encher de estrogênio para parecer mulher,
implantar silicone, colágeno, cortar o pau e tudo bem! Agora se você quer
parecer homem você está agindo de forma anti-ética, ilegal! E os impérios
de suplemento? As revistas estão cheias de propaganda das companias de
produtos de nutrição. A gente que malha há muito tempo sabe que muita
coisa ali, L-carnitina, por exemplo, não adianta nada, não tem qualquer
efeito, a não ser psicológico. Se tiver. Então os caras cobram uma fortuna
por esses produtos supostamente naturais. Muitos deles, por outro lado,
são produtos hormonais. Tem produto que aumenta a produção de
testosterona, aumenta a produção do hormônio do crescimento e é
anunciado como natural. Não é natural! Porque o efeito vai ser o mesmo no
final. Se você se aplica testosterona ou se o seu organismo produz uma
grande quantidade de testosterona os riscos de câncer e pressão alta vão
ser os mesmos. A diferença é que um é legal e o outro não. E mais. O que
é legal chega a custar dez vezes mais que os esteróides. Eu te pergunto: é
mais jogo você comprar uma âmpola de Durateston que custa R$ 6,00 ou
comprar um pote de suplemento que custa quase R$200,00? A diferença é
que as pessoas compram o mais caro por dois motivos: o primeiro porque é
legal. O segundo porque a propaganda diz que é natural, entende? Elas
acham que não faz mal. Então se os esteróides fossem liberados você acha
que as companhias de suplementos iam ganhar o dinheiro que ganham? Os
médicos? E a polícia?
-
Entendi. Ainda nesse assunto: você faz exames?
166
-
Faço. Sempre faço exame de sangue, nível de hormônio, próstata...também
fico sempre de olho na glicose e na pressão. Tenho aparelhos em casa
para medir.
Mas também não como porcarias. Como muita proteína e
carboidratos. Acho que por isso também que não sinto efeitos colaterais.
Porque se o cara toma testosterona e come gordura, já era. O colesterol
dele, que a testosterona já faz aumentar, vai lá em cima! Minha dieta é de
peixe e peito de frango grelhado. Só como boa gordura, azeite virgem direto
e nunca como frituras. Só como carne magra e não como açúcar de jeito
nenhum. Doce, nem passo perto. Como frutas, não muitas, e sal quase
nunca. Então a coisa fica mais ou menos assim: carboidratos 30%, proteína
40% e gordura 30%. É duro, mas funciona.
-
Quantos dias por semana você malha?
-
Seis dias. Pesado. Mas o treino está sempre mudando em conformidade
com a época, né.
-
E qual o peso? Quanto você pega de supino, agachamento e deadlifting
(base)?
-
Supino, 250 quilos, agachamento 320, e levantamento base 340 quilos. É
claro que uma vez só [apenas uma repetição]. Eu treino pesado com duas
séries de repetições descansando e fazendo repetições isométricas. Isso
quando estou bombado. Nas semanas em que não estou tomando
esteróide eu pego mais leve e mudo o treino colocando mais repetições de
exercícios para definir. Quando estou ganhando massa eu uso peso livre,
nada de máquinas, a não ser o rack machine. Faço supino, levantamento
base, agachamento, paralelas, trapézio, bíceps, tudo com peso livre, barras
e anilhas. Faço três exercícios para os grandes grupamentos musculares e
dois para os pequenos. Meus braços crescem muito rápido, então, faço
menos exercícios para bíceps e tríceps. Quando estou me preparando para
competir a coisa muda de figura. Eu ataco cada grupamento muscular com
quatro exercícios de uma vez
e faço uma hora por dia de bicicleta
ergométrica. Faço muitas repetições, doze para cima.
-
E seu gasto calórico, sua dieta ?
167
-
Quando estou ganhando massa eu consumo mais de 4500 calorias por dia.
Quando estou começando a emagrecer baixo para 1500 por dia e duas
semanas antes da competição reduzo a comida para 700 calorias por dia. É
duro! Eu também bebo de dois a três litros de água destilada por dia. No
período de competição retiro todo o carboidrato da comida e fico comendo
peixe e peito de frango. Essa é a pior parte porque quando a gente tira o
carboidrato é horrível, dá fraqueza, sonolência, irritação, não gosto de fazer
dieta. No período de definição, para não enlouquecer, eu, de quatro em
quatro dias, como 100 gramas carboidrato, na parte da manhã e outra antes
de malhar. Às vezes para ajudar nisso tudo tomo Lasix, Cytomel e Xenical e
três dias antes da apresentação reduzo drasticamente o consumo de água.
-
Que remédios você toma para definir a musculatura, para emagrecer além
do Lasix do Cytomel e do Xenical?
-
Quando estou me preparando para competir tomo bomba e faço dieta por
doze semanas direto. Injeto 400mg de Primobolan Depot por dia, uma
ampola de Winstrol cada dia e tomo Clenbuterol [remédio para asma que
acelera o metabolismo provocando o emagrecimento] também, ainda dez
comprimidos de Anavar e Esiclene. Anavar com Esiclene [injeção localizada
para fazer uma determinada região muscular inchar] funcionam bem na
dieta, se não tiver Esiclene tomo Synthol que é mais fácil de achar. Às
vezes uso Efedrina com Clenbuterol, seca muito. Tem também Clenbuterol
em xarope que faz perder gordura se o cara tomar meio vidro por dia. Em
último caso tem o Aerolin [também para problemas respiratórios] que não é
tão bom como o Clenbuterol, mas serve.
-
Você usa mesmo Synthol?
-
Sempre tenho guardado no meu armário. Injeto no tríceps, no bíceps, nos
deltóides e na panturrilha três dias antes de competir.
-
Você toma muita injeção, não dá problema?
-
Ah, dá. Já tive dois abcessos. Mas procuro fazer rodízio. As mais leves eu
procuro aplicar nos ombros, os esteróides eu aplico nos glúteos e nas coxas
porque são a base de óleo.
-
E hormônio do crescimento você usa muito?
168
-
GH? É muito bom, mas você sabe que muitos anabólicos sozinhos não
surtem grandes efeitos, eles têm que ser combinados com outros. Exemplo
é o Winstrol. Se você tomar ele sozinho não vai sentir quase nenhum efeito
agora se misturar com Primobolan, Testex, Durateston ou Deposteron a
coisa muda de figura. Acho que com o GH ocorre coisa parecida. Eu uso
sempre para dieta antes das competições, mas sempre combinado com
Durateston, aí o GH realiza milagre, a qualidade muscular melhora muito e
a definição melhora 100%. Nesse caso de definição ele [o GH] funciona
bem também com Efedrina. A queima de gordura é altíssima. Tem gente
que usa insulina também, mas eu não gosto. Já vi um cara morrer disso e
não gosto de arriscar. Eu usei com GH uma vez e o efeito estético foi muito
bom. Passei seis semanas fazendo o ciclo com GH e ganhei 16 quilos
enquanto minha porcentagem de gordura baixou em torno de 4% no total,
mas comecei a me sentir mal, sem vontade nenhuma de comer e muito
sonolento. Eu tive que tomar Progesterona com Durateston para melhorar.
Agora, além de tudo isso, a dosagem mínima de GH tem que ser de 4U.I.
por dia, se não for assim, é jogar dinheiro fora, e GH é caro.
-
Voltando à questão do GHB. É bom, mesmo?
-
Ótimo. Anticatabólico. Relaxa, é melhor que Diazepan. Estimula a produção
do hormônio do crescimento e é diurético. Melhora a massa muscular e faz
perder gordura em duas semanas. A melhor forma de tomar é à noite.
-
E a progesterona, não é hormônio feminino?
-
Isso. Mas se você usa com a testosterona os resultados são muito bons
porque melhora o apetite e o equilíbrio hídrico.
-
E os suplementos alimentares?
-
Uso, claro. Eu tomo seis shakes por dia de Whey protein e egg proteyn .
Uso glutamina, vitamina C duas vezes por dia, 1 grama cada vez. Vitamina
E e arginina depois do treino. Os dias que como frango, eu tomo 1 grama
de metionina e glicina que é para melhorar a produção de creatina.
Também tomo complexo B para proteger o fígado.
Também tomo iodo
antes de competir para vascularizar (aparecerem as veias).
-
E Hemogenin?
169
-
Não, não uso. É o esteróide mais perigoso que já vi na minha vida. Já usei,
mas é muito perigoso. Conheço gente que com alguns comprimidos ficou
internada com hepatite medicamentosa. Não tomo de jeito nenhum.
-
E produtos veterinários?
-
Não costumo usar mais, não, já usei, mas muita gente que conheço usa e
muito. Androgenol e Equifort são os anabolizantes p’ra cavalo que vejo
muita gente usando, aqui mesmo conheço umas pessoas que usam.
Também tem gente que usa vitamina p’ra cavalo, mas eu não acho
necessário. Só usaria se não conseguisse encontrar o que eu preciso.
Entende, no desespero eu usaria tanto as bombas quanto as vitaminas...
-
Bom, obrigado pela entrevista...
-
Nada... Quando quiser é só falar.
A Forma da Dor
Outro aspecto relacionado à “magia” do uso de esteróides anabolizantes
é aquele ligado ao risco de vida e à dor causada pelos problemas de saúde
que o uso contínuo de tais substâncias pode provocar. Antes de julgar
ignorância ou falta de racionalidade o fato de alguns indivíduos colocarem em
risco a própria existência utilizando drogas, é necessário focalizar o aspecto
social que confere significado a tal uso. Este, freqüentemente, está imerso em
sistemas simbólicos com lógica própria. Em se tratando do sistema simbólico
inerente aos grupos sociais das academias, a dor e o sacrifício aparecem como
um preço a ser inevitavelmente pago pela conquista de uma vitória presumível
na construção de uma identidade inerente à aceitação em um grupo restrito.
A demanda de significação face à dor experimentada ultrapassa o
sofrimento imediato: “Compreender o sentido de sua pena é uma outra maneira
de compreender o sentido da vida” (Le Breton, 1995:107), pois todo grupo
social define implicitamente a legitimidade de suas dores. No caso das
academias de musculação, ela – a dor - não apenas está presente no risco
causado pelo uso dos esteróides, mas no próprio cotidiano dos exercícios. O
fisiculturista, através da sua prática, aprende a construir um vasto mapa
170
sensorial - um saber corporal - que classifica os tipos de dor alocando-os em
mais ou menos danosos, construtivos ou destrutivos. A dor (e o risco de vida e
de lesões) é vista de forma positiva e sua constituição é ritualizada de forma a
conferir àquele que a sente e cultiva um determinado papel construído através
das interações sociais nas quais o próprio sentimento da dor apresenta-se
como fator fundamental da elaboração identitária. A capacidade pessoal de
resistência ao sofrimento doloroso – relacionada aos gradativos exercícios com
pesos que acabam causando lesões por esforço repetitivo e hérnias – é uma
via de aquisição de status no grupo, visto que também a concepção de dor
purificadora está presente neste universo. Assim, o risco de vida e a
intensidade da dor sofrida realizam um processo ritual de construção do papel
social que se institucionaliza conferindo àquele que se submete ao processo
uma aceitação crescente. O uso ritual de esteróides e o sentimento da dor
consagram a diferença, instituindo-a. Dor e drogas, no campo da musculação
ou do fisiculturismo, fazem parte de ritos de passagem ou de instituição que
não apenas permitem a passagem dos indivíduos de um papel a outro no
grupo (Bourdieu, 1996), mas também reiteram as características específicas de
status, já que a eficácia e o poder daqueles que estão em funções de
dominação devem ser constantemente provados através de ações que
constituem as representações de poder. O rito da dor e das drogas delimita a
distribuição de autoridade no interior do campo da musculação através do que
Lévi-Strauss (1976) denominou eficácia simbólica, ou seja, o poder, que é
próprio do rito, de agir sobre a realidade agindo sobre a representação que os
indivíduos fazem desta realidade. Portanto, nas academias, ao adquirir, pari
passu, um corpo musculoso, o aspirante a fisiculturista consagrado (ao menos
no seu grupo delimitado) vai sendo alçado a um novo papel. Sua identidade –
mesmo sendo volátil, visto depender da brevidade da forma – vai se
construindo continuamente, e a dor e o risco de vida inscrevem-se como
emblemas em seu corpo moldando em sua carne o perfil musculoso do status
diretamente radicado na fugacidade. Fugacidade que acaba tornando-se a
tragédia daqueles que da forma extraem quase todo seu poder (Sabino, 2000;
2003). Por outro lado, quanto mais difíceis são as etapas que um indivíduo
171
atravessa para pertencer a uma instituição, e desfrutar seu status, mais valor o
mesmo confere a esta (Bourdieu,1996; Segalen, 2002). A existência de
distinção das dores49 entre os fisiculturistas demonstra um entendimento
sensorial do metabolismo muscular que as organiza em boas dores, aquelas
que apontam para “um funcionamento construtivo do músculo”, entenda-se tal
aspecto enquanto crescimento muscular, e dores más, aquelas que apontam
para lesões articulares. Assim, o edema muscular pós-treinamento é o melhor
sinal de que os exercícios estão fazendo efeito.
“Eu malho há seis anos e já ‘tô viciado nessa dorzinha
aguda que dá dentro do músculo depois de cada treino bom... não
sei viver sem isso... no carnaval, quando viajo fico maluco!!! Me
penduro em árvore pra fazer flexão de braço, fico procurando
bujão de gás p’ra levantar... agora abriram uma academia lá em
Araruama, tomara que funcione nesse carnaval... não consigo
ficar sem malhar... quando paro de sentir o músculo doendo
depois dos treinos ou no dia seguinte, começo a ficar doente e
deprimido (Gabriel. 22anos. Estudante).
Ao contrário da dor positiva, que ocorre após o que chamam “exercícios
de qualidade”, acionada pelo movimento do grupo muscular treinado, dor que
não produz qualquer impedimento à movimentação, há a dor negativa que é
definida como mais circunscrita a uma determinada região e com intensidade
diversa diretamente associada à dificuldade de movimentação daquele grupo
muscular ou mesmo membro. Enquanto a concepção de boa dor está ligada à
execução perfeita de exercícios e séries da musculação, a má dor, ao
contrário, é resultado de excessos e execuções equivocadas. Assim, basta o
diagnóstico de uma dor de intensidade diferente em local suspeito para que o
49
- Até a década de 20 do século XX a dor apresentava papel diverso daquele que passou a apresentar
posteriormente com a crescente apologia do conforto inerente à sociedade de consumo. Com o
surgimento de substâncias para controlar a dor esta foi relegada a uma dimensão exígüa da realidade: “A
dor física pertencia à vida cotidiana, e não era vista como uma falha da medicina. Consumia-se uma
quantidade muito menor de analgésicos do que hoje em dia, e as pessoas, bem ou mal, se acostumavam a
suas insônias sem recorrer a soníferos..” (Vincent, 1992:324).
172
indivíduo portador da mesma seja classificado pelos especialistas nas
academias – professores ou fisiculturistas mais experientes – como propenso a
adoecer (sofrer lesão muscular ou de articulação) devido ao fato de ter
realizado de forma errônea seus exercícios. Neste aspecto, pode-se repetir
com Le Breton (1995:108):
“Todas
as
sociedades
definem
implicitamente
uma
legitimidade da dor que antecipa as circunstâncias sociais,
culturais ou psíquicas reputadas penalizáveis. Uma experiência
acumulada do grupo conduz seus membros a uma expectativa da
dor costumeira imputável a esses acontecimentos... a sociedade
indica simbolicamente o limite do lícito, ao realizar tal processo se
esforça para dissuadir os possíveis excessos”.
Há entre os fisiculturistas, portanto, uma ritualização da dor que organiza
os sentidos musculares e transborda em sentimentos sociais de progresso na
prática ou de recesso causado pela conduta errada. Tal aspecto estende-se
também à alimentação: enjoôs, mal-estar, falta de disposição são tidos como
uma espécie de variação desta(s) dor(es) causada pela má conduta,
consciente ou não, daquele que é o sofredor destes processos de disfunção
fisiológica. Entre eles, a dor negativa e perigosa é aquela que prenuncia a
impossibilidade de treinar, aquela que indica bursites, tendinites ou problemas
nas articulações dos joelhos e tal impedimento de treinar é o castigo mais
doloroso, visto que sua esta identidade está relacionada à forma física que
depende de intenso treinamento diário para ser mantida. Perder esta forma,
não apenas significa retrocesso e queda de status, mas a perda da própria
identidade pessoal e conseqüente exclusão do grupo; ou seja, morte social.
A performance muscular radicada na percepção das modulações da
dor50 é, grosso modo, o cerne da busca pela diferenciação em relação a outros
50
- Durante o tempo do trabalho de campo, percebi que o treinamento deve levar a um quantum de dor
muscular residual e também uma certa dor nos músculos e tendões. Tal aspecto atesta, entre os praticantes
assíduos de musculação, um treinamento eficaz. Saber diferenciar esta dor da lesão é fundamental para o
fisiculturista e tal saber só é adquirido com a prática, em geral após o mesmo ter sofrido lesão grave. O
173
grupos e identificação dentro do próprio grupo de fisiculturistas : “a dor, essa
dor no fundo do músculo, quer dizer que a malhação tá certa, cara; e depois
você sente aquela sensação de leveza depois da adrenalina do exercício... e
se você sente isso você tá crescendo, ‘cê tá se diferenciando dos inferiores,
dos comuns, dos pangarés...” (Carlos. 24 anos. Estudante).
O sofrimento
aparece também como a via de ascensão hierárquica e mesmo espiritual:
“ é demais sentir cada fibra arrebentando quando você tá
malhando pesado e depois aquela dorzinha aguda no dia
seguinte... cada movimento que você faz ela tá lá te lembrando
que você tem o dever de continuar, que você deve voltar de novo
p’ra academia e fazer outra série mais pesada, mais dolorida,
mais radical, cara, p’ra crescer mais e mais e mais e se tornar um
campeão. É disciplina, e sem disciplina não se chega a lugar
nenhum. Sem dor não se ganha nada na vida... é um vício, se eu
não sinto dor no dia seguinte após malhar é porque alguma coisa
tava errada, é porque a maromba não foi direita, a malhação foi
fraca, sem efeito... no pain no gain. Essa é a diferença de quem
malha sério do resto que não malha...” (Pedro. 29 anos.
Funcionário público).
Os outros, neste discurso, os “pangarés”, são todos aqueles que não
têm inscrito em seus músculos a marca da disciplina rígida traduzida na dor
dos exercícios pesados e repetidos durante anos de prática nas academias.
Este regozijo da dor, típico de um ascetismo singular, parece significar que em
uma era em que a busca do prazer tornou-se norma, o sentido da dor é a única
maneira de afirmar a vida sem se sentir igual a todo mundo. Porém, este
processo esquece que seu próprio movimento reitera a reprodução pela busca
incessante do gozo que a sociedade do consumo e do espetáculo engendra.
que se pode dizer é que o início da lesão grave é atestado pela intensidade da dor que chega a limitar os
movimentos.
174
Arriscar a vida tomando substâncias tóxicas como esteróides e
estimulantes como efedrina ou mesmo insulina 51 é outro aspecto da apologia
ao risco e à dor que sistematiza a identidade do grupo:
“Cara eu não sei como te dizer o que sinto... posso tentar,
sei lá... sabe quando tu bota um pega [corrida de carro] e a
adrenalina vai a mil? Sabe quando tu tá de moto e tira um fino
entre dois caminhões ou faz aquela curva no Alto da Boa Vista, é
isso... esporte radical, entende? Tomar bomba, insulina é isso, é
um risco, mas dá prazer.. é o risco que dá prazer, que é bom....
tudo que é proibido é bom e o melhor é que além disso tu fica
sarado, você toma produto, curte e ainda fica bonito, não é o
máximo?” (Mário. 32 anos. Personal trainner e fisiculturista).
Esta combinação aparentemente comum à sociedade de consumo,
induz os indivíduos a desejarem extrair sempre mais prazer do seu cotidiano,
combinando a ética do trabalho protestante -com sua disciplina e ascetismo- ao
hedonismo e narcisismo de uma ética imediatista do consumo (Campbell,
2001; Villaça & Góes, 1998).
A dor, neste sistema simbólico, está diretamente associada a uma
espécie de purificação que poderia ser traduzida pela categoria de
“perfectibilidade” (Duarte, 1999:24). A idéia, inerente ao imaginário ocidental –
provavelmente surgida com o movimento iluminista - de que a espécie humana
é dotada de uma capacidade de se aperfeiçoar indefinidamente,
“de entrar na senda disso que desde então [século XVIII]
chamamos de progresso, o desenvolvimento, a transformação
ilimitada, a vanguarda – palavras estas fundamentais para nossa
cultura, todas elas decorrentes da idéia de que nós somos seres
51
- Tal uso de novas drogas pode ser inserido em um processo típico das sociedades complexas ocidentais
denominado por Duarte “medicamentalização”. De acordo com o autor, este movimento, com o auxílio
dos meios de comunicação de massa, exalta o uso do corpo, a construção de um corpo ótimo, a
maximização da saúde, etc. (Op.Cit.:22). Paradoxalmente, esta maximização por vezes acaba matando
aqueles que a empreendem.
175
providos de uma capacidade de perfectibilidade constante e
indefinida que nos distingue dos demais seres existentes sobre a
face da Terra” (Idem.).
O uso do sofrimento – e até mesmo o prazer nele contido – está
relacionado a uma etapa de aprimoramento e conquista da intensidade da
existência e maximização do gozo subsumidos em um movimento de
sensibilização crescente do corpo e excitação gradativa dos sentidos de modo
geral.
Mas a dor também tem função iniciática, estando presente em todas as
chamadas técnicas corporais, ela acompanha os ritos de passagem
instaurando-se nos indivíduos enquanto memória inscrita na carne e signo de
pertencimento a um grupo social específico. Um número significativo de grupos
de jovens e adultos das sociedades complexas ocidentais imitam os ritos de
passagem das chamadas sociedades simples realizando lacerações na língua,
escarificações, piercings, tatuagens, escoriações, queimaduras, suspensões
por ganchos cravados na pele, bungee-jump,52 etc., práticas que podem tomar
sentidos diversos das originárias, mas que, da mesma forma, carregam a dor,
ou ao menos o medo, em seu bojo. Assim, tanto nestas sociedades quanto
naquelas, esta experiência da dor e do medo expressa uma espécie de
mutação ontológica; passagem de um universo social a outro, o que significa a
entronização do indivíduo em um estado existencial diverso. A cicatriz ou a
experiência momentânea da proximidade da morte traduz o pertencimento a
um novo estatuto. Em uma época em que a virtualidade é expressão cotidiana,
as relações precárias e passageiras, as imagens fugazes e o cotidiano eivado
de experiências turbulentas, a necessidade de sempre atualizar uma condição
radicada na reconstrução imagética se faz necessária. No caso dos
52
- A suspensão por ganchos cravados na pele era parte de rituais de iniciação de tribos da américa do
norte, o bungee-jump, saltar de alturas elevadas tendo os pés presos por uma corda elástica, era praticado
pelos nativos da oceania que prendiam os pés com cipós, as escarificações pertenciam aos rituais de
determinadas tribos africanas, a prática do piercing está relacionada aos rituais ameríndios. Tais práticas
adotadas pelos grupos das grandes cidades remetem aos estudos de Maffesoli sobre a proxemia volátil
que ocorre nos grandes centros mundiais em que se formam tribos urbanas organizadas em torno da
construção de identidades calcada na articulação de vários símbolos e práticas específicas, em geral
176
fisiculturistas, em que a imagem do corpo musculoso é a própria via de
afirmação de sua identidade, os rituais constantes são necessários e sempre
renovados, pois o corpo, fadado inexoravelmente à decadência, sempre foge,
de uma maneira ou outra, dos padrões impostos pela sociedade53. A
necessidade do uso constante de drogas e substâncias especiais e de
variações de intensidade e extensão dos exercícios constrói um cotidiano
identitário que necessita ser ritualmente refeito a cada dia e no qual a
experiência do dor se faz necessária e inevitável. Os exercícios devem ser
realizados até as últimas consequências físicas, provocando dores musculares
agudas, para que os resultados sejam atingidos. De fato, se não estiverem
acompanhados pela dor, não possuem qualquer eficácia, segundo os
praticantes. Sem dor não há progresso, sem dor não há nem mesmo a
manutenção do que já foi conquistado; sem dor só há decadência. A
manifestação ostensiva da dor, portanto, é motivo de orgulho e honra para os
fisiculturistas. Os mais experientes relatam com constância suas lesões por
esforço repetitivo ou torções nas quais distenderam músculos, arrebentaram
ligamentos, obtiveram fraturas por avulção54, necessitando realizar cirurgias.
Como o levantamento de pesos é fundamental para a construção do
fisiculturista, uma lesão representa sério risco de dissolução identitária.
Portanto, desenvolver a técnica de treinar lesionado é fundamental para estes
indivíduos. Este é um saber prático que não é possível ser aprendido em livros.
Esta pedagogia implícita é produto da prática em sua mais pura acepção. Não
há um modo específico de aprender a treinar lesionado, e como as dores das
lesões são constantes e comuns, o aprendizado se realiza com o tempo. Tal
fato pode ser aplicado também aos próprios exercícios, que apesar de serem
absorvidas de outros contextos. Tal processo é denominado pelo autor de neo-tribalismo (Maffesoli,
1987; 1996).
53
- O estudo de Lopes (1995) sobre os dolorosos e arris cados processos de transformação do corpo entre
os travestis demonstra que estes apresentam uma lógica simetricamente invertida àquela do fisiculturista;
enquanto um sofre para apresentar hipermasculinidade, o outro sofre para construir uma
hiperfeminilidade: A autora apresenta o processo de transformação corporal de um homossexual, a
“bichinha-boy Alan”, de acordo com ela, que transforma-se no travesti Elisa Star. Relata o sofrimento do
seu informante diante das incontáveis aplicações e ingestão contínua de hormônio feminino, injeções de
silicone com agulhas para uso veterinário e a prova de carregar durante quarenta dias um pedaço de cabo
de vassoura atado ao peito com um barbante para evitar que o silicone aplicado não passasse de um lado
para o outro. Apesar de todo o sofrimento, a satisfação de Alan-Elisa é grande, testemunhando “a
coragem de levar esse sonho a sério” (:254).
177
estruturalmente os mesmos infinitamente combinados, sua intensidade e
eficácia só é apreendida individualmente na coletividade orquestrada das
academias, ou seja, na prática. Assim, como no boxe, não é possível aprender
a ser atleta “no papel” (Wacquant, 2002:121). Os manuais pouco têm a ensinar
de fato àquele que deseja ser um fisiculturista. Um indivíduo pode comprar uma
enciclopédia de musculação e todos os pesos e máquinas de exercícios e
instalar em sua casa, mas nunca conseguirá tornar-se um fisiculturista sem
freqüentar durante longos anos as academias de musculação, pois o saber do
grupo se apresenta na ação e só pode ser adquirido efetivamente de forma
implícita, prática e coletiva através de uma manipulação regulada do corpo que
somatiza, concretiza um saber coletivo detido e exibido pelos membros desta
instituição a cada patamar da hieraquia tácita que a atravessa (Wacquant, Op.
Cit.). O sentido da dor e da lesão, seu simbolismo e significado precípuo, além
das formas e indicações de como tratá-la e continuar cultivando a
muscularidade só são aprendidos no cotidiano das instituições dos “adoradores
do ferro”. Wacquant, parafraseando Durkheim, escreveu que “o gym está para
o boxe assim como a igreja está para a religião” (Idem :120). Tal afirmação – as
academias estão para o bodybuilding assim como a Igreja para religião poderia ser aplicada às academias de musculação.
A experiência da dor confere sentido à existência e ao mundo incitando
o ser humano a organizar sua realidade ao permitir-lhe vislumbrar a dimensão
negativa que simultaneamente nega e afirma tal existência: a morte. Ela – a dor
– é inerente à vida como contraponto que confere sua plena medida ao fervor
de existir (Le Breton, 1995). Em consonância com tal pensamento pode-se
destacar o que escreveu Montagne:
“haverá na dor experimentada algo comparável ao prazer
da repentina melhora? Muito mais bela é a saúde depois da
enfermidade... Dizem os estóicos que os vícios são úteis pois
valorizam a virtude; com maior razão pode-se dizer que a
54
- Quando, devido ao esforço, um pequeno pedaço de osso é arrancado e fica conectado a um tendão.
178
natureza nos deu o sofrimento a fim de realçar a excelência do
prazer e da tranqüilidade” (1980:490).
A lógica social presente na experiência da dor funciona de forma similar.
Assim como o ritual da tragédia grega afirmava a existência humana e,
portanto, social, exaltando o paradoxo e por vezes o absurdo (Lesky, 1976); de
forma parecida a visão do efêmero inscrito nas superfícies dos corpos e das
práticas demonstra a profundidade deste enigma que se configura como ser
humano em sua condição de esperançoso sofredor. As palavras de Nietzsche,
da mesma forma que as de Montagne, podem sintetizar esta processo coletivo
de modulação, controle e, portanto, aplicação da dor:
“ o homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao
sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura
inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê
no sofrimento. A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a
maldição que até então se estendia sobre a humanidade – e o
ideal ascético lhe ofereceu um sentido!” (1988: 184. Grifo do
autor).
A Lógica da Classificação Muscular
A dor e o uso de esteróides são itens diretamente relacionados as
competições de fisiculturismo. Tais competições anuais podem ser comparadas
indiretamente a rituais religiosos (Segalen, 2002). Os cenários competitivos são
montados, não raro, com elementos que fazem alusão à mitologia dos heróis
guerreiros do cinema americano, e às forças da natureza, combinando tais
aspectos com músicas de ritmos marcantes que acabam induzindo um certo
êxtase no público. Este, busca ver e ter contato com seus “ídolos”, montanhas
de músculos cintilantes que se tornam famosas no crescente campo do
fisiculturismo brasileiro pelo seu tamanho e pela originalidade de suas poses.
Os apresentadores e juízes (que poderiam ser comparados a sacerdotes), a
179
pompa decorativa e o luxo produzem a epifania da forma e a comunhão dos
“iron worshipers” (Fussel, 1993:89). O corpo, transformado em síntese viva da
mercadoria estética, torna-se objeto sagrado. Um emblema de adoração, ídolo,
valor supremo a ser perseguido, cultivado, cultuado e adorado. Deuses
primitivos, deuses contemporâneos. Se o desencantamento do mundo está
presente na modernidade (ou na alta modernidade ou mesmo pós, tal
discussão não vem ao caso), os grupos sociais não se cansam de produzir
objetos de adoração que conferem sentido às suas existências. Conforme
Bergson escreveu em As Duas Fontes da Moral e da Religião (1979:220, 238)
: “ homo homini deus... o universo é uma máquina de fazer deuses”.
O Iluminismo criou valores que tornaram-se pilares da cultura ocidental.
Tais valores constituiram-se enquanto representações sociais que conferiram
atitudes a coletividades inteiras, movendo-as em direções a golpes e
revoluções políticas. Idéias como liberdade,
igualdade e democracia, entre
outras, têm história e fazem parte do imaginário de milhões de pessoas no
mundo inteiro, sendo para estas, muitas vezes, valores indiscutíveis. Na alta
modernidade, o corpo surge como mais uma idéia e valor a ser somado ao
panteão de entidades abstratas que habitam as culturas ocidentais. O corpovalor parece ter se transformadao em uma entidade perfeita, inatingível,
perseguida de toda forma. O culto à forma sagrada deste corpo tem crescido
ao redor do mundo, amealhando um grande número de fiéis e iniciados que
diariamente se dedicam aos halteres e espelhos. As competições parecem
representar a consolidação de práticas que assemelham-se a uma liturgia
anual que vem mostrar ao público as últimas novidades para a construção do
corpo. Esta demonstração se realiza por intermédio da apresentação dos
ídolos (campeões de fisiculturismo) que venceram na vida inflando seus
músculos. É neste momento do ciclo periódico anual, que os pontífices
(especialistas em saúde, donos de academias e produtores de suplementos e
máquinas de musculação) do culto ao corpo têm reavivada sua importância, ao
mesmo
tempo
em
que
a
multidão
de
fiéis
consumidores
espera
impacientemente o advento de uma nova forma de salvação contra a feiúra, o
tempo e o anonimato realizada por um novo messias hipermusculoso que
180
venha apontar o caminho da terra santa onde supostamente reinará a vida
eterna e gloriosa55. O sentido da existência entre tais pessoas é envolto pelo
medo, não da morte exatamente, mas do envelhecimento e da possível
decrepitude, vista como pior que a morte: ficar feio, depender dos outros e
enfrentar a solidão é o maior temor para aqueles que se enfronham em cultivar
a juventude e a beleza associada à ela. Envelhecer assim é tornar-se outro, é
mudar toda a estrutura de uma personalidade (Elias, 2001), mudar para pior, já
que em uma sociedade de mercadorias subjaz a concepção de que o idoso
está ultrapassado e deve ser descartado de determinadas relações sociais.
Conforme escreveu Eliade (1979:160) sobre o processo mítico: “é sempre a
mesma luta contra o Tempo, a mesma esperança de se libertar do peso do
Tempo morto, do Tempo que esmaga e que mata”.
Como o real é relacional (Bourdieu, 1998), é preciso destacar que os
tipos de freqüentadores descritos (fisiculturistas, veteranos e comuns) variam
em conformidade com o contexto nos quais estão enquadrados. Nas
academias são encontrados indivíduos que em determinado momento ou
período aproximam-se mais de um tipo ideal que de outro e a variedade é
certamente infinita como atesta o caso do tipo comum. Apenas este tipo, se
alguém quiser deter-se mais especificamente
sobre a realidade que ele
abstrai, demandaria uma construção bem mais extensa, devido a ampla
variedade de indivíduos que esta mesma realidade comporta. Por outro lado,
55
- A transformação do discurso científico (mais especificamente aquele relacionado à bioquímica e
genética), em alguns segmentos do imaginário popular, em uma espécie de sistema religioso que
supostamente poderia produzir a vida eterna (através de clones) e o aperfeiçoamente estético e biológico
(por intermédio da engenharia genética) aqui mesmo na Terra (vide a insurgente seita denominada
Movimento Raeliano possuidora de uma espécie de “braço científico” liderado pela empresária
bioquímica Brigite Boisselier diretora da empresa Clonaid, e Claude Vorilhon cognominado Sua
Santidade Rael, lider dos raelianos) demonstra o poder de sacralização do profano e a capacidade de
(re)produção incessante de mitos que os sistemas simbólicos possuem tão bem demonstrada pelos
clássicos trabalhos de Lévi-Strauss e o seu conceito de bricolage (1964; 1973; 1975; 1991).O discurso
religioso tem se reproduzido absorvendo e resignificando as categorias elaboradas pelo discurso científico
em uma espécie de reencantamento do mundo. Neste processo, aplicar-se-ia as palvras do autor de O
Pensamento Salvagem: “estruturas lógicas análogas podem construir-se por meio de recursos de léxico
diferentes. Os elementos não são constantes só o são as relações” (Op.cit.: 85-6). O sistema mitológico
raeliano concebe que os primeiros humanos foram criados em laboratório por deuses alienígenas
chamados Elohim. Tal grupo religioso diz já ter clonado um ser humano (a menina Eva) pretendendo
agora gerar um clone adulto da mesma maneira como acreditam que os deuses astronautas Elohim
geraram os humanos. Dizem que após terem clonado tal adulto objetivam transferir a memória do modelo
original para o clone, fazendo o “download” – o mesmo dos computadores, segundo eles - da mesma e
permitindo a vida eterna.
181
vale ressaltar que o fisiculturista é sempre aquele que tende a cultivar o maior
volume de músculos possível. O tamanho e a forma daqueles indivíduos que
se enquadram nesta classificação variam em conformidade com o tamanho e a
forma dos outros dois tipos em determinada academia. Sendo assim, três tipos
ideais de academias podem, também ser esboçados de acordo com o tipo dos
seus freqüentadores ou a predominância de um determinado tipo em um
contexto específico. Obviamente, uma academia de fisiculturistas seria aquela
que apresentaria o maior número, ou uma quantidade considerável, de
indivíduos que se enquadram neste modelo. Tal academia – em função de
seus freqüentadores - teria suas especificidades estéticas, funcionais e
técnicas que difeririam dos outros dois tipos de academias freqüentadas por
maior número de indivíduos veteranos e/ou comuns.
As academias - centros de produção da denominada boa forma e da
muscularidade - são instituições carregadas de representações e funções que
não são apreensíveis de imediato por aqueles que não se familiarizaram com o
seu cotidiano. Apesar da crescente busca pela forma que produz em muitas
pessoas uma sensação ilusória de que basta ler um manual ou uma revista de
fitness para compreender o processo de fabricação do corpo, tais instituiçõescomo escreveu Wacquant a respeito das academias de boxe – são complexas
e polissêmicas. Em primeiro lugar porque suas conformações e
variações
decorativas variam significativamente em conformidade com a proposta de
corpo que se deve construir naquele espaço e em conformidade com a classe
social – o poder aquisitivo – dos freqüentadores do local. Uma academia de
musculação – seja em um bairro de classe média ou não - pode apresentar-se
como um enorme galpão lúgubre com regiões pouco iluminadas expondo
tubulações e fios elétricos, aspecto que lembraria
fábricas clandestinas de
algum produto proibido ou galpões de carga e angares -os quais no verão
chegam a curtir os corpos com 43 graus centígrados de calor no seu interior.
Nestas
instituições
é
possível
observar
homens
que
mais
parecem
personagens saídos de revistas em quadrinhos devido a quantidade de
músculos que cultivam e ao tipo de roupa que usam. Com enormes cinturões
de couro, botinas, tatuagens e, por vezes, calças e camisas de infantaria
182
rasgadas estrategicamente para mostrar musculatura, dão a impressão
àqueles que entram em tais salões de estarem em um mundo de ficção no qual
a trilha sonora de heavy metal, rap, hip hop e techno é entrecortada pelos
ruídos da colisão dos ferros provocada pelos exercícios intermitentes
acompanhados, por sua vez, dos gritos de dor e esforço emitidos no
movimento de levantar e abaixar anilhas e barras de ferro realizado pelos
aficcionados por halteres em suas séries (repetições contínuas de movimentos
para esculpir a musculatura de determinada parte do corpo) compostas e
recompostas. Por outro lado, existem academias que dão a impressão de se
ter chegado a um shopping center ou a um centro cosmetológico ou de cuidado
com a estética: ar condicionado central, mulheres com roupas coloridas e
justas que ostentam marcas esportivas como Nike, Reebok, Adidas, etc.,
fragrância de perfume francês, pinturas de parede límpidas e impecáveis,
aparelhos de exercícios computadorizados, faxineiros (sempre negros ou
nordestinos nas 12 academias pesquisadas) limpando as máquinas de
musculação e colchonetes para exercícios de solo, plantas artificiais e vários
aparelhos de TV conectados aos canais a cabo, além de bares para venda de
sanduíches naturais, bebidas energéticas e vitaminas, lojas de suplementos
alimentares e roupas esportivas, serviço eventual de nutricionista, som
ambiente com dance, música pop e MPB.
Há também aquelas academias que buscam uma confluência entre os
dois tipos descritos acima. Necessário se faz ressaltar que dificilmente um
freqüentador assíduo de uma academia “rústica” aceitaria fazer parte de uma
instituição supostamente mais “refinada” e vice-versa. Os primeiros se definem
como mais profissionais, sérios e dedicados e definem os freqüentadores de
academias geralmente mais caras (chamadas por eles de “perfumarias”) como
amadores. Estes últimos, por sua vez, acusam os anteriores de “trogloditas”.
Desta maneira, como são três os tipos de freqüentadores, é possível dizer que
são também três os tipos de academias: academias de fisiculturistas, de
veteranos e de comuns.
183
Tentaremos
aqui
focalizar
o
cotidiano
das
atuais
academias
consideradas como sendo de fisiculturistas ou bodybuilders. Suas interações
sociais, suas técnicas de construção do corpo, sua visão e divisão de mundo, o
sistema simbólico que organiza suas vidas nestas instituições e que por elas é
organizado. Tal grupo, como foi sugerido anteriormente, representa uma
síntese efetiva das tendências de representações e práticas vigentes na atual
sociedade urbana carioca. Devido a este fato o estudo do mesmo se mostra
relevante e pode contribuir para a melhor compreensão do crescente processo
somatófilo e de consumo de novas drogas (Sabino, Op. Cit. 2002). Vale
destacar que o grupo dos veteranos se assemelha com o de fisiculturistas,
sendo que a diferença está no fato dos primeiros não competirem e, portanto,
se dedicarem menos às atividades de musculação. Os veteranos são quasefisiculturistas, sendo difícil, em determinados momentos, distingüir um do outro.
Assim, dependendo da concorrência, um veterano pode ser considerado
fisiculturista em uma academia na qual não exista ninguém maior que ele.
Devido a tal fato, procuramos utilizar como parâmetro não apenas a massa
muscular, mas o fato do indivíduo competir em campeonatos.
Os
bodybuilders
configurar-se-iam
como
líderes
no
campo
da
musculação, os mais admirados por ostentarem musculatura hipertrofiada,
conseguida através de um contínuo saber prático sintetizado em invenções de
exercícios, uso de drogas específicas, uso de suplementos alimentares e
dietas. Devido a tais fatores, entre outros, este grupo constitui a elite das
academias de musculação. No Rio de Janeiro existem, em constraste com a
maioria das instituições voltadas para a prática de exercícios em geral,
determinadas academias onde grande parte dos frequentadores é constituida
por fisiculturistas. Tais academias concentram-se em alguns bairros da Zona
Norte e Sul da cidade. Nos quatro anos e meio de pesquisa, sempre me
deparei com o grupo dos fisiculturistas, contudo, apenas em algumas
instituições estes existem em significativa quantidade, conferindo-as aspecto
diverso das outras. Nestas, os corpos hiper-inflados, em geral pouco vestidos,
pavoneiam diante das paredes espelhadas de ponta a ponta cercados pelas
toneladas de pesos e aparelhos sempre conservados para parecerem mal
184
conservados em seu aspecto rústico. O espetáculo somático realiza seu
propósito
invocando a epifania da forma arquitetada por uma razão
instrumental aplicada ao que parece ser o grande valor e conceito (Goldenberg
& Ramos, Op. Cit.) ou ao menos a mercadoria final da alta modernidade : o
corpo.
Apesar de algumas reações, - principalmente por parte dos estilistas de
moda alternativa que expõem corpos de modelos mais magros (Dutra, 2002) -,
formas físicas que apenas há algumas décadas atrás poderiam ser
consideradas aberrações são, atualmente, eleitas pela indústria cultural como
ícones de sucesso e beleza. A aparência musculosa, embora convivendo no
cenário social com outras formas corporais, têm estado presente na mídia
atual, deixando de ser privilégio de um sexo para se tornar propriedade de
todos. Um número considerável de mulheres exibe atualmente anatomia
muscularmente hipertrofiada (Sabino, 2001). De acordo com Courtine
(1995:85), “não há mais sexo frágil”, ao menos entre os praticantes do
fisiculturismo. Em uma época de apologia ao livre mercado, esculpir o corpo –
utilizando todo tipo de técnicas possíveis – vem se tornando, para alguns, um
imperativo, levando, com maior ou menor intensidade, ao crescimento das
práticas de bodybuilding e do número de academias de musculação com a
potencialização
da
anatomia
inflada
configurando-se
como
espetáculo
cotidiano. A publicidade, o espetáculo esportivo na mídia, os filmes da TV, as
revistas voltadas para a
boa forma, os cadernos de saúde dos jornais, os
brinquedos de ação e as bonecas das meninas, os heróis de quadrinhos e os
filmes de Hollywood têm reiterado o mito da muscularidade. Para se ter idéia
da mutação ocorrida no cenário mundial do bodybuilding da década de oitenta
do século XX em diante – e que vem influenciando gradativamente a estética
popular em algumas parcelas das sociedades no mundo globalizado - basta
comparar os corpos que Arnold Schwarzenegger e Silvester Stalone
ostentavam no auge de suas carreiras com os atuais heróis do fisiculturismo.
Hoje, a forma física dos dois seria considerada, para um competidor, medíocre,
ou mesmo fraca. Schwarzenegger, por exemplo, com o corpo ostentado no
filme Conan cerrtamente não chegaria ao final do famoso campeonato
185
internacional de fisiculturismo, o Mr. Olympia, do qual na época foi várias vezes
vencedor. Devido o aprimoramento das drogas (esteróides) e técnicas de
utilização nos últimos anos, os fisiculturistas vem apresentando um diâmetro
muscular gradativamente maior e uma quantidade de adiposidade cada vez
menor. Existem atualmente fisiculturistas (como Eddie Moysan, segundo as
publicações especializadas)
que são apresentados pela mídia com
circunferência de quase 70 cm de bíceps (região superior do braço,
popularmente
conhecida
como
muque)
enquanto
o
próprio
Arnold
Schwarzenegger, quando várias vezes foi campeão, não passou dos 58 cm.
Existem vários tipos de rituais de bodybuilders, anuais ou não, que vêm
se popularizando e sendo reproduzidos ao redor do planeta. Tais rituais são
constituídos por competições da forma nas quais os indivíduos apresentam
seus corpos inflados, depilados e artificialmente bronzeados, perfilados à moda
dos concursos femininos de beleza. Neste processo específico, os músculos
não servem para efetivação da força, ou para a execução de atividades que
possam imprimir esforço sobre objetos de disputa física. Eles são apenas
ornamentos. Basta apenas a aparência. A competição consiste em mostrá-los
e demonstrá-los, apresentando-os, - através de toda uma técnica de poses
aprendida durante anos -, da forma mais definida e hipertrofiada possível.
Como em um teatro no qual apenas os músculos exercem papéis, os (as)
participantes desfilam orgulhosamente em cima de um palco seus corpos
esculpidos, cobertos de óleo, auto-bronzeadores e vestidos com micro sungas
ou biquínis, assistidos por juízes uma platéia de admiradores. Os músculos são
ostentados enquanto massas decorativas, não servindo para demonstração
efetiva de força ou para a luta, apenas para dar vida à competição da
aparência.
No ano de 2001, estas festividades da forma seguiram a seguinte
organização da Federação de Culturismo e Fitness no Rio de Janeiro56:
56
- Apesar do Rio de Janeiro apresentar “geografia excepcional...inúmeros parques, jardins e praias, ou
seja zonas de ‘malhação’ e de exposição de corpos” (Malysse, 1998:13) que supostamente levariam sua
população a utilizar o corpo como vetor de interação social na cidade (Idem) é, ironicamente, a cidade de
São Paulo – com toda a mística que a constrói como avessa à malemolência estética do carioca e do
baiano - que apresenta os maiores e mais influentes campeonatos, meios de treinamento e campeões de
fisiculturismo do Brasil.
186
Campeonato Carioca –1a etapa- Fitness, Master e Juvenil
Campeonato Estreantes
Campeonato Carioca – 2a etapa- Senior’s (masculino e feminino)
Campeonato Mundial Feminino de Fisiculturismo e Fitness
Abaixo segue a ordem de classificação final de um campeonato nacional no
mesmo ano:
Juvenil Masculino até 80kg
Juvenil Masculino acima de 80kg
Master II acima de 50 anos
Master Masculino até 80kg
Master Maculino acima de 80 kg
Miss Fitness até 1,60 m
Miss Fitness até 1,67 m
Miss Fitness acima de 1,67m
No ano de 2002 foi o seguinte o calendário das competições:
Calendário de Competição Nacional e Internacional – Amador 2002
Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação/ Internatioal Federation of
Body-Builders CBC-M/IFBB
Abril- de 26 a 28
Copa Sul-Sudeste. Suzano/ SP
Categoria: 70, 75,85, +90 e 100kg
Categ. Miss Fitness, 1,60 e 1, 67cm
Única: Body Fitness, Culturismo feminino, Master Masculino e Juvenil
Junho- de 28 a 30
Copa Centro Oeste – Cuiabá/ MT
Categ. 70, 75, 85, +90 e 100kg.
Categ. Miss Fitness, Cult Fem., Master Masc. E Juvenil
187
Julho de 19 a 21
Copa Norte- Nordeste- Fortaleza- CE
Categ. Body Fitness
Categ. Juvenil até 80kg e +80kg
Categ. Master masc. 80kg e +80kg
Categ. 70, 75, 85, +90 e 100kg.
Setembro- 01
Grand Prix Neo- Nutri /SP
Categ. 70, 80, +90 kg Sênior masc.
De 11 a 15
*Campeonato Brasileiro – SP
Categ.52, 57 kg e +57kg Sênior feminino
Categ. Miss Fitness 1.60, 1.67, e +1.67cm
Categ. Body Fitness 1.60, 1.65, e +1.65 cm
Categ. Juvenil Masc. 70, 80, e +80kg
Categ. Master Masc. 80, +80kg e +50 anos
Seletiva para Mundial de Fitness Sênior e Feminino, Master/Juvenil re ïberoAmericano
De 27 a 29 ** Copa Brasil Welness Sport – Ribeirão Preto/ SP
Categ. 70, 80, 90, + 100kg.
Categ. Miss Fitness 1.60, 1.67, e + 1.67 cm
** Seletiva para Mundial Sênior Masculino
Outubro de 04 a 07 Copa Mundial de Fitness- Brno/ Rep. Checa
Categ. Fitness até 1.60, 1.67, + 1.67 cm
Categ. Feminino Sênior 52, 57 e 57 kg
A classificação internacional, de acordo com a Confederação Brasileira
de Fisiculturismo, segue as seguintes definições:
Senior Masculina:
188
Bantam: até 65 Kg
Peso leve: até 70 kg
Peso meio médio: 75 kg
Peso médio: até 80 kg
Peso meio pesado: até 90 kg
Peso pesado: acima de 90 kg.
Existem
três
categorias
nas
competições
senior
femininas
internacionais, sendo estas:
Peso leve: até 52 kg
Peso médio até 57 kg
Peso pesado: acima de 57kg.
Nas competições júnior masculinas internacionais, existem mais três
classificações:
Peso leve: até 70 kg
Peso médio: até 80kg
Peso pesado; acima de 80kg
Na júnior feminina são mais três:
Peso leve : até 52 kg
Peso médio: até 57 kg
Peso pesado: acima de 57 kg
Existem três categorias nas competições master masculinas:
De 40 a 49 anos de idade:
Peso leve: atté 80 kg
Peso pesado: acima de 80kg
De 50 anos de idade e acima:
Categoria aberta
189
Em relação às mulheres da categoria master existe apenas uma
categoria nas competições femininas internacionais.
De acordo com a tradição antropológica, esta organização apresenta
uma classificação da realidade podendo ser considerada um sistema de
classificação “nativo”. Um modelo consciente (Lévi-Strauss, 1976) que
organiza, ao menos, parte da realidade do grupo. Diante da imensa variação
muscular presente neste rituais, ocorre a necessidade de classificar os corpos
competidores, essa classificação é realizada de acordo com a morfologia que
estes apresentam. Assim, Fitness, em geral, significa uma competiçãoapresentação-ritual na qual participam mulheres com considerável massa e
definição muscular e extrema elasticidade. Neste aspecto é importante reiterar
que a flexibilidade é um item mais importante para as fisiculturistas do que para
os fisiculturistas. Elas devem ser musculosas, porém ágeis, enquanto tal
elasticidade nem sempre é exigida dos homens. Interessante ressaltar que, ao
menos neste caso específico, a classificação das mulheres, de forma diferente
da classificação masculina, se realiza por intermédio da altura. Já as categorias
master, juvenil ou júnior, estreantes e senior são elaboradas com base no
peso e idade dos participantes. Estes concursos e festivais colocam em disputa
os corpos maiores e com menor porcentagem de gordura, além de, no caso
feminino, ser acrescentada a flexibilidade demonstrada através de exercícios
específicos nos quais elas dão piruetas e saltos mortais executando
coreografias
similares
àquelas
da
ginástica
olímpica,
embora
sendo
musculosas, ao contrário das ginastas. A apresentação masculina também
requer certos gestos estilizados (poses) e passos específicos, similares para
serem repetidos por cada competidor em toda e qualquer competição, que
devem,
segundo
os
participantes,
demonstrar
virilidade
e
harmonia
simultaneamente. Há também as poses livres que cada fisiculturista deve fazer.
Este sistema classificatório, além de premiar os corpos considerados melhores
entre todos os concorrentes, também confere prêmios para os mais destacados
em diferentes categorias.
190
Segundo Mary Douglas (1976), todo sistema classificatório se depara
com elementos, de certa forma, inclassificáveis sendo estes elementos
considerados anômalos ou ambíguos. A riqueza de tais categorias está
justamente no fato delas apresentarem dificuldades para serem enquadradas
nos sistemas cognitivos.57 A rigor, o ambíguo seria o elemento que poderia ser
alocado em mais de um conjunto ou série e o anômalo aquele que não se
enquadra em nenhum conjunto ou série. No caso específico deste sistema, a
distinção entre ambíguo e anômalo é significativa na medida em que “se o
primeiro se caracteriza como acidental no sistema, o segundo é por ele
previsto” (Rocha, 1995:85). Desta maneira, os corpos ambíguos (muitos
poderiam ser enquadrados em mais de uma categoria) o são porque algumas
das categorias abrangem diferentes tipos de morfologia com fronteiras pouco
definidas. Devido a tal fato, os coordenadores dos festivais estão sempre
reformulando os sistemas classificatórios para impedir a manipulação da
ambiguidade por parte dos concorrentes (peso, altura e idade). Por exemplo,
se a classificação fosse apenas por faixa etária, alguém com 18 anos e
pesando 100 kilos – algo raro para a idade no fisiculturismo- poderia concorrer
em vantagem com outros com menor massa muscular e idade equivalente.
Casos anômalos - idade e peso não compatíveis com os parâmetros
estabelecidos - tendem a surgir com freqüência e para tais casos uma
categoria à parte é criada no sistema com o rótulo de Campeonato Aberto. As
características mais enfatizadas atualmente nas competições são: definição
muscular, desenvolvimento muscular e simetria muscular; tal aspecto leva os
jurados a centrarem seus julgamentos não apenas no tamanho e altura dos
concorrentes. Para reiterar tal fato, nas finais de campeonatos todas as
categorias são apresentadas em conjunto, ao mesmo tempo no palco e, não
raro, competidores não muito altos ou mesmo pouco “massudos” vencem
outros muito maiores. Este relato de um peso-pesado é significativo:
57
- Mauss, analisando as dificuldades classificatórias que a sociologia insurgente enfrentava, aponta para
o mesmo problema: “Há sempre um momento em que, não estando ainda a ciência de certos fatos
reduzida a conceitos...implanta-se sobre essas massas de fatos a baliza da ignorância: ‘diversos’” (1974 :
211). Latour (1996. Apud Peirano, 2000:4), porém, realiza crítica à determinadas abordagens
antropológicas –principalmente a estruturalista - que tendem a tratar ciência apenas como sistema
classificatório, obnubilando outras características que a constituem, como por exemplo, o método.
191
“ ‘Tava competindo no Estadual e me deparei com um cara
pequeno mas muito bem preparado... quando ele começou a
fazer as poses eu logo percebi que ele
havia ensaiado muita
coreografia... acho que ele pagou um bom coreógrafo p’ra ensaiar
aquilo tudo. O cara era maleável, fluido, não posava só,
dançava... quando ele começou a se apresentar o público
explodiu, fazendo o maior barulho. Eu e ele éramos os finalistas,
só que eu tinha uma vantagem: era muito maior. Percebi que a
parada ia ser dura; porque minhas poses tinham sido menos
soltas que as dele, tava mais duro... Aí fomos para a
apresentação final, eu, o peso pesado leve, que tinha pouco
músculo, o peso leve que não tinha nenhum, e o meu oponente
principal, esse cara, peso médio, o único que podia me desafiar,
mesmo. Ele era todo simétrico e muito definido, o abdômen do
cara parecia uma grande forma de cubo de gelo. Fomos para o
palco, para a apresentação, mas o meu tamanho me dava uma
certa segurança, entende? Eu era muito maior que todos eles.
Quando a música começou a tocar eu me posicionei em frente ao
meu oponente, ‘puxei’ o dorsal e tampei o cara com o meu
tamanho... toda a visão que o público tinha dele sumiu, foi um
eclipse! Mas, ele logo saiu do buraco que eu tinha preparado p’ra
ele e fez uma pose de pernas com toda aquela definição e
simetria para me humilhar, eu logo ‘puxei’ uma pose de tríceps
seguida por outra de braços estendidos, o público aplaudiu, aí ele
fez uma série de poses de abdômen, com aquela maldita super
definição que impressionou a platéia que começou a aplaudir e
gritar, na hora. Pronto, ali eu perdi ! Fiquei em segundo lugar...
perdi p’rum cara que tinha trinta quilos a menos do que eu...”
(Carlos. 28 anos. Fisiculturista e estudante de fisioterapia).
192
Além de remeterem a um processo classificatório específico, este rituais,
em um momento de imensa vivência emocional e cognitiva, servem para
reforçar os laços sociais e
a “adoração” aos ídolos já existentes (Segalen,
2002). Heróis que apresentam todo esplendor e mana do seu corpo (re)vestido
da couraça de músculos reverenciada por todos. Os festivais servem, também,
para (re)criar novos mitos que conquistam seu lugar no panteão dos heróis da
musculação. Estas festividades seguem o padrão daquelas realizadas nos EUA
e que são consideradas o modelo mais adequado a ser seguido pelos
bodybuilders. Obviamente, são as festividades internacionais (Mr. Olympia,
Arnold Classics, Mr. Universe, Super Body Natural, entre outras) as mais
admiradas e os vencedores destas, considerados, pelos fisiculturistas nas
academias, verdadeiros semi-deuses. Estes rituais mobilizam uma indústria
crescente dos músculos direcionada para o consumo
de bens e serviços
destinados à construção e manutenção do corpo. Suplementos alimentares,
vitaminas, pesos, anabolizantes, cursos de musculação e máquinas de última
geração baseadas no aperfeiçoamento da micro-eletrônica e informática são
produzidas a cada dia para alimentar a busca da forma perfeita. Busca mítica e
ritualística
que transforma o músculo em um modo de vida. Tais ritos
somatófilos seriam formas de acesso à consciência coletiva deste grupo, uma
maneira – mediatizada pelos símbolos da força e virilidade – deste tomar
consciência de si reiterando suas estruturas (Durkheim, 1996).
A classificação internacional para eventos amadores elaborada pela
IFBB (International Federation of Body-Builders), que influencia as competições
de fisiculturismo no mundo inteiro, é a seguinte: peso galo, peso leve, peso
médio, peso pesado leve, peso pesado, peso superpesado. Já nos concursos
profissionais filiados à IFBB todos os competidores são colocados em uma
mesma categoria e a decisão, o julgamento, é feita através das poses
realizadas pelos fisiculturistas no palco58.
A demonstração de poses divide a competição em duas partes de
quatro rodadas. A primeira parte é a do pré-julgamento. Este, por sua vez, está
58
- No Brasil apenas a CBC-M (Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação) é reconhecida
pela IFBB (International Federation of Body Builders) e pelo COB (Comitê Olímpico Brasileiro). As
regras das competições em geral estão relacionadas às regras internacionais da IFBB, variando pouco.
193
dividido em duas outras fases: pose relaxada e poses compulsórias. Na
primeira, os fisiculturistas ficam de pé, no palco, em frente aos juízes, mãos ao
lado do corpo, de frente, de costas e de ambos os lados. Embora seja
chamada de pose relaxada, este tipo de pose leva os bodybuilders a
contraírem seus músculos de forma intensa. Nesta fase, os juízes avaliam o
tom de pele, expressão facial, corte de cabelo, se o competidor está bronzeado
ou não, se a sunga veste bem, se a cor é adequada e não apenas a simetria e
os músculos do participante. A segunda rodada do pré-julgamento é a das
poses compulsórias; como o próprio nome diz são obrigatórias para todos, visto
terem o objetivo de permitir o julgamento de cada região muscular específica
do corpo de cada competidor. As poses são: bíceps duplo frontal, abertura
lateral frontal (ou dorsal), tórax lateral, bíceps duplo de costas, abertura lateral
de costas, tríceps de lado, abdominais e coxas com mãos sobre a cabeça. As
mulheres também fazem as mesmas poses exceto a abertura lateral. A terceira
parte da apresentação é a da pose livre. O competidor, nesta fase, pode utilizar
de toda sua criatividade para impressionar os juízes. Ele procurará elaborar
poses que melhor exibam as partes que ele considera mais apresentáveis de
seu corpo e escondam, ou disfarcem, aquelas partes que ele considera
deficientes. Neste momento, o competidor escolhe uma música e elabora uma
coreografia própria, em geral uma mistura de dança com poses que ressaltam
seus músculos. A quarta e última rodada é a da seqüência de poses que é
realizada pelos finalistas (aqueles que passaram com sucesso pelas
seqüências anteriores) em conjunto no palco, cada um apresentando
livremente suas poses para que o melhor – o campeão- seja escolhido. Estas
poses de comparação feitas em conjunto parecem causar um certo stress nos
competidores que disputam cada segundo e milímetro no palco para serem
notados pelos juízes, o que pode ocasionar cotoveladas e empurrões entre
eles. Na realidade, este é o ápice do jogo, ou melhor, quando a competição vira
de fato um jogo, pois a cada pose do adversário, o fisiculturista deve
demonstrar outra ainda melhor e mais impressionante. Assim, conhecendo
suas “qualidades” e “defeitos” corporais o competidor deverá tentar esconder
seus defeitos e apresentar, obviamente, suas melhores qualidades, portanto,
194
quando um deles apresenta, por exemplo, uma musculatura dorsal definida e
volumosa, o outro, se não considerar sua mesma musculatura melhor que a do
seu adversário procurará realizar uma pose que destaque outro grupamento
muscular que ele considere melhor que o do seu oponente. O jogo articula
uma verdadeira troca de poses, um potlach da forma e das imagens, no qual
cada um busca ostentar a maior riqueza muscular diante de seu adversário,
juízes e público em geral.
A realização das poses é uma das partes mais difíceis da competição no
fisiculturismo, pois ela é o outro lado da moeda da apresentação do
bodybuilder. Talvez 50% de sua apresentação em um palco dependa da sua
eficácia com as poses. Espécie de jogo que mistura a coreografia da dança
com o ato de posar para pintores, realizar poses de fisiculturismo demanda
uma técnica corporal, no sentido maussiano, que só é adquirida através de
contínuo esforço ao longo dos muitos anos de prática a ponto de sua
apresentação tornar-se praticamente inconsciente. De acordo com o relato de
Schwarzenegger (2001:589):
“Devido a sua enorme importância no fisiculturismo
competitivo, nunca é muito cedo para começar a posar. Você
deve começar desde o primeiro dia em que entra na academia.
Estude fotografias de outros fisiculturistas, vá a concursos e
observe como os competidores posam e tente imitá-los. Comece
fazendo suas poses em frente ao espelho até que você ache que
pegou o jeito de executá-las. Depois tente fazê-las sem o espelho,
com um amigo observando. Entre as séries contraia os músculos
que você está treinando, faça algumas poses e estude-se no
espelho. Isso irá condicioná-lo a fazer contrações firmes,
sustentadas e também ajudar a analisar o estado de seu
desenvolvimento. Lembre-se da necessidade de resistência! Os
juízes freqüentemente irão mandar você posar por vários minutos
cada vez; você pode precisar ficar contraído por horas durante um
pré-julgamento cansativo. Então, no seu treinamento de poses,
195
não apenas execute as poses por alguns segundos e relaxe.
Sustente-as até que doa, depois sustente um pouco mais – este é
o momento da falência, de ter cãimbras musculares, de sofrer de
modo que as suas poses na competição sejam suaves,
competentes e poderosas. Mantenha-a por pelo menos uma hora
a cada dia... ”
Posar é de extrema importância para o fisiculturista não apenas pelo
fato de fazer parte do jogo, mas acima de tudo porque as poses destacam as
partes do corpo que devem ser mostradas, expostas, apresentadas ao público.
Se um fisiculturista jamais está nu – pois está vestido com sua armadura
muscular – ele também não deve estar apenas grande. A simetria e a forma
são tão ou mais importantes que o tamanho. Esta estética particular está
calcada na necessidade de mostrar o máximo possível das entranhas
musculares. A presença efetiva destas (a chamada definição) significa, para
eles, a simetria e a forma. Músculos “definidos” representam fibras musculares
à mostra a ponto de a pele estar tão fina que cada tira, ligamento e fibra,
apareça em uma exposição sui generis na qual a intimidade mais profunda da
carne possa ser salientada. Neste movimento, o fisiculturismo e a atual
pornografia massificada parecem compartilhar a mesma avidez por mostrar as
entranhas e o privado. Esta avidez talvez esteja radicada naquele processo
que Foucault (1990) denominou a vontade de saber (e, no caso, de ver) que
acaba apresentando a tendência a controlar os movimentos e aspirações mais
profundos dos indivíduos preocupados com a exposição de cada fibra muscular
de seu corpo. O mesmo processo aplicado à invenção da sexualidade pode ser
aplicado para a explicação deste árduo trabalho de esculpir a carne e os
músculos, mostrando-os e demonstrando-os em público como o troféu da
suposta vitória sobre o tempo e sobre a morte. Assim como nos fizeram “amar
o sexo” tornando “desejável para nós conhecê-lo e precioso tudo o que se diz
a seu respeito; pelos quais, também, incitaram-nos a desenvolver todas as
nossas habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de extrair
dele a verdade” (Foucault, Op.cit.:149) fazendo-nos acreditar que nisso está
196
nossa liberação; da mesma forma tal dispositivo social nos faz acreditar que
devemos escrutinar e extrair das entranhas musculares uma possível liberdade
que poderá nos levar a realização da utopia da saúde. Neste âmbito, a
adiposidade surge como o maior inimigo da forma, já que ela se sobrepõe às
fibras musculares obliterando a visão das mesmas, daí a necessidade
intermitente de produzir um conhecimento cada vez mais efetivo sobre como
aumentar os músculos e eliminar gorduras. Conhecer o corpo e colocá-lo em
discurso, mesmo que este discurso seja o iconográfico. Este parece ser, ao
menos em parte, o dever de uma época. Dever que pode ser percebido no
grupo que representa o paroxismo deste movimento sócio-cultural somatófilo:
os fisiculturistas.
A tarefa de posar exige o domínio de uma técnica de esforço aprendida
durante anos de socialização diária nas academias de musculação. Ser capaz
de tensionar tecnicamente a musculatura corporal durante uma competição,
flexionando os músculos, mantendo poses de até uma hora ou mais – com
controle pleno do corpo inteiro e domínio de cãimbras – é uma tarefa atlética
comparada a de um pugilista enfrentando doze assaltos em um ringue de boxe.
Existem dois tipos básicos de esporte: os julgados por medidas
(distância, rapidez, altura, etc) e aqueles julgados pela forma (nado
sincronizado, ginástica olímpica, mergulho, patinação no gelo). O fisiculturismo
é um esporte da forma; com a diferença de esta não estar diretamente
relacionada ao movimento e sim à conformação do corpo. A forma envolvida é
a do próprio corpo-tamanho, proporção, definição, “qualidade estética”
desenvolvida nas academias através de exercícios e dietas (Schwarzenegger e
Dobbins, 2001). As poses são o veículo de apresentação de todos estes itens.
Outra classificação específica utilizada no cotidiano das academias de
musculação é aquela reapropriada da somatotipologia (produzida pela
cineantropometria) pelo senso comum do campo. De acordo com os
freqüentadores, existem três tipos de corpos, espécie de tipos ideais, que
podem ser combinados produzindo, ao final, uma tipologia dividida em um total
de oitenta e oito subcategorias. Estes três tipos seriam assim definidos:
197
O ectomorfo: tronco curto, braços e pernas compridos, pés e mãos
compridos e estreitos e muito pouca reserva de gordura (dificuldade para
engordar); estreiteza no peito e nos ombros, com músculos em geral longos e
finos. Em geral, este é o indivíduo magro que possui dificuldade para adquirir
peso.
O mesomorfo: peito largo, tronco longo, estrutura muscular sólida e
grande força. Para os freqüentadores das academias o indivíduo que possui
este tipo de corpo é um “verdadeiro abençoado pela genética” como ouvi
inúmeras vezes durante o trabalho de campo, porque é aquele que tem maior
facilidade em adquirir massa muscular.
O endomorfo : musculatura frágil, rosto redondo, pescoço curto, quadril
largo e grande reserva de gordura. Este é o gordo59.
Como disse, a combinação destes três tipos chega a constitutir outros
oitenta
e
oito;
assim
temos,
em
uma
espécie
de
combinatória:
o
ectomesomorfo, o ectoendomorfo, o mesoecto, o mesoendo, o endoecto, o
endomeso, etc. A análise acurada dos tipos e a definição mais exata só é
possível com o auxílio de indivíduos entendidos em cineantropometria que
utilizam instrumentos adequados (adipômetros, por exemplo) para avaliar a
morfologia medindo certas regiões corporais. Grosso modo, tais avaliadores
utilizam uma escala pontuada que vai do grau 1 ao 7 (máxima ectomorfia à
máxima endomorfia). Desta forma, se uma pessoa possui, nesta escala, o grau
2 (ectomórfico), o grau 6 (meso) e o grau 5 (endo) ela pode ser considerada
uma pessoa endomesomorfa. Ou seja, um tipo bastante musculoso mas com
tendência a apresentar muita gordura ou grande facilidade de engordar.
A partir dessa avaliação, todo o treino e, conseqüentemente, o
enquadramento nas práticas de musculação nas academias se estabelecerá
para o avaliado. Classificado, suas práticas terão que ser condizentes com o
59
Nas academias, o indivíduo gordo é o mais desprezado: “Odeio gente gorda! Quem é gordo é
preguiçoso, desleixado, descuidado, molenga, perdedor e fedorento!” (Carla, 18 anos, estudante de
Marketing). Sobreposta a classificação científica subjaz outra que utilizando as categorias da primeira
forma um sistema classificatório nativo que não raro acaba por radicar na genética a hierarquia da
realidade social do grupo: “Negros, italianos e alemães são mesomorfos... pode ver: todos os ganhadores
do Mister Universo, Mister Olympia e daí por diante são descendentes de italianos, alemães ou negros, é
genético, eles têm mais massa muscular que os outros povos” (Paulo, 22 anos, estudante de educação
198
modelo que a ele foi imposto a partir das medidas de seu próprio corpo em
consonância com o sistema classificatório do campo. Assim, a própria
avaliação – realizada por um professor de educação física ou um personal
trainer (em geral um fisiculturista de longa data), já se afigura como uma
espécie de pré-ritual que instituirá o papel, durante um longo tempo, do
praticante na estrutura objetiva das academias de musculação. O sistema
classificatório, modelo presente na consciência dos indivíduos do grupo, atua
também como articulador ritualístico das práticas das diferentes instâncias
deste mesmo grupo. Junto com o rótulo que recebe, o indivíduo aceita também
seu programa de treinamento diário que obviamente estará associado ao seu
papel, ao menos temporário, no sistema ou, para usar um termo de Bourdieu,
no campo. Desta forma, o tipo ectomorfo terá um treinamento voltado para a
aquisição de peso, massa muscular e, portanto, seus exercícios, segundo os
fisiculturistas, deverão ser extenuantes, pois ele terá que desenvolver força e
resistência, o que o obrigará a buscar levantar o máximo de peso possível em
uma série (grupamento de exercícios) de repetições baixas (entre 6 e 8
repetições), deverá descansar bastante entre um exercício e outro e comer em
grande quantidade, deve também fazer pouco esforço aeróbico, ou seja, não
deve correr, nadar ou pedalar em quantidade, já que seu objetivo deve ser
guardar energia para transformá-la em músculo. O mesomorfo, considerado o
tipo biológico privilegiado, deve trabalhar volume e definição simultaneamente.
Como, de acordo com os fisiculturistas, este tipo tem geneticamente facilidade
para
aquisição
de
músculos,
ele
não
deve
se
preocupar
com
supertreinamentos ou com conservação de energia, o que significa que ele
pode fazer exercícios aeróbicos e séries de repetições regulares de 8 a 10. Sua
dieta também é a mais fácil, pode ser equilibrada sem muitas restrições e
cortes drásticos de determinados alimentos. Já o endomorfo, por ser gordo,
deverá se manter sempre de dieta, com restrições calóricas radicais, realizando
muitos exercícios aeróbicos junto com séries de musculação de 12 repetições
em diante sem muito descanso entre um e outro exercício. Se o mesomorfo é o
privilegiado, o endomorfo é o mais prejudicado pela genética, de acordo com o
física). Contestando a afirmação acima digo : “Mas o Arnold [Schwarzenegger] não era mesomorfo...” A
199
sistema classificatório dos fisiculturistas. A gordura, muito menos que o osso –
a magreza – pode ser considerada uma espécie de anátema que denigre toda
a existência do indivíduo, adiando sua aceitação no grupo social da
muscularidade. Sua aceitação deverá ser conquistada através da mudança
diligente de sua forma física por intermédio de todo o processo de
domesticação do corpo e da forma pelo ferro das anilhas, o ascetismo das
dietas e o suor das corridas e pedaladas. Ao final, porém, o que conta é a
concepção liberal de que qualquer indivíduo tendo força de vontade e
dedicação poderá transformar seu corpo e sua vida como um self made man.
Bastando, para tanto, o exercício da vontade livre para transformar as coisas.
As séries de repetições: A divisão do trabalho muscular
Para que se torne viável um melhor entendimento da lógica estrutural
que compõe o sistema simbólico de construção de um corpo musculoso entre
os fisiculturistas – e mesmo entre as pessoas comuns que freqüentam as
academias, visto que os sistemas de treinamento são decalcados das
experiências e simplificações dos primeiros – necessário se faz esclarecer o
significado prático das séries de exercícios e sua composição. As séries são
grupos de exercícios com carga (pesos) repetidos que objetivam desenvolver
determinada região do corpo. Contudo, não basta apenas levantar pesos para
se tornar um fisiculturista. Há um sistema técnico complexo que organiza todo
o processo de modelagem muscular e estética e ética dos freqüentadores de
halteres. Os exercícios estão baseados na força e no auto-diagnóstico da dor.
Um Exemplo de Divisão de Treinamento (fisiculturista)
Dia
1
2
3
4
5
6
Grupos Musculares
Peitorais, Tríceps, Abdômen, Exercícios Aeróbicos
Costas, Bíceps, Panturrilha
Ombros, Trapézio, Abdômen, Exercícios Aeróbicos
Coxa Anterior e Posterior
Repete o Ciclo, Exercícios Aeróbicos
Repete o Ciclo
resposta: “Mas ele é austríaco, tem sangue germânico e, por isso, mais facilidade para ganhar corpo”
200
Exemplo de Divisão de Treinamento (fisiculturista)
Segunda-feira – peito, bíceps e tríceps
Supino Reto
4x6 (quatro séries de seis repetições)60.
Crucifixo Reto
4x6/12
Supino Inclinado com Halteres
4x6/12
Supino Canadense com Barra
4x12
Cross Over
4x12
Rosca Direta
4x10/12
Tríceps Testa
4x10/12
Rosca Concentrada
4x10/12
Tríceps no Pulley
4x10/12
Terça-feira – perna, panturrilha
Extensão Perna
4x12/15
O
Leg Press 45
4X12
Hack Machine
4x10/12
Agachamento Livre com Barra 4x12
Flexão Vertical
4x15
Flexão Horizontal
4x15
Gêmeos Máquina 5x20 (cada angulação dos pés; o seja: reto, com as pontas
dos pés para dentro e para fora)
Quarta-feira – Costas e Ombro
Barra Fixa pela Frente
4x15
Puxador Frente com Triângulo
4x10
Remada Unilateral
4x8/12
Remada Curvado com Barra
4x6/10
Puxador Costas
4x12
“Bom Dia”
4x10/12
Elevação Lateral
4x12
Desenvolvimento Costas
3x8
Desenvolvimento Frontal
4x10
Encolhimento com Halteres
3x12
Elevação Posterior
4x12
Abdômen no Puxador
4x30 (3x por semana)
Quintas-feira, Sexta e Sábado repete o treino.
A organização dos exercícios divididos em séries e repetições
combinadas e recombinadas ao infinito e com gradativo grau de intensidade é
também a base organizacional das práticas nas academias de fisiculturistas.
60
- Séries e repetições são termos fundamentais na musculação e representam a quantidade de exercícios
que o indivíduo realizará nas barras e nas máquinas e, portanto, que tipo de corpo ele estará construíndo
através destes mesmos exercícios com pesos. Assim, por exemplo, uma série 4 X 6 significa que ele
201
Tais grupamentos abstratos devem ser concretizados na prática através dos
exercícios específicos que encarnam a domesticação corporal e a manipulação
das
fibras
musculares.
As
classificações
subjetivas
classificações objetivas e vice-versa (Lévi-Strauss, 1975).
estruturam
as
Como o espaço
social é definido pela exclusão mútua, ou pela distinção, das posições que o
constituem, ou seja, pela estrutura de justaposições e de posições sociais demarcadas através dos termos na estrutura de distribuição das diferentes
espécies de capital corporal (Bourdieu, 2001). As séries e repetições
organizam e são organizadas pelas práticas de modelagem muscular
hierarquizando a realidade das academias de musculação; o enquadramento
em uma categoria funciona simultaneamente como enquadramento na prática
ou papel a ser ocupado pelo indivíduo na estrutura objetiva do grupo:
Tipo Corporal -
Organização
Somatotipologia
físicos
dos
Mesomorfo (88 variações)
Ectomorfo
dos 3X10/ 4x8/ 4x12/ 3x6, etc.
Organização
Série –
exercícios
Programa de treinamento
físicas
Estrutura objetiva -
Organização
relações institucionais
academias
tipos Endomorfo
e
atividades Peito,
costas,
braços,
ombros, pernas.
social
das Fisiculturistas,
veteranos,
comuns.
É necessário destacar a quase inexistência de números ímpares nas
séries de exercícios – nas séries acima aparece apenas o número 15, no caso
repetirá um bloco de seis exercícios idênticos quatro vezes descansando de quarenta segundos a um
minuto entre cada bloco.
202
das repetições, e 3 no caso das séries. O que significa que quase ninguém
realiza exercícios com repetições ímpares. Tais organizações da prática de
exercícios enquanto modelos conscientes nítidos apresentam uma certa
dificuldade de interpretação por parte do antropólogo. Desde que a consciência
esquece os fundamentos inconscientes que a codificam, ela torna-se fonte de
erro e deve ser vista com muita cautela (Rodrigues, 1980); conforme escreveu
Lévi-Strauss (1976a:15): “quanto mais nítida a estrutura aparente, tanto mais
difícil se torna apreender a estrutura profunda, por causa dos modelos
conscientes e deformados que se interpõem como obstáculo entre o
observador e seu objeto”. Existem dois fatores que devem ser destacados na
tentativa de análise destes sistemas nativos de classificação: 1) eles têm no
discurso científico a matriz que organiza o seu próprio discurso, visto
reinterpretarem os termos e as relações dos discursos doutos elaborando a
partir daí os seus; 2) apesar de proclamarem a cientificidade dos próprios
sistemas e mesmo desta ordem fazer parte das articulações cotidianas destes
discursos e práticas, a presença de elementos míticos inconscientes está
presente nestes mesmos discursos e práticas. Isto ocorre, por exemplo, no
caso da quase ausência de números ímpares nas séries de exercícios. Tais
séries são respaldadas pelas e tidas como produto das faculdades de
educação física, fisioterapia e das chamadas ciências dos esportes, porém, no
discursos leigos do cotidiano das academias de musculação e fisiculturismo um
certo quantum de sentimento mágico não deixa de estar presente nas suas
montagens e organizações. O número impar, assim como a mão esquerda, ou
mesmo a dissonância músical61, pode representar, nas sociedades complexas
61
- A questão da harmonia musical como representando o ordem do universo está presente em todo o
pensamento ocidental desde pelo menos Pitágoras de Samos. Para os pitagóricos a harmonia universal
estaria expressa nos números inteiros - já que para eles o número era a “alma das coisas”, e, portanto,
indivisível. O maior problema desta concepção diz respeito aos números irracionais. Tanto na relação
entre certos valores musicais, expressos matematicamente, quanto na base mesma da matemática surgem
grandezas inexprimíveis naquela concepção de número (que prioriza a “harmonia” do número inteiro).
Segundo Pessanha (1996:19): “a relação entre o lado e a diagonal do quadrado (que é o da hipotenusa do
triângulo retângulo isósceles com o cateto) tornava-se ‘irracional’ : aquelas linhas não apresentam razão
comum, o que se evidencia pelo aparecimento, na tradução aritmética da relação entre elas, de valores
sem possibilidade de determinação exaustiva, como o ? 2. Ou então, quando se pressupunha que os
valores correspondentes à hipotenusa e aos catetos eram números primos entre si, acabava-se por se
concluir pelo absurdo de que um deles não era nem par nem ímpar”. O problema da suposta falta de
ordem, medida e proporção dos números denominados “irracionais” e das dissonâncias musicais
atravessa toda a metafísica preocupada com a Identidade. Mesmo Schopenhauer, considerado um dos pais
203
de matriz européias, o intersticial, a exceção, ameaça de desordem, região
obscura que pode colocar em risco a própria organização do sistema visto que
ele pode quebrar a concepção de harmonia inerente às combinações pares.
Estas, por sua vez, estão relacionadas inconscientemente à ordem do universo
nas representações nativas. Pela natureza do seu espírito, o homem não pode
lidar com o caos – ao menos a maioria dos homens - sendo que o paradoxo
apresenta-se ao espírito como algo inaceitável e perigoso, daí todo o pavor
ligado às tragédias.
Durante o trabalho de campo foi possível detectar alguns aspectos
discursivos que permitem a tentativa de elaboração de uma explicação para a
quase inexistência de números ímpares no sistema de exercícios do grupo
pesquisado. Perguntados sobre a causa deste fato alguns responderam que
“ora, é porque o número par arredonda o esquema todo...” (Josias, 25 anos.
Funcionário público) , ainda: “assim a série fica redonda, perfeita” (Carlos, 18
anos. Estudante) e “o grupamento de exercício fica completo, certinho,
fechado, redondo” (Paulo, 27 anos.Advogado). Além deste aspecto, foi dito o
seguinte: “ uma série ímpar é quebrada, não é boa...” (Mário, 54 anos.
Funcionário público) ainda: “... eu acho que a ordem é harmônica ... a gente
do irracionalismo moderno e para quem a música era o universo e a vontade corporificada, em outras
palavras “a essência interna do mundo” (1986:79), parece não ter percebido que não são os sons que são
imperfeitos, mas nossas classificações que os constroem como tais; sons são apenas sons, visto que a
perfeição é uma representação cultural caudatária de um processo lógico que hierarquiza e realidade sem
contudo apreendê-la na sua totalidade; o filósofo do pessimismo escreveu: “ os próprios números, pelos
quais os tons permitem expressão, ostentam irracionalidades insolúveis; não é possível calcular uma
escala, em cujo interior toda quinta se relaciona com o tom fundamental, na proporção de 2 para 3, toda
terça maior, como 4 para 5, toda terça menor como 5 para 6, etc. Pois se os tons estão corretos em relação
ao tom fundamental, não o são entre si, na medida em que p. ex., a quinta deveria ser a terça menor da
terça, etc. ... por isso uma música perfeitamente correta não pode sequer ser pensada, quanto mais ser
executada; e por isso toda música possível se desvia da pureza perfeita: ela consegue apenas ocultar as
dissonâncias que lhe são essenciais...” (Idem, 81). De acordo com um texto de Weber, Os Fundamentos
Racionais e Sociológicos da Música, incluído em Economia e Sociedade (1995), esta preocupação
metafísica com a Identidade equacionada à ordem e à harmonia será um dos fatores que levará à extrema
racionalização da música ocidental devido à incessante busca de equacionar o que a sociedade ocidental
concebeu como irracionalidade musical. A preocupação com os intervalos – a música no Ocidente vai
ter por base harmônica a quinta e a terça levando à construção do chamado “acorde perfeito” e à distinção
entre boas e más medidas - levou ao desenvolvimento dos estudos sobre a tonalidade a polifonia e o
contraponto culminando com a constituição de uma arte autônoma, praticada por motivos puramente
estéticos por profissionais especializados. A música ocidental tradicional é, ao menos até o século XX, o
exemplo da tentativa metafísica dos sistemas classificatórios do chamado pensamento domesticado de
absorver a diferença na identidade, supondo que a primeira constitui-se como o erro e a imperfeição do
mundo material. Talvez, a quase ausência de séries ímpares nos exercícios dos fisiculturistas seja também
expressão de tal espírito obcecado por aquilo que considera perfeição.
204
tem dois braços, duas pernas, dois ouvidos, dois olhos, dez dedos, então as
séries têm que ser par, ora!” (Rafael, 23 anos. Professor). Podemos aqui
destacar as concepções de perfeição, completude, circularidade e mesmo
ordem no discurso nativo sobre as séries de exercícios. Além também da
identificação indireta do número par como algo naturalmente construído, e por
isso correto, visto que “naturais” são as paridades de membros e orifícios do
corpo humano. O número ímpar seria uma exceção no sistema, uma anomalia
aceita em determinados momentos com o objetivo de reiterar a ordem e a
harmonia representada pela paridade (Douglas, 1976).
Outro aspecto aludido pelos informantes a respeito dos números pares e
ímpares é o do medo do azar: “ah, número ímpar demais dá azar... vê só o
número 7, ninguém gosta dele, é coisa de macumba.” (Rafael, 23 anos.
Professor). Ainda, “o número 13, por exemplo, é um número estranho, né? tem
gente que acha que dá sorte, tem gente que acha que dá azar... não sei, é
estranho” (Mariana, 22 anos. Comerciária).
Em Medo do Feitiço (1992), Yvonne Maggie buscou compreender,
através da pesquisa de processo judiciais sobre feitiçaria, a característica
pervasiva desta na sociedade brasileira. A autora destaca o fato de que não
apenas os denunciantes e acusados da classe baixa, mas também os letrados
(juízes e advogados) acreditavam na magia e consideravam um dever coibir o
seu abuso. Estes guardiões do Direto acreditavam simultaneamente na ciência
e na feitiçaria, articulando uma lógica ou outra quando lhes convinha: “se os
colonizadores ingleses visaram suprimir a crença na feitiçaria, a elite brasileira,
nela emaranhada, procurava administrá-la satisfatoriamente” (2001:63). Nas
academias de fisiculturismo não é diferente. A crença na ciência do esporte, na
ciência da nutrição, nos resultados de equações cineantropométricas convive
tranqüilamente com a crença no feitiço, no mau-olhado, na magia, como
atestam os relatos sobre os números ímpares. Se representam, num primeiro
momento, ambigüidade e imponderabilidade, num segundo instante são
equacionados rapidamente a forças mágicas que suprimem desse pensamento
o acaso e a falha. Não apenas o número ímpar é motivo de alusão ao feitiço,
mas a gripe, o exercício que não dá resultado, o acidente, etc. Se um peso cai
205
no pé de alguém que está com o corpo em forma isto pode ser motivo de
burburinho a respeito de “trabalho feito”, “macumba” ou “olho-grande”. Da
mesma maneira, se um fisiculturista fica gripado e perde massa muscular ou,
por outro lado, se apesar de toda a técnica e ciência utilizada ele continua “sem
crescer”, ou seja, sem aumentar sua massa muscular, isto pode ser resultado
da inveja. Esta tem o poder mágico de fazer mal por si mesma. Nada precisa
ser feito a não ser o invejoso olhar com inveja para o invejado e assim
prejudicá-lo. Este processo Zande de crença está constantemente presente no
cotidiano das academias. Este relato do meu caderno de campo reitera tal
afirmação:
Janeiro de 2001. Chego à academia e vejo Micharia coberto com
casacos Adidas fazendo um agachamento com quase 250 kilos e sendo
auxiliado por Jair. A princípio penso que ele acredita – como muitos - que
fazendo esforço agasalhado pode perder mais peso e definir musculatura. Mas
logo percebo que não pode ser isso, já que Micharia já está definido. Me
aproximo vagarosamente buscando me exercitar no Leg press (aparelho para
exercício do músculo denominado vasto medial) e após perceber que Micharia
terminou sua série de agachamento, começo a conversar com ele:
-
E aí Micharia ?! Como tão as coisas?
-
Tudo certo.
-
Esse agachamento aí tá meio pesado, né?
-
Mais ou menos...
-
Hum, mais ou menos... mais ou menos, se eu fosse fazer um
agachamento desses eu morria esmagado na primeira repetição.
-
Nada...
-
Cê não tá com calor não, cara? Tá todo agasalhado...
-
Tô morrendo de calor, mas agora eu só vou malhar de casaco. Essa
academia só tem olho-grande. Ano passado perdi a competição
porque era tanto olho-grande que eu fiquei gripado na semana de
competir... os caras chegavam p’ra mim (com voz melosa quase
afeminada): Nossa, como você tá grande! Puxa como você
tá
definido! E ficavam me secando com aquele olhar de seca pimenteira
206
enquanto eu malhava. Agora não, cara. Não vão secar porra
nenhuma, porque eles não vão ver nada!
207
Capítulo V
“La cuisine d’une société est un langage dans lequel elle traduit
inconsciemment sa struture”
Lévi-Strauss
Comendo como Bicho : Publicidade, Mito e Gastro(a)nomia
Perseguindo o padrão estético dominante, inúmeros indivíduos não
medem esforços para se adequarem aos parâmetros sugeridos pelas imagens
midiáticas. Dietas e plásticas, de todos os tipos, implantes de próteses de
silicone e exercícios variados são itens realizados com o intuito de aprimorar a
forma física. Os heróis do fisiculturismo aparecem em publicidades de dietas,
de máquinas de musculação, de roupas para esporte e de métodos de
exercícios que a cada ano surgem de maneira diversificada no mercado da boa
forma. Como o músculo, neste sistema simbólico específico, é o signo e a
síntese do sucesso, a busca incessante pela sua expansão remete a uma
dimensão classificatória também peculiar. No sistema classificatório dos
bodybuilders alguns animais simbolizam a positividade e a excelência, sendo
usados em tatuagens e emblemas de academias representando força,
destemor, bravura, imponência, etc. Dentre estes destacam-se leões, tigres,
cães da raça pitbull, serpentes, tubarões e cavalos.
Leach (1983:186), em seu estudo sobre categorias animais, elabora uma
breve classificação que indica o sentido da distância e da proximidade de
determinados animais em relação aos indivíduos de determinadas culturas.
Demonstrando que os animais situados em distância intermediária do homem
podem servir de alimento, se forem seguidas determinadas regras, enquanto
os animais remotos não são comestíveis, o autor destaca a ambigüidade
classificatória como viés de compreensão da realidade que não deve ser vista
totalmente dicotomizada em perto/longe, eu/isto, nós/eles, mas também como
escala graduada, modulada e moduladora que atua articulando sentidos e
aspectos como “mais como eu, menos como eu” (Op. Cit.:198).
208
Homem
“Homem-animal”
Não- homem
(não- animal)
(“animal de estimação”)
(animal)
DOMESTICADO
CAÇA
SELVAGEM
(amigável)
(amigável/hostil)
(hostil)
Este caráter ambígüo afeta, por exemplo, cães e cavalos, animais que,
devido a sua proximidade com os seres humanos nas sociedades complexas
ocidentais, não lhes servem de alimento. Marshall Sahlins (1979: 191) destaca
que “a América é a terra do cão sagrado”, ressaltando o tabu que ronda tal
animal doméstico no imaginário norte-americano da mesma forma que o
cavalo. Longe de ter respaldo biológico, ecológico ou genético, a proibição do
consumo de carne de cachorro e cavalo por ocidentais estaria, de acordo com
o autor,
radicado no sistema simbólico que
classifica tais animais como
“sagrados”, impróprios para alimentação, salvo raríssimas exceções, como a
que ocorreu durante uma crise da alimentação de 1973 em que Sahlins fala
que a carne de cavalo foi colocada à venda em substituição à bovina,
causando, porém, enorme protesto. Seguindo esquema parecido ao de Leach,
Sahlins alude ao fato de que animais próximos ao ser humano são objeto tabu,
sendo impedido seu consumo por motivos culturais. Assim, em uma relação de
distanciamento e valoração relacionada à comestibilidade, o seguinte quadro
poderia ser esquematizado:
Bois
Porcos
Cavalos
Cães
Próximo
Mais comestível
Distante
Menos- comestível
209
Nas
classificações
dos
fisiculturistas,
o
cavalo
também
surge
semanticamente como um animal ambígüo. Ele pode ser sinônimo de
grosseria, estupidez e burrice ou de garbo, força e imponência, dependendo da
circunstância. Entre os bodybuilders este animal é emblema de poder e força assim como o cão pitbull é sinônimo de bravura e destemor. Ocorre um
processo de identificação, por parte dos fisiculturistas, com a força
representada pela figura do cavalo. Tal aspecto remete indiretamente à
questão da consubstancialidade presente na comensalidade de alguns povos
ameríndios. Entre os Pakaa-Nova, auto denominados Wari, estudados por
Vilaça (1992:68), “a devoração produz uma consubstancialidade entre os
termos”, ou seja, “todos aqueles que são devorados por um jaguar tornam-se
jaguar por terem seus jam incorporados a esta espécie”. Jam poderia ser
provisoriamente aqui traduzido como essência, mas não no sentido metafísico.
Ele “é um traço, marca, representação ou imagem de um corpo. A sombra de
um objeto ou pessoa projetada pela luz é o jam do objeto ou da pessoa” (Op.
Cit.:55). Assim, se um Wari sonha que comeu um animal, ele sabe, ao acordar,
que não comeu o corpo do animal, mas o jam do animal (Idem ). Entre eles os
animais com jam são considerados pessoas e não devem ser devorados. Se
isso acontecer, aquele que comeu o animal adoece. Entre os Tupinambá,
comer um guerreiro inimigo, por sua vez, fazia parte de um ritual espiatório
(Girard, 1997; Viveiros de Castro, 2002f) no qual a força e o poder por este
representado era incorporado por aqueles que o devoravam. Mas o que deve
ser destacado no estudo sobre a alimentação entre os fisiculturistas é que
estes não consomem – como foi ressaltado –
cães e cavalos, animais
próximos e mais “sagrados”, porém consomem as substâncias das indústrias
farmacêuticas e de cosméticos produzidas para maximizar a saúde de tais
animais. Ocorreria, portanto, uma espécie de identificação “totêmica” com o
cavalo, por exemplo, o mais representativo. Tal processo coincide com o uso
de produtos veterinários destinados a eqüinos. Assim, se não comem cavalos
para adquirir sua força, parece que associam o uso de vitaminas,
anabolizantes, pomadas e xampus para tais animais como um meio de
conquistar a força inerente a estes: “Eu tomo aminoácido p’ra cavalo... já tomei
210
também Equifort [anabolizante para eqüinos] e fez efeito... é muito mais forte
que o de gente, te dá muito mais força...” (Carlos. 24 anos. Fisiculturista).
Ainda:
“De vez em quando eu arranjo Androgenol com um cara lá
do Jockey,
é p’ra cavalo, né?! Tu usa o efeito é violento...
também tomei vitamina p’ra cavalo o Potenay, dá o maior gás,
porque tem anfetamina também...(João. 27 anos. Fisiculturista e
lutador de jiu-jitsu).
Ou:
“o remédio p’ra cavalo é melhor é muito mais forte, pô tu toma
uma ampola de Equifort nem se compara... porque vem mais que
as de gente... as vitaminas, os aminoácidos também...são muito
mais fortes que os comuns, cê fica com uma força de animal, cara
(Pedro. 22 anos. Fisiculturista e lutador de jiu-jitsu)
Nas academias, além de
ser comum o uso destes produtos para
cavalo 62, ainda ocorre o uso de outros por parte das mulheres e dos homens
como xampus e pomadas para dor, pois dizem que o efeito é mais rápido e
forte fazendo a dor “passar logo e o cabelo ficar mais forte e brilhante como a
crina de um cavalo”. Segundo pesquisas médicas a única diferença entre tais
produtos e aqueles direcionados para seres humanos é a dosagem maior e o
menor cuidado higiênico relacionado às embalagens o que ressalta o aspecto
simbólico da utilização de medicamentos e produtos da indústria da saúde
destacada por Dupuy e Karsenty (1979:191-192):
“encontramos aqui uma problemática que não é de modo
nenhum a cura. Os medicamentos asseguram um certo conforto
62
- Em 9 de agosto de 2000 a imprensa carioca noticiou a morte em um campeonato de um atleta de 23
anos, Jean Mendonça de Mesquita, lutador de jiu-jitsu, devido a parada cardíaca por causa do uso da
vitamina para cavalos denominada Potenay além de anabolizantes.
211
moral, diminuem o sentimento de insegurança, acalmam a
angústia, preenchem os vazios... em resumo, ajudam a viver. Mas
se o medicamento torna possível o acesso aos benefícios da
doença é também, e sobretudo, o seu artesão principal. O
consumo
de
medicamentos
...
é
um
meio
de
encobrir
determinadas faltas. A variedade de posologias, que instituem
uma parte do universo temporal do doente... preenchem o vazio e
angústia das horas cinzentas que se escoam em direção a uma
morte cuja própria existência dos sintomas recorda a vida
inexorável. Ao tomar o medicamento o sujeito supera um
sentimento
de
impotência
em
relação
a
sua
fragilidade
constitucional”.
Como os fisiculturistas costumam usar uma quantidade significativa de
esteróides anabolizantes cotidianamente, os produtos voltados para eqüinos
trazem maiores porções provocando a impressão de maior eficácia, devido a
esta dosagem literalmente cavalar. Em relação aos aminoácidos e vitaminas
para animais, os fisiculturistas algumas vezes compram tais substâncias para
quadrúpedes em lojas veterinárias, alegando o mesmo motivo: são mais
potentes do que as voltadas para seres humanos, conferindo mais força
àqueles que as utilizam.
Se não comem cavalos ou cães pitbull, devido a proximidade destes
com os humanos no sistema classificatório ocidental, tais indivíduos parecem
querer ter uma relação de consubstancialidade com tais quadrúpedes que
adotam como efígie de suas práticas.
Dieta Forte
A alimentação, além de ser necessidade biológica, é um complexo
sistema de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos,
etc. Pode-se dizer que nenhum aspecto do comportamento humano, à exceção
talvez do sexo, é tão sobrecarregado de idéias. Conforme Carneiro (2003), a
212
fome biológica distingue-se dos apetites sendo estes expressões dos variáveis
desejos humanos e cuja satisfação não obedece apenas ao curto trajeto que
vai do prato à boca, mas se materializa em hábitos, costumes, rituais,
etiquetas. Estes hábitos possuem uma intrínseca relação com o poder. A
distinção social pelo gosto, a construção dos papéis sexuais, as restrições e
imposições dietéticas religiosas, as identidades étnicas, nacionais e regionais
são todas perpassadas por regulamentações alimentares ( Bourdieu, 1979;
Fry,1982; 2001).
No primeiro dia de aula em uma das academias do bairro de
Copacabana, após ser apresentado ao professor e ter enfrentado uma bateria
de perguntas a respeito das minhas práticas nas academias anteriores, meus
objetivos com relação à forma física e exercícios que havia realizado
até
então, foi me indicada uma dieta, feita ali na hora, escrita à mão pelo próprio
professor que consistia nos seguintes itens:
Café da manhã (desjejum): 10 claras de ovos cruas, 10
colheres de aveia (flocos finos), 2 bananas, 1/2copo de leite
desnatado c/ 10 gotas de adoçante.
Lanche: 100g de batata cozida na água e sal (pouco).
Almoço: 150g de macarrão na água e sal, 150g de peito de
frango (grelhado).
Lanche: gelatina diet (à vontade).
Jantar: salada de brócolis, agrião, cebola, tomate e alface,
1 lata de atum na água e sal.
Lanche: gelatina diet (à vontade).
A seguir o professor indicou a seguinte pirâmide (ou ciclo) de esteróides:
213
seg
ter
quar
qui
sex
1a
1ampôla
semana
Dura63
2a
1ampôla
1ampôla
semana
Dura
Deca64
3a
1ampôla
1ampôla
1ampôla
semana
Dura
Deca
Dura
4a
1ampôla
1ampôla
1ampôla
semana
Dura
Deca
Dura
5a
1ampôla
1ampôla
semana
Dura
Deca
6a
1ampôla
semana
Dura
Além destes
sab
dom
esteróides, foram indicadas as seguintes vitaminas:
Supradin, Cewin, complexo B: 1 comprimido de cada, após o desjejum e 1
comprimido após o jantar.
O professor me entregou o papel com a dieta e o ciclo de “bombas”
dizendo que se eu seguisse suas instruções ficaria com o corpo do
Schwarzenegger. Peguei a “receita” e, um pouco assustado, tentei dizer-lhe
que não era meu objetivo virar um fisiculturista, mas apenas fazer exercícios e
pesquisar, pois era antropólogo e queria entender aquele grupo. Demonstrando
um pouco de decepção me mandou então guardar a dieta porque eu poderia
“mudar de idéia”. Disse que se eu não queria usar os anabolizantes – que ele
vendia – podia ao menos fazer a dieta que era para “secar”, e começou a me
indicar os exercícios dizendo que não era costume na academia escrever
63
64
- Durateston.
- Decadurabolin.
214
séries deste tipo para “não viciar o aluno”, já que cada dia seria um exercício
novo que ele passaria na hora.
Esta indicação de dieta e esteróides anabolizantes para iniciantes é um
breve indício das regras alimentares que regem o cotidiano dos bodybuilders.
Interessante se faz observar o papel dos alimentos “brancos” considerados
muito ricos em proteínas e carboidratos: peito de frango, peixe, macarrão,
batata, banana, clara de ovo. Estes alimentos são consumidos em grande
quantidade
pelos
fisiculturistas.
São
“sagrados”
e
sua
presença
é
indispensável já que, conforme dizem, as proteínas, presentes em carnes junto
com os carboidratos, retirados de massas, banana e batata, “são fundamentais
para fazer crescer o músculo”. Como essa dieta era para um iniciante, e tinha o
objetivo de emagrecer rapidamente o usuário, a carne vermelha estava
ausente. Porém, em dietas de crescimento muscular que eles denominam off
season, o consumo de carnes e massas de todos os tipos é incentivado
levando alguns a comerem alguns quilos de carne e macarrão por dia, além
das dúzias de claras de ovo. Sabendo disso, a indústria dos suplementos
alimentares criou substitutos em pó – praticamente sem gosto – para substituir
quimicamente tais alimentos. Entre os mais usados estão suplementos
denominados Creatina e a Albumina, nome científico vendido com nome
fantasia por várias marcas da indústria nutricional.
Percebi, durante os anos de trabalho de campo, que a dieta de um
fisiculturista tem importância fundamental no seu sistema simbólico e, portanto,
ocupa um lugar ímpar no seu cotidiano não apenas extensivamente (durante o
tempo que ele adota), mas intensivamente ( a radicalidade). O fisiculturista
adota uma dieta radical que comporta a ingestão de inúmeros suplementos –
cada vez mais “aprimorados” pela indústria – e proteínas em grande
quantidade. Chegam a consumir até 9000 calorias por dia – três a quatro vezes
mais que uma pessoa comum, quando em fase de construção da
muscularidade. Por outro lado, reduzem drasticamente a alimentação quando
necessitam emagrecer. Em “fase de crescimento” realizam, de duas em duas
horas, refeições que chegam a somar uma dúzia de clara de ovos (ou
albumina,
clara
de
ovo
em
pó
desenvolvida
pelos
laboratórios
de
215
suplementação) - e um quilo de carne diárias – em geral peito de frango -, além
dos carboidratos; em geral macarrão puro na água e sal. Alguns dias antes dos
campeonatos, deixam de comer sal e tomam laxantes e diuréticos com o
objetivo de reduzir a quantidade de água no tecido subcutâneo para que a
musculatura seja ainda mais ressaltada. Não raro, sofrem vertigens e
desmaiam devido a falta de água e sais minerais que produz quedas na
pressão arterial e arritmia cardíaca. Para reforçar o cardápio utilizam, como foi
dito, vários produtos para suplementação como farelos e comprimidos – em
geral maiores do que o tamanho de um comprimido comum - derivados de
alimentos, que em geral são batidos com leite desnatado ou adicionados à
água. Tal tipo de dieta além de produzir uma grande massa muscular reduz
sensivelmente a porcentagem de gordura corporal. As taxas chegam a se
estabilizar entre 2% e 5%, contra 18% de um indivíduo comum do sexo
masculino. Contudo, para que isso aconteça, a dedicação total aos exercícios
deve ser praticada; estes envolvem séries de musculação com aeróbica que
implicam levantamentos contínuos de pesos de até meia tonelada, exercícios
para as pernas. Para trabalhar essa parte do corpo, os fisiculturistas chegam a
fazer agachamentos – exercícios de abaixar e levantar com pesos nos ombros
– com até 300 quilos. Com um braço chegam a fazer 40 repetições com pesos
de 45 quilos. Tudo isso aliado ao consumo freqüente de esteróides permite a
esses homens adquirirem até 7 quilos de músculos ao fim de um mês. Estes
excessos levam alguns à morte. No ano de 2003 a Confederação Nacional de
Culturismo registrou cinco casos graves envolvendo usos de drogas. Dois
destes culminaram em morte 65.
Referindo-se à dimensão cultural dos hábitos alimentares, Sahlins
(Op.Cit.) aponta para a centralidade das carnes na dieta norte-americana e
seu aspecto simbólico relacionado à força e à virilidade. Segundo o autor,
utilizando as pesquisas de Benveniste, a associação simbólica entre a carne e
a força indica a ampla difusão social que tem tido este código da comida, que
parece originar-se da identificação indo-européia do boi com a virilidade.
Fischler (1979) denomina tal processo presente em diversas culturas de
65
- Revista Veja. 22 de Outubro, 2003:103.
216
“contaminação analógica”, ou seja, a concepção de que a ingestão de
determinados alimentos transpõe as propriedades e virtudes destes alimentos
para aqueles que os ingerem. Esta apologia da carne remete, em contraste,
aos seguidores da alimentação natural, os chamados “naturebas” que não
ingerem carne e buscam uma dieta da leveza, com a presença de muito verde
e frutas “molhadas”66. A análise desta dicotomia tem levado alguns a
associarem a alimentação natural à série
natural-feminino-leveza, em
contraposição à série carne-masculinidade–força–virilidade, opondo o corpo
feminino à força e associando a alimentação natural estritamente à
apresentação do corpo como objeto de gozo para o outro, sujeito de sedução,
e não como produtor de energia (Lifschitz,1997). Se esta classificação a
princípio faz sentido, não resiste porém quando confrontada com a realidade
dos fisiculturistas, pois se a feminilidade está também entre eles associada à
fraqueza – da mesma forma que o alimento muito leve – não é apenas ela que
se apresenta como sujeito de sedução. Ao contrário, toda a construção da
força, da virilidade e da muscularidade está centrada neste processo, antes
julgado como pertencente ao mundo da
feminilidade que dava muita
importância a aparência do corpo em contraposição à força inerente ao mundo
masculino. Se isto foi verdade antes, atualmente a aparência deve estar
revestida de músculos para fazer o corpo atuar como objeto de sedução.
Se a carne, e tudo que dela é derivado, é vista como uma espécie de
alimento sagrado na dieta dos bodybuilders, a gordura é tida como a maior vilã,
símbolo máximo do mal e do profano. Carnes são bem vindas, mas carnes
pesadas e viscosas, não. A carne de porco - e todos os derivados de suínos é,
portanto,
evitada ao máximo, como símbolo maior de impureza. Em
seguida vêm o álcool. Se os fisiculturistas não adotam a extrema leveza dos
“naturebas”, por sua vez não absorvem de forma alguma qualquer tipo de
alimento junkie. As carnes não devem ser gordurosas, nem fritas. A fritura deve
66
- Interessante ressaltar que os gregos considerados, não raro, modelos maiores de perfeição física e
criadores das competições olímpicas, quase não consumiam carne, centrando, assim como os romanos,
mais tarde, sua alimentação na tríade: pão, azeite de oliva, vinho. A carne consumida era a de peixe. O
elevado consumo de carne era visto, pela cultura greco-romana, como um hábito dos chamados povos
bárbaros – em Roma germânicos e eslavos, principalmente – que de fato consumiam carne suína e bovina
em quantidade significativa. (Flandrin & Montanari, 1998; Carneiro, 2003).
217
ser banida do cardápio. Peso e leveza devem estar equilibrados referindo-se a
uma racionalidade na qual impera
tabelas nutricionais. Neste critério
classificatório, a tradicional compreensão antropológica elaborada por Mary
Douglas (1976) - que ressalta a proibição do consumo de carne de porco entre
os hebreus porque no sistema classificatório deste povo o porco apesar de ter
patas fendidas não é ruminante – deve ser acrescentada à descoberta pela
medicina dos problemas de saúde causados pelo consumo de gordura, fato
que produziu uma demonização da adiposidade. Além disso, a descoberta dos
micróbrios provoca nova forma de classificar o que é limpo e sujo, dando feição
à higiene contemporânea e ao higienismo, conseqüentemente. Ocorre, neste
movimento tipicamente ocidental, uma verdadeira revolução classificatória e
dos sentidos que vai relacionar a sujeira às classes baixas. A partir do século
XVIII, a palavra limpo começa a adquirir conotações morais, passando a
significar também distinção, elegância e ordem. A limpeza das coisas passa a
indicar limpeza de alma. A partir dessas novas representações sociais, as
autoridades resolvem empreender uma espécie de cruzada de desodorização e
de limpeza com o objetivo de banir as imundícies que uma sociedade cada vez
mais hierarquizada tolerava cada vez menos67. A alimentação não vai escapar
a essa fúria higienizante que surge na época moderna conformando uma nova
weltanschauung dietética (Rodrigues, 1980; 1995; 1999). A carne de porco
passará a ser vista com suspeita devido ao habitat do animal. Soma-se a isso o
desenvolvimento dos estudos nutricionais e de fisiologia que condenarão a
ingestão excessiva de gordura. As culturas ocidentais no século XX passam a
demonizar a gordura. Conseqüentemente o status do gordo muda:
67
- De acordo com o trabalho de Attali a percepção dos odores e da limpeza até o século XVIII diferia
muito do que a cultura atual considera saudável (1979 Apud:. Rodrigues, 1999:112): “o ambiente urbano
do século XVIII ainda era predominantemente o da cultura medieval: o da carniça, do estrume de animais
que circulavam dentro do perímetro urbano, dos restos de alimentos, do sangue que escorria pelos cantos
ou que permanecia estagnado nas poças, dos cadáveres d e grandes e pequenos animais, dos fedores dos
sebos sendo derretidos, dos matadouros dentro das cidades, provocando febres pútridas, dos hospitais
desencadeando gangrenas úmidas cujas feridas não cicatrizavam, dos cemitérios empilhando dejetos e
corpos, dos açougues, dos cortumes, das cozinhas coladas umas as outras, dos excrementos lançados às
vias públicas...” Ainda citando O Perfume de Patrick Susskind sobre a população urbana no Século das
Luzes (Rodrigues 1999: 112): “reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje... os
homens [e mulheres] fediam a suor e a roupas não lavadas; sua boca fedia a dentes estragados, seu
estômago fedia a cebola e, o corpo, quando já não era mais bem novo, a queijo velho, a leite azedo e a
doenças infecciosas....fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza
toda...pois à ação das bactérias, no século XVIII, não havia sido colocado ainda nenhum limite...”
218
“ Há um século, nos países ocidentais...os gordos eram
amados; hoje, nos mesmo países, amam-se os magros. No tempo
em que os ricos eram gordos, uma rotundidade razoável era muito
bem vista. Ela era associada à saúde, a prosperidade, à
respeitabilidade plausível, mas também ao capricho satisfeito... a
magreza não sugeria mais do que a doença(o definhamento), a
maldade ou a ambição desenfreada” (Fischeler, 1995:78).
Se, no passado, o gordo era símbolo de positividade no sistema
classificatório das culturas ocidentais, desnecessário dizer que atualmente “as
silhuetas obesas atraem apreciações bem negativas” como as de “preguiçoso,
trapaceiro, sujo, mau, feio, besta, etc.” (Idem : 70). O repertório discursivo
médico, mutatis mutandis, dá sua contribuição para a manutenção dessa
condição simbólica lipofóbica.
Neste processo, como indicou o trabalho de Boltanski (1979) sobre o
discurso dos operários a respeito da doença e do corpo, o
discurso dos
fisiculturistas e freqüentadores assíduos das academias de musculação é
construído a partir de categorias advindas dos discursos médico-científicos.
Estes discursos de especialistas não são, na maioria das vezes, claramente
compreendidos pelos praticantes de atividades físicas das instituições de
bodybuilding que articulam seu próprio discurso à maneira de uma bricolage,
com conceitos e categorias médico-nutricionais. Confrontados sobre a clareza
dos significados dos discursos científicos muitos demonstraram ter uma
interpretação bem própria das categorias científicas:
“Bom, eu sei que a proteína ‘tá na carne branca e faz a
gente crescer massa muscular, é limpa, não engorda... o
carboidrato ‘tá na massa do macarrão e do pão, que tem que ser
integral... tudo isso faz crescer massa... já a carne vermelha é
mais pesada, não é muito legal. Comer carne vermelha de vez em
quando até vai, mas não é legal comer sempre, porque ela tem
219
gordura e, por isso, não é tão limpa quanto a carne de peixe.
(Carina. 18 anos. Estudante).
Também :
“a carne de porco é suja, tem gordura, porco é bicho sujo,
come tudo que é sujeira, é um urubú sem asa... vive na lama, na
sujeira, tá cheio de coisa impura. Já a carne branca, não, é mais
leve. Um peito de frango é limpo, não tem sujeira, o bicho é
tratado só com milho e ração, é limpinho, que nem o peixe que
vive na água, não tem gordura, não come porcaria, é pura
proteína, sem impureza. Já a carne de vaca não é tão suja que
nem a carne de porco, dá p’ra comer se você selecionar as
partes, tirar as partes gordas, a vaca não é muito suja, nem é
muito limpa, né?! De vez em quando não tem problema comer um
bife grelhado.” (Paulo. 27 anos. Fisiculturista)
Ainda:
“a proteína é seca, forte, pura e faz crescer... a carne
branca ‘tá cheia de proteína e não faz mal, não engorda... a
gordura é a pior coisa que tem. Mata. E além de matar é feio,
sacou? Tu vê aquele cara barrigudo com aquelas banhas
moles...é horrível! E aquela mulher cheia de pneu e culote, banha
pura...é o retrato da morte! [risos] O cara assim só come porcaria,
lixo! Bacon, hamburguer, fritura, tudo que é dejeto alimentar...
Olha, vou te dizer uma coisa cara, não adianta malhar que nem
um maluco, o dia inteirinho e comer gordura, porcaria, sujeira... a
maior parte dos resultados está na alimentação. A gente é o que a
gente come”. (Edson. 30 anos. Advogado).
220
Nas classificações alimentares dos bodybuilders o aspecto gorduroso
dos alimentos toma forma, por vezes, de mal supremo, que deve ser combatido
e evitado por aquele que quer ser considerado belo e saudável. Nesta
concepção, os animais que comem coisas consideradas impuras tendem a
transmitir essa impureza em forma de gordura para aqueles que os comem. O
porco é, sem dúvida, o maior vilão, tendo ao seu lado todo tipo de fritura. Já a
carne bovina aparece como meio termo, nem muito impura, nem muito limpa,
dependendo da parte do animal que é consumida. O frango, ou a galinha,
também, apenas o peito é apreciado por ser considerado “seco”, branco e sem
gordura, outras partes sem ser o peito não são muito apreciadas. Já o peixe é
símbolo de pureza e limpeza, por viver na água e, de acordo com os
informantes, “ não comer porcaria”.
Desta forma, é possível perceber que, paralela a toda categorização
científica presente no discurso sobre a alimentação, existe outra categorização
que retira da primeira determinados
termos para organizar um sistema
discursivo com uma lógica que associa a sujeira e a impureza da carne à
umidade, ao peso no estômago e à lama (o porco), sendo a gordura e sua
“moleza” ligada diretamente aos estados e condições execráveis de saúde
expressos nessa lógica
pela própria sujeira. Já
a condição de pureza do
animal que serve para o alimento excelente é aquela, segundo os informantes,
relacionada à água, à leveza e às cores claras (carnes brancas) e à ausência
de gordura (peixe), sendo o meio termo representado pela carne do frango e da
vaca (algumas partes do corpo destes), animais que vivem em terra seca, um
mediador nestes dois pólos.
221
Porco (-)
Vaca e frango
Peixe (+)
Impuro
Partes puras/impuras
Puro
Gordo
Nem gordo/nem magro
Magro
Carne “pesada”
Carne
de
peso
médio Carne “leve”
(dependendo das partes)
Lama
Terra seca
Água
Partes sagradas e partes
profanas
Profano
Sagrado
Camporesi (1996), escrevendo sobre as mudanças culinárias na Europa,
mostra que quanto mais a cultura se racionalizou no Ocidente, mais horror a
“carnes viscosas e pesadas” ela passou a ter. A culinária, leve, frugal, com
legumes, verduras e carnes brancas tomou o lugar dos pratos assados e dos
banquetes pantagruélicos que passaram a representar os vícios da alma. A
leveza à mesa e a ausência da gordura passaram a ser sinal de bom gosto e
inteligência entre as classes superiores. Talvez processo parecido ocorra entre
os bodybuilders que buscam a amplitude da forma e a limpidez da imagem
como símbolo de excelência e status social. Contudo, como foi visto, a tese da
ascese não basta para explicar a formação da cultura ocidental capitalista, já
que esta convive com significativo e crescente consumismo que leva à
obesidade grande parte das populações de diversas regiões do mundo atual. A
tese da ética romântica do consumismo, muito bem sustentada por Campbell
(Op. Cit.), parece de fato estar presente naqueles momentos festivos em que
os bodybuilders, após meses de dietas rígidas, se entregam a verdadeiras
orgias alimentares, consumindo em um dia ou uma noite a maior quantidade
possível dos alimentos que lhes é proibido durante a maior parte de seu tempo.
Contudo, o que deve ser destacado, na alimentação bodybuilder, é sua
estrutura simbólica que pode sugerir alguns aspectos sobre a época que
estamos vivendo. Se a dietética medieval tornou-se, por um lado, com o
222
gradativo processo de racionalização que a cultura ocidental produziu,
gastronomia, uma ciência do gosto e do preparo dos alimentos, por outro, o
aspecto hedonístico da ética romântica levou à oficialização da gula (Flandrin,
1998). Mas o simplismo não deve ser aceito: a organização das chamadas
boas maneiras à mesa na Europa (que está relacionada à gastronomia, mas
não necessariamente) representou, por outro lado, a tentativa de consolidar o
processo civilizatório (Elias, 1990), ou seja, um processo que envolveu ética e
etiqueta “valor interno, moral, aspecto externo, formal, da conduta do homem
em suas relações com seus semelhantes” (Romagnoli, 1998:496). A
comensalidade é, par excellence, o lugar da sociabilidade assim como o
espaço onde se encontram o corpo e a alma, a matéria e o espírito, a
exterioridade da etiqueta e a interioridade da ética. Em várias culturas o
comportamento comensal é regido por uma dupla preocupação; trata-se de
controlar e conter os gestos, os movimentos do corpo e de zelar pelos
movimentos do espírito e guiá-los, com o objetivo ético e social que as
circunstâncias exigem para que a solidariedade seja mantida (Lima, 1986;1996;
Lévi-Strauss, 1991). Tal perspectiva, no Ocidente do século XX, mais
especificamente depois da Segunda Grande Guerra, sofre uma mudança
radical relacionada ao sistema culinário e às chamadas maneiras à mesa,
consolidadas a partir do século XVII. A industrialização da alimentação e sua
massificação consumista produziram o que Fischeler (1998) denominou
MacDonaldização dos costumes alimentares; o surgimento dos fast-foods que
inovaram, dentre outras coisas, pela aplicação do taylorismo à alimentação.
Esse processo, que não se limitou apenas à produção de sanduíches, mas se
estendeu para as pizzas e comidas orientais, caracteriza-se pela produção
mundializada e o consumo em série, homogeneizante e padronizante que retira
não apenas a arte da culinária como enfraquece o aspecto solidário dos ritos
comensais. A partir da década de 80, a este processo, marcadamente no
Brasil, associa-se o surgimento dos restaurante a quilo seguidores do mesmo
processo e que tem como característica justamente a descaracterização dos
pratos e das identidades culinárias pela mistura rápida e sem cerimônia de
alimentos por vezes considerados tradicionalmente antagônicos formando uma
223
espécie de “pastiche culinário” (Carneiro, 2003:109). A haute cuisine não se
furta, também, ao processo
de expansão do atual capitalismo globalizado
padronizando, através da propaganda e do marketing, as marcas dos chefs
mais conhecidos que caracterizam a distinção social através da prática artística
da produção de suas cozinhas empresas. Este processo específico presente
na atual conformação alimentar das sociedades globalizadas foi denominado
por Fischeler de “gastro-anomia” ( Op. Cit. : 851).
Embora os fisiculturistas não sejam adeptos de tais cozinhas ou fastfoods, devido o regime alimentar que seguem a maior parte do ano, ocorre
entre este grupo social algo similar, que talvez represente o agravamento desta
anomia culinária. Se a industrialização dos alimentos e sua produção em série
representa um processo de racionalização do gosto e descaracterização da
comensalidade solidária, o surgimento dos suplementos alimentares – quase
alimentos-remédios – representa o acirramento deste processo. Pílulas e
variedades de pó de todos os tipos: creatina, albumina, L-carnitina, BCCA,
representam mais que o taylorismo aplicado à alimentação. Representam o
desmembramento científico das cadeias de proteínas e a ultrapassagem do
gosto, e do seu cultivo, pela sua mecanização industrial. Assim, está
estabelecida a aceleração radical do consumo alimentar que não passa mais
nem mesmo pela mastigação. É o reforço da falta de tempo, do louvor à
rapidez e ao individualismo que descarta qualquer sociabilidade para se
alimentar. De fato, são os olhos que comem, pois se tais “alimentos” nem
mesmo gosto possuem, é a propaganda e o marketing que sustentam a
crescente venda de tais substâncias produzidas em laboratórios. Sustentam tal
expansão mercadológica por intermédio de
poderosas fotos
tecnicamente
publicitário
convincente.
Tal
discurso
e linguagem
mitológico-científico
promete milagres da forma física àqueles que se alimentam com tais produtos
da indústria de suplementos sugerindo que a busca pela otimização da forma
associada a exaltação da saúde talvez represente uma espécie de reforço da
gastro-anomia.
224
Publicidade e Forma
A publicidade, portanto, tem exercido importante papel na configuração
das práticas corporais presentes nas academias de fisiculturismo. Ela deve ser
compreendida aqui enquanto sistema de idéias que circulam, de forma
intermitente, no interior de um outro sistema: um grupo social específico. Seu
estudo pode ser o caminho para o entendimento de modelos de relações e
comportamentos, além de expressão ideológica referida a determinadas
práticas coletivas. Tal estudo, do consumo e da “indústria cultural”,
pode
apresentar certas características fundamentais inerentes às sociedades
indústriais modernas e capitalistas, servindo também para levantar algumas
formas pelas quais um determinado grupo social retrata, ao menos em parte, a
si próprio por intermédio dos anúncios.
Estudada enquanto sistema simbólico que pode produzir e reproduzir
determinado grupo e é por ele produzida e reproduzida, a publicidade, ou a
propaganda, pode ser analisada antropologicamente enquanto mito. As
valiosas referências construídas e organizadas no trabalho de Rocha (1995),
inspirado em Sahlins (1979), podem servir de demarcações teóricas para a
elaboração de novas análises sobre o papel da propaganda e do marketing na
construção do corpo entre os freqüentadores assíduos de academias de
ginástica e musculação. Espelhando uma série de representações sociais por
intermédio dos símbolos que articula, a publicidade, ao realizar tal processo,
produz uma espécie de sacralização de determinadas dimensões do cotidiano,
introduzindo “magia” em um dia-a-dia burocratizado. Parece ser quase
impossível escapar da força que ela exerce sobre o mundo atual. Não seria
incomum a cena de um indivíduo fatigado, após uma longa rotina de trabalho
desgastante (muitas vezes retido em um trânsito lento de uma grande
metrópole), se deparando com estampas reluzentes de
corpos perfeitos e
produtos que prometem, nos outdoors, a realização dos seus sonhos e desejos
mais profundos de lazer, liberdade e sucesso pessoal. Nesta situação
corriqueira, que se realiza a cada instante da vida nos grandes centros
urbanos, configura-se uma espécie de reencantamento do mundo, onde os
225
sonhos podem ser realizados, de acordo com os anúncios, através da simples
utilização do cartão de crédito (Rocha,1995). Paradoxalmente, essa espécie de
pensamento mágico68 (Lévi-Strauss, 1975a) se concretiza em um contexto
social específico no qual o raciocínio científico supostamente
é soberano.
Como ressalta Rocha, ”nesse jogo de representações o cotidiano se faz vivo,
se faz sensação, emoção, mágica” (Op. Cit.:26). Longe de ser uma instância
afastada do pensamento peculiar às sociedades complexas, tal pensamento
mágico parece estar presente até mesmo nas instâncias mais particulares das
mesmas.
Enquanto sistema simbólico que (re) introduz a dimensão mágica no
contexto burocratizado do capitalismo, a publicidade passa a organizar essa
realidade, classificando-a através dos valores presentes nos produtos que
vende, hierarquizando os grupos sociais, dividindo-os em consumidores de
vários tipos e níveis. Consumir torna-se, não raro, projeto de vida, e o status
adquirido pelo indivíduo apresenta-se como proporcional a sua capacidade de
comprar produtos e tudo aquilo que a eles estiver equacionado. Este apelo do
consumo, envolto nas brumas mágicas do marketing, dimensão fabulatória
burguesa, forma um sistema no qual a própria dimensão de desencantamento
do mundo - a qual Weber tão bem conceituou - compactua, permitindo o
reencantar do mundo desencantado naquele processo destacado por Campbell
(2001) sobre a importância do surgimento da ética romântica para a
consolidação do capitalismo. Estes dois pólos – ascetismo e hedonismo -,
longe de se excluirem na conformação social capitalista, se complementam;
estando a via do rencantamento associada diretamente ao consumo, à
promesse de bonnheur
maximização material
equacionada à capacidade de compra e à
(Sahlins, 1979). A lógica do lucro e da expansão
consumista retratadas no apelo dos produtos configura ética pragmática e
utilitarista que perpassa o cotidiano e as relações sociais transformando em
68
- O uso deste conceito clássico elaborado por Lévi-Strauss mereceria um estudo mais aprofundado. É
comum sua utilização indiscriminada sem que se destaque ou discuta o que filosoficamente é considerado
pensamento e raciocínio. Neste contexto específico utilizo o conceito do autor como sinônimo de
raciocínio e não como pensamento no sentido tradicional filosófico do termo que confere a este uma forte
carga crítica, constituindo-o como visão ontológica, ética, estética, metafísica e antropológica e não
apenas como raciocínio ou funcionamento lógico do espírito humano, já que o pensamento subsume a
lógica, mas a lógica não subsume o pensamento.
226
produtos os próprios seres humanos e seus sentimentos e vice-versa. Tudo é
passível de ser vendido e comprado num processo de imersão em desejos,
sonhos e mitos que reencantam o que seriam
relações frias de troca
comercial, conferindo ao processo de venda e compra um estatuto ilibado de
avanço nas práticas sociais. Reencantamento do desencantado.
Essa mercado-lógica presente na cultura ocidental tende a criar uma
“mediana e comum sabedoria sociológica” (Sahlins, Op. Cit.: 187) que toma
como pressupostos verdadeiros de análise categorias que são mais produtos
de ficções coletivas do que de crítica científica. A concepção de busca pela
maximização material transborda das práticas cotidianas para o fazer
sociológico que adquire
categorias do senso comum como instrumento de
análise social. A economia, e as relações sociais em geral, apresentam-se
nessas análises, como uma arena de ação pragmática na qual as
necessidades biológicas dos indivíduos se degladiam em um processo de
produção material da sobrevivência dos melhores. A sociedade, sob este ponto
de vista, seria o resultado formal destes embates. O indivíduo, tomado como
autônomo em seus julgamentos e escolhas racionais, visaria sempre a
maximização dos lucros e de seus interesses pessoais (Elster,1994). Tais
abordagens dificilmente se detém na gênese, e conseqüentemente, na
imposição cultural do que é considerado necessário por tais indivíduos, ou seja,
na produção social das sensibilidades, necessidades e sentidos individuais,
pois “nenhum objeto, nenhuma coisa é ou tem movimento na sociedade
humana, exceto pela significação que os homens lhe atribuem” (Sahlins, Idem:
189). Esta significação, tida como lucro em última instância, é produto de um
contexto que a constrói como tal e que, ao construí-la, reproduz a sua
dimensão social na própria prática dos indivíduos que a articulam. A ação se
realiza, portanto, dentro de um determinado contexto cultural, através de
sistemas simbólicos que viabilizam os itens com os quais o indivíduo confere o
sentido a tais ações. Tal sentido é (re)produzido de forma inconsciente por tais
indivíduos, já que os itens constitutivos da cultura são apreendidos também de
forma inconsciente através da socialização (Bourdieu, 1989). Dizer que todos
os indivíduos possuem reflexividade em seus atos (Giddens, 1991), ou escolha
227
racional, é uma espécie de meia verdade,
sempre
se
realiza
dentro
de
uma
pois a existência desta escolha
margem
de
liberdade
conferida
estruturalmente, sendo realizada com itens deste sistema simbólico (estrutura)
e, portanto, coletivo. Itens que apresentam-se como inconscientes e atuam
produzindo desejos e agenciamentos individuais e coletivos. Esta escolha
racional e reflexiva é sempre circunstancial e variável e, na maioria das vezes,
superficial, já que de fato se baseia na lógica da maximização dos processos
imposta pela estrutura, mas não se detém na gênese desta lógica. Utilizar
apenas a lógica da
pan-reflexividade e da escolha racional para explicar a
realidade social é aplicar um raciocínio escolástico à mesma (Bourdieu, 2001).
Este pensamento (escolástico), pertinente à Idade Média e inspirado nas
tentativas
de Aristóteles, na Antigüidade, de explicar a existência do
movimento no Universo, pode ser exemplificado, grosso modo, da seguinte
forma: buscando compreender o que faz uma folha ficar amarela, Aristóteles
dizia que a mesma tinha a capacidade de amarelecer, ou a potencialidade de
tal ato, ou seja, este ato (se tornar amarela) já existia em potência
(formalmente) na própria folha verde. Nota-se que esse raciocínio não se
detinha na explicação da produção, na gênese do processo de organização
das propriedades e substâncias que compõem uma folha. Da mesma forma,
explicar a sociedade apenas pelas superficiais intenções dos indivíduos sem
perceber a gênese, a construção social destas intenções (que por sua vez,
produzem as próprias individuações), é conceber uma explicação assintótica
que, portanto, quase nada explica. Por outro lado,
conceber todos os
indivíduos indiscriminadamente como autômatos, títeres de articulações
formais que existem fora deles e os produzem em sua plenitude é recair no
mesmo erro escolástico por não explicar, desta vez, a gênese destas estruturas
formais que passam a ser concebidas como substâncias que pairam acima da
ações sociais.
O estudo da publicidade, como foi dito, concebida como um sistema
simbólico, além de contribuir para a compreensão do grupo social específico
dos fisiculturistas, através da tentativa de esclarecimento dos vetores culturais
que incidem sobre esse grupo ao mesmo tempo que por eles é produzido,
228
pode contribuir também para o aprofundamento de algumas outras questões
referentes à teoria social.
Mito e Mídia
Através do avanço das pesquisas antropológicas, o mito deixou de ser
tratado como a dimensão exótica, atrasada, fabulação do “outro” que viveria
fantasiando o mundo por não ter o raciocínio científico elaborado. Com a
antropologia, o mito passou a ser compreendido, não apenas como
característica das sociedades ditas “primitivas”, mas também como parte
integrante do tecido das sociedades contemporâneas industrializadas e, como
tal, meio para o entendimento de suas dinâmicas. O método de análise
estrutural aplicado aos mitos permitiria extrair deles a forma lógica invariante, a
estrutura permanente relacionada simultaneamente ao presente, ao passado e
ao futuro (Lévi-Strauss, 1975; Barthes, 1993; Carvalho,1995).
A chamada, por Adorno e Horkheimer, “indústria cultural”, surgida no
século XX, vem intermediando o acesso dos seres humanos a um universo
sem limites de acontecimentos e plasticidade mítica, esmaecendo as fronteiras
que demarcam o real e a fantasia. Por vias singulares, a percepção de Marx
(1983) sobre o reencantamento do mundo, através do caráter fetichista da
mercadoria, parece se efetivar atualmente. Imagens, sonhos e desejos povoam
os interstícios da coisificação da vida cotidiana conferindo a esta produção um
caráter metafísico que encobre esta própria coisificação. Os “produtos do
cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que
mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das
mercadorias, acontece com os produtos da mão humana” (Op. Cit.:71). Os
objetos materiais, no capitalismo, possuem certas características, obviamente
conferidas pelas relações sociais, que parecem lhes pertencer naturalmente.
Neste processo, as próprias relações sociais passam a ser vivenciadas sob a
forma de relações entre mercadorias ou coisas.
Assim, parece que na atual conformação capitalista hegemônica poucas
barreiras se contrapõem à venalidade que invadiu as próprias fronteiras do
corpo humano. Se atualmente há uma espécie de sacralidade na manutenção
229
desse corpo em instituições da forma, corpo envolto e tocado pela utopia da
beleza e da saúde, há, simultaneamente, a dessacralização de suas partes
entendidas como peças de um sistema mecânico, mercadoria ou mesmo
moeda de troca. Se, em inúmeras sociedades “primitivas” – e mesmo no
passado das sociedades complexas de modelo europeu, - o comércio dos
corpos inexistia devido ao fato destes serem identificados à pessoa e,
portanto, excluídos da circulação mercantil, estando situados na economia dos
bens simbólicos, que supõe ou produzem as relações duráveis e totais entre as
pessoas (portanto totalmente opostas àquelas relações temporárias e
estritamente técnicas entre os agentes indiferentes e intercambiáveis que são
constituídos pela lógica do mercado), nas atuais sociedades de mercado tal
sacralidade, em geral, apresenta a tendência à diluição devido ao próprio
processo de busca da maximização do lucro (Simmel, 1983;1989). Nestas, o
corpo é tratado como coisa intercambiável à maneira de uma moeda (Bourdieu,
1994), proporcionando não apenas o comércio de suas partes ou de sua
beleza, mas de sua imagem.
Nesse processo, a linguagem do marketing articula narrativas míticas
reencantando a realidade com o objetivo de dela extrair a maior possibilidade
de lucro. Tais narrativas possuem caráter estrutural que lhes confere uma
espécie de a-temporalidade relacionada à especificidade de acontecimentos na
narrativa. Constituindo-se como meta-linguagem, as unidades elementares do
sistema mítico não se identificam plenamente com as unidades do sistema que
forma a língua - os fonemas – no caso da narrativa mítica, tais unidades – os
mitemas
–
definem-se
como
frases,
que
traduzem
a
sucessão
de
acontecimentos da narrativa. O jogo das relações entre os mitemas constrói o
sentido destas narrativas. Múltiplas versões possibilitadas pela combinação
infinita de unidades determinadas e formais. O papel do analista é o de fazer
emergir tal estrutura coletiva - enigma simbólico inconsciente para aqueles que
a vivenciam (Leal, 1996).
Barthes (Op. Cit.) analisou as expressões míticas contemporâneas
presentes em capas de revistas, anúncios e reportagens, ressaltando a
importância do entendimento de tais narrativas para a compreensão da
230
produção simbólica das sociedades capitalistas. De acordo com o autor, tudo
pode se constituir como um mito desde que suscetível de ser julgado como
discurso. Tanto o discurso escrito, como a fotografia, o cinema, a TV, a
publicidade e o esporte podem servir de suporte para a narrativa mítica e,
portanto, como objeto de análise do imaginário pelo antropólogo ou filósofo. O
imaginário, no caso, teria a capacidade de semantizar o mundo, simbolizando-o
e atuando tanto como arquivo quanto usina (Girardet, 1987; Carvalho, Op. Cit.).
Enquanto arquivo poderia ser uma espécie de depositário das imagens
ancestrais, espécie de herança cultural perene e profunda, e como usina
atuaria como produtor de significados, semantizador do mundo utilizando as
imagens invariantes e finitas do arquivo, reciclando-as e produzindo narrativas
variantes, ajustadas a contextos e conjunturas históricas específicas.
O
mito,
segundo
Carvalho
e
Girardet,
poderia,
provisória
e
sumariamente, ser caracterizado como: 1) narrativa sagrada que se refere ao
passado e tem valor explicativo; 2) ilusão, mistificação; 3) conjunto de imagens
motrizes que acionam energias de excepcional potência. Esta última
característica é a que deve aqui ser ressaltada. Segundo Deleuze e Guattari
(1995:17):
“ um enunciado realiza um ato... e o ato se realiza no
enunciado, as palavras de ordem produzem a, e são produzidas
pela, coletividade; neste movimento, os interstícios de todas as
informações veiculam ‘palavras de ordem’ que organizam a
objetividade e a subjetividade social reiterando o caráter
eminentemente social da enunciação. A mídia, neste contexto
teórico, assume um caráter singular histórico de expansão da
efetividade destas palavras de ordem, constituindo-se como
veículo dos ‘agenciamentos coletivos de enunciação’” (:18).
Não existe, portanto, neste processo, um sujeito da enunciação ou
enunciação individual, mas o efeito-indivíduo é dado pela própria articulação
dos enunciados coletivos – as palavras de ordem - que modulam, fazem variar
231
as intensidades desejantes das pessoas constituindo-as enquanto indivíduos
que se percebem como tal. Os atos efetuam os enunciados e vice-versa. É o
sistema simbólico, com suas imposições e incitações aos desejos e prazeres
individuais e coletivos, que administra o socius constituíndo-o e sendo por ele
constituido.
Ações
e
paixões
afetam
corpos
constituindo-os enquanto
singularidades – efeito-indivíduo. As forças que constituem a sociedade, ou a
sociabilização, Vergesellschaftung69, segundo Simmel, têm sempre caráter
ambíguo e tenso, pois efetuam-se enquanto incitações às paixões e suas
intensidades. As palavras de ordem, os
sistemas simbólicos, enfim, os
enunciados realizam-se enquanto forças dinâmicas atuantes nas subjetividades
individuadas e coletivas. A produção do prazer e da alegria pode, desta
maneira, estar, paradoxalmente, repleta de possibilidades de dor e tristeza. As
regras, normas, valores e costumes são forças que atuam e constituem, em um
feedback incessante, o contexto coletivo. A capacidade repressora destas
forças – caráter necessário delas – não se apresenta como tal, mas como
aquilo que deve ser feito “por que é bom e traz felicidade”. Os desejos e
paixões não são apenas julgados e condenados, mas também são
administrados, modulados, incitados (Foucault, 1990). Justamente
aí se
constitui a singularidade destas forças enunciadoras. Não há, como se pode
supor, por parte destas representações coletivas, um caráter de contínua
repressão à expressão, ao prazer ou à alegria. Ao contrário, os enunciados
produzidos pela sociedade capitalista obrigam, forçam a falar, a realizar gozos,
obrigam a apresentação do indivíduo como alegre e eterno consumidor. Um
consumo, obviamente, que nunca é alcançado na plenitude. Há o imperativo
de se mostrar realizado e feliz. A mídia, que poderia se constituir como forte
instrumento de reflexividade e democratização, com a publicidade e o
marketing, tem, não raro, se apresentado como instrumento de propagação
69
- Este conceito que, em uma tradução forçada para o português, ficaria sociabilização ou sociação tem
a vantagem de indicar o caráter dinâmico da sociedade, composta pelas relacões entre indivíduos e grupos
e pelos sistemas simbólicos (subjetivos) que os constituem e por eles são constituídos, compondo-os
como tal. Simmel (1983), desta forma, indica o aspecto abstrato e estático que a palavra sociedade
carrega e que lhe confere a impressão de entidade metafísica existente fora das relações objetivas. Para o
autor, conteúdo e forma social seriam duas dimensões de uma mesma condição interagindo-se de maneira
dinâmica. A tradução de Vergesellschaftung feita por Bendix (1986:363) talvez contribua ainda mais para
esclarecer o caráter dinâmico de tal conceito: “tendências societárias de ação”.
232
desse processo, produzindo os agenciamentos coletivos que constituem o perfil
de nossa época.
A definição de Girardet e Carvalho de que o sistema mítico acionaria
forças de excepcional potência coaduna-se com a concepção acima descrita
que percebe a narrativa mítica, veiculada pelos instrumentos midiáticos, como
agenciadora de (dis)posições coletivas, articulando um processo não apenas
macro mas também micropolítico. Naturalmente não se pode conceber a mídia
como uma máquina que cria a realidade social unilateralmente. Mídia e
sociedade não podem ser percebidas como instâncias autônomas. A sociedade
moderna é uma sociedade midiatizada e, portanto, há uma interdependência
entre as duas instâncias. Esta mídia, ao dirigir-se para uma massa de
consumidores, apresenta-lhes imagens que sintetizam
anseios e desejos em
uma interatividade constante, traduzida em intenções de consumo (Carvalho,
Idem ). Desta forma, ela atua como máquina de enunciação que aponta o que
deve ser objeto do “olhar” - ou como se deve olhar este objeto - dando o tom
da hierarquização, através de uma linguagem espetáculo, a uma dimensão
significativa da realidade por intermédio de matérias e anúncios. Muitas vezes,
a mídia oculta, sob a capa de neutralidade axiológica da linguagem pseudocientífica e da objetividade informativa, a intenção agenciadora, “recortando” a
realidade de forma descritiva de uma maneira que consiga prescrevê-la
(Bourdieu, 1998). Por outro lado, ocorre atualmente a tendência de substituir a
descrição objetiva dos fatos e acontecimentos por uma narrativa mais
emocional, na qual a opinião do veículo (mídia) fica claramente expressa. Esta
tendência gradativa de espetacularização do jornalismo não passa do
transbordamento da fabulação que sempre constituiu novelas, filmes e
publicidade em geral, onde o despertar de emoções, interesses e avaliações é
fundamental para o funcionamento do processo de mitificação.
Se a tecnologia apresenta a viabilização da novidade, ela, muitas vezes,
não veicula o novo. Se uma análise mais detida deste processo de fabulação
do mundo realizado pela mídia atual for posto em voga é possível perceber
que, estruturalmente, o tráfico de imagens e símbolos sempre se articulou
enquanto efetivação do poder (Geertz, 1991; Burke,1994). O que há de
233
singular é que a contemporaneidade, através da mídia, exacerba o tráfico dos
indivíduos e coletividades com o simbólico,
potencializando tal poder
(Carvalho , Ibid.). Através da técnica e da tecnologia publicitária os instrumentos
de agenciamento se aprimoram
em uma gerência científica das afecções
coletivas. As pesquisas qualitativas e quantitativas sondam o imaginário
coletivo recolhendo deste arquivo
os elementos simbólicos mais efetivos,
investindo-os em seus propósitos de consumo específicos. Este processo
opera uma modulação da subjetividade que singulariza-se pela eficaz
velocidade dos instrumentos de agenciamento da época atual.
Mitos da Forma
O objetivo aqui é enfocar o consumo de mensagens midiáticas
referentes ao universo dos freqüentadores assíduos das academias de
musculação, mais especificamente os fisiculturistas. A maioria daqueles com
os quais convivemos durante o trabalho de campo consome revistas nacionais
e importadas sobre musculação e boa forma (Muscle and Fitness, Muscle
Form, Musclemag, Flex, Health and Fitness, entre outras). Há também uma
forte circulação entre eles de fitas de vídeo sobre a história de vida e os
métodos de treinamento dos maiores ídolos do bodybuilder, como Arnold
Shwarzenegger, Dorian Yates, Nasser El Sombaty e Ronie Coleman. Foram
analisadas durante um ano, publicações brasileiras e internacionais. Em geral,
tais publicações estão presentes nas academias para que os freqüentadores,
enquanto exercitam-se em esteiras ou bicicletas ergométricas, possam lê-las,
distraindo-se. Em algumas academias elas podem ser emprestadas para o
freqüentador. Foram analisados seis números da publicação brasileira (Muscle
in Form ), e seis números da americana Muscle and Fitness. Seguindo a via
aberta pelo trabalho de Rocha, foram confrontados anúncios das revistas e as
histórias de vida dos ídolos nelas veiculadas com a opinião dos receptores,
tentando analisar como funciona a mito-lógica presente no pensamento
marombeiro.
234
O que menos se consome em um anúncio é o produto. Nele são
vendidos estilos de vida, sensações, emoções, relações humanas, visões de
mundo, hierarquia e sistemas de classificação. Um exemplo deste aspecto é o
seguinte discurso colhido em uma propaganda de suplementos alimentares na
revista brasileira Muscle in Form n.25 de 2001 e outro retirado da revista
americana Muscle and Fitness de setembro de 1998, respectivamente:
“Deseja Aumentar Seus Músculos?
A Perfeição Através dos Aminos.
Experimente as Fórmulas da SATURN.
Maior
crescimento
exige
maior
provisão
de
aminoácidos. Antes e depois dos exercícios, e durante o
dia, seu corpo precisa estar abastecido com aminoácidos
de alta qualidade. Pode ser difícil obter as proteínas
necessárias somente pela ingestão de alimento regular. É
por isso que a SATURN criou várias fórmulas para sua
conveniência de forma fácil de digerir, para você escolher.
Campeões de Musculação usam e confiam nas fórmulas dos
Aminoácidos da SATURN mais do que qualquer outra marca.“
ainda:
“PROTEIN PLUS. MET-Rx. Engenharia de Nutrição. 46
gramas da proteína metamiosina e apenas 3 gramas de carboidratos por
porção! É a fonte perfeita de proteína extra que você necessita sem
adição de sacarose e frutose, além de ter 98% de ausência de lactose!
PROTEIN PLUS. Nano-filtragem o mais refinado processamento
tecnológico. A nano-friltragem captura e concentra os peptídeos
específicos
da
proteína
que
podem
ser
incorporados
e
concentrados no produto protéico final. Esse específico processo
permite MET-Rx incorporar o pleno espectrum do fator ativo de
235
crescimento (estímulo imunológico, reposição de tecidos e
antioxidação) sem os efeitos negativos experimentados por
qualquer consumo de suplementos protéicos, com ou sem troca
de íon!
PROTEIN PLUS. Após ter a ciência adequada, MET-Rx se
concentra no sabor. Morango e Baunilha. A partir de agora você
não
precisa perder peso procurando suplemento protéico.
PROTEIN PLUS dá a você dois deliciosos sabores de alta
qualidade
em
pura
METAMIOSINA
protéica.
Use
MET-Rx
metamiosina protéica. Os melhores bodybuilders usam.
MET-Rx. Engenharia de Nutrição. Para a Melhor
Forma de Sua Vida! Experiência Mundial em Engenharia
de Nutrição. Visite-nos. www. met-rx.com.”
O primeiro anúncio parece apresentar o seguinte raciocínio: ser
musculoso é ser perfeito; para ser perfeito é necessário realizar um ritual de
consumo de determinados produtos criados cientificamente e respaldados na
pesquisa de laboratório empreendida por uma determinada empresa. O uso
dos avanços científicos aparecem como a solução para os problemas e a via
para a realização dos desejos;
o processo de consumo da substância é
realizado, respaldado, por campeões (ídolos) que se tornaram famosos e
vencedores devido ao fato de utilizarem tais produtos. Tal anúncio tem a foto
de um torso hipertrofiado de fisiculturista, com os braços contraídos, com as
primeiras duas frases escritas em amarelo destoando do resto do texto em
letras menores, ressalta alguns aspectos constitutivos do imaginário e da
mentalidade dos freqüentadores assíduos das academias de musculação ou
bodybuilders. Dois itens são ressaltados e estão sempre presentes nos seus
discursos: crescer (aumentar músculos) e ter respaldo científico neste
processo. Como o motivo central da existência do grupo está radicado,
obviamente, no culto à, e no cultivo da, musculatura, quanto maior e mais
definido são os grupamentos musculares mais próximo do corpo perfeito está o
indivíduo. Neste processo de busca e de transformação da massa corporal o
236
discurso científico, sempre utilizado nos anúncios para reiterar a idoneidade
das empresas que produzem e vendem a substância “mágica”, surge como o
vetor que confere autoridade, não apenas aos produtos, mas às práticas
relacionadas ao consumo dos mesmos. Este discurso “convence” o consumidor
da eficácia das substâncias (“aminoácido”, “metamiosina protéica” e o que mais
for possível) a serem utilizadas, referindo-se sempre àqueles que são
campeões e habitam o panteão dos heróis. E a contradição que parece
também surgir daí é que o discurso radicado
em categorias científicas,
discurso que é produto do racionalismo ocidental, apresenta-se como o meio
no qual o reencantamento do mundo se reintroduz no cotidiano, oferecendo,
através da articulação de temas sobre
experimentos e descobertas, a
possibilidade da realização dos sonhos do consumidor. Essa eficácia simbólica
tem grande parte de seu respaldo no aspecto discursivo hermético
que
proporciona à atuação de tais discursos um caráter de sistema de
encantamento conferindo àqueles que os proferem uma espécie de mana, de
autoridade de especialista (iniciado) em uma profissão; perfil quase xamânico,
já que a maioria dos freqüentadores das academias desconhece os meandros
obscuros desta linguagem específica. Justamente este hermetismo, repleto de
categorias advindas da química orgânica e da biologia, confere a este discurso
autoridade e eficácia. É possível perceber tal característica nos seguintes
depoimentos:
“Eu não entendi nada do que ‘tá escrito aí... só sei que
proteína tem na carne e faz o cara crescer... aminoácido
também... mas os caras entendem do que fazem! São formados...
em química, em educação física...sei lá, numa porção de coisa...
são cientistas... estas empresas têm laboratórios de pesquisa,
não iam colocar esses anúncios se o que ‘tá escrito aí não fosse
verdade... eu já usei esse produto e acho que funcionou... agora é
claro que você não vai crescer usando só isso de vez em
quando... Eles botam as fotos desses caras grandões aí, mas
esses fisiculturistas profissionais que posam aí p’ra propaganda
237
não tomam só isso, e só de vez em quando... (Thales. 28 anos.
Estudante).
Ainda:
“repara só no braço desse sujeito aí [da foto do primeiro
anúncio] é um campeão... deve ser o Dorian Yeats, um vencedor!
Um atleta desses só consegue chegar ao auge com muita
tecnologia,
muita
ciência
do
esporte...
é
suplemento,
é
anabolizante de todo tipo... Mas é diferente dos caras que são
‘duros’... esses caras aí tomam de tudo que é produto, mas com
acompanhamento médico, exame... tem dinheiro p’ra gastar não é
que nem a gente não, que sai tomando as coisas sem saber no
que vai dar... eles têm todo um conhecimento que tá relacionado
à qualidade mesmo do que eles fazem..." (João. 27 anos. Instrutor
de academia).
O segundo anúncio, destacando a foto colorida em vermelho e amarelo
de um grande pote de suplemento alimentar, apresenta forma mais nítida de
articulação de categorias científicas (nano filtragem, troca de íon, metamiosina
protéica e assim por diante ) reiterando que a empresa que fabrica o produto é
de engenharia de nutrição e que “os melhores
bodybuilders usam”. Para
arrematar em grande estilo, em linguagem dúbia peculiar ao marketing e à
propaganda,
ressalta que as substâncias apresentadas são para “a melhor
forma de sua vida”.
Relacionado ao aspecto de exaltação do desenvolvimento científico e
tecnológico entre os marombeiros, esses discursos são indícios da existência
de “tribos alimentares” detentoras de classificações peculiares da realidade.
Enquanto que a tribo dos “naturebas”, seguidores do consumo dos alimentos
naturais,
tratados
e
desenvolvidos
sem
aditivos
químicos
e
não
industrializados, sacraliza tudo que é considerado “natural”, conferindo maior
eficácia e poder a tudo que não foi “maculado” pelas mãos do homem e pela
sociedade
bodybuilders,
de consumo (Lifschitz, 1997), a tribo dos fisiculturistas ou
opera
processo
classificatório
inverso.
Entre
estes,
a
238
industrialização, a tecnologia e o desenvolvimento científico conferem poder e
eficácia aos alimentos consumidos e àqueles que os consomem. Em todos os
níveis de socialização dentro das academias, a representação de ciência
aparece com sensível eficácia. Produtos tecnológicos de última geração e
importados dos EUA, Japão ou Europa são amplamente ambicionados. Das
máquinas de fazer exercícios aos tênis Nike e Reebok importados, passando
pelos métodos de treinamento surgidos no último verão da Califórnia e pelas
últimas novidades em suplementos alimentares e anabolizantes saídos dos
laboratórios de pesquisa das multinacionais de nutrição e farmácia, a
tecnologia é exaltada e o discurso das ciências biomédicas extremamente
respeitado, sendo considerado como palavra final na decisão ou resolução
sobre qualquer problema ou dúvida. Da mesma forma, ocorre exaltação dos
termos em língua inglesa que são utilizados como nomes de academias,
rótulos de suplementos e nomes de exercícios de musculação e ginástica (leg
press, body pump, pulley). Estes últimos, que poderiam ser traduzidos para o
português, não o são. Os portadores, tanto de objetos tecnológicos de última
geração, quanto de capital cultural e de competência no campo do
fisiculturismo carregam, simultaneamente, uma espécie de poder mágico que
faz com que suas descrições da realidade também sejam seguidas como
prescrições da mesma (Bourdieu,1996a). O discurso da autoridade não
precisa ser compreendido para executar seu poder (socialmente conferido). Ao
contrário, o mistério que encerra sua incompreensão pode ser o vetor que mais
eficácia lhe proporciona.
Mercadorias Classificatórias
Lévi-Strauss
destacou
dois
tipos
de
sistemas
de
pensamento
constitutivos de qualquer grupo social em qualquer época da história. De
acordo com o autor, o espírito humano operaria sobre o mundo através de
duas espécies de abordagens classificatórias, sendo que uma realizaria suas
operações por “intermédio de signos” e a outra “por meio de conceitos”
(1975a:40), tendo, porém, os dois sistemas, o mesmo substrato lógico e a
239
mesma função de ordenar o mundo em classes, gêneros, números, graus,
hierarquizando o universo e introduzindo na homogeneidade caótica a
heterogeneidade da diferença. Eixo articulador de relações, o pensamento que
mais operaria por signos seria o pensamento selvagem ou mágico. Neste, tais
signos estariam como que “colados” à realidade sem ter a pretensão de serem
transparentes à mesma como quer o conceito, relativo ao chamado
pensamento científico. O pensamento mágico seria inaprisionável nas mesmas
regras do pensamento científico surgido nas sociedades complexas ocidentais.
Exemplificando tal posição, o autor considera o totemismo um exemplo clássico
de pensamento mágico. Longe de ser uma forma atrasada e inferior de
organizar o mundo, ele seria apenas um sistema singular de classificação,
paralelo ao sistema científico, conferindo, da mesma forma que este, sentido
ao universo e à existência. Por não deixar transparecer, de forma racionalista,
suas operações lógicas, o pensamento mágico procuraria manter uma
complementaridade entre cultura e natureza. Assim, nos sistemas tribais, por
exemplo, a sociedade seria organizada por uma lógica que diferenciaria os
seres humanos, identificando-os com determinados elementos da natureza. No
sistema científico, ao contrário, haveria a busca de classificar a realidade
segregando a natureza nesta classificação. Nos sistemas mágicos ou
totêmicos, ao contrário, existiria uma junção entre a natureza e a cultura, pois
quando um determinado grupo social, um clã, é
identificado a uma planta,
animal ou fenômeno natural, mantém com eles relações metafóricas de
identidade ao mesmo tempo que se distingue de outros grupos sociais que
mantém as mesmas relações com outros animais, plantas e fenômenos. Como
cada grupo é equacionado a uma espécie ou fenômeno natural distinto, há a
possibilidade de se obter, em um conjunto onde todos são a princípio
indistintamente seres humanos, uma distinção social nítida (Rocha, 1995; LéviStrauss, 1976). Segundo um exemplo de Da Matta (1986), se A= ao clã peixe;
B= ao clã da onça e C= ao clã do buriti; sendo o peixe animal aquático, a onça
terrestre e o buriti um vegetal, então, é pela identificação com estes elementos
distintos na natureza que se pode estabelecer a diferenciação dos clãs A, B e
C, ou seja, distinguí-los socialmente. “A diferença entre os clãs é obtida graças
240
à sua identificação totêmica (metafórica) com elementos que estão muito
diferenciados no mundo da natureza” (Op.Cit. : 1242). Foi este processo lógico
que acabou por ser denominado totemismo. Mas, longe de existir apenas em
sociedades simples, tal pensamento selvagem coexiste com o pensamento
científico nas sociedades complexas. Quando se diz que fulano é um burro e
siclano é um cobra em matemática, tal lógica totêmica está sendo articulada.
Rocha ressalta que Lévi-Strauss, ao elucidar o problema do totemismo, o
delimita como sendo um sistema pouco comum às sociedades de pensamento
científico, se fazendo pouco presente nestas. Ressaltando, de certa forma, que
o natural é também uma construção social, e que em nossa sociedade ele
toma uma dimensão anti-humana ou anti-cultural, par excellence, Rocha indica
que o pensamento mágico ou totêmico está bastante presente no cotidiano das
sociedades complexas industrializadas, e isto através da publicidade que
introduz a dimensão mágica e fabulatória neste cotidano supostamente
dessacralizado. Equacionando produção à natureza e consumo à cultura, o
autor constrói a concepção da publicidade enquanto “operador totêmico”, ou
seja, assim como o totemismo classificaria o mundo social no pensamento
selvagem, hierarquizando-o, a publicidade faria o mesmo com o mundo da
produção no que Sahlins denominou pensamento burguês. Aquilo que seria
indistintamente produto sem valor específico no mundo da produção se
transformaria em valor específico, no mundo do consumo, através do operador
totêmico publicitário que classificaria simultaneamene os indivíduos que
consomem tais produtos em hierarquias específicas dentro do mundo
capitalista. Consumir, por exemplo, um caro uísque escocês conferiria um
determinado status ao indivíduo, associando-o a uma posição de prestígio na
hierarquia social, enquanto consumir uma aguardente barata operaria processo
inverso. Da mesma forma, por exemplo, usar uma bolsa Louis Vutton, um terno
ou tailleur Armani ou Versace conferiria, por intermédio da “magia” contida na
etiqueta, uma espécie de mana (Mauss, 1974) ao usuário, distingüindo-o e
singularizando-o como alguém pertencente às camadas “superiores” da
sociedade.
Nesta
ordenação,
seria
possível
comparar
a
relação
241
natureza/cultura
no
pensamento
selvagem
com
produção/consumo
no
pensamento burguês:
O que possibilita a transição entre natureza e cultura neste raciocínio é o
“totemismo” (processo lógico) que apresenta-se como “operador” do mesmo
processo. Este operador articula os termos enquanto diferença interna a cada
um, o que produz a complementaridade do sistema.
Estudando o reencantamento do mundo através da publicidade, Rocha
(Op. Cit.) analisa os anúncios de bebida nas sociedades industrializadas atuais
utilizando o esquema totêmico para compreender melhor a lógica do
capitalismo. Esta análise poderia ser aplicada a qualquer outro tipo de anúncio
publicitário. A lógica deste pensamento mágico se apresentaria da seguinte
forma:
Pensamento Burguês
Produção (não humano)
(natureza)
vodka
Publicidade
[operador totêmico]
Consumo (humano)
(cultura)
o mundo dos anúncios:
SmirnoffIce
vinho
O mundo dos anúncios:
Liebfraumilch
uísque
O mundo dos anúncios
Bell’s
etc.
Etc.
etc.
Etc.
A publicidade, atuando enquanto operador totêmico, conferiria, dentro
dos anúncios, a distinção aos produtos, antes indiferenciados e generalizados,
tornando-os singulares e, portanto, singularizando também seus consumidores.
A dimensão mágica que tais produtos porta seria transmitida àquelas pessoas
capazes de os consumirem e de perpetuarem tal magia (Bourdieu, 1976;
Rocha, Idem; Sahlins ,Idem ). O que era bebida em geral, e portanto, mais
próximo ao âmbito da natureza, e vodka em particular, vai tornando-se, através
242
da publicidade, uma substância específica, mais próxima da cultura, Smirnoff,
por exemplo, marca que confere distinção aos seus usuários, o mesmo
ocorrendo com outras bebidas70.
Processo
similar
efetiva-se
com
o
repertório
simbólico
dos
freqüentadores das academias de musculação. Sua construção de corpo está
relacionada à organização da realidade através de mitos veiculados pela
publicidade e a mídia em geral. Tais mitos reiteram o sentido e a eficácia dos
sistemas simbólicos daqueles que primam pela adoração da forma, e que, ao
adorarem-na, construíndo na prática seus corpos, fazem sobreviver tais
sistemas e o seu encantamento. Há que se ressaltar, mais uma vez, o tom
científico
que
os
itens
discursivos
deste
sistema
mágico
articula,
ressacralizando o dessacralizado e criando o que se poderia denominar
discurso de magia cientificizada que, por sua vez, se sustentaria através do
discurso de otimização da saúde.
O Ocidente ainda alimenta mitos e lendas sobre sua superioridade
utilizando a capa do raciocínio científico para esconder seus preconceitos
contra culturas e povos que, ao não se enquadrarem nos parâmetros da sua
racionalidade, considera irracionais. A análise antropológica das sociedades
complexas ocidentais vem reiterando o aspecto falacioso de tal premissa. Com
a abordagem estrutural, a antropologia percebeu que todos, primitivos e
civilizados, com ou sem escrita, com mais ou menos tecnologia, são todos
racionais, psiquicamente unos em um raciocínio que se opera em termos
binários e que perpassa igualmente a magia, a ciência e a religião que todas as
sociedades, complexas ou não, possuem. Magia, arte e ciência são formas
paralelas de conhecimento. Se os chamados primitivos, por um lado, têm a
magia, por outro, possuem uma ciência do concreto que lhes é peculiar, e os
“modernos”, por sua vez, se têm a ciência do abstrato vivem também sua
magia e seu totemismo. Desta forma, “primitivos” e modernos estão lado a lado
(Lévi-Strauss,1975a; Peirano, 2000).
A análise dos anúncios de suplementos alimentares pode ser um dos
aspectos que exemplifica tal aspecto.
70
- No atual estágio do capitalismo, necessário se faz destacar, que a marca, a “etiqueta”, tornou-se mais
243
Pensamento Burguês (Fisiculturismo)
Produção (natureza)
Suplementos
Publicidade
para
Consumo (cultura)
(operador totêmico)
Mundo dos anúncios:
aumentar músculos
Myoplex
Máquinas para exercício
Mundo dos anúncios:
Aparelhos Vitally
Suplementos
para
Mundo dos anúncios:
emagrecer
Levocarnin. L-Carnitinina
Também o processo poderia ser equacionado da seguinte forma nesta
lógica:
Pensamento Burguês (Fisiculturismo)
Corpos (natureza)
Publicidade do corpo e
Formas (cultura)
da boa forma
Gordos
suplementos e exercícios
Magros
(em máquinas)
Fisiculturistas
Comuns ou normais
o mundo dos anúncios:
Levocarnin (emagrecer)
O mundo dos anúncios:
(não saudáveis)
Myoplex
(aumentar (saudáveis)
músculos)
O mundos dos anúncios:
Aparelhos
Vitally
(Máquinasde Musculação)
significativa que o produto.
244
Imagens e Palavras
Para que possa ser aprofundada a análise estrutural da publicidade se
faz necessário escolher uma espécie de anúncio que atue como mito de
referência, ou seja, um anúncio que apresente uma espécie de síntese de
significados presentes em outros anúncios da mesma categoria . Eleger tal
item como ponto de partida para a análise é uma atitude arbitrária. Qualquer
outro anúncio poderia ser utilizado e nada mudaria no processo. A rigor
qualquer anúncio sobre suplementos serviria como ponto de partida (LéviStrauss, 1984; Rocha, Ibid.). Foi escolhido o anúncio do suplemento para
aumento da massa muscular, o Myoplex. Este suplemento é bastante utilizado
pelos fisiculturistas, fazendo parte das suas dietas.
O anúncio71 que serve de referência faz parte de uma campanha
empreendida pela multinacional de suplementos alimentares denominada EAS
(Experimental and Applied Scienses) e, antes de aparecer em revistas
brasileiras de fisiculturismo, havia surgido em revistas americanas,
com a
diferença de nestas últimas ocupar duas páginas ao invés de apenas uma.
Este anúncio leva ao paroxismo a concepção cientificista presente no
imaginário bodybuilder. Nele, alude-se à teoria da evolução de Darwin através
da montagem de fotografias, sobrepostas lado a lado, de um mesmo homem
de bermudas que, de portador de um considerável nível de gordura corporal,
passa a ostentar musculatura hipertrofiada e um baixo índice de gordura. Ele
transforma-se de homem comum em fisiculturista em apenas 12 semanas
(como diz o anúncio) usando o produto (Myoplex) anunciado. A foto é
completada por uma frase que serve como uma espécie de título: “Teoria da
Evolução.” Ao lado, o emblema da empresa – a imagem de uma espiral de
código genético e as letras EAS tendo abaixo a legenda: “Construindo corpos
melhores através da ciência” – Também abaixo do título da foto, em inglês,
está escrito : “ The Word’s Leading Supplier of Sports Nutritional Suplements
for the Envolving Man”. O quadro se completa com a foto de três caixas de
suplemento Myoplex tendo à frente uma tulipa cheia da substância e rodeada
71
- As figuras encontram-se na parte final deste trabalho.
245
de morangos - o que alude ao fato de que, apesar de toda ciência aplicada ao
desenvolvimento do produto, o sabor natural não foi esquecido. Ao fundo do
quadro apenas a sombra do homem. Esta base inteiramente branca e
asséptica – que remete às representações sobre os laboratórios científicos –
circunda toda a exposição publicitária. A mudança da imagem do homem
parece relacionar-se ao processo de conquista da plenitude individual inscrita
na forma. Ele parece caminhar em direção ao progresso, e a sua sombra
projetada no chão, com ligeira inclinação para a horizontal, indica que a sua
frente está a presença do brilho e da claridade, da luz do sucesso e da
felicidade, que ele persegue através do seu esfoço e com respaldo da razão
científica. Como se tivesse saído da escuridão primitiva da caverna – para
utilizar a metáfora platônica – para a luz da ciência e da evolução. Afinal, no
mundo dos mitos publicitários só há felicidade e satisfação. Todos os
problemas são resolvidos magicamente – mesmo sendo utilizada linguagem
científica – pelo produto exposto. A figura deste homem, antes tristonha, vai se
tornando reluzente e alegre, sua postura cabisbaixa passa a erguer-se e suas
mãos frouxas e pendentes crispam-se gradativamente demonstrando a força e
a determinação conquistadas. Sua pele, ao fim do processo, está mais corada
e brilhante de suor, reluzente; pois como escreve Barthes (1993), o suor pode
ser também um signo de moralidade do trabalho sacralizado. Quem transpira
trava uma luta interior, um trabalho fisiológico que pode operar o que é
considerado virtude por determinado grupo em uma determinada época. Nos
parâmetros deste raciocínio, quem não sua representa a moleza e a falta de
movimento para a sociedade burguesa. Exercício e suor, esforço e conquista,
empreendimento e realização, são faces de uma mesma moeda que circula na
sociedade do self made man.
Confrontados com a propaganda os freqüentadores disseram:
“Esse anúncio do Myoplex é genial. De todos os que tô
acostumado a ver é o mais legal, porque mostra o cara antes e
depois... a gente vê a diferença... é claro que não foi só tomando
isso que o cara ficou assim, eu já tomei myoplex e sei como é...
246
mas, olha só, o cara tá definidão, sequinho e sarado... a barriga
parece um tanque.... se eu conseguir ficar assim nesse verão vou
ficar feliz! Tô investindo... já comprei doze ampolas de winstrol e
comecei a malhar pesado... quero pegar muita mulher nesse
verão...” (Carlos. 32 anos. Comerciante).
Ou:
“ Bom, eu acho que o Myoplex ajuda a secar se a pessoa
fizer dieta, ele sozinho não adianta, como o nome diz é um
complemento. Se o cara tiver a fim de ficar perfeito como esse
cara da foto aí, ele vai ter que tomar uns anabolizantezinhos, um
winstrol, um durateston... fechar a boca e malhar pesado... tem
que ter um pouco de dinheiro e tempo... você vê pelo abdômen do
cara, sequinho, todo cortado, tanque”. (João. 23 anos. Estagiário
de educação física).
Ainda :
“Pô, esse anúncio é o máximo, é uma parada muito
maneira, cara!!! Porque o sujeito tava na pior, tava na merda e
olha só como ele ficou... perfeito, xará!!! Saradaço, cortadão e
forte... mudou de vida... é claro que não é um cara duro, ferrado...
p’ra ficar assim, ele tem que ter uma grana p’ra investir na
carcaça. Tem que ter tempo p’ra malhar, dinheiro p’ra suplemento
e bomba, dieta.... p’ra manter essa barriga assim, igual a um
tobogã tem que ter muita dieta, eu que de vez em quando
trabalho como modelo sei como é difícil, mas é investimento,
xará... (Paulo. 23 anos. Estudante e modelo).
O sistema publicitário, assim como o mítico, opera classificações da
realidade social. Esse sistema quando se direciona para o corpo apresenta um
certo paroxismo classificatório,
já que as estruturas deste, em geral, fazem
homologia com as estruturas sociais, como é o caso, por exemplo, da
sociedade hindu onde cada casta faz analogia a partes do corpo de Bhrama, e
247
partes superiores (estratos sociais) e puras não devem misturar-se a inferiores
e impuras (Douglas, 1976). Embora o fisiculturismo não seja uma prática
esportiva de classe alta, através das entrevistas e do trabalho de campo, é
possível perceber que, no Brasil, ele fica nos liames da classe média. Para
“malhar” é preciso ter tempo e uma quantia razoável de dinheiro a ser investido
na aparência. Esta surge como uma espécie de vitrine onde as supostas
virtudes individuais são apresentadas para um “público consumidor” eventual
que possa trazer tanto lucro econômico quanto simbólico. A lógica de
gerenciamento empresarial toma conta do cotidiano individual, gerenciando
suas vidas em um processo de marketing pessoal que acaba por coisificar a
existência em uma nova forma de tratar o corpo e a vida. Corpo-objeto, corpoespetáculo, corpo-capital a ser investido, “corpo-brasão, símbolo de um
pertencimento, efígie feita signo” (Vigarello,1995:33) de uma classe, de um
estilo de vida, de um ethos. Este processo que consiste na tentativa de
transformação do mundo em uma grande classe média, um grande meio termo,
é o corolário de americanização – ou ao menos da interpretação local da
cultura e dos símbolos postos sob a égide norte-americana- do modus vivendi
de grande parte do Ocidente atual e peculiar à classe média em ascensão do
litoral brasileiro que sonha em transformar-se em réplica de Miami ou Los
Angeles.
Em uma época em que classes ou “sociedades superavitárias”
(Rodrigues, 1998:44) tendem a apresentar um número considerável de
indivíduos com abundante tecido adiposo devido ao consumo e ao
sedentarismo, paradoxalmente, a imagem do gordo barrigudo passa a ser
abominada. A pessoa gorda passa, não raro, a ser tolhida do convívio social
pleno, sendo considerada doente, portadora de distúrbios psíquicos e
fisiológicos.
A
silhueta
gorda
atrai
apreciações
bastante
negativas
(Fischeler,1995). Entre os fisiculturistas, é a barriga, o abdômen – além do
diâmetro muscular – o ponto de prova da excelência individual; é como se toda
areté estivesse concentrada no centro do corpo, na região do umbigo. Uma
“barriga tobogã” ou “tanque de lavar roupa”, repleta de ondulações, dobras e
redobras musculosas, devido a ausência de gordura e presença constante de
248
exercícios, é o símbolo supremo da saúde, da excelência e da beleza. Quanto
mais barroca for a arquitetura abdominal, mais virtuoso será o indivíduo.
Raios e Leões
Outro anúncio escolhido para a análise é o do suplemento que auxilia o
emagrecimento e a suposta transformação da gordura em músculos,
apresentado a seguir. Neste anúncio o corpo de um fisiculturista aparece
recebendo uma descarga de raios como se a energia dos mesmos servisse
para recompor e aumentar sua força. Se o discurso científico acompanhado
pela concepção sempre positiva de progresso neste imaginário algumas vezes
é articulado em contraposição a tudo que é natural, outras vezes o mesmo
sugere que é a força dos elementos naturais, em composição com o trabalho
da ciência, que confere potência à construção do corpo, pensado como objeto
natural que deve ser aprimorado pelo trabalho da técnica. No anúncio aparece,
abaixo do logotipo do produto (Levocarnin) apresentado com letras em
gradações da cor abóbora, a frase “mais fôlego para os seus músculos”, e,
ainda um pouco mais abaixo à direita da figura, também as frases: “facilita a
utilização das gorduras na geração da força muscular” e “máximo desempenho
energético muscular”.
Este anúncio lembra aspectos míticos como aqueles relacionados à
força concedida pelos deuses a um determinado herói, pois o raio direcionado
ao fisiculturista parece ser uma carga renovadora que lhe unge para uma tarefa
hercúlea. Confrontados com tal quadro alguns informantes disseram:
“Parece que o cara recebe força do raio, que o Levocarnin
produz uma força igual ao raio... não sei...pode ser também que
eles queiram dizer que o cara ficou ‘cortado’ usando o produto
como se um raio tivesse queimado a gordura dele. (Carlos, 28
anos. Professor de Educação Física).
Ou:
249
“Ah, esse anúncio me lembra os desenhos do
Thor, lembra? Aquele super-herói do martelo, deus do trovão. Eu
acho que eles querem dizer que o produto é tão bom que deixa o
cara que usa com corpo de super-herói, que nem o Thor... seco,
definidão e grande... (Mário. 32 anos. Professor de Educação
Física)
A alusão do informante ao deus nórdico Thor, filho de Wotan (Odin), que
se tornou super-herói dos quadrinhos e dos desenhos animados na TV, foi
sugestiva, remetendo diretamente ao pensamento mágico e mítico presente na
publicidade. Thor retirava seus poderes do martelo sagrado que carregava.
Martelo que as forças do mal sempre cobiçavam com o intuito de enfraquecêlo.
Sendo o mito “modelo exemplar
significativas”
(Eliade,
1979:13)
de todas as atividades humanas
apresenta
estruturas
que
podem
ser
encontradas em diversas dimensões da sociedade, inclusive nos anúncios
publicitários. Por exemplo, se o herói é aquele que recebe sua força de algum
objeto que lhe é conferido ou conquistado, como o martelo de Thor ou o cabelo
de Sansão, este anúncio sugere a venda de um objeto (produto) que pode
conferir poderes heróicos àqueles que o utilizam. Ele
parece prometer a
transformação do mal (a gordura) em bem (músculos), através do uso dos
poderes “divinizados” contidos na L-carnitina, a substância “mágica” criada em
laboratórios farmacêuticos. Ao classificar seu usuário como um herói, o anúncio
reitera a distinção entre melhores, superiores (musculosos, vencedores,
bonitos e divinizados) e piores, inferiores (gordos, sedentários, acomodados e
feios) reiterando a dimensão totêmica da publicidade nas sociedades
capitalistas (Sahlins, 1979).
Outro anúncio do mesmo teor é aquele do suplemento para aquisição de
massa muscular denominado Mighty One 3000. Por trás da foto do produto em
relevo e com rótulo em inglês, aparece a figura de um leão e a frase em
amarelo escrita com letras que lembram raios: “atleta por instinto”. Ao lado da
figura do produto, os tradicionais termos científicos (fórmula anticatabólica,
250
complexos de carboidratos, whey protein, aminoácidos de cadeia ramificada),
que quase nenhum freqüentador de academia conhece em seu funcionamento
prático - a não ser alguns professores de educação física - conferindo a
eficácia simbólica ao objeto anunciado e que, aparentemente, tem seu
consumo associado à doação de um poder e força leoninos àqueles que o
adquirirem. O próprio nome do produto Mighty (forte, poderoso, importante)
remete a uma dimensão mágica na qual os poderes nele contidos passariam
para o sujeito que o consumisse.
O suplemento não seria apenas forte, poderoso e importante, mas
passaria tais qualidades àqueles que o utilizam. Estas qualidades, no sistema
classificatório dos fisiculturistas, estão relacionadas a certos animais. O leão,
além do tubarão e mais especificamente o cão pitbull, serve, muitas vezes,
como símbolo de fisiculturistas e lutadores em tatuagens e logotipos de
academias. Tais animais, considerados feras perigosas, servem como
sinônimos de bons atletas e homens destemidos. Dizer que alguém “é fera”
significa conferir a ele a excelência naquilo que faz. Equivale dizer que está
entre os melhores fisiculturistas daquela região ou contexto. Leach (1983), em
seu trabalho sobre categorias animais e insulto verbal, diz que não xingamos
alguém de “filho de uma cadela” ou de “porco” por que assim está estabelecido
por convenções arbitrárias, mas sim porque existe algo no comportamento
daquela pessoa e
do animal a ela relacionado, tal como o vemos e
classificamos, que permite a relação entre um e outro. Provavelmente o mesmo
ocorre com estes fisiculturistas que não têm as mesmas características dos
animais que, escolhem como “totens”, e que, portanto, têm um lugar
privilegiado no seu sistema classificatório, gostariam de ter.
Fábrica e Mecânica de Corpos
O processo de produção do corpo saudável pode ser classificado em
uma gradação que vai da matéria prima, o corpo em seu estado natural,
passando pelo investimento de produtos químicos e adaptações às máquinas
de exercícios, até o produto final, um corpo reluzente, musculoso e “saudável”,
investido de magia e poder conferido pelas classificações totêmicas do mundo
251
dos marombeiros. Um corpo de fisiculturista. As academias, com suas
indicações de substâncias químicas – suplementos alimentares e esteróides
anabolizantes –, seu conjunto de máquinas, cada vez mais desenvolvidas e
informatizadas, operam como uma espécie de fábrica do corpo. Há nestas
instituições disciplinares uma verdadeira linha de montagem da forma, na qual
o indivíduo é acoplado às máquinas e levado a experimentar todo tipo de
inovações químicas para moldar sua massa muscular. O termo massa, muito
usado pelos fisiculturistas, remete diretamente a esta dimensão reificante do
mundo do trabalho. Algo informe sobre o qual a razão científica se debruça
executando seus objetivos de conformação estética, massa é categoria
recorrente no cotidano dos fisiculturistas. Sua aquisição equivale à aquisição
de um bem, de um capital biológico que deve ser investido, revestido de
significado por intermédio de um processo classificatório que confere valor e
sentido àquele conteúdo muscular inicialmente indistinto. Este sentido é
produzido através da articulação de um sistema de representações coletivas
que pode ser compreendido pela análise da publicidade voltada para este
público específico.
O corpo não saudável, na concepção dos fisiculturistas, seria aquele
que, de certa forma, estaria mais próximo do estado natural, o corpo menos
trabalhado, o corpo que não consumiu produtos químicos (suplementos
alimentares e drogas) e exercícios específicos elaborados por especialistas
com o auxílio constante de técnicas científicas e máquinas adequadas.
Ao contrário dos consumidores de produtos naturais, o sentido de
natureza entre marombeiros apresenta-se como algo que deve ser aprimorado,
aperfeiçoado, ou espécie de estoque no qual o cientista e o fisiculturista vai
buscar matérias primas para elaborar suas fórmulas. Estoque de forças que
deve ser gradativamente domesticado pela razão.
Neste sistema subjetivo e objetivo é possível perceber que a mesma
lógica capitalista da produção de bens de consumo aplica-se à produção da
forma física. Portanto, a categoria natureza, para este grupo, não está
carregada com o significado de excelência como para os “naturebas”, mas ao
contrário, porta o sentido de atraso no processo evolutivo. O corpo deixado “ao
252
natural” tende a se degradar (quando já não é degradado), já que não pode
contar com os avanços da evolução da ciência da beleza e da construção da
forma. Os suplementos criados em laboratórios,
produtos de intensas
pesquisas científicas, representam a síntese dos avanços científicos para a
elaboração do corpo saudável e forte. Corpo que se não contar com a
tecnologia aplicada aos exercícios, à nutrição, e avanços da indústria
farmacêutica, não pode tornar-se o portador do sentido de saúde relacionado à
ausência de gordura e presença de músculos. Para eles anti-natural, já que
contrariando o processo natural de evolução, é deixar o corpo apartado das
máquinas de exercícios e das químicas da ciência da nutrição.
Neste raciocínio, os corpos humanos seriam iguais em sua indistinção
geral, principiando a distinção através da sua relação com a muscularidade.
Gordos, magros e comuns, se posicionariam do lado oposto dos musculosos, e
a publicidade da forma seria o eixo articulador da transição (operador
totêmico), organizando através dos produtos (suplementos alimentares e
máquinas de musculação) a realidade e instaurando a diferença.
Apresentando-se
como
fábricas
de
corpos,
as
academias
de
musculação podem ser encaradas como locais onde se encena o drama da
montagem física. O corpo chega a estas instituições como uma espécie de
matéria
prima,
passando
por
todo
um
movimento
de
produção
e
recauchutagem, e saindo, no final de um processo fordista de somatoprodução, como mercadoria específica para ser apresentado e consumido na
economia de bens simbólicos. Ao chegar, enquanto matéria prima, este corpo é
conteúdo indiferenciado (pertence ainda ao mundo indistinto da natureza). Esta
matéria é trabalhada durante meses e anos durante horas diárias de exercícios
intensos, direcionados e realizados em máquinas, esteiras e ergométricas em
consonância com o consumo de drogas e substâncias químicas diversas. Toda
a lógica mecanicista que funda o pensamento capitalista ocidental concretizase nessas intituições de preparação da forma. O corpo humano, nesta fábrica
repleta de espelhos, porta, a princípio, um certo sentido de desumanização.
Acoplado às máquinas ele é apenas uma peça em um sistema de polias,
molas, pedais e alavancas. O ritmo, a ordem, o caráter e o movimento do
253
processo de trabalho muscular é dado pelo conjunto de maquinarias e não pelo
trabalhador que o serve. Como nas fábricas tradicionais, a fábrica de corpos
retira a marca humana do produto (o corpo) e transforma o trabalhador em
força motriz que é dobrada sobre si mesma. Este processo reificante volta-se
diretamente para o próprio corpo e para a forma daquele que trabalha sobre si
mesmo
transformando-se,
de
maneira
consentida,
grosso
modo,
em
mercadoria. Peça no vasto mundo de imagens das economias globalizadas e
micro informatizadas. Mas se no mundo da produção os produtos estão
desumanizados, no mundo do consumo eles devem ser humanizados,
revestidos de características singulares que estabeleçam sua inserção num
sistema de significação que deve lhes conferir face, nome e identidade. Desta
forma, o corpo trabalhado, musculoso e bem enquadrado nos parâmetros
estéticos
dominantes,
“humaniza-se” para o fisiculturista por tornar-se
bodybuilder na prática, na forma e na maneira de pensar.
Para construir tal pessoa é necessário um instrumental técnico
específico que tem sua história demarcada no campo da biomedicina, ou do
chamado sistema de medicina ocidental. Este sistema é composto por uma
classificação peculiar composta por cinco itens: doutrina médica, morfologia,
dinâmica vital, diagnose e terapêutica. Estas, por sua vez, dividem o corpo
humano em nove sistemas: sistema nervoso (cérebro, tronco cerebral, medula
espinhal, nervos periféricos); sistema cardiovascular (coração, artérias e veias);
sistema respiratório (pulmões, traquéia, laringe); sistema digestivo (esôfago,
estômago, intestinos delgado e grosso, pâncreas exócrino e fígado); sistema
endócrino (glândulas hipófise, pineal, tireóide, paratireóides, supra-renais,
pâncreas endócrino, ovários, testículos); sistema retículoendotelial (baço,
medula óssea); sistema imunológico (linfonodos, timo); sistema genito urinário
(rins, bexiga, uretra, aparelho reprodutor masculino e feminino) e sistema
músculo-esquelético (ossos, músculos, tendões e articulações)72.
72
- Outros sistemas médicos, diversos do ocidental, como o hindú (medicina ayur-védica), por exemplo,
organizam a realidade do corpo como uma totalidade única sem separação entre espiritual e material. Esta
realidade estaria demarcada por gradações que iriam da substância densa (o corpo, no Ocidente) à
substância sutil (espírito). Para este sistema médico, assim como para o chinês, há o adoecimento
singular de cada pessoa devido a desequilíbrios nos fluxos de energia e humores individais combinados
com toda a realidade que o cerca, não havendo ontologização da doença. Nesta visão, portanto, o corpo
não é percebido como separado do universo e muito menos da dimensão espiritual que influi diretamente
254
A prática da musculação está diretamente radicada na concepção
sistêmica da biomedicina, principalmente no sistema músculo-esquelético. Por
trás de toda concepção de universo, inclusive a científica, existe uma
cosmologia implícita ou explícita. No caso das concepções do senso comum e
daquelas científicas surgidas no Ocidente, esta cosmologia é marcadamente
mecanicista. A base desta visão está presente nas hegemônicas concepções
filosóficas de Descartes e físicas de Newton. Tais concepções representam o
universo e o corpo humano como um relógio; máquinas que funcionariam
segundo leis matemáticas e que seriam compostas por peças específicas. O
cosmos, então, estaria apartado do poder e da pessoa divina, sendo uma
espécie de máquina-palco, da mesma forma que o corpo humano seria um
mecanismo com leis estabelecidas pelo grande relojoeiro (Deus) e do qual o
espírito – este sim a verdadeira personalidade do homem – faria uso. Durante
três séculos este raciocínio expandiu-se, sendo que até hoje faz parte das
representações coletivas das sociedades complexas ocidentais. Apesar da
física quântica ter demonstrado o equívoco deste raciocínio, ele continua
presente tanto em práticas e representações eruditas quanto populares. Este é
o caso da medicina e da fisioterapia, e, conseqüentemente, da educação física
e de parte dela dedicada à musculação.
Segundo tal concepção, que transforma o corpo em uma máquina sobre
o qual o espírito pode atuar, os exercícios devem obedecer às leis da mecânica
newtoniana atuando especificamente nas “peças” que compõem a máquina
humana. Basta observar o cenário das academias de musculação para
perceber a força destas idéias e práticas. Os recintos utilizados para os
exercícios estão repletos de máquinas elaboradas para a prática da
musculação e, quando as academias estão repletas de indivíduos realizando
seus trabalhos de escultura muscular, todo o cenário parece uma grande
máquina ritmada na qual cada um surge como peça ou engrenagem. Enquanto
alguns fazem exercícios ritmados para determinadas partes das pernas, outros
o fazem para os braços, costas e ainda outros para ombros e peitos, cada um
no adoecimento. O ser humano é concebido como parte de uma ordem cósmica com a qual deve estar em
equilíbrio, a saúde sendo a harmonia do microcosmo (ser humano) como o macrocosmo. Esta harmonia
255
movimentando-se segundo uma quantidade determinada de repetições
acopladas às máquinas. O corpo não é nada mais que uma máquina entre
tantas máquinas (Duarte, 1999).
O anúncio sobre máquinas de musculação que se segue é eloqüente a
este respeito. Além de aludir ao tradicional espírito evolucionista comum a esta
dimensão social, ao trazer como chamada a frase: “A evolução não pára...”
evoca o progresso no próprio nome da linha : “Millenium 2001”. Porém, o que
deve ser destacado neste anúncio é a postura das modelos. Elas não possuem
a forma física comum entre as fisiculturistas, e isto indica que tais aparelhos
não são direcionados apenas para tais pessoas. O sorriso que elas estampam
também não condiz com a prática dos exercícios nestas máquinas. Em geral,
quem se exercita faz caretas e não dá sorrisos. Desta forma, as imagens
indicam a plena integração, sem sofrimento, do ser humano à máquina, o que
não ficaria tão claro se elas estivessem fazendo expressões de esforço em
uma alusão à luta para conseguir um corpo em forma. Neste quadro parece
que isto já foi conquistado e que apenas a felicidade como produto do uso das
máquinas existe. Exercícios pesados e rostos sorridentes são contraditórios.
Mas no mundo dos anúncios não existe o trágico nem a contradição, apenas a
promesse de bonheur capitalista.
Evolucionismo,
crença no progresso e mecanicismo desaguam na
concepção do ser humano como produto industrial, assim como as máquinas
com as quais interage - não se quer dizer com isso que qualquer e toda
interação com máquinas produza tais representações. Esta concepção de
homem-máquina é parte de uma visão do mundo enquanto máquina, como foi
dito. Tal weltanschauung dá a ilusão de poder aos seus portadores, pois se a
realidade – seja ela o corpo humano ou o universo - é uma máquina, basta
saber apertar os botões certos ou articular as engrenagens adequadas para se
obter os resultados desejados. Este mito científico está na base de todo o
paroxismo reducionista que imperou nas grandes teorias sociais e impera, de
forma mais sutil, em várias ciências do corpo e da saúde até o presente
momento. Pois se o corpo é uma máquina, ele pode ser recauchutado com
seria realizada através do balanceamento de três humores (tridosha) vatta, pitta, kapa, simbolizados pelos
256
produtos para crescer, silicones e silícios, implantes e plásticas com o objetivo
de “aprimorar”, fazer progredir, tornar perfectível, aquilo que a natureza
concebeu. Não se percebe que esse “melhorar”
é um juízo de valor
condicionado por todo sistema simbólico de uma determinada época e cultura,
não representando superioridade em relação aos outros sistemas que
concebem corpo e estética de forma diversa.
A estabilidade milenar de tantas culturas primitivas, que não tinham
como sustentáculo cultural o pensamento racionalista, se realizou, devido à
adequação entre seus esquemas imaginativos e a realidade. Envoltos em mitos
e lendas específicos, estes “selvagens” podiam nada saber a respeito de
refração ótica ou mecânica quântica, porém pressentiam com grande precisão
o lugar da existência humana no cosmos. Muitas vezes parece ao antropólogo
que é menos absurdo falar com os animais e as plantas, como faziam e fazem
os primitivos (Viveiros de Castro, 2002d), do que imaginar-se como uma
engrenagem de relógio. Neste raciocínio, se o ser humano não passa de uma
máquina, de um produto industrial, e portanto descartável, não há nada demais
em jogar fora aqueles que não passaram no controle de qualidade estético,
profissional, enfim, social. São perdedores, feios, fracos e fracassados, que
devem ser descartados pelo processo evolutivo “natural” do mercado na “luta
pela sobrevivência do mais apto.” Esta lógica parece estar presente no
cotidiano das academias de musculação aqui estudadas, assim como nos
anúncios analisados.
elementos fogo, vento e água que constituiriam o ser humano (Marques, 1993).
257
Capítulo VI
“Ser homem significa, para cada um de nós, pertencer a uma classe, a uma
sociedade, a um país, a um continente e a uma civilização.”
Lévi-Strauss.
Tatuagens: A Hierarquia da Epiderme
Alguns trabalhos da chamada antropologia urbana e da psicologia social
têm se dedicado quase que exclusivamente a análises de entrevistas e
depoimentos, não raro, desprezando a importância da observação participante
prolongada e minuciosa que constitui o tradicional trabalho de campo. Esta
monomania de cátedra (Bourdieu, 1989) tem levado a construção de
abordagens que se, por um lado, podem ser formalmente belas, por outro,
chegam a conclusões que vão de encontro a própria tradição disciplinar. Assim,
por exemplo, sobre a prática de tatuagens entre determinados grupos cariocas
Almeida (2000) afirma, - após “uma pesquisa ampla sobre o imaginário do
universo jovem da classe média brasileira, [pesquisa com] jovens ligados ao
universo da tatuagem ” (:103) -, que o discurso dos tatuados apresenta “uma
fusão desordenada e heteróclita de elementos da imaginação... imensa
constelação de imagens e simbolismos [que] não parece[m] estruturar-se de
modo contínuo, coeso e duradouro na fala dos informantes. Os sujeitos
acionam ao bel-prazer de seus ímpetos momentâneos, suas contingências...
paroxismo da performance” (:104). A autora, apesar de falar sobre uma
“gramática subjetiva” (Idem ), parece querer demonstrar que não há um sistema
que organize a visão subjetiva do grupo estudado. A tatuagem representaria
uma prática fugaz reduzida à efemeridade do instante (sem qualquer
organização consistente) ao modo das interpretações pós-moderna. Detendose apenas na fala dos informantes chega a esta conclusão dizendo que os
tatuados dizem que “não pensam nas suas tatuagens” (Ibidem ) e, portanto, (no
que se refere aos desenhos presentes na epiderme a tais jovens pertencentes
aos grupos urbanos), nada existiria além da pele a não ser a volição imediata e
258
neo-romântica que, segundo a própria autora, pulverizaria os sentidos dos
conteúdos simbólicos. Tal afirmação parece desprezar o fato de que a ordem
social está inscrita no inconsciente – e não no sentido consciente presente nas
palavras dos nativos, apenas - e que é neste inconsciente que o antropólogo
deve buscar entender as estruturas subjetivas que organizam as estruturas
objetivas; a vida em sociedade. Devido a esta espécie de esquecimento da
tradição teórico-metodológica da antropologia, a autora conclui que as ciências
sociais e humanas encontram-se, (ao encarararem o que ela constata como
ausência de estruturação do seu objeto), diante de “uma imensa perplexidade
tanto analítica quanto empírica” (:121).
A tentativa de analisar o uso de tatuagens entre os marombeiros do Rio
de Janeiro – já que esta prática é muito comum entre fisiculturistas e veteranos
de academias - sugere que não apenas há uma sentido inconsciente que
estrutura a organização social, mas que também esta organização estrutura o
sistema simbólico daqueles que dela fazem parte e a constituem.
Embora fisiculturistas de competição não as exibam em profusão (pois
se os desenhos forem grandes demais poderão atrapalhar a visão de seus
músculos ou desviar deles a atenção), as tatuagens estão presentes em
inúmeros corpos nas academias de bodybuilders73. Nesta pequena amostra da
sociedade da performance e da aparência que constitui as academias, a
superfície da pele realça o que ela reveste e que constitui o objeto e propósito
de todo o trabalho nestas instituições: o músculo. As tatuagens surgem como
acabamento artístico de um contínuo processo de busca pelo ideal estético
envolvendo a encenação pública e a encarnação dos papéis inerentes à
dinâmica social74. Se corpos musculosos “pavoneiam” (Foucault, 1990:9) pelos
73
- Entre os 310 indivíduos com os quais foram estabelecidos diálogos e convivência no trabalho de
campo nas 12 academias situadas entre a zona norte e sul do Rio de Janeiro as quais freqüentei 101
possuiam tatuagens.
74
- A possível análise da escritura, seja ela qual for, realizada pela tatuagem, remete ao aspecto ordenador
que a gramática social instaura através da lei inscrita na pele, conforme escreveu Michel De Certeau: “não
há direito que não se escreva sobre corpos... sempre é verdade que a lei se inscreve sobre os corpos. Ela
se grava nos pergaminhos feitos com a pele de seus súditos...[assim,]os seres vivos são ‘postos num texto’
transformados em significantes das regras (é uma contextualização) e, por outro lado, a razão ou o Logos
de uma sociedade se ‘faz carne’ (trata-se de uma encarnação). Todo poder se traça em cima das costas de
seus sujeitos...os livros são apenas as metáforas do corpo. Mas nos tempos de crise, o papel não basta para
a lei, e ela se escreve de novo nos corpos. O texto... remete a tudo aquilo que se imprime sobre nosso
corpo, marca-o .... enfim, com dor e/ou prazer para fazer dele um símbolo do Outro, um dito, um
259
cenários repletos de espelhos, halteres e máquinas de exercícios, as tatuagens
conferem a estes corpos o paroxismo de visibilidade que lhes são inerentes.
Ela mobiliza olhares, reflete sentimentos, classifica e ordena subjetivamente o
fluxo intermitente de indivíduos que lhe servem de tela e que nela buscam uma
distinção. Formando uma espécie de linguagem bodybuilder, os desenhos da
epiderme apresentam uma gramática que possibilita organizar o regime da
visibilidade institucional. Portanto, a tatuagem, do ponto de vista sociológico, é
uma
linguagem
que
“está
intimamente
ligada
à
organização
social:
[apresentando] motivos e temas [que] servem para exprimir diferenças de
posição, privilégios de nobreza e graus de prestígio...” (Lévi-Strauss,1975:292).
Esta gramática epidérmica se manifesta por intermédio de uma
contradição. Todos os(as) tatuados(as) das academias pesquisadas escolhem
seus desenhos após uma decisão pessoal que expressa a vontade de
distinção. Tatuando-se, buscam singularizar suas figuras, sempre conferindolhes uma característica diferencial, um detalhe específico; alguns até mesmo
“inventam” seus desenhos ou carregam no estilo do mesmo ao se dirigirem ao
tatuador. Toda essa atitude é engendrada na busca de uma individualidade
relacionada à concepção de livre arbítrio e da distinção daquele que faz suas
escolhas e que por elas é plenamente responsável. De fato, segundo Sanders
(1989), a tatuagem é um meio de individuação que tem a tarefa de demarcar a
diferença em relação ao outro, tatuado ou não. Também constitui uma
demarcação de inconformismo que pode expressar a incorporação de uma
estética pessoal. Por outro lado, a grafia epidérmica permite reinvindicar o
pertencimento a uma categoria social, servindo como uma espécie de “etiqueta
coletiva” (Durkheim, 1996:113) simbolizando a filiação privilegiada a um grupo
chamado, um nomeado.” (Certeau, 2002:231-2. Grifos do autor). Feitas para representar por toda vida
uma ordem estética, tal prática, em uma sociedade em que a moda passageira e o impulso momentâneo do
consumo está cada vez mais presente, por vezes engendra um paradoxo epidérmico naqueles que após um
certo tempo “se cansam” ou simplesmente “enjoam” de seus desenhos. Tais indivíduos, por terem
realizados as tatuagens apenas incitados pela moda ou pela influência circunstancial, chegam a despender
vinte vezes mais o valor gasto com a elaboração do desenho, para eliminá-lo da pele, além da dor de cada
sessão. De acordo com a revista Época (n.o 264. 9 junho 2003. p p.90-1), o Hospital Albert Einstein, de
São Paulo, desde 2000, vem duplicando ano a ano o número de pacientes que desejam remover suas
tatuagens. No Leblon Laser Center, no Rio de Janeiro, uma das principais clínicas do país, há fila de
espera para retirar tatuagens. Tal aspecto nos lembra a conhecida frase de Marx sobre uma época em que
tudo que é sólido desmancha no ar.
260
social específico que busca demarcar sua identidade coletiva em um processo
de emblematismo.
Associada, no Ocidente, à marginalidade até a década de 60 do século
XX, quando, em geral, estigmatizados como presidiários, motoqueiros dos
Hell’s Angels e marinheiros sem nenhuma patente desenhavam, por vezes de
forma canhestra, imagens, palavras ou frases em seus corpos, as tatuagens
atualmente tornaram-se parte do cotidiano das classes mais altas decorando o
corpo de indivíduos de idades variadas e demonstrando a existência de um
processo de circularidade cultural no qual o poder de um item estigmatizado
torna-se emblema de status e domínio, invertendo o jogo social pela disputa de
hegemonia simbólica das classes75.
Como os costumes de um povo, grupo social ou classe formam um
sistema que apresenta um estilo, ocorre, por vezes, uma espécie de
transposição cultural – reinterpretação de significados que fazem parte da
própria dinâmica coletiva. Tal movimento se realiza, porque, dentre outros
aspectos, os sistemas não formam um número ilimitado, sugerindo que “as
sociedades humanas, assim como os indivíduos – em seus jogos, seus sonhos
e seus delírios -, jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher
certas combinações num repertório ideal.” (Lévi-Strauss, 2000: 167). Nas
academias de musculação é possível perceber a produção coletiva – e
inconsciente – de uma gramática imagética composta por inúmeros itens
retirados e reinterpretados de outras culturas e/ou classes sociais. Assim,
tatuagens inspiradas em figuras mitológicas pertencentes às culturas da
polinésia francesa, celtas, japonesas, chinesas, hindús, balinesas, medieval,
além de ideogramas e personagens de quadrinhos e de desenhos animados
que vão de super heróis a anti-heróis, (além de toda uma classificação
75
- Sobre a tatuagem - assim como sobre o músculo cultivado e hiper-inflado - parafraseando LéviStrauss, (1975) pode-se dizer que é feita para o corpo, mas, num outro sentido, o corpo, neste caso
específico, é predestinado à decoração por figuras e músculos, posto que é somente por e através da
decoração que ele recebe sua dignidade social e sua significação. A decoração é concebida para o corpo,
mas o próprio corpo não existe senão por ela. A dualidade é, em definitivo, a do ator e de seu papel, e é a
noção de máscara que nos traz sua chave. A alusão à máscara é significativa posto que pessoa em latim
tem este mesmo sentido: “é clássica a noção de persona latina: máscara, máscara trágica, máscara ritual,
máscara de antepassados” (Mauss, 1974a: 225). Esta etimologia evoca o quanto o indivíduo é composto
pelos itens e forças sociais que são inscritos no seu corpo conferindo-lhe identidade. A persona enquanto
261
“totêmica” inspirada em
animais e fenômenos naturais como cães, tigres,
panteras, beija-flores, raios, estrelas), decoram os corpos dos freqüentadores,
não necessariamente fisiculturistas. Há também uma formação simbólica
organizada em torno de objetos pertencentes à atual cultura de mercado e
cyberculture como marcas famosas de roupas e tênis (Nike, Adidas, Mizuno) e
símbolos da computação tais como @, além de códigos de barra, em geral
estampados em locais estratégicos do corpo como nuca, pulso ou cóccix.
Canevacci (1993) ressalta que nas grandes megalópoles a linguagem
visual assume um papel efetivo pela sua instantaneidade. Propõe que o
antropólogo das sociedades complexas preste detida atenção à linguagem dos
signos visuais, pois esta linguagem ressalta o hibridismo, ou sincretismo
cultural, que vem imperando nos centros urbanos. Tal hibridismo consolida o
corpo como mapa social expressando narrativas individuais e coletivas
simultâneamente. Estas narrativas – da mesma forma que a bricolage - são
construídas por diversos itens, ou termos, pertencentes a culturas diversas
tanto no tempo quanto no espaço. Desta maneira, por exemplo, uma loura,
descendente de alemães, pode estampar em seu cóccix uma tatuagem “tribal”,
marca ancestral de homens taitianos, ou um entrelaçado celta recriando da
mitologia germânica a concepção de forças do infinito. Tudo isto com o objetivo
– consciente - de não apenas tornar-se singular, mas de se identificar – muitas
vezes inconscientemente - com um determinado grupo que freqüenta locais
(os, por eles, chamados “points”) e instituições, consome produtos específicos,
escuta determinado tipo de música, e assim por diante. Esta construção
identitária, ao mesmo tempo concêntrica e excêntrica, está diretamente
relacionada à dimensão visual das interações sociais. Neste aspecto, há a
necessidade de expor signos, sejam eles músculos ou desenhos, corte e cor
de cabelo, roupas ou ideogramas inscritos na pele. Este apelo visual das
sociedades complexas se faz presente delimitando espaços, demarcando
diferenças fazendo que – no caso específico - os componentes das academias
entrem no cenário iluminado da vida urbana com sua mise-en-scène singular
inerente aos fluxos culturais preponderantes na cultura globalizada. (Hannerz,
produção social vive e repete os instintos criadores coletivos. Enquanto máscara ela coloca em cena ou
262
1997; Diógenes, 1998), superexpondo-se em um jogo que pode ser
exemplificado
pela
produção
do
corpo-imagem nos campeonatos de
fisiculturismo nos quais cada fibra muscular deve ser mostrada e demonstrada
em uma espécie de dissecação em vida do competidor76. Mostrar, expôr as
entranhas, exibir, alardear, ser notado; não apenas ostentando os adereços
que compõem a sociedade de consumo, mas sendo o próprio adereço: “o
corpo humano se torna um corpo panoramático que reflete, retroage e projeta
infinitas combinações de sinais ventríloquos” (Canevacci, Op. Cit.: 23).
Pele de Homem. Pele de Mulher
A princípio, as tatuagens nas academias de musculação dividem-se
entre femininas, masculinas e unissex. Mulheres tendem a tatuar determinado
grupo de figuras tais como rosas e flores em geral, estrelas, borboletas, lua,
sol, personagens femininas de histórias em quadrinhos, beija-flores, gatos e
fadas. Já ideogramas, figuras tribais, palavras e frases em letra gótica,
símbolos da computação, códigos de barra, corações, duendes, deuses ou
deusas mitológicos são símbolos inscritos tanto na pele de homens quanto de
mulheres. Águias, cruzes, panteras, tigres, dragões, demônios, caveiras,
armas, arame farpado, sereias, mulheres nuas, tubarões, figura da morte com
foice e capuz e, principalmente, cães pitbull são tatuagens eminentemente
masculinas. Estas últimas (cães) têm proliferado nos últimos seis anos. Os
locais do corpo também definem o gênero: mulheres tatuam – tudo que é dito
aqui sobre as tatuagens apresenta exceções – na nuca, no cóccix
(principalmente as chamadas tribais), nos seios, nas nádegas e nas virilhas, às
participa da encenação dos tipos sociais.
76
- Tal movimento de estetização de exibição das entranhas tem seu maior expoente artístico atual no
médico alemão Gunther von Haggens criador da escola chamada body work . O médico-artista inventou
um processo de plastificar cadáveres chamado plastination. Esta técnica conserva os corpos mortos como
se fossem seres vivos, transformando-os em uma espécie de bonecos hiperealistas que são expostos em
galerias de arte. Em 2002 von Haggens realizou uma exposição na Atlantis Gallery de vários cadáveres
recolhidos em países diversos. Havia, por exemplo, entre eles, uma mulher grávida de oito meses, com o
útero aberto mostrando o feto. O trabalho do médico parece estar alcançando notoriedade, pois a televisão
inglesa, apresentou um programa denominado “Autópsia ao Vivo” em que ele apareceu para milhões de
espectadores dissecando um cadáver. Enquanto retirava o fígado e o pulmão de um indigente, com o
auxílio de seus assistentes, comentava para o público o péssimo estado dos orgãos. Para uma melhor
263
vezes no omoplata, nos pés e calcanhares. Já entre os homens os desenhos
situam-se principalmente no bíceps (em geral na parte exterior, mas também
há na interior), nas costas, nas panturrilhas e no antebraço, mais raramente na
barriga e peito.
Estas divisões estabelecidas pelos desenhos inscritos na pele dos
indivíduos que pertencem ao grupo estudado configuram a manutenção, digase a reprodução, da gramática das diferenças inerentes às relações de gênero
- mas não só-, já que a própria escolha do desenho está inserida em um
sistema (adquirido pelo indivíduo através de sua socialização) classificatório
que expressa um gosto, uma estrutura lógica de organização, percepção e
apreensão (valoração) da realidade.
Pensando escolher seu desenho, seja ele um beija-flor, uma carpa
japonesa ou uma caveira, o indivíduo é escolhido por todo um conjunto de
representações e práticas, estruturas subjetivas e objetivas reproduzidas pelo
estilo de vida que ele articula e imita naquele momento de suposto livre arbítrio
(Edmonds, 2002). Tal sistema inconsciente aparta, organiza, distingue e
constitui as (dis) posições sociais alocando o indivíduo em uma, e exprimindo a
sua, condição de gênero e classe. A tatuagem – surgida, como dito acima,
entre aqueles anteriormente considerados escória social – tornou-se emblema,
ao menos nos casos das academias cariocas de musculação, de um ethos de
classe média que confere à exposição estética uma hipervalorização. Ela
apresenta-se como o adorno e o acabamento distintivo daqueles que buscam
no cultivo do corpo, dos músculos e da ausência de adiposidade o sinal de
destaque e superioridade sensitiva característicos de determinada parcela das
camadas médias urbanas atuais. Tais extratos engendram uma cultura das
sensações – e portanto imediatista – relacionada ao consumo enquanto
distintivo de cidadania e poder hierárquico (Canclini, 1995). Cultura diretamente
ligada à imagem - boa forma, sensualidade e juventude. Estas estruturas
subjetivas e objetivas são inscritas nos corpos daqueles que a ela pertencem –
produzem e são por elas reproduzidos -
em um duplo processo de
“interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade” (Bourdieu,
visualização, erguiam a massa encefálica e a visícula do defunto diante do público presente e das
264
1983:47). O aspecto volátil desta ética estética pertencente a tais parcelas da
sociedade de consumo é reiterado pelo fato de que, tendo sido a princípio
inscrições feitas na pele para o resto da vida, ou seja, supostamente
inalteráveis, hoje os grupos de tatuados adotam, por vezes, a estratégia de
realizar outro desenho por cima da figura que já não mais satisfaça seu
usuário; o que chamam de “cobrir a tatuagem”. A tatuagem também neste
aspecto torna-se um objeto de consumo.77
Homens
Unissex
Mulheres
Pitbull
Tribal
Borboleta
Tigre
Duende
Beija-flor
(+)
Àguia
Marca
Agressivo/
Pantera
Adidas)
Lua
Delicado/
Forte
Tubarão
Coração
Rosa
Fraco
Caveira
Deuses(as)
Mantras
Armas
Ideogramas
Fada
Morte
Frases
Anjinho
(Nike, Estrela
(-)
Sol
Corpo
Ambos
Corpo
Masculino
Regiões
Feminino
que Bíceps
demarcam
a Costas
As
regiões
sensualidade
Antebraço
corporais
masculina
Panturrilha
relativas
(força,
domínio)
poder, Peito
sexo
ao
são
mantidas
câmeras. A audiência foi alta. (Jornal O Globo. Sábado, 12/Abril/ 2003. Caderno Prosa e Verso.p. 2).
77
- Não se pode confundir tal lógica consumista com a lógica da diferença presente na filosofia de
Deleuze ou de Nietzsche. Alguns sociólogos denominados pós-modernos ou que teorizam sobre o que
entendem ser a pós-modernidade – a época atual - tendem a ver no pensamento e nas práticas da atual
sociedade de consumo a evocação coletiva das filosofias de Nietzsche ou Deleuze, como se,
repentinamente, o que compreendemos como sendo o ocidente capitalista tivesse produzido uma ruptura
com sua milenar tradição metafísica e instaurado inconscientemente filosofias imanentistas enquanto
práticas coletivas.
265
Mas o que querem dizer as tatuagens? Qual sua função no contexto
estudado? Qual o sentido do ato de tatuar-se? Para adiantar uma possível via
interpretativa, podemos repetir, a respeito das tatuagens, que elas, de uma
forma ou outra,
“conferem ao indivíduo sua dignidade de ser humano;
operam a passagem da natureza à cultura, do animal ‘estúpido’
ao homem civilizado. Em seguida, diferentes quanto ao estilo e à
composição... expressam, numa sociedade complexa, a hieraquia
dos status. Possuem, assim, uma função sociológica. (LéviStrauss, 2000:183)
O desenho pode significar, para aquele que o tem em seu corpo, uma
iniciação, o pertencimento, a identificação e a aceitação em um grupo
determinado:
‘“(...) mandei’ esse dragão porque todo o pessoal que
conheço tem tatuagem na academia, e no tatame, os caras mais
‘feras’ têm as mais ‘iradas’, as mais ‘maneras’... aí mandei esse
dragão no braço... agora quero fazer um pitbull aqui nas costas”
(Carlos. 23 anos. Estudante, fisiculturista amador e lutador de jiujitsu).
Também:
“ ah, fiz a borboleta na nuca ano passado... a galera toda lá
do curso tinha, aqui na academia as garotas todas têm tatoo e
piercing, cê sabe, né? É moda, sei lá... aí eu mandei essa aí na
nuca e depois botei o piercing no umbigo... minha mãe reclamou
muito, não me deu o dinheiro p’ra fazer, aí eu comecei a vender
266
uns colares e pulseiras que eu mesma fazia e juntei dinheiro e fiz.
(Tatiana. 18 anos. Estudante).
Ainda :
“Eu tava a fim de fazer porque sempre achei bacana; aí,
minhas amigas todas fizeram e os namorados acharam ‘manero’;
aí juntei dinheiro e fui no Banzai e fiz essa flor aqui na virilha [vira
abaixando um pouco a bermuda de lycra e mostrando a
tautagem]. Doeu muito, cara, uma dor horrível, mas valeu a pena”
(Carol. 24 anos. Advogada).
A figura estampada na pele permite a distinção como signo que liga a
outros signos de consumo representantes de ideologias processadas pela
mídia, delimitando as fronteiras identitárias. Assim, o “sofrimento de ser escrito
pela lei do grupo [a dor] vem estranhamente acompanhado por um prazer, o de
ser reconhecido, de se tornar uma espécie de palavra identificável e legível
numa língua social, de ser mudado em fragmento de um texto anônimo, de ser
inscrito em uma simbólica sem dono e sem autor” (Certeau, 2002:232). Estas
mensagens, não raro, estão relacionadas a uma suposta rebeldia presente nos
movimentos estético-musicais de massa:
“eu tenho o Bob Marley nas costas, ainda não acabei de
fazer, vai demorar um tempo porque tem que colorir toda e é
grande, pega toda as costas como ‘cê tá vendo, né?... mandei
essa tatoo por que gosto de reggae, me identifico com a
mensagem do Bob, desde moleque eu gosto ... de vez em quando
aperto um, claro, né?, P’ra acalmar... então a tatoo tem tudo a
ver...é um lance cabeça e pele, sei lá. (Filipe. 24 anos. Estudante,
fisiculturista e skatista amador).
Ou:
267
“esse duende no meu braço direito tá ‘carburando’
[fumando maconha], tá vendo? E aqui no esquerdo eu tenho a
planta [vira mostrando um desenho de uma folha de cannabis], fiz
as duas quando tinha dezoito anos porque desde moleque eu
gosto de punk e rock pesado, tenho uma banda e todo mundo lá
da banda fuma de vez em quando, eu não podia ser diferente...”
(Rafael. 28 anos. Economista).
Perguntados sobre se o uso de maconha não era uma contradição com
a prática esportiva todos aludiram ao uso de esteróides anabolizantes como
sendo pior do que a “erva” como atesta esse relato, um entre muitos:
“todo mundo se droga aqui... chega o verão e até a
ninfetinhas tomam bomba p’ra ficar saradas... porque eu não vou
fumar um baseado de vez em quando p’ra relaxar? A erva é
natural, não faz mal, já bomba é sintética, dá câncer e o cacete a
quatro...” (Fábio. 30 anos. Funcionário público).
Representações e práticas, portanto, podem ser sugeridas pelos
símbolos que os integrantes desse grupo urbano inscreve na pele. As
tatuagens mais comuns entre os fisiculturistas e freqüentadores assíduos das
academias são aquelas que expressam força, autoridade e poder, sendo que
este relaciona-se diretamente à virilidade. Junto a estes símbolos aparecem
aqueles ligados ao uso das drogas: ratos com corpo de fisiculturista e duendes
musculosos fumando maconha, além de cogumelos de todos os tamanhos em
alusão ao alucinógeno chá de cogumelo, e o próprio desenho da planta
cannabis sativa. Estas alusões ao mundo da droga merecem uma hipótese. O
rito de iniciação de um marombeiro – aquele que vem a se tornar um
freqüentador assíduo das academias, futuro fisiculturista – está relacionado ao
uso coletivo
e por vezes compartilhado dos esteróides. A maioria dos
fisiculturistas utiliza tais substâncias para melhorar sua performance. A
convivência com este mundo repleto de substâncias químicas é, portanto, fato
268
cotidiano e praticamente inevitável para os atuais freqüentadores assíduos das
academias de musculação e fisiculturismo, visto que o próprio uso coletivo de
tais “elixires da força” e da saúde, compreendida enquanto boa forma, constituise em um dos principais fatores de aceitação e construção de identidade do
grupo. A droga, portanto, faz parte de um processo ritual de iniciação, rito de
instituição, estando presente, de forma duradoura, no cotidiano destas
pessoas. Do esteróide anabolizante à maconha ou ao ecstasy, e vice-versa, é
apenas um passo. Durante o trabalho de campo foi possível perceber que
muitos utilizam drogas, além das “bombas”, em festas ou momentos de lazer
fora das academias.Tatuar sobre os músculos símbolos relacionados ao
consumo de drogas reitera e afirma o pertencimento do tatuado àquelas
estruturas objetivas e subjetivas que o perpassam e o constituem. Quando a
tatuagem fala sobre a iniciação às drogas ela articula um processo que permite
ao tatuado se fazer e se perceber como parte de um grupo.
A tatuagem, no caso dos fisiculturistas, pode representar uma extensão
e complemento do significado dos músculos e de tudo aquilo que está
envolvido no seu cultivo. Figuras de cães ferozes, caveiras e cruzes, morte, e
símbolos de super-heróis, tigres, panteras e dragões, enfim animais
considerados perigosos, servem como advertência: cuidado sou perigoso!
(Diógenes, 1998). O cão pitbull, por exemplo, tido como um dos mais ferozes e
de temperamento explosivo, surge na fala dos marombeiros como símbolo de
força e daquilo que consideram qualidades: agressividade, destemor,
ferocidade e potência: “...esse pitbull aqui [aponta para a panturrilha] é o meu
mascote... ele me dá força” (Pedro. 25 anos. Estudante). Ou :
“ A tatoo dessa fera aqui, no braço..., nesse braço aqui, é
do meu pitbull...eu me identifico com essa raça de cachorro, tem
um movimento aí que quer acabar com eles, já ouviu falar, né?
Dizem que o bicho é violento e coisa e tal... mas não vão
conseguir, a gente que luta, que malha que gosta de esporte
radical, a gente se amarra nesse bicho... vamos continuar
criando... ele é nosso símbolo... forte. A mordida dele tem mais de
269
uma tonelada de pressão, é isso aí, quero que meu soco também
fique com uma tonelada de pressão...” (João. 28 anos.
Comerciante).
No caso feminino, as figuras remetem à delicadeza, sensualidade e
submissão. Tais desenhos acentuam esteticamente a feminilidade – os
encantos, particularmente, para os olhos masculinos, dessa feminilidade
(Freyre, 1986). Estas figuras, como mostra o quadro acima, são inscritas,
geralmente, em regiões específicas do corpo da mulher: quadris, ventre, seios,
virilhas, nuca. Se, no caso masculino, os desenhos ressaltam a muscularidade
e a masculinidade de regiões do corpo que representam a virilidade e a força,
e, portanto, a honra de ser homem, no caso feminino tais desenhos destacam o
inverso, ligando a força feminina diretamente à sedução e à sexualidade. A
tatuagem torna-se um adorno para as qualidades físicas diretamente ligadas ao
gênero e às hieraquias de poder e relações de força a ele inerentes. Mesmo
aquelas figuras unissex, que poderiam dar a impressão de mudança de
condição disfarçada pela mudança de posição, são inscritas nas regiões
específicas do corpo nas quais ficam demarcadas as peculiaridades do poder
feminino radicado na dependência da dominação masculina. O desenho aí
surge como adorno das qualidades sensuais e sedutoras da mulher – mesmo
quando suposto sinal de “liberação” – sugerindo que o uso do corpo e da
estética feminina continua subordinado e radicado no ponto de vista masculino:
“o corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido e recusado,
[nos jogos de sedução], manifesta a disponibilidade simbólica
que... convém à mulher, e que combina um poder de atração e de
sedução...adequado a honrar os homens de quem ela depende
ou aos quais está ligada, com um dever de recusa seletiva que
acrescenta ao efeito de ‘consumo ostentatório’ o preço da
exclusividade” (Bourdieu, 1999:40-1).
270
Demarcar regiões corporais que são alvo da cobiça sexual masculina
funciona como uma potencialização da sedução:
“...a gente faz tatuagem na nuca, na virilha, perto do
bumbum... é claro, né?, são lugares de mulher fazer tatoo... por
quê? Porque dá um tchan, um destaque naquela parte que você
acha que você tem de legal, que atrai os caras e deixa as
mulheres com inveja, que te dá aquele charme... entende? Se a
mulher tem uma cintura bonita, fininha, um quadril largo, ela
manda logo uma tribal no cóccix, se ela tem um peitão bacana
manda uma no peito, e aí vai... sacou? Muita mina diz que faz na
nuca, no cóccix que é p’ra não enjoar da tatoo, porque ali ela não
fica vendo o desenho o tempo todo, tudo bem, pode até ser, mas
é muito mais p’ra dar um destaque naquela parte do corpo que ela
acha legal. (Juliana. 20 anos. Estudante).
Contudo nem todas demonstram essa reflexividade a respeito da função da
tatuagem: “fiz tatoo porque gosto, não tem por que... achei legal e mandei no
tornozelo, depois esse ideograma na nuca que quer dizer vida e amor; é isso
fiz porque fiz, e pronto” (Mariana. 25 anos. Jornalista).
Deste modo, ao se servir do seu próprio corpo a mulher tatuada, ao
menos neste caso específico, naturaliza uma ética estruturada culturalmente
que a constrói como ser-para-o-outro. A tatuagem então surge como uma
espécie de adorno que realça e sensualiza determinados dotes físicos
conferindo à portadora o poder (ou o contrapoder
78
) e o quantum da sua
feminilidade construída como complemento e contraposição da masculinidade
que a define.
78
- Assim, Bourdieu escreve: “simbolicamente votadas à resignação e à discrição, as mulheres só podem
exercer algum poder voltando contra o forte sua própria força, ou aceitando se apagar, ou, pelo menos,
negar um poder que elas só podem exercer por procuração (como eminências pardas)”. (1999:43).
271
Tatuagem e Lógica da Identidade
Já a classificação triádica (tatuagem de homem, tatuagem de mulher e
unissex) representada pelas figuras desenhadas na pele, tanto de homens
quanto de mulheres, pode aludir a uma maleabilidade classificatória
relacionada à conquista feminina da igualdade entre os sexos. Tal ambigüidade
ilusória apenas reitera que a mulher mudou de posição mas não mudou de
condição, pois a disciplina que tradicionalmente se impõe ao seu corpo,
delimitando sua situação em contraposição à condição masculina, ressalta a
significação moral inscrita não apenas na sua aparência mas em seus atos:
costas a serem mantidas retas, andar requebrado e malemolente, quadril
empinado,
ausência
de
barriga,
pernas
fechadas
ao
sentar,
seios
propositadamente enfatuados, olhares de soslaio, etc, como se a feminilidade
se medisse pela arte de se fazer delicada ou pequena
(Bourdieu, Op. Cit. Simmel, 1993). Essas técnicas do corpo feminino têm
por efeito paradoxal, através da demonstração de disciplina e contenção, da
oferta e da negação da oferta, da suposta dissimulação, concretizar e reiterar a
ordem da sedução e da beleza socialmente construída, mostrando e
demonstrando, mesmo que circunstancial e sorrateiramente, os atrativos do
corpo relacionados diretamente a sua sexualidade, como se toda mulher fosse
seu sexo 79.
79
-Tem sido comum a sociologia, e por vezes, a antropologia (principalmente a denominada antropologia
urbana) a abordagem teórica que generaliza, ou universaliza a dominação masculina. Assim, grosso
modo, procedem as abordagens, por exemplo, de Lévi-Strauss e Bourdieu. Porém, novos estudos
direcionados às sociedades tribais não estratificadas da Amazônia e Nova Guiné não aceitam tal
proposição de universalidade desta dominação, reiterando que em tais sociedades, em geral, as relações
entre os gêneros são permeáveis e equilibradas (Overing, 1984; Viveiros de Castro, 2002e; Gonçalves,
2001; Lagrou, 1998). Tal aspecto pode ser percebido, por exemplo, nas práticas do “couvade”, quando
após o parto o homem também fica de resguardo; esta prática seria inerente às sociedades nas quais as
tarefas sexuais são relativamente flexíveis e o poder e o status femino são altos. O couvade talvez sirva
para estabelecer as tarefas do pai na vida da criança e para equilibrar as funções masculinas e femininas
na criação das crianças. Outro comportamento ritual que demonstra a imitação masculina do poder
reprodutivo feminino é o “saignade”, ritual de sangramento que imita a menstruação. Embora o sangue
menstrual seja universalmente temido, em geral, em muitas culturas acredita-se também que ele carrega
grande poder, sendo fonte e causa da saúde superior das mulheres e também causa do seu rápido
crescimento. Assim, entre os Menihaku da Amazônia existem inúmeras ocasiões nas quais os homens
menstruam simbolicamente, sendo a mais significante o ritual de perfuração das orelhas. Entre os Sambia
das terras latas da Nova Guiné o sangue menstrual também é identificado com a vitalidade, longevidade e
feminilidade das mulheres. Para garantir saúde similar e longevidade os homens Sambia produzem um
ritual doloroso e brutal de imitação da menstruação; neste, provoca-se o sangramento do nariz nos jovens
272
Desta maneira, além da ilusão igualitária radicada na suposta
maleabilidade simbólica da tatuagem unissex, o problema da lógica triádica nas
classificações dos desenhos da epiderme remete diretamente às classificações
ternárias destacadas no pensamento selvagem estudado por Lévi-Strauss
(1975a;1975) que sugeriu o caráter contínuo (ou de continuidade dinâmica do
mundo) do raciocínio selvagem: “as sociedades que denominamos primitivas
não concebem que possa existir uma fossa entre os diversos níveis de
classificação; representam [tais níveis] como as etapas ou os momentos de
uma transição contínua” (1975a:202). De acordo com o autor, na classificação
primitiva não há a concepção estática da realidade, mas esta é percebida como
processo dinâmico com ausência de formais escaninhos estanques, como
poderia sugerir uma análise apressada do binarismo presente nas temáticas
estruturalistas. A binaridade lógica, ou as partições ontológicas, apresentariam
uma solução original no pensamento selvagem: sendo relação entre contínuo e
descontínuo o universo estaria “representado em forma de um continuum
composto de oposições sucessivas” (Op. Cit.:205). As oposições binárias
estáticas não estariam presentes nesta onto-lógica na qual a identidade não
seria nada mais do que um caso da diferença. Uma antropologia das
sociedades complexas, ou urbanas, não deveria se preocupar apenas em
encontrar nas culturas e sociedades nacionais de tradição cultural européias ou
eurasiáticas, a mesma lógica ou sentido constatada entre os “primitivos”, mas,
ao contrário, buscar as diferenças entre tais sociedades. Uma concepção
nublada do estruturalismo levou inúmeros pesquisadores de sociedades
complexas, de modelos europeus ou asiáticos, a fazerem projeções de termos
de uma cultura para outra. Tal equívoco apenas demonstra que uma projeção
efetiva
deveria ser a do tipo geométrico em que as relações fossem
preservadas e não os termos: “o ‘equivalente’ do xamanismo ameríndio não é o
neo-xamanismo californiano, ou mesmo o candomblé baiano. O equivalente
funcional do xamanismo indígena é a ciência. É o cientista, é o laboratório de
durante cerimô nias de iniciação (Counihan, 1996). Esta mesma sacralidade do sangue menstrual, e
exaltação do poder feminino, foi percebida por Osório (2002) em relação ao grupo de praticantes da
bruxaria moderna no Rio de Janeiro, denominado Wicca.
273
física de altas energias, é o acelerador de partículas. O chocalho do xamã é o
acelerador de partículas de lá.” (Viveiros de Castro. 2002c.: 489).
Talvez essa busca pelo imutável, característica da metafísica e da
cultura ocidental, possa ser expressa pelas tatuagens circunstanciais. Tais
tatuagens buscam eternizar um instante da vida (circunstâncias), um momento,
uma data, uma relação através da fixação na pele de um nome ou mesmo um
texto com supostos poderes mágico-protetores. Apresentam-se sempre em
forma de frases que formam ou não textos, ao contrário dos outros modelos de
inscrição epidérmica. Um fisicultursta e instrutor de musculação de uma
academia no bairro do Grajáu exibe, além de outras tatuagens espalhadas pelo
corpo, uma tatuagem circunstancial – é o nome dado as tatuagens em frases com letras góticas com a inscrição culturismo no antebraço:
“Mandei escrever culturismo no antebraço para todas as
pessoas verem que a musculação e o fisiculturismo são a minha
vida, a razão do meu viver; tudo que tenho consegui por
intermédio do que faço... então mandei escrever isso aí, p’ra todo
mundo ver... ainda quero mandar escrever o nome da minha mãe
nas costas, ela p’ra mim é mulher mais importante da minha vida”
(Pedro, 30 anos. Instrutor de musculação).
Ainda uma freqüentadora assídua das salas de musculação da mesma
academia:
“ Eu tatuei na minha pele o que tenho na minha
mente: palavra Deus em inglês... tatuei porque acho que tenho
que lembrar a todo instante dele, agradecer o que tenho, saúde
p’ra correr atrás do que preciso, por isso tautei no pulso... também
p’ra todo mundo ver que me protejo, sei lá é meio amuleto
também... um poder superior que você carrega no seu corpo.”
(Carol. 18 anos. Estudante).
274
Se, a respeito das tatuagens entre tribos “primitivas” e neo-tribos
urbanas, uma projeção apressada fosse feita, provavelmente se concluiria que
a classificação triádica das tatuagens remeteria a uma concepção dinâmica de
universo, na qual a diferença se apresentaria como constitutiva da realidade.
Mas não é isso que ocorre. Se os termos forem deixados de lado e as relações
transpostas, perceberemos que, apesar de semelhantes nas classificações
entre fisiculturistas e ameríndios, a lógica de um e de outro é simetricamente
invertida. O aspecto triádico ameríndio está relacionado ao continuum da
realidade compreendida como processo; este por sua vez, manifesta-se, tanto
em um grupo quanto em outro, pela ampla variedade de desenhos que se
algumas vezes possuem os mesmos conteúdos (tema), variam amplamente na
forma (estilo). Por exemplo, entre os índios do grupo Pano na amazônia, as
tatuagens permitem a identificação imediata do grupo ao qual pertence o
indivíduo: “particularmente elaboradas são as tatuagens dos diversos grupos
da área Juruá-Purus, caracterizadas por motivos angulares... cuja composição
varia de grupo para grupo, tornando possível a imediata identificação”
(Signorini, 1968: 179. Apud Erikson, 1986:192). Similarmente, as tatuagens
entre os freqüentadores assíduos das academias de fisiculturismo cariocas
classificam indivíduos pertencentes a subgrupos específicos em um lógica de
“assimilação do mais longínquo conjuntamente a uma diferenciação máxima
vis-à vis do próximo” (Erikson, Op.Cit.:192). Os mesmos desenhos, com suas
variantes, podem ser encontrados entre subgrupos diferentes da mesma forma
que no seio de um mesmo subgrupo podem coexistir motivos bastante
diferentes. Uma águia pode ser representada de inúmeras maneiras, aludindo
a significados distintos para seções distintas, ou ter o mesmo significado para
um grupo específico, porém sendo representada por estilos diferentes; formas
que tendem a demarcar a singularidade daquele que porta o desenho. Esta
diversidade entre os ameríndios faz alusão à lógica da diferença presente entre
os ameríndios em que o mundo é visto e compreendido como processo e, o
275
que para nós seria Natureza 80, enquanto devir, “um todo interconectado de
seres não-humanos com intencionalidade e agência semelhantes à nossa,
capazes de adotar um ponto de vista”81 (Lagrou, 1998:164). Já entre os
praticantes de fisiculturismo e freqüentadores das academias de musculação,
este mesmo processo remete ao sentido de uma classificação que tende a
buscar na identidade, entendida (de forma avessa à dos ameríndios) enquanto
negação da diferença, essência imutável do cosmos. Enquanto para um grupo
o movimento expresso pela variação infinita de formas com o mesmo tema
significa a identidade da diferença, para outro, o mesmo movimento busca
demarcar a identidade compreendida como manifestação do imutável. A
tatuagem expressaria a concepção inconsciente de que o cosmos não é um
devir, um tornar-se imanente, e sim parte volátil de uma realidade metafísica
80
- Philippe Descola sugere a existência de modelos diversos de “ecologia simbólica” : a naturalista
(ocidental) onde vigora uma relação metonímica e natural entre natureza e sociedade, sendo a realidade,
em última análise, radicada na Natureza: os seres humanos teriam sua “essência” biológica como animais,
diferenciando-se destes apenas pela Cultura. A abordagem “totêmica” na qual a relação é puramente
diferencial e metafórica, sendo uma série comparada por analogia a outra série, e, por último, o modo
“anímico” (vigentes nas cosmologias amazônicas) em que a relação Natureza/ Cultura é metonímica e
social, ou seja, inversamente às cosmologias ocidentais, estas últimas compreendem o cosmos como
sendo todo Cultura e não Natureza. Objetos e animais teriam sociedades e se veriam como coletividade
social; o animismo seria, portanto, um sociocentrismo ( Descola, 1992; 1996; Viveiros de Castro, 2002e).
81
- Tal processo é conhecido como perspectivismo ameríndio e poderia ser resumido da seguinte forma:
“O estímulo inicial para esta reflexão foram as numerosas referências, na etnografia amazônica, a uma
concepção indígena segundo a qual o modo como os seres humanos vêem os animais e outras
subjetividades que povoam o universo – deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos,
plantas, fenômenos metereológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos -, é profundamente
diferente do modo como estes seres vêem os humanos e a si mesmos.Tipicamente, os humanos, em
condições normais, vêem os humanos como humanos e os animais como animais; quanto aos espíritos,
ver estes seres usualmente invisíveis é um signo seguro de que ‘condições’ não são normais. Os animais
predadores e os espíritos, entretanto, vêem os humanos como espíritos ou como animais predadores: o ser
humano vê a si mesmo como tal. A lua, a serpente, o jaguar e a mãe da varíola o vêem, contudo, como um
tapir ou um pecari que eles matam, anota Baer sobre os Machiguenga. Vendo-nos como não-humanos, é a
si mesmos que os animais e espíritos vêem como humanos. Eles se apreendem como, ou se tornam,
antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e
características sob a espécie da cultura: vêem seu alimento como alimento humano ( os jaguares vêem o
sangue como cauim, os mortos vêem os grilos como peixes, os urubus vêem os vermes de carne podre
como peixe assado, etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garrras, bicos, etc.) como adornos ou
instrumentos culturais, seu sistema social como organizado identicamente às instituições humanas (com
chefes, xamãs, ritos, regras de casamentos, etc.). Esse ‘ver como’ refere-se literalmente a perceptos, e não
analogicamente a conceitos, ainda que, em alguns casos, a ênfase seja mais no aspecto categorial que
sensorial do fenômeno; de qualquer modo, os xamãs, mestre do esquematismo cósmico dedicados a
comunicar e administrar as perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os conceitos ou
inteligíveis as intuições. Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está
quase sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma roupa) a
esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de
certos seres transespecíficos, como os xamãs. Quando estão reunidos em suas aldeias na mata, p. ex., os
276
essencialmente imutável. Se no pensamento domesticado, ou dito ocidental, a
identidade é ausência de diferença, o que leva à busca da essência estática do
cosmos na filosofia metafísica, no pensamento selvagem a identidade é um
caso particular, circunstancial e delimitado da diferença (Viveiros de Castro,
2000a).
A mesma variabilidade, praticamente infinita das figuras tatuadas,
existente entre ameríndios e marombeiros expressa, em última análise,
sentidos opostos. No caso dos marombeiros esta variabilidade é representada
pelo fato de o mesmo desenho ser realizado em estilos diversos (tradicional,
oriental, new school, tribal, etc.). Por exemplo, há o estilo tribal que pode ser
visto em variações tais como a celta, o estilo samoano ou taitiano, há o estilo
biomecânico que representa figuras com formas cibernéticas, há o estilo
oriental com desenhos inspirados na arte chinesa e japonesa mormente da
Yakusa (no caso japonês), etc. Esse movimento – de variação da forma e do
estilo - é compreendido pelo fisiculturista como busca pela demarcação
identitária que delimita a singularidade da sua pessoa enquanto marca que
deseja a imutabilidade e não como demonstração da diferença e do devir
imanentes aos cosmos, processo que ocorre no caso ameríndio em que “a
distância intensiva e extrínseca entre as partes converte-se em diferença
intensiva, imanente a uma singularidade dividida” (Viveiros de Castro, 2002f:
293). Enquanto a variabilidade e a continuidade para um significa o próprio
movimento cosmológico, o devir; para outro constitui-se como busca pela
singularidade identitária, marca de uma “essência” imutável. Se a singularidade
é, e afirma, o processo, em um aspecto; em outro, o processo deve ser negado
pela própria busca da singularidade.
Magia Capilar ou a Louridade da Loura
O corpo está no social e o social está no corpo. O agente se sente em
casa no mundo – em seu grupo, classe, sociedade, etc. – porque este mundo
está nele sob a forma de ação, classificação e percepção deste próprio mundo.
animais despem as roupas e assumem sua figura humana. Em outros casos a roupa seria como que
277
Assim, “as injunções sociais mais sérias se dirigem ao corpo e não ao intelecto”
(Bourdieu, 2001:172). A percepção que o indivíduo tem da realidade (inclusive
a
percepção
classificatórias
estética)
está
apreendidas
diretamente
através
da
relacionada
socialização;
às
estruturas
tais
estruturas
materializam-se na prática através dos, e nos, corpos. É na ação pedagógica
cotidiana – na concretude das práticas sociais - que o corpo e o espírito do
agente são moldados.
Desta maneira, determinados itens, artigos de consumo ou mesmo
condutas características de parcelas dominantes constitutivas das sociedades
complexas são adquiridas e imitadas pelas camadas mais baixas com o
objetivo de acionar a distinção característica das relações cotidianas de poder.
A moda se produz quando um grupo ao qual é conferido o conhecimento e o
reconhecimento de elegância e bom gosto tem seu estilo de vida imitado.
Contudo, como ela é basicamente distinção social, ao ser imitado pelos grupos
considerados socialmente inferiores, o grupo que dita e autoriza a moda
abandona o item anterior transmitindo autoridade de distinção a outros modos
de expressão social, desautorizando, assim, o modo anterior. Essa magia
social de itens temporários, mas de significados constantes, confere àquele
que utiliza determinado artigo, ou atitude distintiva, um suposto poder
por
extensão. A marca, a etiqueta – em seu duplo sentido de comportamento e de
símbolo de consumo - ou a atitude corporal confere ao usuário que domina o
saber de as utilizar o poder que elas representam (Bourdieu, 1983; Rodrigues,
1980). Esta distinção relacionada porta o paradoxo de inscrever o indivíduo em
um grupo social determinado, diluindo-o em uma coletividade, ao mesmo
tempo individualizando-o e distingüindo-o do grupo: “ cada forma essencial da
vida na história de nossa espécie há suposto, em seu próprio âmbito, uma
maneira peculiar de conjugar o interesse pela permanência, a unidade e a
igualdade com o interesse pela variação, a particularidade e a singularidade”
(Simmel, 1991:27). Assim, a moda relaciona-se com os sistemas de valores, as
dimensões afetivas e cognitivas da realidade social, expressando o paradoxo
transparente aos olhos da própria espécie e dos xamãs humanos.” (Viveiros de Castro, 2002d: 350-1).
278
da busca pela individualização, pela singularidade, ao mesmo tempo
representando o pertencimento a uma tendência coletiva (Idem ).
Segundo Leach, o comportamento simbólico não só “diz” alguma coisa,
como também desperta emoções e, conseqüentemente, “faz” alguma coisa.
Para o autor, “a essência do comportamento simbólico público é que ele é um
meio de comunicação; o ator e sua platéia compartilham uma linguagem
comum, uma linguagem simbólica” (1983:141). Leach aponta para o fato de
que o cabelo é um símbolo universal, sendo o penteado uma característica
bastante difundida do comportamento ritual. Em sociedades tradicionais,
mudanças marcadas por penteados acompanham, em geral, mudanças de
status sexual que ocorre na puberdade e no casamento; contudo o padrão
varia. No adulto, a idade é marcada pelo cabelo cortado ou amarrado, mas
algumas vezes são as crianças que usam cabelos curtos, enquanto adultos
deixam os cabelos cair soltos sobre o pescoço (Leach, Op.Cit.). Lévi-Strauss
(1975a), por outro lado, sugere, através da análise dos cortes de cabelo das
crianças osago e omahas, que a forma destes cortes servem para destacar o
pertencimento do indivíduo às seções das aldeias. Da mesma forma que a
tatuagem e a moda, o corte de cabelo, em um processo paradoxal, serviria
para singularizar e coletivizar simultaneamente.
O cabelo é um dos mais poderosos símbolos de identidade individual e
social (grupal). Poderoso, primeiro, porque é físico e extremamente pessoal;
segundo, porque apesar de pessoal é também público, muito mais do que
privado. As efetivas hierarquias sociais podem ser simbolizadas por intermédio
da capilaridade. Gênero, ocupação, idade, fé, etnia, status sócio-econômico e
até mesmo orientação política, além de disposições e gostos pessoais – que
não deixam de remeter às classes sociais- significam posições na gramática
social, radicando-se nas relações de força inerentes às relações entre as
pessoas e instituições. Existe mesmo a possibilidade de elaboração de uma
teoria do cabelo que sugeriria uma tríade de oposições sintetizadas da seguinte
forma: 1) Sexos opostos tendem a ostentar formas opostas de organização
capilar; 2) o cabelo da cabeça e o cabelo do corpo tendem a ter significados
opostos; 3) concepções de mundo opostas tendem a ostentar formas opostas
279
de cabelo (Synnot, 1993; Leach, 1983). De acordo com Synnot (Idem ), a
complexidade do simbolismo capilar é possível por duas razões distintas:
primeiro, embora cabelo cresça na maior parte do corpo, em termos simbólicos
ele pode ser dividido em três macro-regiões de significado social, que podem
ser subdivididas em outras: o cabelo da cabeça, o cabelo da face (sobrancelha,
bigodes, costeletas, buços, cavanhaques, cílios, etc) e o cabelo das regiões
distintas do resto do corpo (peito, coxa, canela, braço, axilas, costas). Cada
uma dessas três regiões possui significado ideológico e de gênero. Segundo, o
cabelo pode ser modificado de várias maneiras: comprimento, da máquina zero
(careca) até os quadris ou mais; cores e estilos podem ser modificados, e, até
mesmo a quantidade do cabelo pode variar ao ser transformada pela utilização
de cabelos artificiais e apliques. Esta variabilidade possibilita a enorme riqueza
simbólica deste instrumento de comunicação que é o cabelo.
O Cabelo do Malhador
Nas academias de musculação de fisiculturistas o cabelo possui um
grande poder de comunicação e de consagração de hierarquias. Os homens,
em geral, usam os cabelos muito curtos e, não raro, é comum vê-los de cabeça
raspada ou com cabelo cortado à máquina, (freqüentemente máquina dois).
Esta disciplina capilar pode estar relacionada à forte exigência de disciplina
cotidiana para aqueles que desejam construir musculatura hipertrofiada.
Excessos de gordura e de cabelo são execrados pelos fisiculturistas como se
fossem itens profanos de sua cosmologia. Já em relação às mulheres, um certo
excesso em relação à capilaridade é interpretado de forma diversa; elas usam
cabelos longos que prendem em rabos-de-cavalo ou deixam soltos. Há,
também entre elas, uma espécie de fixação por cabelos lisos e claros, de forma
que tinturas e alisamentos de todos os tipos são muito comuns. Se há, por
parte delas, a tendência de preferir cabelos claros, entre eles ocorre o
contrário. Os cabelos são escuros ou grisalhos, salvo raríssimas exceções,
descoloridos propositalmente, quase brancos. Há que ser ressaltado o fato de
que aqueles indivíduos (tanto homens quanto mulheres) de maior destaque
280
entre os freqüentadores assíduos das academias são justamente os que
lançam e seguem estas modas capilares. Em geral, copiam e adaptam o estilo
e a moda de algum fisiculturista internacional visto em revistas ou campeonato
internacional transmitido por canais de televisão a cabo. Assim, um processo
de difusão estética realiza-se do mais destacado para o menos destacado, do
centro para a periferia, em um movimento de consagração de instâncias
identitárias que tendem a ser tornar globalizadas articulando, através da magia
social, aquele ato que “traz a existência a coisa nomeada” (Bourdieu,
1989:116). Esta coisa nomeada só existe socialmente devido ao fato de que
aquele que a nomeou tem o reconhecimento e, portanto, a autoridade,
conferida por aqueles que acreditam em suas palavras e ações, de nomear e
fazer existir coisas e comportamentos através do poder de suas palavras. Ato
de magia social.
Synnot destaca que nos EUA e Inglaterra a divisão capilar de gênero é
manifestada no fato de que as mulheres buscam manter seu corpo com total
ausência de pêlos, enquanto homens cultivam cabelos nos peitos pernas e
costas, significando virilidade e sensualidade. Se mulheres usam muito cabelo
na cabeça e procuram não usar quase nenhum no corpo; homens, por sua vez,
buscam tê-los em pouca quantidade na cabeça e muita quantidade no corpo.
No caso das academias cariocas de fisiculturistas estudadas tal
processo toma aspecto diverso deste destacado pelo autor. Os fisiculturistas
depilam ou raspam os pêlos do corpo procurando não deixar qualquer fiapo
despontando em sua epiderme. Porém, entre as mulheres, ocorre o cultivo de
pêlos – que são constantemente alourados e descoloridos – do joelho para
cima, no ventre, (onde fazem uma espécie de caminho louro em direção ao
púbis) e na região do cóccix. Esta pelugem, entre elas, assume característica
relacionada à sensualidade, posto constituir-se como item simbólico ligado à
beleza feminina. Desta forma, enquanto homens tornam-se depilados e lisos
por todo o corpo, as mulheres deixam determinadas regiões, que representam
e destacam simbolicamente sua
sexualidade (ventre, coxa, e ancas),
recobertas com pequenos pêlos sempre louros – mesmo que artificialmente.
Longe de representarem virilidade, como poderia supor um analista apressado,
281
os pêlos corporais, neste caso, representam o contrário, a feminilidade. Já a
ausência de pêlos entre os homens – inclusive faciais, pois raramente usam
barba ou bigode - não desvaloriza sua masculinidade, mas, inversamente, é
buscada por todos aqueles que cultivam o corpo musculoso. Contudo, canelas
e axilas femininas devem estar sempre lisas, sem nenhum pêlo, enquanto
nenhum homem deve raspar ou depilar suas axilas, exceto, em alguns casos,
em épocas de competição. Há que se ressaltar que o uso de esteróides
anabolizantes à base de testosterona provoca aumento de pêlos por todo o
corpo – embora provoque calvície – tornando o usuário quase inevitavelmente
peludo; tal fato dificulta o processo de depilação e raspagem corporal por parte
destes homens. Não é incomum, quando a freqüência às academias é grande,
perceber homens totalmente lisos com pequenos cortes em braços, ombros,
peitos e pernas provocados pelo uso excessivo de aparelhos de escanhoar
utilizados por todo o corpo. Se em alguns grupos sociais o excesso de pêlo
masculino faz alusão direta à masculinidade, este não é necessariamente o
caso entre os fisiculturistas. Também as mulheres freqüentadoras das
academias dizem apreciar homens sem pêlos, falam que não gostam de
bigodes e barbas e têm nojo daqueles que possuem pêlos nas costas: “Detesto
homem peludo, parece macaco, urso, sei lá. Argh, esse estilo Tony Ramos, me
dá um nojo....hummm. Bigode? Piorou!!! Parece que ‘cê ‘tá beijando vassoura!!!
(Cássia. 19 anos. Estudante). Outra disse:
”Me dá nojo... aquele cabelo nas costas e no peito, saindo
pela camisa, nossa! É horrível, eu detesto, homem peludo, eu
detesto. Gosto de homem lisinho, por isso que gosto de
marombeiro, eles têm o maior corpaço e não têm pêlos, o único
problema é que quando os pêlos estão crescendo começam a
espetar... (Ana. 23 anos. Jornalista).
Sobre as coisas consideradas nojentas, é sempre necessário perguntar
quando, como e por que elas são nojentas e como e quando deixam de ser
nojentas (Douglas,1976). As práticas corporais são comportamentos rituais
282
sustentados
por
crenças
míticas.
A
sociededade
asseptizada
é
automaticamente uma sociedade hierarquizada. A luta contra a poluição, diz
Rodrigues (1980;1995), está sempre associada ao estabelecimento de um
poder (religioso, econômico, administrativo), ao advento de figuras poderosas
(xamãs, heróis, líderes, chefes, visitas) e ao crescimento e a reprodução de
uma determinada ordem social. Assim, depilar o corpo constitui-se como um
rito cotidiano de purificação dos fisiculturistas. Eles necessitam estar lisos para
que
seus
músculos
apareçam
com
mais
definição
e
clareza.
Sua
muscularidade é ostentatória e, portanto, pública; toda sua construção física é
uma construção para o espetáculo da forma, da estética construída pelo peso
das anilhas. Músculos e pêlos são itens antagônicos neste sistema
classificatório, contrapõe-se como o público e o privado, o positivo e o negativo.
Embora o cabelo da cabeça seja símbolo para o coletivo, na lógica dos
freqüentadores de academias os pêlos masculinos podem representar a
dimensão da interioridade, da privacidade, da intimidade e do particular. Como
extensão da interioridade, e, portanto, daquilo que não deve ser dado a público,
o excesso de pêlo corporal masculino causa asco àqueles que com eles se
deparam nas salas de musculação. Depilar-se, raspar-se, para estes homens,
é um ato de higiene, de despoluição corporal. Da mesma forma, o pêlo das
canelas femininas e axilas representam algo impuro que não deve ser
apresentado publicamente. Por outro lado, “o que é puro em relação a uma
coisa pode ser impuro em relação a outra e vice-versa.” (Douglas, Op.Cit.: 21)
Se o cabelo da canela e das axilas é impuro, remetendo muitas vezes, entre os
informantes, ao nojo, o do ventre é quase sacralizado. Durante o verão,
tornam-se mais perceptíveis quando as mulheres estão muito bronzeadas e
com roupas menores do que em outras épocas do ano. Para ressaltar a
considerada sensualidade do ventre, existem ainda os piercings de umbigo
que são utilizados por quase todas as freqüentadoras assíduas das academias.
Desta forma, pêlos alourados e piercings sacralizam uma das regiões
consideradas símbolos da feminilidade: o ventre. Ocorre o mesmo processo
com coxas e quadris (cóccix) femininos em que a pelugem dourada recobre a
283
forma, destacando as regiões ligadas à sexualidade e, portanto, cobiçadas por
aqueles que produzem e reproduzem estes sistemas objetivos e subjetivos.
Junto com, - e
além
dos -, pêlos estrategicamente alourados e
posicionados, os homens das academias tendem a exaltar também o cabelo
longo, liso e louro das mulheres, visto como sinônimo de feminilidade, de
“capricho”, cuidado de si, limpeza e sensualidade: “Cabelo comprido é demais,
lisinho, macio cheiroso, é muito lindo... mulher p’ra ter cabelo curto tem que ser
muito bonita se não fica muito sem graça...” (Fábio. 30 anos. Funcionário
público). Outro fisiculturista falou:
“eu sou muito louco por mulher de cabelo comprido e louro,
é muito sensual, sei lá, mais feminino.... quando eu saio na night,
e vejo um cabelão louro já ligo logo o radar... fico ligado na
mulher... só filmando [olhando] se for bonita dou logo o bote,
chego junto, tento aproximação...desfilar com um mulherão louro
do lado dá a maior presença, abala geral.” (João. 28 anos.
Comerciante)
A Loura Virtual
O cabelo louro e comprido, geralmente liso, exerce um grande fascínio
sobre homens e mulheres dedicados ao cultivo da forma e da muscularidade.
Porém, longe de ser apenas uma manifestação da preferência estética atual
das academias, o cabelo louro, desde o final do século XIX, têm sido no Brasil,
em geral, principalmente entre as mulheres, um item de consumo e de busca
de distinção. Nas salas de musculação, spinning82 e ginástica, contudo, uma
quantidade significativa de mulheres tinge o cabelo e transita por tais
instituições ostentando douradas madeixas raramente legítimas. Certa vez, por
exemplo, em uma tarde de agosto de 2002, contei em uma destas salas vinte e
uma mulheres, dezessete dentre elas tinham o cabelo tingido de louro, sendo
82
- O spinning é uma prática de ciclismo com bicicletas fixas – não ergométricas - dentro de locais
fechados nas quais são simuladas as várias etapas de uma corrida de bicicleta ao ar livre em
conformidade com ritmos musicais mais ou menos acelerados de acordo com o esforço exigido.
284
que dentre as dezessete, oito poderiam ser consideradas mulatas, que além de
tingidos, tinham os cabelos alisados.
Mas como compreender o motivo pelo qual as pessoas de um país que
tradicionalmente diz se orgulhar de suas morenas, mulatas e negras tenderem
a cultivar, na prática, esta espécie de obsessão pelo modelo de cabeleira lisa
escandinava? O que simboliza o cultivo das claras madeixas por mulheres
ligadas à transformação da forma física padronizada pelas academias de
musculação e fisiculturismo ?
No final do Império, o Brasil foi invadido por uma série de inovações
técnicas que visavam a melhoria da condição industrial. Nesta época, quase
tudo era importado da Europa; desde sapatos, descascadores, ventiladores
para produtos agrícolas até o gosto pela cerveja. Armarinhos e lojas
importavam as novidades das estações, o que era chic em Paris era importado
e consumido pelas elites nacionais. A máquina de costura Singer permitia às
costureiras copiarem todos os francesismos utilizados pelas damas da corte
(Del Priore, 2000). Gilberto Freyre sugeriu que neste processo de consumo das
coisas que vêm de fora chegaram as louras; não as de verdade, de carne e
osso, mas as bonecas francesas de porcelana e olhos azuis que passaram a
povoar o cotidiano e o imaginário das meninas abastadas. De acordo com o
autor, o culto “das bonecas sempre louras e sempre de olhos azuis” (1986:98)
deve ter concorrido para contaminar algumas destas garotas com certo
arianismo para desenvolver no espírito destas meninas e futuras mães a
idealização de crianças que nascessem louras e crescessem parecidas com
suas “bonecas francesas louras e róseas” (Idem , 1986:33; 1990. Apud. Del
Priore,
2000:102).
Deslumbradas
com
o
possível
desenvolvimento
e
“progresso” da sociedade brasileira, a elite paulista e carioca via nos modelos
de consumo europeu o paradigma a ser seguido. As teses racistas de
branqueamento
populacional
(eugenismo)
disseminaram-se
entre
a
intelectualidade que associava o atraso do país à presença efetiva de negros e
índios. Oliveira Vianna foi um dos expoentes tardios desse pensamento; sua
antropologia do tipo lombrosiano relacionava tipos físicos com comportamentos
sociais. Para ele o componente europeu pode ser caracterizado do ponto de
285
vista antropológico em dois grupos: os homens altos, dolicóides e louros que
“devem preponderar na classe aristocrática: na nobreza militar e feudal da
península e os homens brunos, dolicóides ou braquicóides que formam a base
das classes médias e populares” (Vianna, [1922] 1956: 126-7. Apud. Laraia,
1997:30). Oliveira Vianna, expressando o eurocentrismo das elites do início do
século XX, demonstrava, como era comum, predileção especial pelos povos
germânicos, porque mesmo admitindo que a população portuguesa teve uma
formação étnica complexa, fruto de um intenso caldeamento de raças, atreve
afirmar que na fidalguia peninsular da era dos descobrimentos dominam os
descendentes
dos
velhos
conquistadores
germânicos:
godos,
suevos,
normandose borguinhões (Laraia, Op. Cit.). Após ligar a conquista dos sertões
à ancestralidade germânica dos primeiros colonizadores, Vianna destaca que
os “dolicóides louros
[são] capazes de grandes façanhas, suficientemente
heróicos para vencer os grandes desafios...” De acordo com ele, “a presença
nas suas veias [dos primeiros colonizadores] de glóbulos de sangue germânico
bem lhes poderia explicar a sua combatividade, o seu nomadismo...” Os
caucasóides de pele e cabelo mais escuros seriam menos nobres; enquanto os
primeiros constituiriam naturalmente a aristocracia, os segundos se deteriam
em ocupações menos nobres como o comércio e os ofícios manuais (Idem ).
Dada a suposta superioridade dos louros germânicos sobre o resto da
humanidade, Vianna é pouco simpático com índios e negros culpados de
conferir ao Brasil “caos...confusão e discordância [já que] sua capacidade de
civilização [principalmente a dos negros, destaca], sua civilizabilidade, não vai
além da imitação, mais ou menos perfeita, dos hábitos e costumes do homem
branco” (Ibid.:31-2). Diante desta ideologia que, desde o século XIX, reinava
nas percepções sociais da elite nacional, a obsessão pela modernidade e
civilização levou, esta mesma elite, a propor imigração de colonos europeus
para o país com o objetivo de transformar a nacionalidade brasileira em
“branca, civilizada e superior” como sugeria Joaquim Nabuco (Dos Santos,
1997:46; Sant’Anna, 1995). Incomodada com a miscigenação e africanização
da população e preocupados em construir uma nacionalidade que supunham
superior e, portanto, branca, a elite propõe a vinda massiva de imigrantes,
286
sobretudo alemães, considerados modelos exemplares de eugenia. Para
arrematar tal processo é promovida também a vinda de prostitutas francesas,
polonesas e alemãs. Começa surgir a moda da loura (Del Priore, Op. Cit.),
símbolo do sucesso de nações consideradas superiores, representantes do
poder estrangeiro, da suposta superioridade étnica e civilizacional. Os jovens
da elite paulista, por exemplo, sonhavam serem iniciados no mundo sexual
pelas mãos de européias experientes e viajadas, embora jovens, que poderiam
trazer-lhes, além dos prazeres do amor, o vislumbre da cultura civilizada
supostamente concretizada nos bordéis pela presença destas valquírias
hetairas, de carnes brancas e sotaque carregado, tidas no imaginário da época
como símbolos da modernidade83 (Rago, 1991). Processo similar ocorria no
Rio de Janeiro. Modernização para a elite carioca significava romper
imobilismos e caminhar no sentido do progresso, em busca do estabelecimento
de uma sociedade de moldes europeus. Neste aspecto, o mito da
superioridade européia reproduziu-se nas fantasias sexuais das camadas mais
altas da sociedade (Menezes, 1990). A partir de 1867 começaram a chegar no
porto do Rio de Janeiro “as polacas”, jovens do leste europeu, freqüentemente
judias (muitas louras e ruivas), e que constituiram a maioria das mulheres
vendidas no tráfico de escravas brancas para a América do Sul. A vida
profissional dessas mulheres era gerida por empresários também judeus 84 que
prometiam marido e vida nova na América – não especificavam qual, se a do
Norte ou do Sul – para as mulheres pobres dos territórios judeus da Rússia,
83
- A historiadora Margareth Rago mostra o “poder” destas prostitutas estrangeiras: “quando a loira
parisiense Marcelle d’Avreux descia as escadas da Pensão Milano, propriedade de Mme. Serafian, em
direção ao carro que a esperava na porta, na Rua São João, n. 30, escandalizava os provincianos de São
Paulo dos inícios do século [XX]. Todos os olhares se voltavam para suas roupas coloridas e
extravagantes e para seu enorme chapéu enfeitado com longas penas de avestruz – as pleureuses - ,
cuidadosamente encrespadas e emendadas para parecerem mais longas e caras. Ao lado de outras cocotes
de fama internacional, como se acreditava, a cançonetista Jeanne Peltier, Mimi Turris, Maria Cabaret,
Hèléne Chauvin, recém-chegada de Paris, costumada desfilar pela cidade... Quem sorria eram os
‘coronéis’ recém-chegados do interior, deslumbrados com o visual moderno que coloria seus olhos... e a
jeunesse dorée, esperançosa de encontrar alguns flertes e fugazes aventuras românticas” (1991:33).
Aspecto um pouco diverso destaca Lená Medeiros de Menezes sobre a prostituição de estrangeiras no
Rio: “Cissi Gutridge, menor de idade, havia fugido de sua casa no interior da Inglaterra, indo para
Londres, onde foi deflorada por indivíduo que depois a vendeu, por 2 libras, a Laura Scunkler, austríaca,
meretriz residente no Rio de Janeiro. Esta a seduziu com promessas de muito dinheiro e jóias, trazendo-a
para o Rio e estabelecendo-a em sua casa, onde passou a explorá-la e a viver do produto de seu corpo...
Laura ia a europa, de vez em quando, buscar mulheres” (Menezes, 1990:137).
287
para depois violentá-las e mandá-las para bordéis do Rio de Janeiro ou Buenos
Aires. Mas havia hierarquia no consumo dessas mulheres européias. Sendo a
França, na época, o paradigma de civilização, deitar-se com uma francesa
custava caro; portanto a alta prostituição, o meretrício de luxo, estava repleto
de francesas. Já as mulheres da Europa central eram usufruidas por homens
dos setores médios. Segundo Needell (1993), as mulheres da elite eram facsímiles, mais ou menos bem sucedidos das francesas, tentavam imitá-las
comprando todos as modas possíveis provenientes da França e adotando os
modos
“civilizados”
das
francesas.
Assim,
as
prostitutas
dos
locais
freqüentados pelos homens da elite eram, em geral, de origem francesa;
amostras humanas daquilo que era considerado o “berço da Civilização”, elas
poderiam, supostamente, ensinar os cobiçados refinamentos franceses aos
seus clientes. A paixão por estas mulheres revelava o fetichismo específico dos
homens da elite pelos valores eurófilos. Tais homens concebiam que poderiam
absorver, nem que fosse por osmose, a suposta superioridade que as louras
européias representavam.
A partir da década de 30 do século XX, com o crescimento da
hegemonia cultural americana, o poder das platinum blondes é ainda mais
fortalecido, embora com uma modulação de sentido. As faces rosadas das
estrelas de Hollywood e da indústria musical passam, uma após outra, a
dominar o imaginário de homens e mulheres: Jean Harlow, seguida de Marlene
Dietrich, Anita Eckberg, Jane Mansfield, Doris Day, Marylin Monroe, Ursula
Andress, Jane Fonda, Madonna, passando por Cameron Diaz, Britney Spears,
Reese Whitherspoon e Nicole Kidman. Simultaneamente ao sucesso das
louras na mídia aprimoraram-se os produtos químicos que permitem àquelas
que não o são converterem-se ao chamado blonde power.
Neste processo, o cabelo louro, e preferencialmente liso ou ondulado, foi
tornando-se cada vez mais, símbolo de status e sedução. No Brasil, apesar do
tão propalado ideal multicultural de igualdade entre tipos étnicos diferentes, há
uma hierarquia estético-capilar claramente admitida. Basta assistir à televisão
brasileira durante algumas horas para perceber que a pele branca e,
84
- O termo popular carioca para gigolô, cáften ou cafetão, advém de caftan, traje tradicional usado pelos
288
principalmente, a “lourice”, são valorizadas (Edmonds, 2002). Essa hierarquia
radicada na germanidade e capilaridade dourada pode ser notada no fato de
que os dois atuais modelos femininos mais incensados de beleza tem pele
branquíssima, cabelos louros e olhos azuis: Gisele Bündchen e Xuxa
Meneghel. No patamar subseqüente estão as mulheres brancas de cabelos
escuros e olhos claros como Ana Paula Arósio e Daniela Cicarelli, logo em
seguida vindo as morenas e, abaixo de todas, as mulatas. Segundo Burdick,
“estão excluidas da classificação as mulheres de cabelo duro, crespo, pele
muito escura e traços faciais africanos, como nariz largo e achatado”
(2002:196). A incensada “beleza negra”, em geral, é representada por mulatas
com traços faciais caucasóides. Ela, a mulata, está presente com mais
freqüência na TV, e mídia em geral, no período do carnaval, sendo que após a
onda da folia momesca, retorna para a lanterna da hieraquia estética midiática
da qual as negras estão excluídas.
Alguns relatos dos informantes são sugestivos a respeito da louridade
da loura - espécie de “essência”, ou alma loura, que não está diretamente
relacionada à legitimidade da cor do cabelo. Perguntadas por que clareiam o
cabelo algumas entrevistadas disseram:
“Não sei! ‘Tá na moda.... Acho que ser loura é legal porque
eu fico bem, me sinto bem assim. Quando eu nasci eu era loura,
tinha cabelo lourinho, aí foi escurecendo, então no fundo eu acho
que sou loura, [risos], mas não sei, me sinto bem e isso é o que
importa, porque depois que eu clareei o cabelo muito mais caras
passaram a olhar p’ra mim, pode ser que seja porque eu me sinto
bem, ou porque eles gostam de louras [risos]”. (Carina. 26 anos.
Advogada).
Ainda:
judeus do leste europeu (Needell, 1993:323).
289
“Eu clareio meu cabelo porque eu me sinto loura... não
consigo mais me conceber morena... meu cabelo é castanho
escuro, mas eu me sinto loura... acho que ser loura é um estado
de espírito. Não adianta a mulher pintar o cabelo de louro se ela
não se sente loura, se não tem alma loura, ser loura é..., como
poderia dizer, é ... ter charme, seduzir, chamar atenção. Entende?
A loura chama mais atenção. Se você tá super-loura, com o
cabelo bem claro, bronzeadona, coloca um vestido u
j stinho, um
salto alto, chega num lugar, numa festa, num barzinho, pronto!!!
Todo mundo fica te olhando, você chama a maior atenção.
(Sandra. 21 anos. Estudante).
Ou:
“Eu tenho o cabelo claro já, só que clareio mais, me sinto
legal... mas acho que não é qualquer uma que pode sair botando
o cabelo louro, tem que ter alguns requisitos... uma pessoa muito
morena por exemplo, não fica legal loura, não fica bem, é meio
caricatura, né? Se bem que agora até preta tá pintando o cabelo
de louro, né? Acho que p’ra ser loura o resto tem que combinar,
se não, não dá mesmo. Tem que ser clara ou ter um olho claro
p’ra combinar; se não fica esquisito. Outro dia li não sei onde,
acho que foi numa revista, que p’ra clarear o cabelo a mulher nem
precisa ser loura, mas tem que ter alma loura, é isso: p’ra pintar o
cabelo de louro tem que ter alma loura, senão não adianta”
(Patrícia. 29 anos. Economista).
Os relatos masculinos ressaltam aspectos diversos:
“ Eu adoro loura! Sou fissurado, não sei por que... acho que
é por causa daquele jeitinho de nenem que elas têm e no fundo
290
são umas diabas... não sei... mistura de ingenuidade com
sensualidade.... é isso, a loura parece ingênua, mas não é. Tem
aquele ar desprotegido e insinuante, isso me atrai, fico doido
quando vejo uma lourinha com esse jeitinho de ‘me protege, me
leva p’ra casa, cuida de mim [risos]’” (Pedro. 33 anos.
Fisiculturista amador e administrador de empresas).
Continuando:
“Sou doido por uma loura... cabelo dourado me deixa louco,
fora da razão, ainda mais se for daqueles compridos, ah meu
Deus, fico doido! Não sei porque, acho que todo mundo gosta de
loura, por mais que diga que não; ‘ce vê só, observa só, esses
jogadores de futebol, ainda mais se for preto, o cara fica rico
arranja logo uma loura. Um carro importado e uma loura p’ra
namorar... não é ? Acho que ter uma loura do lado é símbolo de
riqueza, de poder, sei lá meu irmão... vai ver que é isso, só sei
que eu gosto muito...” (Carlos. 41 anos. Fisiculturista amador e
dono de academia).
Se não é mais (ao menos de forma explícita) o ideal eugênico que move
os homens e mulheres a gostarem e se identificarem com as louras,
permanece, no imaginário das camadas médias urbanas, a mística da
louridade, com toda a hierarquia capilar que ela estabelece. Sendo símbolo do
sucesso, o cabelo louro é mesmo separado da etnia, tornando-se por si só, o
sinal de distinção :
“eu sei que não sou branca, meu pai é negro, eu sou
mulata...Sou criloura!!! [risos]. Eu pinto meu cabelo de louro não é
porque quero ser branca, se tivesse na moda pintar de azul, eu
pintaria, se fosse verde, eu pintaria, o louro é só uma cor que ‘tá
na moda, nada mais... Já pintei de vermelho. Gosto como ‘tá
291
agora... é mais um acessório, como usar uma pulseira, um
vestido, é isso. (Josiane. 24 anos. Estudante)
O cabelo louro, nas sociedades de consumo que as academias de
fisiculturismo, de certa forma, representam, é mais uma marca, uma espécie de
etiqueta capilar identitária a ser consumida. Na lógica da distinção delimitada
por este símbolo (e pela qual é delimitado), não é qualquer mulher que pode
ostentá-lo com eficácia, mas apenas aquelas que trazem a magia social da
chamada “essência loura”. Em outras palavras, a legitimidade do cabelo louro
não se resume exclusivamente a sua originalidade ou autenticidade, mas a um
habitus cultivado e apreendido representado pela postura corporal que constrói
a mulher sensual e reduzida ao seu sexo como portadora dos fios dourados.
Este fetiche humano, objeto de prazer, tem, nas suas técnicas corporais de
sedução feminina que o constituem, o simbolismo imanente de uma suposta
louridade (“alma loura”) que transcende a etnia, e a própria cor natural dos
cabelos, para encarnar-se em gestos que dependem do status masculino para
fiador de sua condição power blonde.
292
Capítulo VII
Elogio à Barbárie
“Adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui,
(...) o maior impedimento à civilização.”
Sigmund Freud.
Se “bárbaro é em primeiro lugar o homem que crê na barbárie” (LéviStrauss, 1976), a princípio os bodybuilders poderiam, e gostariam, de serem
chamados de bárbaros por pertencerem a uma cultura que ao mesmo tempo
faz apologia e despreza – dependendo das circunstâncias – aquilo que ela
entende como tal. Os grupos sociais que integram as chamadas sociedades
complexas de origem européia veneram concepções de progresso e evolução.
Nesse contexto, tais concepções estão relacionadas às idéias de prosperidade
e felicidade. Civilização e progresso parecem constituir categorias mestras do
jargão do senso comum. Palavras mágicas que sugerem um suposto reino de
felicidade (Arendt,1990). Ser chamado de “evoluído” passa a ser um dos
maiores elogios nestas culturas; estando o “bárbaro” e o “selvagem” situado em
uma dimensão oposta e mesmo ameaçadora à ordem e ao progresso do
sistema social.
Entre os fisiculturistas tal ideologia está sempre presente através do
constante elogio aos produtos desenvolvidos pela ciência os quais têm por
função otimizar a construção do corpo e da forma. Por outro lado, há uma
peculiaridade relacionada ao simbolismo da força, da virilidade e da conquista
do sucesso presente em todo o imaginário fabricado pela indústria da
propaganda que articula imagens de corpos musculosos e supostamente
saudáveis. Ser bárbaro, neste caso, pode significar ser forte, rotundo, grosso,
vencedor e temido, e portanto, em determinados momentos, representar a
positividade. Símbolos são fluidos, maleáveis, voláteis e ambígüos; se o
sistema cultural comum às sociedades complexas ocidentais é marcado – uns
mais outros menos – pelo racionalismo
e formalismo contrapondo-se
teoricamente à contradição – sendo o fisiculturismo uma expressão deste
293
processo civilizatório particular -, no caso específico dos bodybuilders ou
marombeiros tal aspecto surge portando um certo quantum de paradoxo.
Segundo Elias e Dunning (1990;1994;S/d), as sociedades complexas
ocidentais passaram por uma esportificação que, por um lado, serviu como
uma espécie de antídoto catártico para o excesso de autocontrole exigido pelo
cotidiano burocratizado e opressor e, por outro, como interiorização de regras
de diversão que passaram a circunscrever a violência em um determinado
espaço (ringues, estádios, clubes, etc) promovendo a moderação e impedindo
o amplo uso da mesma violência publicamente. Contudo, os autores também
apontam para uma regressão desse processo civilizatório; regressão manifesta
não apenas, por exemplo, pelo surgimento do nazismo, mas pela aparição
eventual dos hooligans nos estádios de futebol. Os sintomas desta regressão
talvez possam ser percebidos nos temas a serem tratados a seguir.
Quando em Agosto de 2000 efetuei matrícula em uma das academias de
fisiculturistas pesquisadas percebi que apesar dela ter o mesmo aspecto das
outras academias que haviam sido objeto de estudo para a dissertação de
mestrado – muitos pesos (anilhas), quase todas as paredes espelhadas, muitas
máquinas de musculação e fachada de cores vibrantes – algo diferente
concretizava-se nas atitudes e postura daqueles que permaneciam em seu
interior. Mulheres, quase não havia; e aquelas que lá estavam pareciam mais
travestis do que mulheres devido o excesso de massa muscular que portavam.
O ambiente rústico, um grande galpão construído no interior do que havia sido
uma ampla casa, apresentava uma ar mais pesado (como se uma briga
pudesse acontecer a qualquer momento) do que o de outras academias85;
desde o tipo de música popular que era despejada dos autofalantes nos cantos
das paredes (heavy metal, techno, rap, hip-hop e funk86, contrapondo-se ao
pop, à música baiana e à dance das outras academias)
à aparência do
professor – na realidade um instrutor, também fisiculturista, que nunca havia
85
- Os freqüentadores destas academias denominam em tom de deboche “perfumarias” as academais que
não são voltadas diretamente para o fisiculturismo. Dizem que tais academias são caras, limpas e
cheirosas mas não dão resultado nenhum. Chamam os frequentadores de tais academias de “churriados”,
“pangarés” e “merdas”.
86
- Alguns grupos de música popular que pude identificar: Iron Maiden, Sepultura, Prodigy, Run DMC, e
os chamados MCs de funk do momento. As letras dos funks e Raps produzidos nas comunidades pobres
que falam de sexo e violência, são muito apreciadas pelos freqüentadores destas academias.
294
colocado os pés em uma faculdade de educação física como orgulhosamente
gostava de falar - , uma massa de músculos com cabelos em estilo militar
descoloridos, quase brancos e arrepiados com gel, tênis Nike roxo e de cano
longo
em
forma
de
botina,
camiseta
amarela
apertada
e
rasgada
estrategicamente para realçar os músculos denominados de trapézio e dorsal,
bermuda colante de ciclista e várias tatuagens espalhadas pelo corpo: um
tubarão com a boca aberta com se fosse morder a presa no braço direito, o
símbolo do super-homem no braço esquerdo, o símbolo dos X- men tomando
quase toda a parte de trás da nuca e a figura de um cão pitbull babando na
panturrilha da perna esquerda.
A pele deste homem, no momento em que o
avistei, pareceu uma síntese do imaginário adolescente presente nos filmes de
Hollywood e revistas em quadrinhos. Seu corpo era um estandarte musculoso
da indústria cultural. Mas ele não era o único. Muitos fisiculturistas costumam
criar cachorros de raças tidas como violentas (rotwailler, pitbull, fila, etc) aos
quais dão anabolizantes e comida bastante apimentada para “ficarem nervosos
e fortes como os donos”. Certa vez, passando em frente à residência de um
fisiculturista no bairro do Grajaú, avistei um gato de tamanho desproporcional
para a espécie. Admirado, falei com o dono do animal sobre o tamanho
singular do bicho, ele disse: “é bombado! Eu dou comprimido de hemogenin
[um dos mais potentes e iatrogênicos esteróide anabolizante que existe no
Brasil] p’ra ele...vai botar até pitbull p’ra correr!”
Com o passar do tempo, as diferenças entre os tipos de academias
pesquisadas foram sendo ressaltadas. Por exemplo, as máquinas de fazer
exercícios – chamadas geralmente de “aparelhos” pelos usuários – estão
sempres sujas de graxa, nas academias dos fisiculturistas, pois os
bodybuilders limpam nelas suas mãos quando encostam, ao se exercitarem,
em alguma junção engraxada do mecanismo das mesmas. Jogar pesos no
chão produzindo grande estardalhaço e berrar na hora de levantá-los, ou berrar
palavrões após os exercícios mais difíceis, aplicar injeções de esteróides em
público – certa vez um fisiculturista saiu, de propósito e com ar de troça, do
banheiro com uma injeção de decadurabolin espetada no ombro esquerdo e
295
gritou para todos: “Bomba!!!”
87
- , dar arrotos sonoros e soltar flatulências idem
são atitudes comuns quando fisiculturistas estão reunidos para treinar. Como
manda o bom figurino acadêmico-disciplinar, o antropólogo jamais julgaria tais
atitudes como sendo de bárbaros, embora aqueles que as pratiquem
pudessem se sentir extremamente lisonjeados de assim serem chamados
nestas circunstâncias. Ser comparado a Conan O Bárbaro, personagem
interpretado por aquele que é considerado o maior fisisculturista de todos os
tempos, Arnold Schwarzenegger, ou demonstrar a frieza e a atitude rude e, por
vezes grosseira, de um Extermindaor do Futuro, filme protagonizado pelo
mesmo ator,
é uma lisonja para estes homens. Imbuídos desta força que
julgam selvagem tais indivíduos não hesitam também em utilizá-la quando
contrariados, de forma que presenciei inúmeros confrontos com empurrões e
xingamentos que acabavam em expulsão das academias ou mesmo com a
presença da polícia no recinto. Tatuagens de animais ferozes, e super-heróis
recriados pela nova mitologia capitalista, além de piercings, tênis em forma de
botina e de solado rústico, roupas rasgadas mostrando músculos e tudo o mais
que possa remeter a um sentido de força e peso aludindo ao que por eles é
considerado selvagem ou bárbaro e, portanto, valorizado. Mas isto não basta
para que se possa compreender tais atitudes.
Violência Difusa
Indivíduos manipulam códigos, fazem coisas diversas, ou as mesmas
coisas de modo diferente, segundo exista ou não determinadas pessoas no
recinto, escreve Rodrigues (1995). Este processo indica a existência de
ambigüidades semânticas ou de alternativas sintáticas pertinentes aos
87
- Um dos principais fatores de distinção deste tipo de academia para outros mais comuns é o uso
público de esteróides (doping). É constante pessoas aplicando umas nas outras, nos banheiros, vestiários
ou mesmo nas próprias salas de musculação, as injeções intramusculares de testosterona sintética
contrabandeadas, muitas vezes de origem veterinária. Mais comum ainda é a presença do esparadrapo nos
ombros indicando que aquela pessoa está recém aplicada. Ao contrário do que acontece em outras
insstituições esportivas e da forma a maioria dos frequentadores não escondem o uso indiscriminado de
drogas para adequar sua performance aos altos padrões socias hoje exigidos. Ocorre um grande
intercâmbio de informações a respeito das inúmeras maneiras de utilizá-las e de seus resultados,
engendrando um vasto saber marginal sobre os efeitos de tais substâncias. Tais usuários tornam-se
296
sistemas simbólicos. O fato de haver um grande número de semelhantes,
fisiculturistas, nestas academias faz com que o formalismo se afrouxe. Sabe-se
que em ambientes ou grupos sociais extremamente hierarquizados são
requeridos elevado grau de autocontrole por parte dos indivíduos que tendem,
então, a se expressarem com rígida aplicação de regras de pureza e
separação. A vigilância sobre os processos orgânicos e os comportamentos
menos formais torna-se alta (Douglas, 1976; Dumont, 1993; Rodrigues, Op.
Cit.). O comportamento dos fisiculturistas não é assim tão “informal” em
academias nas quais constituem minoria ou mesmo são rejeitados pelos
proprietários. Por outro lado, estes homens (e mulheres) encarnam as regras
da construção corporal calcada na muscularidade infringindo sobre seus corpos
forte disciplina. Sendo símbolos de excelência física, têm inscritos em sua pele
e músculos as estruturas objetivas e subjetivas da sociedade que buscam
afirmar, mesmo cultivando atitudes de marginalizados por esta. Seguem
códigos, com rígidas aplicações de regras alimentares, de comportamento e
exercícios, sendo a espontaneidade um luxo raro devido o supremo objetivo
que se colocam de encarnarem a forma perfeita através das suas fibras
musculares. Quando em ambiente no qual não necessitam representar o
drama das hierarquias sociais, deixam o corpo livre das regras e códigos
rígidos. A pureza reluzente, ascética e asséptica que necessitam apresentar
como imagem do poder corporal é, nestes momentos, abondonada em favor da
lassidão natural que iguala todos os seres. Porém, tal lassidão igualitária logo é
abandonada se algum ato venha a sugerir o esquecimento de que aquela
autoridade, embora suspensa, existe. Assim, assim a violência (agressões
físicas e verbais) aparece com a ultima ratio diante da ordem hierárquica
ameaçada.
Victor Turner escreveu que (1974: 133) “em quase toda parte se
atribuem às situações e papéis liminares propriedades mágico-religiosas...
freqüentemente consideradas perigosas... contaminadoras”. Há, portanto, uma
correlação entre a marginalidade social e um certo tipo de poder que difere do
utilizado nas estruturais formais de controle (Fry, 1982). A imagem do bárbaro,
especialistas testando – como foi dito anteriormente – neles mesmos os poderes químicos de tais
297
supostamente distante da racionalidade, grosseiro e violento, em certos
momentos surge no imaginário ocidental como ícone da marginalidade.
Imagem de alguém ou grupo que foge às estruturas formais de controle. Mas a
tentativa de fuga de tais estruturas pode constituir-se como movimento
deletério, perigoso, profano. Ser bárbaro pode ser estigma em determinadas
circunstâncias e sinal de status em outras88, justamente devido o fato de
apresentar este caráter deletério no sistema classificatório de uma cultura que
crê ser a única civilizada.89 Este aspecto pode justificar a busca por parte dos
fisiculturistas da aquisição de tal imagem. Aliás, o problema do estigma tão
bem analisado por Goffman (1982) alude também ao caráter dúbio que o
estigmatizado porta; se ele avisa a existência de alguém ou grupo excluído,
simultaneamente pode significar natureza sagrada ou mesmo graça divina.
Sagrado e profano em suma são complementares.
Outro aspecto a ser destacado é o da violência presente no cotidiano
dos construtores da forma musculosa. Em geral, nas academias de
musculação pesquisadas, é comum a prática de artes marciais, sendo o jiu-jitsu
e o boxe tailandês as lutas da moda nestas instituições. A busca em adquirir e
ostentar um ethos guerreiro é uma das atitudes principais da construção de
pessoa nestes grupos de adoradores da força e da forma. A masculinidade,
entendida como uma exacerbação da virilidade, deve ser constantemente
produtos. Alguns, como é de domínio público, morrem por usá-las de forma indevida.
88
- Da Matta (1987) chama atenção para a positividade do ambígüo presente na cultura brasileira. No
triângulo amoroso representado em Dona Flor e seus dois maridos a ambigüidade é lida como
complementar, sendo capaz de reunir desejo e lei, liberdade e controle, trabalho e malandragem, sexo e
casamento, descoberta e rotina, excesso e restrição. O ambígüo é assumido e até desejável, já que o ser
humano é, ele mesmo, percebido como um ser repleto de contradições.
89
- A palavra civilizado é entendida por parte da intelectualidade influenciada pelo positivismo ou pelo
hegelianismo, e grande parte do senso comum pesquisado, estando associada às idéias de progresso, de
evolução, de superioridade moral, de educação e de razão. Apesar de todo o esforço da antropologia, tal
concepção ainda reina soberana, tanto em parte significativa da academia quanto ainda mais vasta parte
do senso comum. Segundo Cuche (1999), civilização (palavra surgida na Europa iluminista do séc.
XVIII) designa o afinamento dos costumes, e significa o suposto processo - instaurado pela primeira vez
pelos “esclarecidos” – que tende a arrancar a humanidade da ignorância e irracionalidade. Diante desta
acepção, reitera-se que toda forma de governo e organização social deve pautar-se na “Razão” e nos
conhecimentos. Civilização é então definida como um processo de melhoria das instituições, da legislação
e da educação. Ela deve começar no Estado o qual deve liberar-se de tudo que é ainda “irracional” em seu
funcionamento. Finalmente, tal concepção “afirma que a civilização deve estender-se a todos os povos
que compõem a humanidade. Se alguns povos estão mais avançados do que outros neste movimento, se
alguns... estão tão avançados que já podem ser considerados como ‘civilizados’, todos os povos mesmo os
mais ‘selvagens’, têm vocação para entrar no mesmo movimento de civilização, e os mais avançados têm
o dever de ajudar os mais atrasados a diminuir esta defasagem” (Idem:22).
298
afirmada através, não apenas das posturas corporais, mas de atos, e estes
atos resumem-se às lutas em torneios e brigas de ruas empreendidas pelas
“galeras” de marombeiros que saem nos finais de semana para, como eles
mesmos dizem: “pegar mulher e brigar”, não necessariamente nesta ordem.
Tais indivíduos, todos ainda jovens, travam verdadeiras guerras com outros
indivíduos do mesmo tipo, de outros bairros e academias. Tais embates muitas
vezes acabam em morte. Quase toda segunda-feira, aparece alguém com
hematomas ou gesso em um dos braços ou pernas relatando as aventuras que
participou no final de semana na saída de alguma boate da Barra da Tijuca ou
baile funk 90. Estes indivíduos, praticantes de musculação e artes marciais, não
são necessariamente fisiculturistas, mas se auto denominam pitboys em alusão
à violência do cão usado em rinhas.
O Status da Briga
Estes comportamentos relacionados à freqüência a determinados bailes
funk e e boates e à articulação de um certo tipo de violência neles existente,
que até recentemente eram típicos das classes baixas (Diógenes, 1998;
Abramovay, Waiselfisz et Alii, 1999; Alvim & Gouveia, 2000), estão sendo
adquiridos como sinal de distinção e status, ao menos momentâneo, entre
número significativo de jovens da classe média. Os bailes funk, e toda a
indústria cultural que acompanha este movimento e o expande, têm tido como
consumidores cada vez mais freqüentes os jovens dos chamados bairros
abastados do Rio de Janeiro (Leblon, Ipanema, Barra da Tijuca, etc) que, não
raro, travam contato com os integrantes do tráfico de drogas e passam a
admirar o modus vivendi dos bandidos, tidos como símbolos de força e poder.
90
- Os bailes funk – além dos tradicionais lugares de freqüência de jovens de classe média e média alta
como as boates e bares Cozumel na Lagoa, Guapo Loco no Leblon, Nuth na Barra deTijuca e Baronetti
em Ipanema - têm sido local de ampla e crescente freqüência de jovens da classe média. Durante o tempo
que passei nas academias de musculação pude perceber que existem bailes “para brigar” e bailes “para
curtir”, onde quase não ocorrem brigas. Muitos fisiculturistas e lutadores deslocam-se da Tijuca,
Copacabana e Grajaú para clubes em Jacarepaguá e outros bairros, pois em sua maioria os bailes de clube
são aqueles onde ocorrem enfrentamentos de galeras de bairros diversos e, portanto, “onde a pancadaria
come solta”, como dizem. A territorialidade define o pertencimento do grupo em uma espécie de
afirmação geopolítica. Já os bailes de comunidade, Porto das Pedras, Morro do Cantagalo, Chapéu
Mangueira são bailes onde dificilmente ocorrem conflitos de galeras.
299
Tais jovens organizam-se em “galeras”, “gangues” ou “bondes”, grupos de um
mesmo bairro que tem por objetivo construir uma identidade através de
atividades tais como brigar com outras galeras ou bondes, fazer pegas
(corridas de carro) de madrugada e arruaça. Há grande valorização de roupas
de marca, do corpo musculoso e das lutas. Estas marcam as divisões
territoriais entre os bairros (Zaluar, 1997). Até bem pouco tempo tais atividades
eram tidas pelos analistas como sendo peculiares aos jovens das chamadas
classes inferiores em geral habitantes das favelas e comunidades carentes
(Vianna, 1997). Com a cultura funk expandindo-se a partir de meados da
década de noventa do século XX, o ethos dos dominados que dominam outros
dominados, os traficantes e bandidos, adquiriu novo impulso entre parcela
significativa
de
jovens
abastados,
freqüentadores
das
academias
demusuclação. Talvez tal processo se deva a uma possível falta de perspectiva
em relação ao futuro, ao extremo individualismo consumista que vem se
fortalecendo e, principalmente, à cultura de uma sociedade que tem sua
coesão constantemente ameaçada e que, paradoxalmente, vê no uso da
violência que a ameaça a solução de seus problemas conferindo papel de herói
a todo aquele que articula de maneira bem sucedida os instrumentos da morte:
as armas. Por outro lado, como reação a mudança crescente no mercado de
trabalho e o conseqüente enfraquecimento da ética relacionada ao próprio
trabalho, pode estar ocorrendo por parte de alguns grupos, a busca de
construção de uma identidade coletiva calcada em uma postura de resistência
às regras. Este relato de um informante é significativo:
“pior do que não ter dinheiro p’ra botar gasolina no carro ou
levar uma mulher p’ro motel é ser considerado otário, mané... sem
disposição p’ra encarar uma porradaria... neguinho vim tirar onda
com a tua cara e tu abaixar a cabeça, engolir a sugestão...
ninguém pode admitir uma coisa dessa! Por isso só ando com
minha PT [380, pistola de alta precisão]” (João, 23 anos.
Universitário).
300
Gangues,
galeras
ou
bondes são termos que necessitam ser
esclarecidos para que se faça possível um melhor entendimento do universo
das academias de musculação. No Brasil quando um estudo se refere a
gangues ele não está falando sobre as organizações criminosas com
características
empresariais
de
modelo
norte-americano;
organizações
calcadas em uma racionalidade instrumental que possibilitaria a mobilidade
social dos jovens conforme referida no trabalho de Sanchez-Jankowski (1991),
que retirou o estudo das gangues da esfera do crimonologia e do desvio
alocando-o no âmbito da sociologia das organizações e dos modos de
estruturação dos meios proletários. Os critérios de definição de uma gangue
em pesquisas americanas, tais como estrutura formal de organização,
hierarquia, liderança definida, identificação com um território, interação
recorrente, longevidade e engajamento em comportamento violento, não são
necessariamente transponíveis para a realidade brasileira, sendo que tais
características podem ser identificadas parcialmente em alguns grupos. Já o
uso da categoria galera pode estar relacionado à “galère”, noção utilizada por
Dubet (1987) em seus estudos sobre a juventude francesa. O autor pesquisou
os jovens de periferia descendentes de imigrantes que se organizam em
grupos relacionados a situações de violência. A “galère’’ é, a princípio, uma
forma de sociabilidade solta, uma forma de deixar a existência à deriva, repleta
de niilismo, autodestrutividade e raiva. Esse tipo de sociabilidade pode estar
perpassada por criminalidades intermitentes ou por marginalidades difusas (cf.
Abramovay et alii, 1999). O uso do termo pelo autor está diretamente referido
aos jovens de bairros operários envolvidos com conflitos e tensões decorrentes
da imigração, com o desmantelamento de uma possível consciência de classe,
e com a falta de perspectiva relativa ao fim da política de esquerda e a falta de
perspectiva profissional. Tais características parecem, ao menos no caso da
falta de perspectiva de alguns grupos de jovens, se adequar mais à análise do
caso brasileiro. Contudo, a aplicação do termo aqui não está diretamente
relacionada a grupos de jovens de classe baixa, como foi dito. No caso
específico deste estudo, o termo galera, eventualmente gangue, ou bonde
(termo nativo ligado aos comboios de ônibus fretados pelos funkeiros para irem
301
aos bailes) será utilizado de uma forma mais genérica para designar o grupo
mais ou menos estruturado de fisiculturistas ou marombeiros veteranos que
desenvolvem, fora das academias, desde atividades lúdicas até atos de
delinqüência – neste caso não deixando de serem tais atos lúdicos para eles –
como furtos , brigas e agressões. Os membros deste grupo mantém relações
de solidariedade à base de uma identidade incipiente compartilhada que busca,
em uma espécie de arremedo, no modelo das organizações criminosas o
paradigma de suas atividades e mesmo eventual consumo de bens simbólicos.
Tais galeras ou bondes compostos por indivíduos considerados de classe
média que, sem necessidade aparente, cometem delitos procurando imitar as
práticas e representações dos grupos delinqüentes de classe baixa, poderiam
ser consideradas uma extensão eventual da tribo dos fisiculturistas ou
marombeiros que, por sua vez, se encaixaria na definição de tribos urbanas
presente nos trabalhos de Maffesoli (1987;1995). Tais “tribos” apresentariam
um caráter volátil relacionado às suas formações identitárias. Se a tribo é
volátil, o bonde ou a galera, no caso específico deste estudo, o é mais ainda,
visto não passar de uma manifestação eventual – de final de semana ou noites
de farra – do grupo de praticantes assíduos das academias de musuclação do
Rio de Janeiro.
Outro possível aspecto inerente à esta dinâmica das culturas de classe é
aquele
proposto por Carlo Ginzburg (1986) sob o título de “circularidade
cultural”. Pensando os diferentes enfrentamentos entre cultura dominante e
subalterna e afastando a possibilidade de uma assimilação direta da cultura
dominante pelos populares, e vice-versa, Ginzburg, analisando o trabalho de
Bakhtin91, destaca que o autor exemplifica um processo de absorção de parte
da cultura popular por um homem erudito, literato e médico, frequentador da
corte – François Rabelais. Em sua obra, aparecem termos chulos, grosseiros e
obscenos, estranhos para um homem em sua posição em sua época. A
presença de tais termos está relacionada à convivência de Rabelais com o
mundo da praça pública renascentista. Esta proximidade, segundo Bakhtin,
permitiu a absorção, por parte de Rabelais, de itens culturais que não
302
pertenciam a sua classe. A partir da análise deste aspecto, Ginzburg busca
compreender o movimento recíproco e contínuo que influencia os diferentes
níveis culturais e que definirá as linhas mestras do seu trabalho sobre
Menocchio, apelido de Domenico Sacandella, o moleiro friulano, crítico da
Igreja, e que, convocado pela Inquisição, apresenta um sistema cosmológico
claro construído por vários itens reapropriados e reinterpretados da cultura
erudita da época terminando por ser queimado na fogueira por ter adaptado
abstrações filosóficas e teológicas a uma realidade refratária e fortemente
marcada pela vivência concreta e materializada dos fenômenos religiosos.
Menocchio serviu-se de algo que lhe era familiar, cotidiano, conhecido:
comparou a criação do mundo (Gênesis) com o processo de produção de
queijos relacionando os vermes à criação dos anjos92. Sendo por isso
considerado herege (Hermann, 1998; Ginzburg, 1989). Enquanto Rabelais
havia sido influenciado pela cultura da classe baixa, Menocchio o é pela alta
cultura letrada. Ginzburg escreve que, apesar desta análise ser micro-histórica,
destacando o indivíduo, ela não prescinde de maneira nenhuma da análise
conjuntural que fornece a tais agentes sua condição histórico-social. A
criatividade de Menocchio, por exemplo, só foi possível devido à Reforma e à
criação da imprensa, que expandiu a capacidade de leitura, e as
transformações da Época Moderna.
Desta forma, se indivíduos de classes
inferiores por vezes constroem sistemas culturais reapropriando-se dos itens
pertencentes às altas culturas o contrário também ocorre. A apropriação do
funk por grupos da classe média e média alta segue um processo comum dos
embates entre culturas distintas e não significa, necessariamente, que aqueles
grupos que freqüentam tais bailes e compartilham algumas representações e
práticas com os moradores das comunidades, morros e favelas, deixarão de
fato o habitus que os constitui como elementos da classe a qual pertencem.
91
- Trabalho publicado no Brasil com o título de A Cultura Popular na Idade Média e no Resnascimento.
O Contexto de François Rabelais, São Paulo: Hucitec, 1987.
92
- A cosmogonia de Menocchio pode ser resumida da seguinte maneira: no início tudo seria caos, isto é,
terra, ar, água e fogo em conjunto; deste volume se fez uma massa como o queijo se faz do leite; neste
processo nasceram os vermes, que eram os anjos, sendo Deus criado senhor entre eles com quatro
capitães, Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael; quando Lucifer se quis fazer senhor à imagem do rei, Deus
mandou que fosse expulso do Céu com toda sua ordem e companhia; então Deus resolveu fazer Adão e
303
Norbert Elias, estudando a sociedade de corte, forneceu instrumentos
eficazes
para
a
compreensão
desta
circulação
dos
modelos
de
comportamento. Se o processo civilizatório se caracteriza, a princípio, pela
difusão a toda a sociedade das proibições, censuras e controles em termos
distintivos da maneira de ser dos homens de um determinado grupo social, tal
generalização de comportamentos e condicionamentos próprios em primeiro
lugar dos dominantes (no caso do estudo de Elias, os nobres da sociedade de
corte) não deve ser entendida como uma difusão unidirecional, atingindo todo o
grupo social a partir do grupo que a domina. Ela é antes o resultado de uma
luta concorrencial que leva certos grupos dominados (no caso específico do
autor, os burgueses) a imitarem as maneiras de ser aristocráticas e que, por
sua vez, obriga os dominantes a aumentar as exigências de distinção
(civilidade, para Elias) no intuito de voltar a atribuir-lhe um valor discriminativo.
Este jogo, esta dinâmica de expropriação e desautorização, parece ser uma
forma comum a inúmeras sociedades complexas atuais de renovar as
distâncias sócio-culturais. Da mesma forma que a atração exercida sobre as
camadas inferiores da sociedade pela cultura da elite não deixa de tornar esta
cultura mais exigente, ou ao menos de tentar inovar tal exigência, tais
condicionamentos dos dominantes sobre os dominados não deixam de
provocar efeitos de retorno, que reforçam nos poderosos os mecanismos de
autocondicionamento (Chartier, 1990; Elias, 1983; 1994). Parecem ser as
camadas mais jovens das classes altas aquelas que absorvem e fazem entrar
na cultura superior os itens característicos das classes baixas, tornando-os
moda ou objeto de culto no mercado consumidor, provocando ações de repúdio
ou aceitação tácita por parte da camada da qual fazem parte. Como as classes
sociais se definem pela oposição que ocupam na estrutura social, sendo esta
posição única e não confundida com uma outra, ocorre entre elas uma relação
de forças que as atinge em todas as modalidades. Trata-se, grosso modo, de
um espaço social caracterizado por tensões entre diferentes modalidades de
poderes, cada qual atuando de acordo com lógicas que lhe são próprias e
pertencentes ao seu campo específico, formando subestruturas. Sendo assim,
Eva e toda a humanidade para substituir os anjos expulsos; a esta humanidade, que não cumpria os seus
304
o espaço das classes seria o espaço ocupado dentro da estrutura social objetiva e subjetiva – espaço este que se situa e estabelece uma posição, num
ambiente hierarquizado. Esta hierarquia, radicada na posse de determinados
capitais (econômico, cultural, social, etc), e na sua desigual distribuição no
espaço, estabelece singularidades relativas às diferentes visões de mundo
hegemônicas em seu espaço de existência , e só nele, ou seja, cada classe
produziria, e seria produzida, não apenas pela posse do capital econômico mas
pelas representações coletivas inerentes a ela. Contudo, havendo a primazia
do sistema simbólico enquanto construtor da distinção social, este sistema
estaria em constante confronto com outros sistemas reiterando a permanência
ou a renovação das relações de força que constituem a estrutura social. O que
equivale dizer que nesta estrutura ocorreria uma constante disputa pela
hegemonia que tenderia a impôr a visão de mundo da classe que a produz às
outras (Bourdieu, 1979; 2001; Nunes & Kholsdorf, 1999). A circularidade
cultural aqui citada seria um exemplo desta luta.
Portanto, é possível resumir a circularidade cultural como sendo um
processo relacionado a valores, sentimentos, idéias, visões de mundo e
práticas, vividas e produzidas por certos grupos ou classes, que são absorvidas
ou recriadas por outros grupos de uma mesma sociedade ou de outra
sociedade, em um tempo específico, ou de tempos diferentes.
Dando continuidade ao problema das gangues e galeras, Zaluar (Idem )
escreve que sejam elas de classe média ou não, espelham-se no processo
organizacional das quadrilhas de traficantes, embora com a particularidade de
não terem chefia instituída, regras explícitas (contudo as têm implícitas) e
objetivo de atividades criminais visando o enriquecimento. Porém, alguns
aspectos devem ser destacados em relação às galeras aqui analisadas, como
pode ser percebido no relato de um freqüentador de uma academia de
musculação no bairro do Grajaú:
“Eu tava no carro com uma mulher que eu tinha conhecido
e tava querendo pegar. Aí chegou um mané e emparelhou [o
mandamentos, enviou o seu filho que foi preso e crucificado pelos judeus.
305
carro dele com o meu] e começou a tirar onda com a minha cara,
tava querendo botar um pega, aí eu acelerei, ele acelerou e a
gente ficou naquela, eu passava, ele passava... de repente o cara
deu uma batida no meu para-choque, fiquei puto! Vai se fuder,
gritei. Ele me mandou tomar no cu. Ah, malandro... eu peguei a
máquina [revólver] e mandei bala p’ra cima dele, só que eu ‘tava
tão puto que mandei pelo vidro do meu carro, o cara sumiu e eu
fiquei com o vidro todo quebrado. No outro dia arrumei um
parceiro e fui procurar um carro igual ao meu para roubar o vidro,
a gente encontrou lá em Botafogo, ele abriu o carro, eu entrei e
meti o pé por dentro no vidro, ele soltou e a gente levou, mas a
cor era meio esverdeada, não ficou bom que nem o outro mas
usei assim mesmo (Carlos, 31 anos. advogado).
Este relato, um entre muitos do mesmo teor, alude ao fato de que não é
apenas a dimensão econômica, de classe social, ou a miséria que leva os
indivíduos a cometerem roubos ou mesmo assaltos, além de outros crimes.
Entre os indivíduos pertencentes à classe média, freqüentadores das
academias , pequenos furtos em estabelecimentos comerciais, roubo de
carros, uso de drogas, além da prática de “pegas”, agressões corporais e uso
de armas de fogo são práticas comuns que objetivam a aquisição de destaque
dentro do grupo. Estes aspectos transcendem as determinações da pobreza e
da exclusão social. A convivência próxima que tais jovens têm com o crime
organizado nas favelas que circundam seus bairros, convivência estreitada
pela freqüência a determinados bailes funk, os leva, muitas vezes, a verem os
líderes do tráfico como modelos de poder e paradigmas de autoridade. Somase a isso o uso e o tráfico93, por parte destes jovens, de esteróides
93
- Muitos jovens universitários que praticam musculação e fisiculturismo obtém renda significativa
vendendo esteróides e outros tipos de drogas nas academias de musculação do Rio de Janeiro. Esta nota
escrita em maio de 2002 é significativa: “Chegando à academia vejo Ricardo conversando em caráter
confidencial com um indivíduo de cabelos escuros e lisos e óculos de sol. Me aproximo e Ricardo me
apresenta a Márcio, o sujeito vende todo tipo de esteróide possível. Márcio aparenta uns 22 anos, está
vestido com uma camiseta de malha escrita Boss, calçado com um tênis Nike e usa cordão e pulseira
grossa de ouro. Chego bem na hora que Ricardo está encomendando 22 ampolas de winstrol. Percebo que
aquele é o instante para estabelecer contato com um ‘traficante’. Digo que estou interessado em comprar
306
anabolizantes proibidos por lei no Brasil, uso que pode criar um certo
sentimento de empatia pelo mundo das drogas e do tráfico. As atividades
ilícitas que os fisiculturistas praticam com suas galeras são realizadas de
maneira transitória e esporádica. Com o passar do tempo, estes indivíduos
tendem a abandonar tais práticas, ao contrário daqueles que entram para o
crime organizado, do qual só saem mortos (Zaluar, Id.ibid). Contudo, vale
destacar essa tendência crescente à apologia da delinqüência e da violência
como uma espécie de novo modus vivendi de uma parcela da jovem classe
média do Rio de Janeiro94. O fascínio pela imagem do “bárbaro” violento,
armado com seus músculos, técnicas de luta e armas de fogo diversas, que
impõe sua autoridade pelo terror, está presente no imaginário de fisiculturistas
que formam turmas e têm a marca da virilidade como espécie de ícone
sagrado. A necessidade belicosa pode ser exemplificada pelo fato de que
apenas o olhar de um homem para outro, em um recinto fechado ou mesmo na
rua ou um esbarrão não intencional, já bastam para criar uma briga, posto que
o mesmo que Ricardo. Márcio diz que tenho que dar o dinheiro primeiro e ele me traz “a parada” no dia
seguinte. Pergunto se ele só tem winstrol e ele diz que tem de tudo. Aí contigo agora? Pergunto. Ele diz
que não. No momento só tem durateston, peço para ver, ele diz para irmos ao carro do outro lado da rua.
Vou com ele até um carro Vectra todo equipado. Tentando ganhar mais tempo pergunto a ele qual
produto é melhor para fazer emagrecer além de crescer músculo. Ele diz que é o Winstrol. Ele me mostra
uma caixa de isopor cheia de ampolas de durateston já sem as embalagens. Digo que estou em dúvida que
acho que o winstrol seria melhor. Ricardo reitera que o winstrol é melhor mesmo se eu quero perder
gordura. Digo que vou ficar com o winstrol que ele não tem no momento. Márcio diz para eu lhe dar o
dinheiro. Falo (já suando frio) que só estou com cheque. Ele diz que só aceita dinheiro e que vai estar na
academia no dia seguinte pela parte da manhã e que se eu quiser é só procurá-lo. Após Márcio ir embora
pergunto a Ricardo se ele conhece o cara há muito tempo. Diz que conhece há um ano e que ele é o seu
fornecedor. Como conheço Ricardo desde os tempos da faculdade pergunto sobre a vida de Márcio, ele só
me diz que o cara vive disso, de vender ‘bomba’ para tudo quanto é academia e que ganha muito dinheiro
com isso, principalmente no verão; diz também que Márcio estuda Educação Física. Depois disso fiquei
um mês sem aparecer na academia pela parte da manhã, revezando noite e tarde até Márcio esquecer de
mim.” Tem também crescido a venda, por intermédio de farmácias virtuais, de alguns esteróides
anabolizantes pela internet.
94
- Necessário se faz reiterar que os dados de campo que apontam para a dimensão cultural da
reprodução da violência colocam em xeque as concepções do senso comum que vê na pobreza a causa
primordial da violência (Riella, 1999). É certo, porém, que os filhos da classe média carioca atual se
deparam com uma realidade econômica em crise que, não raro, os coloca em situação de maior
dificuldade econômica se comparada com a de seus pais quando tinham sua idade em décadas passadas.
Há hoje convergência entre o aspecto econômico de reorganização do mundo do trabalho – com grande
desemprego estrutural - e a dimensão simbólica que radica cidadania ao consumo de bens e serviços que
pode levar tais jovens à deliqüência da mesma forma que leva os jovens da classe baixa, não devido
necessariamente à mis éria, mas, como foi dito, à importância dada ao consumo como condição sine qua
non da dignidade social. Se, para os jovens das favelas, não raro, a violência e o crime são o único meio
de conquistar dignidade social – ainda que momentânea – para os filhos da classe média tais atividades
podem significar não única forma, contudo, a mais rápida de se destacar socialmente pela aquisição de
307
tais acontecimentos são, em geral, entendidos como desafio, invasão de
privacidade e atos de inimigos que devem ser imediatamente destruídos:
“as brigas, a porradaria começa com um olhar... o cara
encara o outro desafiando, pronto! A porrada já come solta. Se tá
olhando muito tá desafiando, tá duvidando de que tu sabe brigar
ou tá achando que tu é viado... ou então o cara te dá um esbarrão
e aí tu já sai socando... se ele olhar muito e, pior, se mexer com
uma garota do grupo também já leva porrada. Mulher dos outros
tem que ser respeitada” (Pedro, 21 anos. Estudante).
Embora não possuam uma organização com regras rígidas tais como as
regras que governam os grupos e quadrilhas do crime organizado e nem
mesmo uma chefia devidamente estabelecida, pode-se considerar que a
organização das galeras funciona, grosso modo, como a política segmentar
dos nuer estudada por Evans-Pritchard (1978). Os nuer dividem-se em aldeias
“vinculadas pela residência comum e por uma rede de parentesco e laços de
afinidades, cujos membros cooperam em muitas atividades... tendo um forte
sentimento de solidariedade contra outras aldeias”, pois têm um “sentimento
comum ligado a um território único” (Idem :127;154). As galeras de
fisiculturistas organizam-se adotando muitas vezes o nome das favelas e
morros que circundam os bairros do Rio de Janeiro dos quais estes homens e
mulheres são provenientes: “bonde do Borel”, em alusão ao morro do Boréu
situado no bairro da Tijuca, “galera do Cantagalo”, morro do bairro de
Copacabana, e assim por diante. Também os nomes dos próprios bairros
podem servir de referência. Esses grupos alimentam um forte sentimento
bairrista, unindo-se quando surgem disputas com outros grupos de bairros
rivais. Essa rivalidade confere o tom organizacional segmentar destes grupos.
Quando em um evento qualquer começa uma briga entre indivíduos de grupos
diferentes e rivais, todos os indivíduos presentes ao local e pertencentes aos
grupos em atrito entram na briga provocando pancadarias generalizadas.
bens de consumo indispensáveis para ascender à existência socialmente reconhecida (Wacquant, 2001),
308
Embora diferente, pois aplicado à dimensão política, o sistema organizacional
nuer é similarmente segmentado e acéfalo constituído por uma série de seções
opostas que se contrapõem de forma cada vez mais aguda a medida que a
distância territorial e de parentesco se concretiza. São tais oposições entre
valores rivais dentro de um sistema territorial que fazem a essência da sua
organização político-social. Enquanto entre os belicosos nuer a separação se
dá, a princípio, por seções e segmentações
que vão se ampliando em
rivalidade e se unindo em luta até chegar à disputa com o estrangeiro, entre as
galeras a segmentação principia entre academias do mesmo bairro que podem,
em uma disputa maior, estabelecer união. Grupos de uma academia contra
grupos de outra do mesmo bairro, conjunto de grupos de academias do mesmo
bairro contra outro conjunto de academias de outro bairro e assim por diante se
a circunstância sugerir. Vale ressaltar que tal processo não possui a fixidez
presente na organização social nuer onde a segmentação é muita mais vital e
necessária.
Outro aspecto organizacional que vem distinguir as galeras das
quadrilhas do crime organizado é a questão do patronímico. Se tanto a
quadrilha quanto a galera dão importância ao território, tendo este como um
dos focos organizacionais, a última organiza-se em torno de um chefe, uma
liderança criminosa (Zaluar. Op. Cit.), o que não ocorre necessariamente com
as galeras. Fernandinho Beira-Mar, Marcinho V. P., Isaías do Boréu, etc., são
nomes de líderes do tráfico tornados famosos pela ampla divulgação de suas
figuras na imprensa e mídia em geral. Tais indivíduos servem de base
representacional para organizações criminosas as quais eles comandam,
grosso modo, ao estilo da dominação carismática estudada por Weber.
Este tipo de violência acima descrito pode ser relacionado àquela citada
por Simmel em sua obra, que ressalta que o conflito é indispensável para a
unidade dos grupos sociais, mesmo a preço do aniquilamento, mas nunca da
destruição total ou do extermínio do adversário. Portanto, a luta ou o conflito
seriam condição sine qua non para a coesão social pois os grupos teriam o
interesse em manter acesa a luta, em fazer perdurar os conflitos, provocandosendo o destemor em desafiar as leis um destes itens de consumo.
309
os muitas vezes, sem pretender resolvê-los definitivamente para não ver
quebrada a unidade que os caracteriza, pois a vitória total de um grupo sobre
seus inimigos nem sempre representa uma solução de fato, por debilitar a
energia que garante a unidade do grupo, possibilitando o desenvolvimento de
forças dissolventes, que sempre estão ativas. Deste modo, pode ser prova de
articulação e habilidade política manter ou mesmo provocar a existência de
certos inimigos para manter a unidade dos membros de um grupo, e para que o
grupo continue consciente de que tal unidade constitui seu máximo interesse
vital. Em suma, o conflito (ou a luta) é considerado forma fundamental do
processo social (Simmel, 1983;1993). Assim, a segmentaridade conflituosa
presente nas academias pode ter um aspecto positivo por ser um meio do
grupo manter sua coesão, além de toda a competição formal inerente à prática
do esporte. Porém, o conflito constatado nestes grupos sociais não se resume
apenas a esta dimensão.
Violência Anômica
É necessário nos determos em uma dimensão que muitas vezes passa
despercebida àqueles que abordam o problema da violência. É comum o uso
de exemplos relacionados aos povos africanos e principalmente ameríndios –
estes últimos talvez devido o tema do canibalismo que surte um efeito
impactante sobre o senso comum - quando se fala de violência. Se nuers ou
tupinambás são usados como exemplos de culturas belicosas isso não significa
que articulem a violência com o mesmo sentido e conseqüência que os atuais
latino-americanos, europeus, asiáticos e norte-americanos, produtores e
produtos de sociedades complexas capitalistas95. O tema da violência é
polissêmico, polivalente e caracterizado por uma plasticidade de sentidos que
propicia manipulação fácil; portanto, há que ser esclarecido: se não existe
95
-A respeito da violência em sociedades denominadas de “Primeiro Mundo”, por exemplo, Wacquant
escreve: “a partir da década de 1980, a auto-imagem das sociedades de Primeiro Mundo, como cada vez
mais pacíficas, homogêneas, coesas e igualitárias – ‘democráticas’ segundo a noção de Tocqueville,
‘civilizadas’ no léxico de Norbert Elias – vem sendo destruída por explosões estrondosas de desordem
pública, por crescentes tensões etnorraciais e pelo surgimento evidente da desigualdade e da
marginalidade das metrópoles” (2001: 163).
310
sociedade sem um certo quantum de violência (Mauss, 1981; Girard,1989), foi
o Ocidente capitalista, porém, que gestou, criou e articulou a potencialização
da violência anômica que, para distinguir um tipo do outro, grafaremos com V
maiúsculo, distigüindo-a da comum. O aperfeiçoamento técnico proporcionado
por um paroxismo calculante típico das culturas ocidentais na arte da guerra e
da estratégia consolidou a lógica da dissolução da diferença na busca do total
aniquilamento do outro. Esta Violência (sempre autoritária) tem sido produto
de um racionalismo desmesurado que a tudo deseja submeter, abarcar e
controlar. Neste movimento peculiar, a alteridade é traduzida enquanto ameaça
à identidade. Nesta lógica, o inimigo não deve ser assimilado, mas destruído,
aniquilado,
exterminado;
e
as
nações
denominadas
“desenvolvidas”
alcançaram durante o século XX, pela primeira vez na história, o ápice do
“desenvolvimento técnico dos implementos da violência [a]o ponto em que
nenhum objetivo político poderia presumivelmente corresponder ao seu
potencial de destruição, ou justificar seu uso efetivo no conflito armado”
(Arendt, 1994:13).
Para percebermos as sutilezas que separam a violência constitutiva de
todas as organizações sociais e a Violência que ameaça a própria dissolução
da sociedade, necessário se faz remeter a estudos inovadores sobre a
antropologia
política.
É
interessante
que
as
sociedades
que
se
autodenominaram civilizadas, evoluídas e que reivindicaram o título de
portadoras do progresso para o aprimoramento dos “povos bárbaros” tenham
materializado em suas próprias ações o significado da palavra barbárie
(significado que elas mesmas forjaram para se distinguirem dos “outros”)
engendrando, pela primeira vez na história, carnificinas traduzidas em
etnocídios
e
genocídios:
o totalitarismo é um fenômeno de origem
eminentemente ocidental (Arendt, 1989)96, que parece ter sido exportado para
outras culturas.
Segundo atestam as inúmeras etnografias, em nenhuma sociedade
ameríndia, por exemplo, a Violência existiu a ponto de colocar em risco a
96
- “Os campos [de concentração] destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres
humanos, mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente
311
existência da estrutura social. Os tupinambá, amplamente conhecidos pela sua
belicosidade e canibalismo, articulavam tais práticas em um processo de troca
que era constitutivo de sua harmonia social. Se a guerra era violenta ela não
portava Violência, pois seu propósito era alimentar a ordem cosmológica,
absorver a alteridade tida como honrosa e, portanto, jamais passível de ser
destruída. A existência da diferença e da alteridade era essencial para a
própria existência tupinambá :
“‘a teologia’ de alguns povos tupis formula-se diretamente
nos termos de uma sociologia da troca: a diferença entre deuses
e homens se diz na linguagem da aliança de casamento, aquela
mesma linguagem que os tupinambá usavam para pensar e
incorporar seus inimigos... é a troca não a identidade o valor
fundamental a ser afirmado... guerra mortal aos inimigos e
hospitalidade
entusiástica...,
vingança
canibal
e
voracidade
ideológica exprimiam a mesma propensão e o mesmo desejo:
absorver o outro e, neste processo, alterar-se. Deuses,
inimigos,
europeus
eram
figuras
da
afinidade
potencial,
modalizações de uma alteridade que atraía e devia ser atraída;
uma alteridade sem a qual o mundo soçobraria na indiferença
e na paralisia. O outro não era um espelho, mas um destino
(Viveiros de Castro, 2002b: 206-7e220”. Grifo nosso).
Longe de destruir o outro, a guerra entre os tupinambá era um processo
constitutivo de sua própria existência (Fernandes, 1970); ela não visava,
portanto, aniquilar a alteridade, mas estabelecer uma relação de troca com o
inimigo que sempre era digno de honra e respeito 97. Tal inimigo era morto e
devorado em um movimento ritual (exocanibalismo) no qual esperava-se que
seus parentes o vingassem matando e devorando, num ritual similar e honroso,
aqueles que mataram e devoraram seu parente ou semelhante guerreiro:
controladas... da transformação da personalidade humana numa simples coisa” (Arendt, 1989:489.
Grifo nosso).
97
- Observa-se que a barbárie é, portanto, uma representação criada pelas culturas ocidentais e que ela se
aplica a princípio àqueles que já, apresentando a tendência de praticá-la, inventaram-na para classificar o
outro.
312
“A
religião
tupinambá,
radicada
no
complexo
do
exocanibalismo guerreiro, projetava uma forma onde o socius
constituía-se na relação ao outro, onde a incorporação do outro
dependia de um sair de si – o exterior estava em processo
incessante de interiorização, e o interior não era mais que
movimento para fora... tratava-se, em suma, de uma ordem onde
o interior e a identidade estavam hierarquicamente subordinados
à exterioridade e à diferença, onde o devir e a relação
prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse tipo de
cosmologia os outros são uma solução, antes de serem – como
foram os invasores europeus – um problema”. (Viveiros de Castro,
Op. Cit.:221)
O inimigo, era absorvido, transformado, em um ser à imagem dos
tupinambá. Este processo se realizava com o cativo sendo depilado e pintado à
moda da casa (quando era europeu), comia e bebia com seus captores,
dançava e acompanhava-os à guerra e a ele, cativo, era dada uma esposa, o
que o transformava em cunhado daqueles que o matariam e comeriam. Desta
forma, o exocanibalismo guerreiro era uma empresa de socialização do
inimigo. Longe de retirar a dignidade e a honra do outro, seu antagonista, os
tupinambá, queriam certificar-se que aquele que seria morto entendesse e
desejasse o que estava acontecendo consigo (Viveiros de Castro, Idem .).
Ao contrário da Violência típica das sociedades complexas, a guerra
tupinambá não era feita com o objetivo de enriquecimento, anexação de
propriedades ou conservação de território, mas unicamente pela honra; um
sentido de honra que estava diretamente relacionado a outro, o de vingança.
Esta vingança, por sua vez, relacionava-se com a concepção guerreira de que
“a morte em mãos alheias era morte excelente porque era
morte vindicável , isto é justificável e vingável; morte com sentido,
produtora de valores e de pessoas...morrer em mãos alheias era
313
uma honra para o guerreiro, mas um insulto à honra de seu grupo,
que impunha resposta equivalente. É que a honra, afinal,
repousava em se poder ser motivo de vingança, penhor do
perseverar da sociedade em seu próprio devir. O ódio mortal a
ligar os inimigos era o sinal de sua mútua indispensabilidade”(Id.
Ibid.: 233-4).
O sistema exocanibalista consumia indivíduos para que a sociedade
mantivesse aquilo que lhe era essencial: sua relação com o outro. E este
deveria sempre ser respeitado e honrado já que a existência dele, e da sua
diferença, eram essenciais para a existência do “eu” ou do “nós”. Devia-se,
portanto, esperar a contrapartida do inimigo e encará-la com honra, pois o dom
no sistema exigia também morte igual daquele que matava. Na hora de sua
morte, o cativo, de maneira orgulhosa e destemida, afirmava sua condição de
matador e canibal, evocando aqueles inimigos que havia morto em
circunstâncias semelhantes as quais se encontrava naquele momento e
reivindicava, em uma espécie de eterno retorno nietzscheano, a vingança
daqueles que, com a sua morte, estavam se vingando das mortes que outrora
ele havia provocado: “o passado de vítima foi o de um matador, o futuro do
matador será o de uma vítima; a execução iria soldar as mortes passadas às
mortes futuras, dando sentido ao tempo” (Id. Ibid.:238).
O modus operandi da violência nestas sociedades “primitivas”, portanto,
articula-se enquanto manutenção da própria ordem social (Clastres, 1989) 98 ao
contrário da violência anômica (Violência) existente nas sociedades complexas
como a brasileira. Este aspecto pode ser aplicado ao entendimento da
Violência presente, por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro. A expansão, na
cidade, do mercado das drogas, com a inserção da cocaína na década de
oitenta e o aumento do tráfico de armas, potencializaram a violência de forma a
torná-la um risco para a manutenção da organização social. Contudo, parece
98
- Para Clastres, a chefia amazônica funda-se sobre o consenso do grupo; este, para precaver-se contra
uma possível violência abusiva que o exercício do poder pode implicar, escolhe, mais ou menos a
contragosto, um homem marginalizado e moderado, que possa proteger a sociedade da eventualidade de
transformar-se
em
Estado.
314
que o aumento de ambos os tráficos são sintomas de um processo de longa
duração inerente a determinadas sociedades ocidentais somados a tradições
culturais que têm no apadrinhamento, na corrupção e na transformação do
mundo e do outro em coisa o seu sustentáculo.
O seguinte relato colhido em uma academia do Grajaú é sugestivo:
“ Eu detono aquele que me desafia... se alguém é alemão
[inimigo] eu pego para matar, não quero nem saber, se saio na
night então é festa total! Outro dia descarreguei [ a arma] em cima
de um otário, tava no carro e vi o mané na rua... eram duas e
pouca da manhã, ele tinha mexido com minha mina no baile e aí
eu ia enfiar a porrada nele, mas ele sumiu com uma galera no
clube, e eu não vi mais, ah, meu irmão, tava passando no carro e
vi
o otário com outro babaca andando na rua, diminui a
velocidade, cheguei pertinho e mandei bala em cima dos dois não
sei nem o que deu, saí a mais de cem, sumi... como tava escuro e
não tinha ninguém na rua, acho que ninguém viu...” (Paulo, 27
anos. Advogado)99.
99
- A manipulação da identidade é percebida no uso da linguagem relativo ao contexto social na qual o
autor está inserido. A linguagem deste advogado – eivada de itens pertencentes ao sistema linguístico das
favelas cariocas – só é possível ser compreendida se for tomada pela perspectiva daquele que a profere,
na circunstância que a profere: indivíduo pertencente a uma classe superior, e portador de capital cultural
legitimado (Bourdieu, 2001; Goffman, 1982). Por outro lado, tal manobra apresenta aquele caráter que
Bourdieu, escrevendo sobre a apologia que alguns intelectuais fazem sobre o colorido da linguagem do
gueto, tão bem frisou em seu livro Meditações Pascalinas (Op. Cit.: 93) : “ em lugar dos alunos de escolas
de elite, a linguagem inventiva e cheia de colorido, logo capaz de propiciar intensas satisfações estéticas,
dos adolescentes do Harlem permanece inteiramente desprovida de valor nos mercados escolares e em
quaisquer situações sociais análogas, a começar pelas entrevistas de empregos... o culto da ‘cultura
popular’, não passa, no mais das vezes, de uma invenção verbal e inconseqüente, portanto falsamente
revolucionária... essa maneira um tanto confortável de respeitar o ‘povo’, contribuindo, sob a aparência de
exaltá-lo, para encerrá-lo ou enfurná-lo no que ele é... acaba proporcionando todas as benesses de uma
ostentação de generosidade subversiva e paradoxal , deixando as coisas como estão, ou seja, uns com sua
cultura (ou língua) realmente cultivada e capaz de absorver sua própria subversão elegante, outros com
sua cultura ou língua destituídas de qualquer valor social ou sujeitas a brutais desvalorizações”. Esta
“hipocrisia douta ou esteticismo populista” também muito presente entre alguns antropólogos e
sociólogos que estudam as manifestações folclóricas - maracatu, jongo, hip- hop, etc. – (e entre alguns
políticos autodenominados de “esquerda” que utilizam a miséria alheia para se promover) surge enquanto
manifestação de um processo por vezes comum ao campo acadêmico e político que denega e ignora, no
seu inconsciênte escolástico, o processo de apologia e manutenção das desigualdades que esta própria
apologia à diferença e a igualdade articula. Esta circularidade cultural que supostamente exalta a cultura
popular, não raro o faz com a intenção de manter o status de sua posição analítica e segura, e também o
sentimento, mesmo inconsciente ou recalcado, de superioridade confortável daquele autorizado
institucionalmente a emitir discursos e julgamentos sobre os sofredores e inferiores do qual se arroga
315
A violência acima descrita carece de reciprocidade ou de vindicabilidade
tornando-se gratuita e vazia. Ela denuncia a presença do alto risco embutido
em qualquer relação social envolvendo a diversidade cultural atual (Beck,
1996) a qual permite que o medo e sua dissimulação através da reação
violenta, ou do porte ilegal de armas de fogo, perpasse as interações,
instaurando a concepção de que qualquer um pode ser um inimigo em
potencial. O sentimento generalizado de medo é o reconhecimento do grau de
risco real das relações em que as pessoas se tratam não como semelhantes,
mas como coisas (Machado, 2003). As relações sociais nas quais a violência
anômica se faz manifesta têm estado presente no cotidiano daqueles que
vivem nos grandes centros urbanos. No dia a dia das academias de
musculação e fisiculturismo o processo não é diferente 100. Apesar de ser um
como porta-voz eventual, retirando desta profissão de “bom samaritano” suas regalias materiais ou
simbólicas, sua posição privilegiada no campo acadêmico, jornalístico ou político. Necessário se faz,
portanto, uma constante crítica da crítica cujo objetivo seja compreender, em um processo de análise que
Nietzsche (1988) denominou genealogia da moral, as intenções, a vontade de poder, que sustenta
subrepticiamente um discurso que se diz e se quer piedoso e igualitário: “ pois todo impulso ambiciona
dominar: e portanto procura filosofar... uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a
própria vida é vontade de poder...toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma
máscara” (1993: 13, 20, 193).
100
- Nas academias, os praticantes de jiu-jitsu, (fisiculturistas, veteranos ou não), são os que enumeram o
maior número de confusões com agressões físicas ou homicídios. O Rio de Janeiro é a capital nacional
dos praticantes de tal arte marcial. Em 1999 existiam mais de 400 academias que ensinavam jiu-jitsu; o
maior número em todo país (Veja, 3/02/ 1999). No verão do mesmo ano, em um espaço de poucos
meses, a imprensa noticiou a morte de duas pessoas envolvidas em brigas provocadas por lutadores dessa
arte marcial. A identificação destes jovens se realiza não apenas pelas tatuagens de animais ferozes ou
tribais – com motivos balineses ou pré-colombianos, mas pelas orelhas deformadas pelo constante atrito,
nos treinos diários, com a lona do tatame. Atrito provocado por gravatas e chaves de perna. A cartilagem,
fraturada e esfarelada por tal atrito, conforme cicatriza deixa a orelha semp re mais torta do que era antes
pois ela fica inchada e disforme sem suas divisões características. Por isso, o apelido dos lutadores de jiujítsu é “orelhas de repolho”. Estas orelhas são insígnias entre os freqüentadores dos tatames, verdadeiras
medalhas que conferem maior destaque àquele que ostentar o pavilhão auricular mais devastado. O culto
à agressão gratuita é outra característica deste grupo: “Se o camarada fica me olhando, vou lá perguntar o
que é. Dependendo da resposta, arrebento a cara dele” (Rodrigo. 19 anos. Estudante). Além das tatuagens,
outra característica desta “tribo urbana” são os dedos levemente tortos com nódulos nas juntas de tanto
dar socos, a mão calejada de musculação e a cabeça raspada ostentando apenas um topete. Estes jovens
vão a boates e bailes nos finais de semana com o intuito de brigar. Toda segunda-feira é possível
encontrar nos vestiários das academias integrantes deste grupo contando suas proezas. Vão aos bailes em
bando, dirigindo suas caminhonetes – este é outro objeto de adoração desta tribo que preza carros grandes
e fortes -, apressam-se em consumir bebidas energéticas à base de cafeína e aminoácidos misturadas com
uísque e vodka; quando já estão agitados começam a mexer e agarrar as mulheres e aí então inicía-se a
pancadaria. Freqüentemente acabam nas delegacias de polícia, mas como são de classe abastada nada a
eles acontece, pois subornam policiais ou ligam para pais e conhecidos influentes que os soltam. São
também aficcionados por campeonatos de vale-tudo (comp etições em um ringue em que só é proibido
enfiar o dedo no olho do adversário ou mordê-lo) e lutas de boxe.
316
esporte no qual não existe contato e a competição é estilizada a um nível de
abstração singular, a prática do fisiculturismo muitas vezes tem sido utilizada
por alguns indivíduos com o intuito de otimizar a prática da Violência.
De acordo com Elias e Dunning (1994), o surgimento do esporte
representou um item singular do processo civilizatório, peculiar às sociedades
ocidentais, no qual o controle dos enfrentamentos, da brutalidade e da violência
destrutiva se manifestou por intermédio da codificação de regras. Estas
estabeleceram que os embates entre indivíduos e equipes deveriam se realizar
sem colocar em perigo os corpos e as vidas produzindo, pari passu, uma
tensão prazerosa através do relaxamento modulado das pulsões emocionais. O
conceito de civilizado – ou de processo civilizatório ou civilizador - nesta
abordagem nada tem do etnocentrismo peculiar às tradições positivistas;
busca apenas destacar as estratégias sociais de longa duração visando a
criação de dispositivos de regulação e de controle das pulsões de confronto
(Chartier, 1994; Elias, 1993). Esta busca de liberação controlada das emoções
parece indicar que as
sociedades ocidentais empreenderam estratégias de
manutenção de domínio sobre os perigosos vetores pulsonais destrutivos
presentes em grupos que desde o início de suas existências buscaram
desenvolver um racionalismo gradativo que, paradoxalmente, ao dominar o
mundo corria o risco de perder o controle deste mesmo domínio. Elias, herdeiro
de uma tradição sociológica alemã anti-hegeliana, compreendia que o processo
civilizatório não se apresenta como sinônimo de história-progresso, mas sofre
retrocessos que podem ser observados ao longo da história como demonstra o
exemplo do nazismo (Elias, 1996).
Ao que parece, este retrocesso vem ocorrendo desde pelo menos o
início do século XX, sendo ele mesmo o produto de um movimento histórico de
longa duração característico daquelas sociedades que se tornaram, ou ao
menos tiveram por intenção se tornar, democracias burguesas. Assim, a
violência presente nas academias pode ser um sintoma de uma situação muito
mais ampla que se reflete e reproduz no funcionamento destas instituições de
culto ao corpo e à forma: a situação de violência pervasiva ou difusa aqui
denominada Violência.
317
Há que se esclarecer as sutis modulações relacionadas às categoria de
poder e violência. Pode-se considerar, grosso modo, poder como a forma de
exercício da dominação que se caracteriza pela legitimidade e pela
capacidade, proporcionada por esta, de negociar o conflito e estabelecer o
consenso, ou seja, o poder é a possibilidade que tem o indivíduo ou o grupo de
realizar sua vontade. Ele - o poder - necessariamente estabelece e se baseia
na coerção simbólica (Weber, 1995; Bourdieu, 1987), esta sedimenta a
organização social fazendo com que um grande número de pessoas siga,
obedeça, um número menor. Por sua vez, a prática que concretiza o processo,
reproduz a dimensão simbólica que o organiza. Eventualmente, a coerção
física é utilizada para reiterar esta ordem, sendo que a intensidade de tal
coerção deve estar em harmonia com a legitimidade do sistema simbólico que,
por sua vez, tautologicamente a legitima. O aumento de intensidade da coerção
física é proporcionalmente inversa à coesão sustentada pela coerção
simbólica; o que significa dizer que a desmesura da violência física representa
um sintoma de esgarçamento do tecido social e, paradoxalmente, a piora desta
condição, haja visto que, quanto mais violência física se utiliza, menos
legitimidade se tem (Arendt, 1990; 1994; Riella, 1999). A solidez do poder e da
coesão social, portanto, estaria assentada sobre dispositivos disciplinares
apreendidos pelos indivíduos em um processo de inculcação institucional que,
atuando no inconsciente coletivo, reproduziria a hierarquia da sociedade (Elias,
1983; Bourdieu, Op. Cit.). Quando a intensidade da violência material se
expande, chegando ao limite de ameaçar as condições de sobrevivência dos
grupos sociais, ela representa a anti-relação ou a “relação social inegociável”
(Riella, Idem :137), estabelecendo o fato de que a ordem social se debilita
quando se debilitam suas formas efetivas, simbólicas, de controle social.
Um fator primordial de manutenção da coesão social é a dádiva, ou que
Mauss denominou o dom (Mauss, 1974). O caráter precípuo da experiência do
dom é a sua ambigüidade: de um lado, esta experiência é, ou pretende ser,
vivida
como rejeição do interesse, do cálculo egoísta, como exaltação da
generosidade, da dádiva gratuita e sem retribuição; de outro, nunca exclui
318
completamente a consciência da lógica da troca101 que é a de retribuir a
dádiva, em um ato de gratidão, seja de que tipo for, quando o momento
propício surgir (Bourdieu, 1996a). O Dom, enquanto ato generoso, gratuito e
teoricamente sem retribuição necessária, estabelece-se (se for tomada a lógica
econômica do lucro capitalista) como economia antieconômica que não se
pauta sobre a prática do cálculo racional e, portanto, necessariamente
consciente 102. Desta forma, a disposição calculista que surge com o
racionalismo ocidental é a antítese perfeita da disposição generosa,
ameaçando-a. De acordo com Weber, a ação econômica capitalista se define
como aquela
“que repousa sobre a esperança de um lucro pela
exploração de possibilidades de troca, isto é, sobre chances
(formalmente) pacíficas de lucro... o que conta é que uma
estimativa do capital seja feita em dinheiro... o importante para
nosso conceito, o que determina aqui a ação econômica de forma
decisiva, é a tendência efetiva a comparar um resultado expresso
em
dinheiro
com
um
investimento
avaliado
em
dinheiro”
(1985:12).
A ordem econômica e social radicada na calculabilidade e na
previsibilidade que transforma os seres humanos, como escreveu Mauss, em
“máquinas de calcular” (Op. Cit.: 177) apresenta a tendência à dissolução
sistêmica, posto que retira da ordem social o espírito de generosidade e,
portanto, de coesão. O individualismo racionalista retirou o interesse na
generosidade ao postular que o egoísmo individual serviria de base ao bem
comum propiciando que a lógica da economia econômica capitalista invadisse
as dimensões das relações sociais onde até então reinava a economia
interessadamente desinteressada do dom ou dádiva (Weber, 1995; Bourdieu,
101
- A troca é fator primordial de manutenção da sociedade: “ toda cultura pode ser considerada como um
conjunto de sistemas simbólicos em cuja linha de frente colocam-se a linguagem, as regras matrimoniais,
as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião” (Lévi-Strauss, 1974: 9).
102
- Mauss escreve : “Foi preciso a vitória do racionalismo e do mercantilismo para que fossem postas em
vigor e elevadas à altura de princípios as noções de lucro e de indivíduo” (1974:176).
319
Op. Cit.). Este processo de busca suprema pela autosatisfação, reiterada hoje
pelo consumo de bens, acaba por transformar relações sociais – e o corpo do
outro -
em relações de vantagens. Tal fetichismo da mercadoria103 (Marx,
1983) termina por reencantar no consumo o desencantamento que Weber
(1981) havia ressaltado como o próprio produto do capitalismo no qual a
própria relação coisificada com o próximo produz. Em suma, a calculabilidade e
a razão instrumentalizada inerente aos negócios empresariais transbordou para
o cotidiano, para a vida particular (Marketing Pessoal) levando as relações a se
manterem na efêmera superficialidade das aparências (Luz, 1999). A
transposição da economia do lucro para as dimensões às quais ela não está
adequada vem engendrando uma não-relação ou mesmo uma anti-relação.
O uso do outro como meio de satisfação (objeto do qual deve-se extrair
um determinado lucro para depois ser abandonado em detrimento de outro
objeto) alimenta esta formação crescente da Violência. Tal característica vem
tomando feição singular na atualidade devido a fatores relacionados à
mundialização do crime organizado, à diminuição das relações de trabalho e à
globalização cultural, além do enfraquecimento do Estado. Os tradicionais
mecanismos disciplinares estudados por Foucault (1987;1993;1997) estão
gravemente debilitados104, perdendo sua eficácia, justamente pela falta de
crença coletiva nas instituições que os aplicavam. Assim, o retrocesso da
dominação institucional – percebida pela tentativa desesperada por parte dos
governos de todo o mundo em aumentar a repressão à violência utilizando a
103
- “A forma mercadoria... não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que
para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (Marx, 1983:71).
104
- Não é prudente, contudo, confundir - como fazem alguns - os estudos de Foucault sobre a sociedade
disciplinar e o processo civilizatório de Elias. Parece que para Foucault o surgimento da disciplina
apresentava, desde o início, a tendência de produzir efeito contrário àquele proposto inicialmente. Se, por
exemplo, as instituições disciplinares como o manicômio e a prisão propunham-se – e ainda se propõem –
recuperar o louco e o delinqüente, não é isso que produzem: “a organização de uma penalidade de
enclausuramento... é enigmática. No exato momento em que era planejada, constituía também o objeto de
violentas críticas... formuladas a partir de todos os disfuncionamentos que a prisão[, por exemplo,] podia
induzir no sistema [visto que esta instituição] impede o poder judiciário de controlar e aplicar as penas. A
lei não penetra nas prisões... a prisão misturando os condenados... constitui uma comunidade homogênea
de criminosos que se tornam solidários no enclausuramento e ... no exterior . A prisão fabrica um
verdadeiro exército de inimigos interiores... os hábitos de infâmia que marcam as pessoas que saem da
prisão fazem com que sejam definitivamente fadadas à criminalidade. Logo, a prisão [e o mesmo pode ser
dito do manicômio] ... fabrica aqueles que essa mesma justiça mandará encarcerar, uma ou mais vezes”
(Foucault, 1997: 29-30). Assim, ao contrário de integrar os excluídos, tais instituições tenderiam a excluílos de forma mais eficaz.
320
própria violência (Paixão, 1994; Riella, 1999; Wacquant, 1999) - sugere o
fortalecimento da violência difusa, concreta (Violência), já que os instrumentos
da dominação institucional radicados na violência simbólica perdem sua
eficácia. O autocontrole das paixões e dos medos produzido pelo processo
civilizatório se dissolve fazendo retornar a disputa aberta calcada na busca
desenfreada de prestígio social, bens materiais e gozo a todo custo.
O fisiculturismo pode ser classificado como um exemplo de esporte no
qual o controle da violência se manifestou de forma efetiva. Sem contato físico,
com competições baseadas na performance estética dos participantes e com
uma descarga de energia voltada contra os pesos e o próprio corpo, tal prática
seria o exemplo de disciplina e autocontrole que objetivaria criar cidadãos
altruístas e equilibrados. De fato, todo o discurso presente em livros e
publicações voltadas para a musculação ressaltam tal característica105. Como
explicar que, ao menos em parte significativa das academias do Rio de Janeiro,
a violência esteja tão presente escapando mesmo ao controle ?
Dunning, em seu estudo sobre os violentos torcedores hooligans
escreve que a maior parte dos componentes destes grupos de jovens
desordeiros advém dos extratos inferiores das classes baixas inglesas.
Excluída e marginalizada esta parcela da sociedade estaria apartada do
processo de civilização pertinente aos outros grupos sociais. Devido a tal
exclusão, que não teria permitido a interiorização do controle necessário da
agressividade, este grupo construiría a violência enquanto valor social,
respaldando a concepção de status inerente àqueles que se vêm, e desejam
105
- No editorial de uma das principais revistas de fisiculturismo, publicada pelo mega empresário do
bodybuilding e fitness Joe Weider, vendida em quase todo o mundo está escrito: “strive for excellence,
exceed yourself, love your friends, speak the truth, practice fidelity, and honour your father and mother.
These principles will help you master yourself, make you strong, give you hope and put you on the path to
greatness.” (Muscle and Fitness, sept. 1998: 12). Fato é que nos últimos 20 ou 30 anos pode ter ocorrido
uma mudança significativa nas práticas de adeptos do fisiculturismo e dos esportes de academias em
geral; práticas que têm se radicado em uma cultura das sensações e não dos sentimentos. Cultivar a forma
musculosa pode ter deixado de ser o símbolo da disciplina e reprodução de projetos pessoais ligados ao
coletivo (família, amizade, honra à tradição, etc.), passando a ser a busca solitária pela imagem refletida
na beleza, na categoria saúde e na juventude consideradas itens fundamentais para o consumo
individualista da existência. Os mandamentos acima talvez reflitam uma ética que já não mais funciona
na prática das academias. Tal aspecto pode ser percebido pelas análises de antigas revistas de
fisiculturismo da primeira métade do século XX. (La Culture Physique. Paris: 11e année. N. 216 1.er
janvier 1914; Charles Atlas. Salud y fueza perdurables, NY. 1947; Howett, George. How to Achieve
Nerves of Steel Muscles like Iron. New York: The Jowett Institute of Phisical culture, 1950).
321
ser vistos, como outsiders (Dunning, Murphy & Willians,1994), em consonância
com o fato de que tal postura liminar e antiestrutural confere sentido de poder
aos que a sustentam. Contudo, os freqüentadores de academias de
musculação e fisiculturismo aqui estudados são, em sua maioria, provenientes
do que se pode denominar camadas médias urbanas, como dito anteriormente.
Em vez de serem excluídos por forças estruturais de carência ou impedimento
institucional, estes jovens cultivam o fascínio da condição de excluído tendo,
porém, como fiduciário a sua condição de pertencentes a um extrato social
brasileiro que, apesar de ter sofrido redução em seu poder aquisitivo nas
últimas décadas, ainda se mantêm, mutatis mutandis, como superior. O
seguinte acontecimento, registrado em meu diário de campo, em outubro de
2000 em uma academia do bairro da Tijuca pode sugerir tal concepção:
Chego à academia, são 15:49. Este horário ainda
apresenta um número reduzido de freqüentadores; eles vão
chegando gradativamente até que às 18:00 todas as salas de
musculação e ginástica estão superlotadas de corpos suados,
barulhos do ferro dos pesos em colisão e o falatório geral. Mais ou
menos as 16:10 chega Daniel, um fisiculturista que veio de São
Paulo com sua namorada e que agora está morando em um
apartamento no bairro do Estácio. Daniel parece bastante irritado.
Penso: deve ser por causa dos esteróides. A testosterona deixa o
usuário mais irritado que o normal. Logo percebo que não é o
efeito colateral dos anabolizantes que o deixa assim, mas que
algo de errado aconteceu entre ele e outro rapaz de nome
Gilberto. Pergunto à Glória, a recepcionista, o que está
acontecendo. Ela diz: “Hoje vai ter briga aqui... o Daniel está
aborrecido com o Gilberto por que ele andou dizendo que o Daniel
tá saindo com a Carla, e a mulher dele (do Daniel), parece que
ficou desconfiada e brigou com ele”. Quando Gilberto chega
Daniel vai tomar satisfações e rapidamente surge uma discussão
entre os dois repleta de acusações e impropérios. Gilberto agride
322
o outro que se atraca com ele, mas apesar da audácia, ele é
menor e mais fraco; os dois caem por cima dos aparelhos e a
gritaria e o alvoroço é geral. Na mesma hora fico pensando no
perigo que me ameaça, já que logo vão me pedir para ajudar a
separar a contenda entre os dois brutamontes. Mas felizmente
não é preciso, Gilberto joga uma anilha de 10 quilos no pé de
Daniel e sai correndo com a camiseta rasgada em direção à rua,
fugindo. Daniel diz que não está machucado e fica tentando
explicar para todos que estão chegando, sem saber de nada a
respeito do ocorrido, o motivo da agressão. Quando eu já
pensava que Gilberto havia sumido e que provavelmente não
apareceria mais na academia, pelo menos durante uns bons
meses, ele reaparece com três camburões da Polícia Militar.
Destes descem seis soldados e um oficial (um capitão) que é
quase idêntico ao Gilberto – obviamente irmão gêmeo dele. Os
policiais, dois portando fuzil, um com uma pistola em punho e o
oficial segurando algemas, entram na academia em busca de
Daniel que não tem como escapar. O irmão de Gilberto dá voz de
prisão a Daniel dizendo: ah, você que é o valentão, né? Vai tomar
porrada p’ra ver o que é bom. Um dos soldados mantém
constantemente o fuzil apontado para ele. O capitão então
desfere um tapa no rosto de Daniel, algemando-o com as mãos
para traz. Como as algemas ficam muito apertadas, Daniel
reclama, o que apenas agrava sua situação, pois o sósia fardado
de Gilberto aperta ainda mais as pulseiras de aço, levando o
fisiculturista para a caçapa do camburão parado na calçada em
frente à academia. Vão todos para a delegacia. Após este
acontecimento Daniel sumiu da academia. Encontrei com ele no
Estácio, por acaso, em uma tarde de domingo. “Viu só o que
aquele otário fez comigo? Ele se garante na familiazinha dele, por
isso que é folgado, ele deu parte de mim e naquele dia fiquei a
noite toda na delegacia, mas tudo bem agora tô malhando lá na
323
Neves; o pior é que não posso fazer nada com aquele mané, por
que a polícia tem meu endereço, telefone, tudo...”
A prática da musculação, em determinadas circunstâncias – assim como
a prática das chamadas artes marciais -, pode servir de instrumento para a
potencialização da agressividade e expansão de um egocentrismo fadado a
não perceber “que o mundo não foi feito para nossa conveniência pessoal”
(Lasch, 1995:278). Diante disto, o domínio das técnicas corporais do
fisiculturismo (do mesmo modo que as técnicas das artes marciais) podem ser
um exemplo de desvio de propósito que caracteriza um possível retrocesso
civilizatório atual. Se os indivíduos pertencentes às camadas médias urbanas
não passam pela privação direta dos meios de sobrevivência ou pela exclusão
institucional, eles, ao menos neste caso, cultivam um certo fascínio que a
marginalidade supostamente confere àqueles que dela se utilizam.
Tal atitude de amor à marginalidade e ao poder que dela emana, talvez
seja exacerbada pelo tradicional autoritarismo característico das relações
cotidianas no Brasil. Se a lógica do “sabe com quem está falando” está
presente em várias circunstâncias da vida nacional, no caso específico das
academias de musculação ela se faz ainda mais atuante. Não é incomum
acontecer, por exemplo, de alguém com aparência mais fraca – um neófito ou
freqüentador pouco musculoso – ser impedido (apesar de pagar as mesmas
mensalidades que os veteranos e fisiculturistas) de fazer exercícios em
determinadas máquinas ou pesos pelo simples fato de haver um ou mais
“influentes” no campo (fisiculturistas ou veteranos) monopolizando tais
aparelhos. É cena comum nas academias – principalmente a partir da
primavera em diante – grupos de veteranos e fisiculturistas encostarem-se em
aparelhos ou carrregarem pesos para o local no qual estão reunidos impedindo
assim qualquer indivíduo que não pertence ao mesmo grupo, utilizá-los. Tal
aglomeração de seletos cultuadores dos músculos também impede o trânsito
de
pessoas
comuns
nos
recintos.
Muitas
vezes
observei
indivíduos
exercitando-se em abdominais a principal passagem de entrada e saída das
academias impedindo o trânsito normal das pessoas, como se tal indivíduo
324
tivesse o direito de se apropriar, de privatizar, um espaço coletivo crucial e
estratégico para o grupo. Certamente, tal prática sugere a existência de uma
violência simbólica característica de dimensões societárias relacionais como a
brasileira. Característica do tão falado “jeitinho” que propicia ”levar vantagem
em tudo” (Da Matta, 1979; 1991; Barbosa, 1992; 1999). Tal aspecto pode vir a
acirrar uma possível dimensão anômica das relações de poder nas academias
de musculação. Desta forma, o uso ilegítimo da violência é capaz de nos levar
a repetir com Ortega y Gasset (2002:107) a análise de uma prática peculiar em
uma era singular:
“o homem sempre recorre à violência: algumas vezes esse
recurso era simplesmente um crime... outras vezes a violência era o
meio a que se recorria depois de se terem esgotado todos os outros
para defender a razão e a justiça que se acreditava ter... a civilização
não é outra coisa senão a tentativa de reduzir a força à ultima ratio.
Agora começamos a enxergar isso com extrema clareza, porque a ‘ação
direta’ consiste em inverter a ordem e proclamar a violência como prima
ratio; a rigor como única razão. Ela é a norma que propõe a anulação ...
[da] norma, que suprime todo interregno entre nosso propósito e sua
imposição. É a Charta Magna da barbárie.”
325
Considerações Finais
Atualmente, vem ocorrendo um fenômeno que pode ser classificado
como uma epidemia silenciosa: o uso de esteróides anabolizantes em
academias de musculação e fisiculturismo na cidade do Rio de Janeiro. Esse
uso tem uma relação direta com a visão de mundo do grupo que constitui os
freqüentadores dessas intituições, com suas regras alimentares, relações de
gênero calcadas no elogio à masculinidade, e com a exaltação de um
determinado tipo de violência e estética. Os esteróides surgem como um novo
tipo de nova droga que pode tanto ser contraposta ao uso das drogas
“recreativas” tradicionais, como maconha e cocaína, quanto se associar a
estas, objetivando a construção da chamada “forma física ideal”. Essas drogas
fazem parte do ritual de construção identitária dos fisiculturistas e, em
contraposição
às
opiniões
vigentes
que
associam
o
seu
uso
ao
desconhecimento por parte do usuário das conseqüências de seu consumo, o
próprio conhecimento dos riscos do uso de tais substâncias configura-se como
item fundamental de sua eficácia ritual. Ou seja, o risco é conhecido e seu
conhecimento é fundamental para a eficácia dos ritos que consolidam e
perpetuam a estrutura do grupo, pois, conforme sugeriu Bourdieu (1996), os
indivíduos aderem de maneira tanto mais decidida a uma instituição quanto
mais severos e dolorosos tiverem sido os ritos iniciáticos aos quais se
submeteram. O consumo de esteróides apresenta também uma função
hierarquizante na estrutura do grupo, visto que confere status àqueles usuários
que demostram perícia em relação à manipulação e o saber que têm do uso
das drogas na fabricação de um corpo otimizado. Como tais substâncias são,
em sua maioria, hormônios sintéticos masculinos, atuando, portanto, na
produção de caracteres sexuais secundários, tais drogas são masculinizantes,
o que sugere a existência de um louvor tanto estético quanto ético dos
princípios fundantes da masculinidade dominante na cultura brasileira atual.
Este louvor ao princípio da masculinidade por parte das mulheres fisiculturistas
representa um fenômeno aqui denominado Complexo de Piegan.
326
O consumo de drogas masculinizantes realiza-se nas academias da
Zona Norte a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Porém, nas academias do
bairro de Copacabana é possível perceber, de maneira mais evidente, o
desenvolvimento de um saber prático relacionado ao corpo e à manutenção
deste que é constantemente “exportado” para as outras instituições e, também,
para outras atividades esportivas que não o fisiculturismo. A invenção destas
técnicas corporais pode ser observada in locu nas academias do bairro de
Copacabana. Isso não significa que tais práticas não existam nas academias
da Zona Norte. De fato, nos bairros da Tijuca, Vila Isabel, Grajaú e Andaraí é
possível encontrar atualmente instituições com tais características. Contudo,
em Copacabana, o número de freqüentadores fisiculturistas nas academias é
significativamente maior do que nos outros bairros cariocas, principalmente
quando o verão se aproxima, época na qual muitos fisiculturistas residentes no
subúrbio deslocam-se para o bairro da Zona Sul com o objetivo de aprimorar a
sua estética. As últimas novidades sobre musculação, provenientes do exterior,
as técnicas mais recentes, as drogas mais eficazes e a forma de usá-las
chegam primeiro nas academias do bairro de Copacabana espalhando-se pelo
resto da cidade através do fluxo de fisiculturistas que atuam como treinadores e
professores nas instituições da cidade.
O saber sobre este novo tipo de uso de novas drogas se realiza,
também, através da associação destas mesmas substâncias com outras como
remédios de vários tipos e suplementos alimentares que são freqüentemente
experimentados pelos próprios bodybuilders em sua busca de construir um
corpo cada vez mais musculoso e sem adiposidades. Este processo poderia
ser enquadrado em um movimento maior denominado medicamentalização
(Dupuy & Karsenty, 1979), presente nas sociedades contemporâneas, e que
significaria um tipo de crença quase mágica no poder dos produtos
farmacêuticos-científicos. Por sua vez, a medicamentalização poderia ser
enquadrada em outro movimento de cunho ainda mais amplo denominado
utopia da saúde (Sfez, 1995), que também significaria, nas culturas das
sociedades complexas capitalistas, a presença de um sistema simbólico no
qual a busca de um corpo eternamente jovem e belo, desfrutando a ausência
327
da mortalidade e com plena saúde, apresentar-se-ia como o paradigma
organizador das práticas de um número crescente de adeptos da boa forma e
do “corpo perfeito”. Se, por um lado, o capitalismo, conforme escreveu Weber
(1992), apresenta a tendência de desencantar o mundo esvaziando o sentido
da vida, por outro, ele reencanta, através do marketing e da propaganda
(Rocha, 1995), o universo de tantas outras pessoas. Reencantamento baseado
na busca intermitente de um desejo que nunca cessa de consumir
e que,
portanto, está sempre insatisfeito, se desencantando para, em seguida, se
reencantar e assim sucessivamente. Processo
que
alimenta crescente
consumismo.
O surgimento do esporte, de acordo com Elias e Dunning (1994),
representaria a estilização das práticas violentas, servindo para consolidar o
processo civilizatório no qual tais práticas tenderiam a ser controladas não
apenas pelas instituições diretamente coercitivas,
mas principalmente pela
absorção de valores, regras e normas de disciplinarização das relações sociais
por parte dos indivíduos e coletividades. Interiorização do controle necessário
da agressividade. Segundo os autores, este processo estaria ligado também ao
fortalecimento do Estado Moderno, fiduciário último da civilidade. Neste
movimento disciplinar (estudado, também, de certa forma, por Foucault), o
bodybuilding poderia supostamente assumir um caráter de estilização ainda
maior da violência física devido ao fato de não apresentar qualquer tipo de
contato corporal entre os competidores, radicando as disputas apenas na forma
física apresentada pelos atletas. Contudo, se a tese da estilização da violência
pode ser sustentada, os dados colhidos durante os anos de trabalho de campo
entre os fisiculturistas vêm sugerindo que esta violência sofreu modulações
continuando presente no cotidiano dos indivíduos de forma acirrada em sua
dimensão simbólica. Esta, por mais abstrata que possa aparentar ser, se
atualiza no corpo e, conseqüentemente, na vida daqueles que sofrem sua
coerção. Tal violência simbólica é consolidada através da busca, a qualquer
preço, de um corpo perfeito que possa trazer a felicidade ao indivíduo. Neste
processo, para atingir o ideal do sucesso, todos os recursos são utilizados,
inclusive a paradoxal destruição do próprio corpo em nome da manutenção da
328
saúde e de um ideal de masculinidade que pode levar à apologia da agressão
física e do desrespeito a alteridade.
Neste aspecto, dentre as sugestões presentes neste estudo sobre a
construção do corpo entre fisiculturistas, há uma em especial, devido o seu
alcance teórico, que deve ser ressaltada: as representações e práticas
presentes no cotidiano do grupo pesquisado sugerem que as atuais culturas de
tradição ocidental parecem estar atravessando um processo descivilizatório
(processo de descivilização, de acordo com Elias). Movimento que pode ser
percebido na violência anômica presente nas interações entre determinados
indivíduos e grupos destas culturas. Esta violência se manifesta na
“coisificação” do outro e do próprio corpo individual transformado em
mercadoria a ser consumida ou em capital a ser investido. Assim, parece que
em sociedades nas quais imperam os valores e a lógica do mercado, ocorre a
tendência de a relação com o outro tornar-se relação com coisas suprimindose, de forma crescente, a lógica e os valores que sustentariam as interações
das economias solidárias do Dom.
329
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Créditos das fotos:
Cláudia R. Bomfim da Fonseca
Cesar Sabino
www. sandowsmuseum.com
www. fisiculturismo. com .br
Schwarzenegger e Dobbins. Encicolopédia do Fisiculturismo.São Paulo:
Artmed,2001.
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