Pensar por si mesmo1
Monica Aiub
“Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do
homem de sua menoridade, da qual ele próprio
é culpado. A menoridade é a incapacidade de
fazer uso de seu entendimento sem a direção
de outro indivíduo. O homem é o próprio
culpado dessa menoridade se a causa dela não
se encontra na falta de entendimento, mas na
falta de decisão e coragem de servir-se de si
mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude!
Tem coragem de fazer uso de teu próprio
entendimento, tal é o lema do esclarecimento.”
(KANT, 1783)
O que foi o Iluminismo?
Num contexto histórico em que a burguesia possuía poder econômico e reivindicava
para si o poder político que se encontrava nas mãos da nobreza e do clero; em que os
argumentos fundamentados nas crenças religiosas não eram aceitos para justificar o poder
ou a organização das sociedades ou o modo de vida dos seres humanos; num período em
que a ciência começou a ocupar um lugar significativo na construção do conhecimento,
surgiu o movimento denominado Iluminismo. Luzes, razão, esclarecimento são palavras
relacionadas a ele.
Este período, compreendido entre fins do século XVII e fins do século XVIII, e
também conhecido como século das luzes, caracterizou-se pela crítica a toda e qualquer
crença, pela crítica aos próprios instrumentos utilizados para a obtenção de conhecimento, e
por considerar o conhecimento como algo que tem a finalidade de tornar a vida dos seres
humanos melhor, tanto no campo individual, como na vida em sociedade.
Esta forma de pensar tenta conciliar a fé na razão humana e a crítica aos limites
desta razão. Kant foi um pensador que muito contribuiu no sentido de estabelecer a crítica
aos limites da razão humana, e ao mesmo tempo apontá-la como a fonte e o fundamento do
conhecimento. Por este motivo, observemos como ele responde a pergunta: o que é o
esclarecimento [Aufklärung]?
Em 5 de dezembro de 1783, é publicado o artigo de Kant intitulado Beantwortung
der Frage: Was ist Aufklärung? [Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”?]. Ao
responder a questão, ele define esclarecimento como a saída do homem de sua menoridade,
ou seja, da incapacidade de usar o próprio entendimento. Ser esclarecido, para Kant, é fazer
1
Artigo publicado na Revista Filosofia, Ciência & Vida, Caderno Especial Iluminismo.
uso do próprio entendimento. Acompanhemos o percurso de Kant neste artigo, tentando
pensar sobre nossos posicionamentos na atualidade.
A preguiça e a covardia do pensar por si mesmo
No citado artigo, ele aponta a preguiça e a covardia como fatores que mantém a
maior parte dos seres humanos na menoridade. É mais fácil agir segundo as ordens do
outro, segundo os preceitos de um livro, segundo as regras impostas por uma cultura,
segundo alguém que nos guie. “Não tenho necessidade de pensar, quando posso
simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis”,
afirma ele como exemplo de fala que denota esta preguiça. Além de ser muito mais fácil
deixar o outro decidir e encaminhar nossa vida, é muito “perigoso” tentar andar por si
mesmo. Sair dos trilhos traçados pelo outro, tentar um novo caminho, tentar sair do
“carrinho” no qual somos “carregados” pode provocar grandes acidentes. “Ora, este perigo
na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem andar finalmente, depois de
algumas quedas”, afirma Kant.
Temos medo de “sair dos trilhos”? De pensar diferente? De sermos nós mesmos? Às
vezes é tão mais fácil ser como o outro, não precisar posicionar-se, perder-se diante de uma
“massa de idéias”, dissolver-se em uma “forma pré-estabelecida” ou optar por “ser o que
todo mundo é”. Assim não corremos riscos. Se errarmos, “todo mundo erra”, “tinha que ser
assim”.
Quando Kant aponta a utilização do próprio entendimento, não se refere à utilização
de uma razão instituída por uma sociedade, ou ao cumprimento de regras e deveres. Isso
equivaleria a um agir condicionado por um agente externo: a norma social, a lei, formas de
pensamento reproduzidas, crenças e fórmulas estabelecidas por outros. Ainda que se use a
razão nestes momentos, trata-se de uma razão mecânica, um modelo artificial reproduzido
socialmente, guiado pelo outro, e não do uso do próprio entendimento, não condicionado a
qualquer outro elemento que não ele mesmo.
O movimento de pensar por si mesmo não é fácil, pois exige a troca de um caminho
já trilhado por um novo percurso, sem saber ao certo onde tal percurso nos levará. O quanto
confiamos em nosso próprio pensamento? Quando pensamos diferente da maioria das
pessoas, o que fazemos? Julgamos, imediatamente, estarmos errados e buscamos nos
adaptar ao pensamento já estabelecido por convenção ou averiguamos se nossa maneira de
pensar possui fundamento?
Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes do
abuso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem
deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais
estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito
poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir
da menoridade e empreender então uma marcha segura (KANT, 1783).
Não se trata, também, de substituir um esquema, uma fórmula de pensamento por
outra. Isto equivaleria apenas a trocar o guia. Segundo Kant, todo ser humano possui a
capacidade de pensar por si mesmo. Somos dotados de uma razão, que consiste numa forma
lógica, universal e incondicionada, ou seja, trata-se da mesma forma para todo e qualquer
ser humano. Quando utilizamos adequadamente nosso entendimento, organizando os
elementos que nos chegam através de nossas experiências, construímos conhecimento.
Qualquer outro ser humano, diante das mesmas experiências, utilizando corretamente seu
entendimento, chegaria às mesmas conclusões. Mas isso não nos exime de avaliar o
conhecimento que nos chega pronto. Ainda que todos tenhamos as mesmas capacidades
lógicas, podemos utilizá-las equivocadamente, chegando a resultados também equivocados.
Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da
opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira
reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos,
servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento
(Kant).
O caminho para o pensar por si mesmo não se dá por imposição, nem por uma
revolução, a possibilidade deste caminho encontra-se na liberdade, com liberdade, esse
caminho torna-se inevitável. Quando Kant aponta a liberdade como caminho, entende a
liberdade como “fazer uso público de sua razão em todas as questões”.
Alguém poderia perguntar: de que adianta pensar por si mesmo se há regras
estabelecidas? Se não nos pediram para pensar? Como falar em liberdade, em fazer uso
público da razão quando vivemos em uma sociedade onde somos “obrigados” a aceitar as
normas estabelecidas?
Kant aborda esta questão no artigo, citando a diferença entre uso público e uso
privado da razão. O uso privado ocorre quando estamos desempenhando uma determinada
função que exige, mediante “unanimidade artificial”, uma passividade. Como exemplo, ele
se refere a um soldado que discorda de determinada ordem. Em seu serviço militar, deve
cumpri-la (e isso se refere ao uso privado da razão), mas como ser humano, deve questionála. O uso público da razão diz respeito à “qualidade de sábio” que nos permite pensar por
nós mesmos, discordar, e expor nossos pensamentos, provocando também o pensamento de
outros.
Assim, seria muito prejudicial a um oficial, a quem seu superior deu uma ordem,
quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência ou da
utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode
impedir, enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre os erros no
serviço militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue
(KANT).
Entre outros exemplos citados por Kant para apresentar essa questão, encontramos o
caso do cidadão que discorda do valor dos impostos que deve pagar. Em seu uso privado da
razão, deve cumprir seu dever e pagar seus impostos, caso contrário, será punido de acordo
com as regras de sua sociedade. Mas em seu uso público da razão, deve expor publicamente
seu desacordo com relação à injustiça ou ao abuso que tais impostos representam. Deve
discutir a questão, expor suas idéias, argumentar nas instâncias adequadas.
O que é pensar por si mesmo?
Muitos confundem pensar por si mesmo com fazer o que tiver vontade, seguir seus
desejos, desobedecer a toda e qualquer regra, ou ainda com um tipo de interpretação onde o
que vale é o que cada um pensa e, portanto, pode-se fazer o que bem entender,
independentemente das conseqüências das ações. É justamente contra essas posturas que se
manifesta Kant. No texto Crítica da Razão Prática ele expõe os perigos da sociedade
exacerbadamente egóica de seu tempo. Sua proposta opõe-se ao solipsismo, considerado
por ele como uma “mania do eu”, uma “patologia social”, que transforma a noção de
respeito em um equívoco fundado no sentimento interno de cada indivíduo. O ser humano
solipsista, na acepção kantiana, é um sujeito individual, e ao mesmo tempo egoísta, que se
considera o centro do universo e, por isso, pensa que pode fazer o que bem entender,
independentemente das implicações de suas ações sobre a sociedade ou o outro.
Pensar por si mesmo é, para Kant, seguir os princípios da razão, razão esta,
incondicionada. Isto equivale a não permitir que fatores externos à razão a condicionem.
Entre esses fatores, Kant elenca as necessidades fisiológicas, os instintos, as pressões
sociais, as leis, as emoções, os contextos... ou seja, nada deve interferir no funcionamento
da razão.
A razão kantiana não é o jeito de pensar de cada um. Trata-se de uma razão
universal e necessária, isto é, todos os seres humanos a possuem, com os mesmos
princípios que regem o funcionamento do entendimento.
Para que possamos afirmar que nossa ação é exclusivamente condicionada por nossa
razão, podemos nos fazer algumas questões antes de agir. Essas questões são propostas por
Kant no livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Reflitamos sobre o conteúdo
dessas questões.
A primeira delas pergunta se de nossa ação poderia ser derivada uma lei universal,
ou seja, se todos devem fazer aquilo que pretendemos fazer. Imaginem-se perguntando isso
para suas ações, que respostas vocês encontrariam? Você, leitor, concordaria comigo que se
respondesse que os outros não devem agir como você, isso poderia denotar um problema
em sua ação?
A segunda questão diz respeito à finalidade de nossa ação: Nossa ação é um fim em
si mesma ou um meio para atingir outro objetivo? Com a resposta a esta questão podemos
avaliar se agimos porque pensamos da maneira como pretendemos agir ou se agimos para
atender a outros interesses. Agir devido a outros interesses não é, para Kant, agir por
determinação da razão, mas condicionar nosso pensamento a algo externo à razão, ou seja,
não se trata de “pensar por si mesmo”.
Por fim, a última e mais importante questão: o ser humano – seja ele você mesmo
ou outra pessoa – em sua ação, é considerado um fim em si mesmo ou um meio para se
atingir algo? Para Kant, o ser humano é sempre um fim em si mesmo, ou seja, nossas ações
devem ter em vista o ser humano e não o que se pode alcançar a partir dele. É interessante
observar que ele nos lembra que nós mesmos, em nossas próprias ações, somos seres
humanos e devemos nos considerar como tais. Em outras palavras, o ser humano não é um
objeto que possa ser utilizado como um meio para se atingir um objetivo, seja ele
econômico, político, social ou de qualquer outra natureza.
Assim, pensar por si mesmo significa ser movido pelos princípios da razão, não
permitir o condicionamento da razão a fatores externos a ela. Emoções, instintos, desejos,
leis, idéias de outras pessoas, pressões familiares, pressões sociais, interesses, nada disso
deve retirar de nós a capacidade de autonomia de pensamento.
Somos esclarecidos?
Se for feita então a pergunta: “vivemos agora em uma época esclarecida
[aufgeklärten]”?, a resposta será: “não, vivemos em uma época de esclarecimento
[“Aufklärung”]. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais,
tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na
qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio
entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de
que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e
tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento geral ou à
saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados (KANT).
Em 1783 Kant nos fez esta observação. O foco na matéria religião dizia respeito ao
contexto histórico do surgimento do Iluminismo, ou seja, à necessidade de uma razão capaz
de responder às questões humanas. Trazendo o foco para nossas condições de vida na
atualidade, para as relações pessoais, para o mundo do trabalho, como responderíamos à
pergunta: vivemos agora uma época esclarecida? Como você, leitor, responde esta
questão?
Referências bibliográficas:
KANT, I. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa, Ed. 70, 1995.
_____. (1783) Immanuel Kant: textos seletos. Petrópolis: Vozes, 2005.
Para saber mais:
Revista Discutindo Filosofia Especial Kant. São Paulo: Escala Educacional, Ano 1 nº 5,
2008.
www.kant.org.br – link da sociedade Kant brasileira
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Kant e o Iluminismo