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28 jan 2015 O Globo Roberto DaMatta é antropólogo
O riso do riso
Rir de um delegado de polícia, de um general, de um governador,
de um prefeitinho, de um professor, ou de qualquer pessoa
importante, é um risco
Omito de origem do riso conta o seguinte: No começo do mundo, os homens não sabiam rir. Mas o
diabo enviou o riso para o mundo e apareceu aos homens com a máscara da alegria. Eles o acolheram
com agrado, rindo e gargalhando, é claro. Não passou muito tempo, e o riso tirou a sua máscara alegre e
começou a refletir sobre o mundo e os homens. Surgiu então a crueldade da sátira, intolerável para os
poderosos.
MARCELO
Hitler e Goering, fundador da Gestapo, comandante da Força Aérea, viciado em morfina e ladrão de
obras de arte, estão no topo de uma torre de rádio em Berlim, onde avistam toda a cidade. Hitler diz que
ele gostaria de fazer alguma coisa para colocar um riso nos tristes rostos dos berlinenses. Goering reflete
por um instante e sugere: “Por que você não pula?”
Nota diabólica : essa anedota foi ouvida e quem a contou foi investigado, perseguido e detido por
membros das SS. Acabou num campo de concentração. Todos riram, mas quem foi identificado como
originador ou criador da piada morreu.
Seria interessante, conforme lembra meu aluno e amigo Alberto Junqueira, inventar uma piada capaz
de matar de rir, como fez o grupo Monty Python, num esquete em 1969. No decorrer da chamada
Segunda Guerra Mundial (1939­1945), um humorista inglês inventou “a piada mais engraçada do
mundo". Era uma anedota tão boa que, depois de ler sua criação, ela o matou de rir. A esposa, vendo­o
imóvel com um papel na mão, leu a piada e sucumbiu. Abriu­se uma investigação, e a Scotland Yard
confirmou a letalidade do chiste. Mesmo tentando neutralizar a letalidade da anedota, todos os policiais
que a leram morreram de rir. Em guerra, o caso foi levado ao Departamento de Inteligência Militar (que
Groucho Marx dizia ser uma contradição em termos) e matou muitos oficiais. Logo a piada foi usada no
campo de batalha. Os combatentes liam em voz alta a piada traduzida cientificamente para o alemão e
eles riam até morrer. Nem Hitler e seus nazistas tentaram criar uma contrapiada igualmente mortal, mas
produziram anedotas pífias. Quando, num interrogatório, um oficial inglês contou a piada, tanto o agente
da Gestapo quanto o seu superior das SS morreram de rir. O serviço secreto alemão, cuja inteligência era
— conforme afirmava um dos meus professores — inigualável, já que só quem era muito, mas muito
inteligente falava essa língua de gênios musicais e filósofos, fez a sua piada. Transmitida, ela não fez
ninguém rir. Com a explosão da paz, a piada letal foi finalmente enterrada num túmulo oficial como a
“piada desconhecida". Era demasiadamente perigosa e, mesmo no futuro, poderia continuar matando as
pessoas de rir.
Talvez seja o momento de revivê­la para que ela possa ser lida pelos que não acreditam que falam
uma língua singular e têm hábitos e crenças surpreendentemente naturais para si mas absurdas para os
outros. Sem a existência de língua, cultura e valores, ninguém morre de rir. Ou melhor, não há riso.
Corremos o risco de morrer de rir. Aliás todas as vezes que rimos, morremos mais um pouco. Agora,
rir de um delegado de polícia, de um general, de um governador, de um prefeitinho de merda, de um
professor, ou de qualquer pessoa importante, é um risco.
Quantas vezes você, leitor ou leitora, riu do seu pai? Aposto que você ri com mais facilidade de
senhora sua mãe e da gostosa da sua irmã do que do seu pai e do seu irmão idiota cujo sonho é ser
campeão mundial de surfe. Da empregada rimos a todo momento. Algumas são pagas para fazer parte
das comédias do nosso cotidiano nacional pós­escravocrata e definitivamente anti­igualitário. Quando o
Lula inventou um ministério quase do tamanho de uma pequena cidade, ele criou sem saber uma bela
piada. Mas, em vez de nos matar de rir, ela nos mata de vergonha.
Uma faceta importante da hipocrisia é não rir do pai, do padre, do rabino, do professor e dos
medalhões em geral, mesmo quando eles dizem a coisa mais gozada do mundo ou produzem algo
incompatível com seus papéis.
— Obrigado, meu filho, por você não ter rido de mim quando soltei aquele pum sem querer...
— Esquece, pai. Ainda bem que só eu sei e eu lhe prometo guardar o segredo (papai peidou) — para o
resto da minha vida.
Forever, repetiu sério em inglês — aquela língua que naquele tempo ainda dava alguma seriedade ao
mundo. — Brigado, filho. Não haviam passado cinco minutos, e o filho respeitoso já havia falado do
episódio para todo mundo, acrescentando ao pum paternal detalhes e minúcias de gargalhar.
— Você topa jantar comigo hoje à noite? — perguntou Fabio, pela quinta vez torcendo as mãos
suadas.
Marilena que estava lendo um jornal, focada na chamada crise hídrica, a mais nova do nosso amado
Brasil que caminha a passos de Pantagruel para a Crise Perfeita, jogou­ o no banco. Em seguida, olhou
para a cara assustada de Fabio e disse sorrindo, com o pensamento na declaração do ministro de Minas e
Energia:
— Suas chances são iguais às do racionamento de eletricidade: 17%!
— Maravilha! — Respondeu um exultante Fabio que, como todos os ministros e governadores, sabia
que o melhor era transformar os 17 em cem por cento.
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