Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo
OS RAMOS ANGUSTIADOS DA MEMÓRIA:
A NARRATIVA DE GRACILIANO
ALINE BEZERRA DA SILVA
“(...) dizer enfim o que estava articulado
silenciosamente no texto primeiro (...)
conforme um paradoxo (...), dizer pela
primeira vez aquilo que, no entanto, não
1
havia jamais sido dito”. (FOUCAULT )
RESUMO:
Elemento essencial para a construção da identidade, a memória ocupa espaço de destaque na discussão que ora se propõe, pois,
como afirma Walter Benjamin, “o passado só se deixa fixar, como
imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é
reconhecido”. Assim, o ato de relembrar teria como pretexto a fixação do tempo esvaído, além da construção identitária a partir do mosaico de ações, pensamentos e sentimentos que compõem os personagens.
A filósofa Marilena Chauí, baseada em Matéria e memória, de
Henri Bergson, estabelece distinção entre lembrar e recordar, sendo
lembrar um ato involuntário, pois deriva de uma questão inconsciente e não está sob controle, ao contrário de recordar, em que há o esforço voluntário para resgatar fragmentos de memória.
Com base nesses referenciais, pretende-se fomentar a análise da reflexão espontânea ou não dos narradores sobre um passado lancinante descortinado na obra ficcional de Graciliano Ramos.
O ensaio Nos ramos angustiados da memória: a narrativa de
Graciliano tem por objetivo apresentar a proposta de análise dos
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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 9. ed., São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 25.
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quatro romances de Graciliano Ramos, Caetés, São Bernardo, Angústia e Vidas Secas, além da obra biográfica Memórias do Cárcere,
com vistas a fomentar a discussão sobre memória e angústia na obra
desse que é um dos mais brilhantes escritores da literatura brasileira.
Elemento essencial para a construção da identidade, a memória ocupa espaço de destaque na discussão que ora se propõe como
pesquisa, pois “o passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”2.
Assim, o ato de relembrar teria como pretexto a fixação do tempo
esvaído, além da construção de identidade a partir do mosaico de
ações, pensamentos e sentimentos que compõem os personagens.
A filósofa Marilena Chauí, baseada em Matéria e memória, de
Henri Bergson, estabelece distinção entre lembrar e recordar. Para
ela, o ato de lembrar é involuntário, pois deriva de uma questão inconsciente e não está sob controle, ao contrário de recordar, em que
há o esforço voluntário para resgatar fragmentos de memória.
Pretende-se, ao longo da pesquisa que será desenvolvida
no Doutorado, analisar a reflexão espontânea ou não dos narradores sobre um passado lancinante descortinado na obra ficcional de Graciliano Ramos, que faz com que o aspecto memorial
de sua obra ultrapasse o mero predomínio do tempo verbal pas-
2
2
BENJAMIN, W. “Sobre o conceito de história”. In: Magia e técnica, arte
e política. 7. ed., São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 224.
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sado, característico dos textos narrativos e, por si só, passível
de ser considerado um ato de rememoração.
Tenciona-se, também, examinar os processos pelos quais
a angústia perpassa a narrativa graciliânica, contribuindo para o
estabelecimento de uma urdidura textual instigante, capaz de
envolver o leitor na inquietude dos personagens.
Para isso, parece interessante considerar o contexto histórico
em que são escritas e publicadas tais obras: os anos 30 na sociedade
brasileira, tão rica em promessas quanto em contradições.
Fruto das expectativas fomentadas primeiro pela Revolução
Industrial, depois pela campanha nacionalista da Era Vargas, o imaginário brasileiro em construção encontrava-se imbuído de um ritmo
vertiginoso. Marchas patrióticas, feriados comemorativos, campanhas de adesão do público juvenil ao espírito nacionalista, tudo isso
aliado aos avanços tecnológicos a que as fábricas brasileiras eram
submetidas fomentava uma visão linear da história brasileira e a propensão a uma memória veloz, em marcha triunfante carregando a
bandeira nacional em uma das mãos e a possibilidade de um emprego repleto de garantias trabalhistas na outra.
A essa memória ágil e amontoada salve-salve dos históricos
anos 30 opõem-se a memória esgarçada e os lapsos, forma graciliânica de resistir aos imperativos ideológicos hegemônicos de seu tempo, forma não panfletária de recordar para discordar, forma de revelar a gama de personagens afligidos pela angústia. Sem discursos,
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sem partidarismos e com a complexidade narrativa característica do
autor.
À maneira de uma fábrica, a modernidade imprime, no homem, a necessidade de reprodução sistemática e acrítica, relegando à
memória o primeiro conceito bergsoniano voltado para o hábito, a
fixação pela repetição.
Necessário observar, no entanto, que um segundo conceito de
memória elaborado também por Bergson aponta a questão ligada à
irrepetição, à singularidade, a um fluxo temporal interior involuntário, que ele considera a verdadeira memória.
Perante essa dupla conceituação, aparentemente limitadora,
torna-se imprescindível situar a produção bergsoniana como resistência à visão positivista e cientificista próprias de final do século
XIX e princípio do XX, nos quais apenas os dados mensuráveis deveriam ser observados, de acordo com a tendência do pensamento
científico em vigor.
Contudo, ao mesmo tempo, em linha distinta do pensamento
de Bergson e não afeito aos elementos dos quais o filósofo discordava, o sociólogo Maurice Halbwachs destaca a memória como dependente da interação dos indivíduos com os grupos de convívio, com os
aparelhos ideológicos, com as diferentes classes sociais.
A diferença crucial nas reflexões dos dois pensadores reside na
oposição entre a individuação da memória no primeiro e sua coletivização no segundo, o que, sem dúvida, remete às questões da constru-
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ção de visões de mundo, da criação de um imaginário social, das
implicações mútuas e míticas entre indivíduo e sociedade.
Aliada à questão da memória, surge a angústia que perscruta a
alma humana à espera do momento de decifração, mas, ambiguamente, não se sabe se a angústia revelará a alma ou se a alma despirá
a angústia de suas máscaras.
Graciliano Ramos oferece, em sua obra, uma gama de possibilidades de análise relacionada à memória e à angústia, tanto no plano
ficcional quanto no autobiográfico, podendo-se, inclusive, considerar
que “(...) o importante, para o autor que rememora, não é o que ele
viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da
reminiscência”3.
Nessa linha de pensamento, concebe-se a obra autobiográfica
em um processo de recriação de fatos que importam, não pelo que
foram, mas pela forma como são relembrados.
Para Ronaldo Lima Lins, por intermédio da literatura, “tornase possível acompanhar, ao longo do tempo, os diferentes níveis de
angústia, numa confrontação que ora se acentua ora se atenua, mas
nunca desaparece na espinha dorsal de cada obra”4 e é essa angústia
às vezes tênue, às vezes intensa que se buscará pesquisar na obra de
Graciliano Ramos, mais especificamente nos quatro romances Cae3
BENJAMIN, Walter. “A imagem de Proust”. Magia e técnica, arte e política. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed., São Paulo: Brasiliense, 1994.
p. 37.
4
LINS, Ronaldo Lima. Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 31.
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tés, São Bernardo, Angústia, Vidas Secas e no livro de Memórias do
Cárcere.
Ao primeiro livro a ser analisado Caetés poderiam ser relacionadas, deslocadas do contexto original, algumas palavras de Benjamin no artigo “A imagem de Proust”, a fim de propiciar a reflexão
sobre a torre de Babel erguida por Graciliano, que reconstrói a estrutura da sociedade “sob a forma de uma fisiologia da tagarelice”, “uma tagarelice incomensuravelmente ruidosa e vazia (...) rugido com
que a sociedade se precipita no abismo dessa solidão”5.
São mais de quinze personagens em constantes encontros e desencontros, nos quais os diálogos são marcados muito mais pela necessidade de falar do que pela predisposição a ouvir. Marcados, também, pela ignorância generalizada camuflada em conhecimento, pelo
“fingimento de um simpósio de sábios”, expressão tomada de empréstimo a Walnice Galvão, por Ronaldes de Melo e Souza, em ensaio6 sobre Os sertões.
O enredo pode ser resumido basicamente a uma malfadada
história de amor entre o narrador João Valério e Luísa, respectivamente, empregado e esposa de Adrião Tavares.
Não se pode confirmar o brilhantismo de Graciliano nessa obra inaugural, embora alguns trechos deixem entrever a genialidade
5
Apud BENJAMIN (1994), p. 41, 46.
6
SOUZA, Ronaldes de Melo e. A desconstrução narrativa do discurso do
poder em Os sertões. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/posverna/
docentes/61076-1.pdf. Acesso em: 10 ago.2008.
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do autor. Por outro lado, podem-se apontar traços de humor que não
encontraram espaço nas obras posteriores de Graciliano. Talvez porque, “qualquer atitude diferente da séria soa como complacência,
como cumplicidade”7, sendo necessário lembrar que Caetés foi escrito entre 1925 e 1929 ao passo que as demais obras o foram, principalmente, no decênio de 30, tendo sua produção profundamente marcada pelo Estado Novo.
São dois os principais elementos angustiantes na narrativa de
João Valério: seu caso amoroso com a mulher do patrão e a escritura
de um livro intitulado “Caetés”, que ele tinha aspirações a publicar
como um romance histórico. O amor não deu certo; o livro nunca foi
levado a termo.
As memórias de João Valério não interferem tanto no plano
narrativo, talvez porque ele se vanglorie da juventude que possui e,
com isso, não invista muito em debruçar-se sobre o que se foi – hipótese a ser ou não confirmada ao longo da pesquisa proposta.
Procurei alguma coisa que eu fosse. Não era nada, realmente,
mas tinha boa figura e os caetés no segundo capítulo. E vinte e
quatro anos, a escrituração mercantil, a amizade de Padre Atanásio, vários elementos de êxito. (p. 97)
7
LINS, Ronaldo Lima. “As caravelas do imaginário”. In: O felino predador: ensaio sobre o livro maldito da verdade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.
p. 170.
7
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O segundo livro, objeto da Dissertação de Mestrado Razão e
discurso: conflitos da modernidade em São Bernardo, sugere possibilidades múltiplas de análise no que tange à memória e à angústia,
as duas molas mestras que, de fato, impulsionaram Paulo Honório
rumo à escritura do livro na tentativa de compreender a vida, sem
qualquer pretensão de reconstruí-la.
Os personagens de São Bernardo também são numerosos, mas
o amadurecimento da produção do autor foi capaz de conceder a eles
funções bastante demarcadas na narrativa, ao contrário do ocorrido
em Caetés, em que a “demora ficcional”, para empregar expressão de
Umberto Eco, torna a profusão deles problemática, uma vez que se
torna difícil precisar sua “utilidade para a história”8.
Pode-se resumir o enredo de São Bernardo à história de Paulo
Honório, personagem e narrador, no percurso de conquistas materiais, para as quais nem sempre utilizava estratégias muito ortodoxas,
sendo o título do livro o nome da propriedade por ele adquirida e
metonímia do seu sucesso como empreendedor.
Com uma visão mecanicista do mundo, Paulo Honório analisa
e quantifica tudo, inclusive as relações humanas, e, diante do suicídio
de Madalena, esposa que se recusa à reificação, inicia um processo
introspectivo de rememoração. Nesse processo eivado de sombras e
espectros, o tempo se dilata e a articulação com o passado significa a
8
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ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. 5. reimpressão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 73.
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apropriação “de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”9.
A angústia passa, então, a figurar como importante elemento
humanizador do narrador, que não mais quantifica, mas se insere
num pensar reflexivo pouco comum a ele, que sempre agia mais do
que pensava.
Terceiro livro de Graciliano, Angústia foi publicado com a coragem de José Olympio e sem a revisão final do autor, que se encontrava aprisionado por um Estado injusto e despótico, sem qualquer
acusação formal, processo ou julgamento.
Angústia, como o próprio nome sugere, talvez seja o livro que
apresente mais elementos para a construção de uma análise sobre o
mal-estar homônimo, juntamente com leitura que aborde a temática
da memória.
Luís Padilha, narrador e protagonista do livro, assassina o rival
amoroso Julião Tavares devido a ciúmes nele despertados pela disputa de Marina. Com enredo aparentemente simples, o protagonista
mergulha em severa introspecção na maior parte do livro, rememorando episódios distantes no tempo e angustiado, entre outros fatores,
por haver escrito um romance que não publica. “Tenho um romance
entre os meus papéis” (p. 39) – recorrência temática do desejo e das
dificuldades da escritura textual.
9
BENJAMIN, W. “Sobre o conceito da História”. In: Magia e técnica, arte
e política. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed., São Paulo: Brasiliense,
1994. p. 37.
9
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A exemplo de Paulo Honório que afirma ser agitado por “emoções indefiníveis”, Luís Padilha parece certo de que “todo o desarranjo é interior” e prossegue na elaboração textual desse desarranjo da primeira á última página de Angústia. Para ele, “a lembrança
chega misturada com episódios agarrados aqui e ali, em romances.
Dificilmente poderia distinguir a realidade da ficção” (p. 40).
Setenta anos separam o tempo atual e a publicação do mais
popular dos livros de Graciliano Vidas secas. O enredo centrado na
família de migrantes nordestinos em busca de refúgio contra a seca
permite entrever, em momentos vários, as lembranças recorrentes
dos personagens: Fabiano, a cadeia e o soldado amarelo, a morte de
Baleia, as contas erradas do patrão; Sinhá Vitória: a seca e a cama
confortável que viu, certa vez, na casa de seu Tomás da Bolandeira; a
cachorra Baleia, ossos, preás e brincadeiras com os meninos. Como
se pode observar, em linhas gerais, apenas a cadela tem boas lembranças no livro.
A angústia advinda da incerteza em relação ao presente e ao
futuro invade a narrativa não só quando a família se põe a caminho
na tentativa de encontrar um lugar melhor para viver, mas também
quando a dificuldade comunicativa impede o desenvolvimento das
relações em inúmeros momentos.
Fabiano acordava à noite “agoniado e encolhia-se num canto
da cama de varas, mordido pelas pulgas, conjecturando misérias” (p.
125), enquanto Sinhá Vitória confundia memória e angústia: “Falou
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no passado, confundiu-o com o futuro. Não poderiam voltar a ser o
que já tinham sido?” (p. 126).
Em Memórias do Cárcere, publicação póstuma que aborda a
vivência do escritor como preso político, encontramos terreno fecundo para a abordagem das questões já assinaladas, como se pode adiantar nas observações de Ronaldo Lins sobre Graciliano:
O cárcere desfaz as ilusões da cordialidade. Pensar representa,
como sempre, a ameaça. É certo que, para além de sua experiência, o autor se alia aos que investem na justiça e na igualdade, o
que não o isenta da amargura das fraquezas, na observação a olho
nu, não o acostuma a algum tipo de paz, ainda que situada no futuro, e não lhe rouba da linguagem a palavra angústia. (LINS,
2002, p. 170)
Pode-se afirmar que os narradores dos escritos selecionados
voltam o olhar para trás e, tal qual o mito de Orfeu, encontram desespero e angústia à sua espreita. Em mais uma (des)semelhança com
o poeta músico, prosseguem na desarmonia paradoxalmente melodiosa de suas memórias. Lembram e recordam, não para perpetuar
histórias, mas para resgatar o que os difere daqueles que não podem
narrá-las.
Narradores e refletores atópicos10 trazem à tona reminiscências
ora definidas ora amorfas, numa combinação que parece carregar
consigo a definição de Homi Bhabha, “relembrar nunca é um ato
tranqüilo de introspecção ou retrospecção. É um doloroso re-lembrar,
10
Utiliza-se “atópico” na acepção de “fora do lugar, deslocados”.
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uma reagregação do passado desmembrado para compreender o
trauma do presente”11.
O ato de relembrar acompanha, por sua vez, o ato genesíaco da
escrita, sendo vários os personagens que pretendem passar a limpo as
recordações em forma de literatura: Paulo Honório, Luís Padilha,
João Valério. Por trás desse desejo de criação, talvez a tentativa de,
ao tecer o labirinto ficcional, ter a capacidade de refazer a própria
história, carregada de lembranças e recordações.
Proust e Le Goff consideram a memória elemento essencial
para a construção das identidades individual e coletiva e, para o segundo, tal busca de identidade é “uma das atividades fundamentais
dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.
A intenção da proposta de pesquisa que ora se apresenta é levar em conta o drama de paixões e não a trama de ações12, com ênfase em uma leitura-reescritura13 que vislumbre o trabalho com a obra
de Graciliano na abordagem de temas que pulsam em sua obra, como
11
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p.
101.
12
Duas expressões largamente utilizadas nas aulas pelo Prof. Dr. Ronaldes
de Melo e Souza (Literatura Brasileira/ UFRJ).
13
Aqui aproveito o conceito de obras redigíveis (scriptibles) de Terry Eagleton, em Teoria da Literatura: uma introdução. 3. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 189. “(...) os textos mais intrigantes não são os que
podem ser lidos, mas os que são redigíveis (scriptible) – textos que estimulam o crítico a (...) transferi-los para discursos diferentes, a produzir
seu jogo semiarbitrário de significado (...)”.
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memória e angústia, primeiro com cada uma das obras isoladamente
e, depois, em uma análise comparativa.
As vozes presentes nas narrativas de Graciliano Ramos podem
ser polarizadas em vozes autorizadas e vozes não-autorizadas, nomenclatura de inspiração barthesiana, como forma de analisar as
relações de poder subjacentes aos processos comunicativos evidenciados nas obras.
Nessa trajetória que se delineia, as vozes (autorizadas ou não)
ganham vigor crítico, pois este estudo não só pretende se desdobrar
sobre as relações de poder presentes nas obras de Graciliano Ramos,
como também sobre a impossibilidade discursiva – não por questões
de legitimação social do discurso, mas pela inaudibilidade, pelo exercício acrítico da simultaneidade de vozes, pelo vozerio festivo
sem conteúdo e sem retorno.
Repleta de conflitos discursivos em que possibilidades comunicativas várias simulam a aproximação, a modernidade destaca, na
verdade, a distância no tempo e no espaço de seres que, se alguma
vez pretenderam o estreitamento de laços, nunca o alcançaram de
fato.
Nessa linha de pensamento, a análise da obra de Graciliano
Ramos encontra repercussão por conta dos livros (escritos ou não)
por seus personagens e por conta da impossibilidade de aproximação
afetiva e comunicativa entre os personagens-narradores-escritores e
os personagens-contados-inspiradores das metaobras: o desejo de
João Valério, construir seus caetés sem conhecimento histórico; o de
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Luís Padilha, fazer um romance sem ter a seu lado a mulher por
quem tem interesse; o de Paulo Honório, contar a própria história, o
que só realiza depois do ocorrido com Madalena.
Encarcerados nas dificuldades de articulação entre pensamento
e escrita, os protagonistas de Angústia e Caetés Luís Padilha e João
Valério não alcançam o intento da produção dos livros pretendidos,
ao contrário de Paulo Honório, em São Bernardo.
O que tais similitudes e distanciamentos significam no universo alegórico da obra e da metaobra? Como compreender as diferentes
estratégias narrativas em suas relações com a angústia e a memória?
Tecer reflexões que se relacionem a tais perguntas configura mais
um dos objetivos da pesquisa.
É importante destacar que o texto que ora se apresenta é parte
do anteprojeto de Doutorado apresentado ao Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ, sendo necessário considerá-lo passível de
modificações, percorrendo caminhos outros em função de novas
perspectivas reflexivas engendradas pelas leituras e pelas trocas intelectuais ao longo do percurso acadêmico.
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