F. Caruso, A. Marques & A. Troper (Eds.), Cesar Lattes, a descoberta do méson  e outras histórias, pp. 3-7.
César Lattes:
os Anos de Bristol*
Cesar Lattes:
Bristol Years
Giuseppe Occhialini
G. Occhialini
“To see infinity in a grain
of sand and eternity in an hour”
“To see infinity in a grain
of sand and eternity in an hour”
Ao escolher esse título, eu tinha em mente
uma visão retrospectiva do quarto andar do Royal
Fort, a “cigaret tower” onde funcionava o H.H.
Wills Physical Laboratory, em Bristol, Inglaterra.
Eu o vi evoluir de seus poucos e sujos
equipamentos, de sua calma durante a guerra, para
um centro internacional repleto de entusiasmo,
muitas vezes frenético, de físicos jovens. Durante
os anos de sua evolução, eu vi César Lattes, o
primeiro de uma jovem geração, dominado pela
intensidade de sua dedicação à pesquisa.
Verifiquei depois as datas. Foram pouco
mais de dois anos. Entretanto, posso ainda escrever
sobre eles como se fossem uma época, tão repletos
foram de acontecimentos. Alguns relativistas dizem
que o tempo é medido por eventos, não os
emoldurando. Nesse sentido, posso considerar o
período de Lattes em Bristol no mínimo como uma
década.
When choosing that title I had in mind to reproduce
a retrospective sight of what was the 4th floor of the
Royal Fort, the “cigarette tower” where the works
of the H.H. Wills Physical Laboratory took place. I
watched it to evolve from a few pieces of dusty
equipment, its quietness during the war, towards an
international research centre, with plenty of
enthusiasm, frenetic very often, of young
physicists. Along those evolution years I have seen
Cesar Lattes, first one of a young generation
marked by intense dedication to research work.
Next I have checked upon dates. I have
found that a little over two years had gone by.
However I could yet to write about them as if they
took as long as an era, so many were the significant
events that have happened there. Some relativists
use to say that time is measured by events but do
not frame them. In that sense I may estimate Lattes’
stay in Bristol as lasting at least one decade.
It was on January 1946. Feeling the
enormous possibilities of the new concentrated
nuclear emulsions, I suggested Powell to invite
Lattes to Bristol.
*
N.E.: Publicado originalmente no jornal Folha de
São Paulo, p. 36, 21/07/84, por ocasião dos 60 anos de
César Lattes e reimpresso em Ciência e Cultura 36, n. 11
(1984) pp. 2066-68. Giuseppe Occhialini faleceu em
1994. Tradução de A. Marques.
César Lattes: os Anos de Bristol
Giuseppe Occhialini
Foi em janeiro de 1946. Percebendo as enormes
possibilidades das novas emulsões concentradas,
sugeri a Powell convidar Lattes para vir a Bristol.
Sentíamos que o avanço técnico era propício para
descobertas, sabíamos que as vantagens das
experiências anteriores não eram suficientes.
Necessitávamos de novas e jovens forças. Naquele
tempo os jovens físicos ingleses, convocados para o
esforço de guerra, voltavam lentamente às
universidades com “generosas” bolsas oferecidas
pelo governo. No entanto, não eram atraídos por
essa técnica desprezada, “rotina de pouco uso
prático” (relatório de Smythe sobre a bomba
atômica) numa universidade provinciana.
Os
físicos
da
Europa
ocupada
reconstruíam lentamente seus fragmentos de vida.
Então me lembrei do pedido de Lattes quando saí
do Brasil, de chamá-lo se houvesse uma
oportunidade de pesquisa. Fazendo isso, sentia que
pagava uma parte de minha dívida com o Brasil.
Lattes chegou e a vida no quarto andar do
Royal Fort se transformou. Trouxe a agitação da
primavera e a exuberância da energia jovem para
aquela atmosfera de uma dedicação sombria e
determinada. Tipicamente generoso, ele chamou
seu amigo Ugo Camerini, que chegou com as vinte
camisas empacotadas por sua mãe (mais tarde nós
as dividimos) para iniciar uma carreira
extremamente brilhante, testemunha da vitalidade
da jovem escola da Universidade de São Paulo.
Dessa forma começou o que, para a parte
baixa da “cigaret tower”, era a vida exótica do
quarto andar. Não barbeados, algumas vezes sem
tomar banho, trabalhando sete dias por semana até
às duas da madrugada, às vezes até às quatro,
fazendo sempre café muito forte, correndo para
cima e para baixo, gritando, brigando e sorrindo,
éramos encarados com simpatia pelos nativos
cansados de guerra e pelos estrangeiros de Royal
Fort.
We felt that technical progress was
favourable to new discoveries and that previous
knowledge presented many flaws. We needed new,
younger efforts. At that time young British
physicists reassumed slowly their positions at the
universities, supported by “lavish” grants offered
by government. However most of them did not feel
attracted by that second class technique, “routine of
little practical use” (Smythe report on atomic
weapons) in a countryside university. Physicists in
occupied Europe slowly reconstructed their
fragments of life. Then I remembered Lattes asking
me, when I left Brazil, to call him up just in case
some research opportunity could be opened. By
doing so I felt to be paying part of my debt to
Brazil.
Lattes arrived and the life in the 4th floor
of Royal Fort changed since then. He brought in the
restlessness of springtime and the exuberance of his
young energy to that atmosphere of sober and
determined dedication. Generous, he invited his
friend Ugo Camerini who arrived with twenty
social shirts packed up by his mother (which we
shared on due time) to begin a career extremely
brilliant, witness of the vitality of the young school
of the University of S. Paulo.
This way started what was, for the lower
premises in the “cigarette tower” the exotic life of
the 4th floor. Unshaved, sometimes unwashed,
working seven days a week until two, sometimes
four o’clock in the morning, drinking rather strong
coffee, running up and down, shouting, quarrelling
and laughing we were taken with sympathy by all
inmates, tired of the war, and by the foreigners to
Royal Fort.
After a long war they tasted the delights of
peace, order and safety, and the dreams of an
undisturbed academic future.
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Giuseppe Occhialini
César Lattes: os Anos de Bristol
Those in the 4th floor had not experienced
the problems of war, but carried with them many
complexes and frustrations seriously prepared to
grab the chance to show their character in a civil
scientific job.
Outside the laboratory the feelings of
population were of a mixed kind. Behind the Royal
Fort the Robin Hood pub accepted gladly our
invasions, five minutes before closing time, to drink
a pint of beer before going back to work. After
midnight Lattes apportioned horrible cigarettes
made after old tips gathered all over the Institute.
The local priest included a reference to us in a
sermon: “They work hard but have no guidance”. In
doubt, a policeman followed the steps of Lattes and
Camerini to their home, after spotting them walking
astray along the calm streets of Bristol, four o’clock
in the morning, talking a strange idiom and
suspiciously sobers.
That was the external view. The inner
reality was not as romantic but anyhow more
exciting. It was the reality of hard work, intense and
continuous  of deep excitation and unbelievable
dreams that came through, at the end. It was the
reality of discovery and the role of Lattes was
remarkable. When he arrived at Bristol the activity
in the 4th floor was restricted to nuclear physics. He
worked on the disintegration of Samarium and in
experiments of nuclear scattering proposed by
Powell but his heart moved him out to cosmic rays.
Meanwhile he dominated the new technique. With
Peter Fowler, then a post graduate student, he
established the range-energy relations in the new
concentrated emulsions.
With Camerini he investigated the fading
of latent images. After their discovery that even in
the new emulsions the gradual fading of the images
was important, it became clear that the exposure
Após uma longa guerra, eles saboreavam as delícias
da paz, ordem e segurança e o desejo de um
ininterrupto futuro acadêmico. Aqueles do quarto
andar não haviam vivido os problemas da guerra,
mas estavam cheios de complexos e frustrações,
seriamente decididos a agarrar a chance de mostrar
seu brio num trabalho científico civil.
Fora do laboratório, o sentimento da
população local era misturado. O “pub” atrás do
Royal Fort, “The Robin Hood”, nos aceitava
alegremente quando forçávamos a entrada cinco
minutos antes de fechar para tomar uma cerveja
antes de voltarmos ao trabalho. Depois da meianoite, Lattes distribuía horríveis cigarros feitos das
bitucas coletadas em todo o Instituto. O padre local
falou sobre nós num sermão: “A luz da torre está
acesa todas as noites, mesmo domingo. Eles
trabalham duro, mas não têm guia.” A polícia ficou
em dúvida e seguiu Lattes e Camerini a suas casas
para checar os endereços, encontrando-os pelas ruas
pacatas de Bristol às quatro da manhã, barbudos,
obviamente estrangeiros e, estranhamente, sóbrios.
Essa era a impressão externa. A realidade
interna era menos romântica, mas bem mais
excitante. Era uma realidade de árduo, intenso e
contínuo trabalho. De um profundo excitamento e
de sonhos incrivelmente realizados. Era a realidade
da descoberta e o papel de Lattes foi fundamental.
Quando ele chegou a Bristol a atividade do
quarto andar era restrita à física nuclear. Ele
trabalhou na desintegração do samário e nas
experiências de espalhamento nuclear realizadas
por Powell, mas seu coração se fixou nos raios
cósmicos. Nesse meio tempo ele dominou a nova
técnica. Com Peter Fowler, então um estudante de
pós-graduação, ele estabeleceu a relação alcanceenergia nas novas emulsões concentradas. Com
Camerini investigou o desaparecimento da imagem
fotográfica. Após sua descoberta, de que mesmo
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César Lattes: os Anos de Bristol
Giuseppe Occhialini
nas novas emulsões o desaparecimento gradual da
imagem era importante, ficou claro que o tempo de
exposição das chapas que eu expus no Pic du Midi
deveria ser encurtado. O ganho de algumas
semanas causado por isso mostrou-se crucial.
Naquela época, outros grupos da Europa expunham
chapas em aeroplanos e nós, sem saber,
participávamos da corrida do decaimento píonmúon.
Quando viu as primeiras chapas de raios
cósmicos, Lattes pegou fogo. Todos os seus estudos
e experiências em raios cósmicos em São Paulo
concentravam-se nessa nova evidência. Reconheceu
imediatamente a primeira desintegração do méson
que eu lhe mostrei. A partir desse momento, me
solicitou, quase exigiu, tomar parte nessa nova
aventura.
Sua contribuição foi muito importante. Ele
trouxe não somente sua ambição e jovem energia,
mas também intuição física, clareza de pensamento
e um longo e apaixonado estudo dos raios
cósmicos. Em São Paulo foi criticado como um
estudioso de pouca ação. Em Bristol explorou na
ação todos os frutos de seus estudos. Um exemplo
mostra o que quero dizer com isso. Antes da
descoberta do decaimento píon-múon, Lattes e
Camerini analisaram com muita precisão os
produtos da desintegração do méson e mostraram
que a energia total produzida era maior do que a
equivalente da massa aceita para os então chamados
mesotrons. Esse foi um trabalho de verdadeiro
físico.
A descoberta e a análise do decaimento
píon-múon é parte da história da ciência. A
observação da produção artificial de píons, quando
Lattes deixou Bristol indo para Berkeley, pertence a
uma outra época. Se ele só tivesse trabalhado
aqueles dois anos em Bristol, já mereceria um lugar
time of the plates that I had brought to the Pic du
Midi had to be shortened.
The gain of a few weeks in exposure time
owing to those findings revealed to be of utmost
value. At the time other groups exposed plates in
airplane flights and we, without realizing it, took
part in the race to find the pion-muon decay.
When he saw the first plates exposed to
cosmic rays, Lattes went very much excited. All
his studies and experience in cosmic rays at S.
Paulo concentrated on those new evidences. He
recognized immediately the first disintegration of
the meson that I showed him. After that moment he
asked me, literally required, to take place in that
new venture.
His contribution was quite important. He
brought in not only his ambition and young energy
but also physical insight, neatness of thought and
long and passionate studies of cosmic ray physics.
In S. Paulo he was criticized as a man of much
thought and little action. In Bristol he exploited in
action every fruit of his studies. An example will
show what I mean. Before the discovery of pionmuon decay, Lattes and Camerini performed a
precise analysis of the products of meson
disintegration and showed that the total energy
produced was greater than the mass equivalent
accepted for mesotrons. That was a task proper of
an authentic physicist.
The discovery and analysis of the pionmuon decay is part of history of science. The
observation of the artificial production of pions
when Lattes left Bristol and moved on to Berkeley
belongs to another epoch. If he had only worked
those two years in Bristol, he deserved already a
place in that history.
But history is an academic and abstract
concept. More immediate should be the widespread
consensus of the younger and weaker then him,
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Giuseppe Occhialini
César Lattes: os Anos de Bristol
na história. Mas história é uma concepção
acadêmica e abstrata. Mais imediato seria o
consenso de todos, mais jovens e mais fracos do
que eles, os quais sempre defendeu. Seu quixotismo
o colocou por vezes em complicações. Isto não era
racional. Dom Quixote é um herói dos racionalistas,
mas como caráter ele era e ainda é muito querido.
Ao César Lattes de hoje, de minhas
memórias do passado, este é provavelmente o meu
melhor tributo. Ser um grande físico é muito difícil,
mas homens mesquinhos também podem sê-lo. A
nobreza de caráter é inata.
which he has always defended. His “quixotic”
character brought him into trouble and difficulty
many times. Dom Quijote is a hero of rationalists
but, as a character, he was and is even today
recalled with love and appraisal.
To Cesar Lattes of nowadays, of my past
memories, this is probably my best tribute. To be a
great physicist is rather difficult, but mean
characters can also be such. Nobility of character is
innate.
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