Apelação Cível n. 2014.032466-6, de Rio do Campo
Relator: Des. Sérgio Izidoro Heil
APELAÇÃO CÍVEL. COBRANÇA. SEGURO DPVAT.
SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. ACIDENTE DE TRÂNSITO
ENVOLVENDO GESTANTE. MORTE DO NASCITURO. ART. 2º
DO CÓDIGO CIVIL/2002. PERSONALIDADE JURÍDICA QUE
NASCE COM A CONCEPÇÃO. INDENIZAÇÃO DEVIDA EM
RAZÃO DO ÓBITO DO FETO. ART. 3º DA LEI 6.194/74.
PRECEDENTES.
DECISUM
REFORMADO.
RECURSO
PROVIDO.
[...] A despeito da literalidade do art. 2º do Código Civil - que
condiciona a aquisição de personalidade jurídica ao nascimento -,
o ordenamento jurídico pátrio aponta sinais de que não há essa
indissolúvel vinculação entre o nascimento com vida e o conceito
de pessoa, de personalidade jurídica e de titularização de direitos,
como pode aparentar a leitura mais simplificada da lei. [...]
3. As teorias mais restritivas dos direitos do nascituro natalista e da personalidade condicional - fincam raízes na ordem
jurídica superada pela Constituição Federal de 1988 e pelo
Código Civil de 2002. O paradigma no qual foram edificadas
transitava, essencialmente, dentro da órbita dos direitos
patrimoniais. Porém, atualmente isso não mais se sustenta.
Reconhecem-se, corriqueiramente, amplos catálogos de direitos
não patrimoniais ou de bens imateriais da pessoa - como a honra,
o nome, imagem, integridade moral e psíquica, entre outros.
4. Ademais, hoje, mesmo que se adote qualquer das outras
duas teorias restritivas, há de se reconhecer a titularidade de
direitos da personalidade ao nascituro, dos quais o direito à vida é
o mais importante. Garantir ao nascituro expectativas de direitos,
ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz sentido
se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida,
que é direito pressuposto a todos os demais. [...] (Resp.
1415727/SC, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 4.9.2014).
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n.
2014.032466-6, da comarca de Rio do Campo (Vara Única), em que são apelantes
Joercio da Silva e outro, e é apelado Seguradora Líder dos Consórcios do Seguro
DPVAT S/A:
A QUINTA CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR VOTAÇÃO
UNÂNIME, CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO. CUSTAS
LEGAIS.
Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs. Des.
Henry Petry Junior e Odson Cardoso Filho.
Florianópolis, 22 de janeiro de 2015.
Sérgio Izidoro Heil
PRESIDENTE E RELATOR
Gabinete Des. Sérgio Izidoro Heil
RELATÓRIO
Trata-se de recurso de apelação interposto por Joercio da Silva e Amelia
Romaniu contra a sentença proferida pelo MM. Juiz da comarca de Rio do Campo
que, na ação autuada sob n. 143.13.000115-7, julgou improcedente o pedido inicial e
julgou extinto o feito na forma do art. 269, I, do Código de Processo Civil; condenou
os autores ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios,
estes arbitrados em R$ 300,00 (trezentos reais), suspensa a exigibilidade porque
beneficiários da justiça gratuita (fls. 93/96).
Nas razões recursais sustentaram, em síntese, que: o ordenamento
jurídico confere proteção à vida intra-uterina, desde a concepção, com fundamento no
princípio da dignidade da pessoa humana; por isso, há direito à indenização
securitária em razão da morte do feto da autora, decorrente de acidente de trânsito.
Pugnaram, ao final, o provimento do apelo (fls. 99/108).
Contrarrazões às fls. 112/118. Após, os autos ascenderam a esta Corte
de Justiça.
VOTO
Preenchidos os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
Extraio do processado que no dia 21 de novembro de 2012 a postulante,
então com idade gestacional de 37 semanas, foi vítima de acidente de trânsito e, em
decorrência desse evento, houve óbito fetal (fls. 15/29). Pretenderam os pais o
pagamento da indenização securitária obrigatória.
Defendeu a seguradora que o seguro não confere cobertura na hipótese,
porque a personalidade jurídica tem início apenas com o nascimento com vida. Logo,
enquanto nascituro, existia apenas expectativa de direitos. Consoante visto, a
sentença foi de improcedência.
Sobre o seguro DPVAT, dispõe o art. 3º da Lei 6.194/74, com redação
dada pela Lei n. 11.945/09:
Art. 3o Os danos pessoais cobertos pelo seguro estabelecido no art. 2o desta
Lei compreendem as indenizações por morte, por invalidez permanente, total ou
parcial, e por despesas de assistência médica e suplementares, nos valores e
conforme as regras que se seguem, por pessoa vitimada:
I - R$ 13.500,00 (treze mil e quinhentos reais) - no caso de morte; [...]
A controvérsia que toca a hipótese passa pela interpretação dada ao art.
2º da lei civil, que disciplina:
Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a
lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Desnecessário que se discorra minuciosamente acerca das teorias que
envolvem o tema – natalista, para quem a personalidade jurídica tem início apenas
com o nascimento; concepcionaista, que considera a concepção como origem da
personalidade jurídica, embora alguns direitos só possam ser exercidos após o
nascimento; e intermediária, para a qual os direitos do nascituro submetem-se a
Gabinete Des. Sérgio Izidoro Heil
condição suspensiva – pois já existe manifestação da Corte da Cidadania no que
toca ao direito dos pais de receberem indenização securitária em hipóteses análogas
à ora analisada, corrente à qual me filio. Cito o recente precedente:
DIREITO CIVIL. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. ABORTO. AÇÃO DE
COBRANÇA. SEGURO OBRIGATÓRIO. DPVAT. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
ENQUADRAMENTO JURÍDICO DO NASCITURO. ART. 2º DO CÓDIGO CIVIL DE
2002. EXEGESE SISTEMÁTICA. ORDENAMENTO JURÍDICO QUE ACENTUA A
CONDIÇÃO
DE
PESSOA
DO
NASCITURO.
VIDA
INTRAUTERINA.
PERECIMENTO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. ART. 3º, INCISO I, DA LEI N. 6.194/1974.
INCIDÊNCIA.
1. A despeito da literalidade do art. 2º do Código Civil - que condiciona a
aquisição de personalidade jurídica ao nascimento -, o ordenamento jurídico pátrio
aponta sinais de que não há essa indissolúvel vinculação entre o nascimento com
vida e o conceito de pessoa, de personalidade jurídica e de titularização de direitos,
como pode aparentar a leitura mais simplificada da lei.
2. Entre outros, registram-se como indicativos de que o direito brasileiro
confere ao nascituro a condição de pessoa, titular de direitos: exegese sistemática
dos arts. 1º, 2º, 6º e 45, caput, do Código Civil; direito do nascituro de receber
doação, herança e de ser curatelado (arts. 542, 1.779 e 1.798 do Código Civil); a
especial proteção conferida à gestante, assegurando-se-lhe atendimento pré-natal
(art. 8º do ECA, o qual, ao fim e ao cabo, visa a garantir o direito à vida e à saúde do
nascituro); alimentos gravídicos, cuja titularidade é, na verdade, do nascituro e não
da mãe (Lei n. 11.804/2008); no direito penal a condição de pessoa viva do nascituro
- embora não nascida - é afirmada sem a menor cerimônia, pois o crime de aborto
(arts. 124 a 127 do CP) sempre esteve alocado no título referente a "crimes contra a
pessoa" e especificamente no capítulo "dos crimes contra a vida" - tutela da vida
humana em formação, a chamada vida intrauterina (MIRABETE, Julio Fabbrini.
Manual de direito penal, volume II. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 62-63; NUCCI,
Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012, p. 658).
3. As teorias mais restritivas dos direitos do nascituro - natalista e da
personalidade condicional - fincam raízes na ordem jurídica superada pela
Constituição Federal de 1988 e pelo Código Civil de 2002. O paradigma no qual
foram edificadas transitava, essencialmente, dentro da órbita dos direitos
patrimoniais. Porém, atualmente isso não mais se sustenta. Reconhecem-se,
corriqueiramente, amplos catálogos de direitos não patrimoniais ou de bens
imateriais da pessoa - como a honra, o nome, imagem, integridade moral e psíquica,
entre outros.
4. Ademais, hoje, mesmo que se adote qualquer das outras duas teorias
restritivas, há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao
nascituro, dos quais o direito à vida é o mais importante. Garantir ao nascituro
expectativas de direitos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz
sentido se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida, que é direito
pressuposto a todos os demais.
5. Portanto, é procedente o pedido de indenização referente ao seguro DPVAT,
com base no que dispõe o art. 3º da Lei n. 6.194/1974. Se o preceito legal garante
indenização por morte, o aborto causado pelo acidente subsume-se à perfeição ao
comando normativo, haja vista que outra coisa não ocorreu, senão a morte do
Gabinete Des. Sérgio Izidoro Heil
nascituro, ou o perecimento de uma vida intrauterina.
6. Recurso especial provido. (Resp. 1415727/SC, rel. Min. Luis Felipe Salomão,
j. 4.9.2014).
Esta egrégia Corte de Justiça também já se debruçou sobre o assunto:
APELAÇÃO CÍVEL. COBRANÇA DE SEGURO OBRIGATÓRIO. DPVAT.
MORTE DE NASCITURO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA.
INDENIZAÇÃO DOS GENITORES POR MORTE DA FILHA EM PERÍODO
GESTACIONAL. POSSIBILIDADE. TEORIA CONCEPCIONISTA. FETO DOTADO
DE DIREITOS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 2º, SEGUNDA PARTE, DO CÓDIGO
CIVIL E DO ART. 3º, I, DA LEI N. 6.194/1974. REFORMA DA SENTENÇA.
RECURSO PROVIDO.
Os genitores do natimorto, segundo o entendimento do Superior Tribunal de
Justiça, se encontram amparados pelo direito de pagamento do seguro obrigatório
previsto no art. 3º, I, da Lei n. 6.194/1974, porque, apesar de despersonalizado, está
sustentado na teoria concepcionista, retratada na segunda parte, do art. 2º, do
Código Civil. Assim, na qualidade de beneficiários e ascendentes da criança falecida
em acidente de circulação, aos pais incide o direito indenizatório. (Apelação Cível n.
2013.000865-9, de Joinville, rel. Des. João Batista Góes Ulysséa, j. 20-11-2014).
E:
AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO DPVAT. SINISTRO OCORRIDO COM
MULHER GRÁVIDA. MORTE DO FETO. DIREITO À INDENIZAÇÃO.
POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DA LEI Nº 6194/74. RECURSO PROVIDO.
PRECEDENTE DO STJ.
"1 - Atropelamento de mulher grávida, quando trafegava de bicicleta por via
pública, acarretando a morte do feto quatro dias depois com trinta e cinco semanas
de gestação.
2 - Reconhecimento do direito dos pais de receberem a indenização por danos
pessoais, prevista na legislação regulamentadora do seguro DPVAT, em face da
morte do feto.
3 - Proteção conferida pelo sistema jurídico à vida intra-uterina, desde a
concepção, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana.
4 - Interpretação sistemático-teleológica do conceito de danos pessoais
previsto na Lei nº 6.194/74 (arts. 3º e 4º). 5 - Recurso especial provido, vencido o
relator, julgando-se procedente o pedido" (REsp. 1120676/SC, RECURSO
ESPECIAL, 2009/0017595-0, rel. Min. MASSAMI UYEDA (1129), rel. p/ Acórdão Min.
PAULO DE TARSO SANSEVERINO (1144), Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA
TURMA, Data do Julgamento: 7-12-2010, Data da Publicação/Fonte DJe 4-2-2011).
(Apelação Cível n. 2009.036144-8, de Chapecó, rel. Des. Cesar Abreu, j.
24-03-2011).
E o Tribunal de Justiça gaúcho:
AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO OBRIGATÓRIO - DPVAT. ACIDENTE DE
TRÂNSITO. MORTE. NASCITURO. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.
INCIDÊNCIA DA LEI Nº 11.482/07. PRECEDENTES.
I - Jurisprudência uniformizada quanto à espécie, nos termos da Súmula 14
das Turmas Recursais do Estado do Rio Grande do Sul, revisada em 18/12/2008.
II - Óbito ocorrido na vigência da Lei nº 11.482/07, que confere legitimidade aos
herdeiros para a percepção da indenização.
III - Possibilidade jurídica de postular pagamento de indenização do seguro
Gabinete Des. Sérgio Izidoro Heil
DPVAT, em caso de aborto decorrente de acidente de trânsito, porquanto o Código
Civil põe a salvo os direitos do nascituro. IV - Legitimidade da ascendente viva para
receber a integralidade da verba, face à condição de natimorto do segurado. V Valor da indenização fixado consoante a Lei nº 11.482/07, não prevalecendo as
disposições do CNSP. RECURSO IMPROVIDO. (Recurso Cível Nº 71004739116,
Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Fernanda Carravetta
Vilande, Julgado em 29/01/2014).
Nesses termos, sendo incontroverso que o acidente de trânsito
ocasionou a morte do feto, os autores fazem jus ao recebimento do valor integral a
que alude a lei do seguro DPVAT, ou seja, R$ 13.500,00 (treze mil e quinhentos
reais), sobre o qual incidirão juros de mora desde a citação (súmula 426, STJ), e
correção monetária desde o evento danoso.
Diante do exposto, voto para conhecer do recurso e dar-lhe provimento
para o fim de julgar procedente a ação e condenar a requerida ao pagamento da
indenização securitária no valor de R$ 13.500,00 (treze mil e quinhentos reais), sobre
o qual incidirão juros de mora desde a citação (súmula 426, STJ), e correção
monetária desde o evento danoso; invertidos os ônus da sucumbência, condeno a
recorrida ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios, estes
arbitrados em 15% (quinze por cento) sobre o montante atualizado da condenação.
Gabinete Des. Sérgio Izidoro Heil
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íntegra da decisão