EDUCACIONAL
Bom-Crioulo
Roteiro de Leitura
Sílvia M. Ruggiero
Adolfo Caminha
VIDA E OBRA DE ADOLFO CAMINHA
Adolfo Ferreira Caminha nasceu em Arati, província do Ceará, em 29 de maio de 1867. Seus pais eram primos e negociantes, e
Caminha foi o primogênito de uma prole de cinco irmãos. Aos dez anos, perdeu a mãe, vítima da grande seca de 1877. Transferido
para Fortaleza, estudou as primeiras letras em casa de parentes. Mais tarde, aos treze anos de idade, foi para o Rio de Janeiro,
acolhido por seu tio-avô, que se encarregou de sua educação, matriculando-o, afinal, na antiga Escola de Marinha.
Datam da época de estudante as primeiras composições em prosa e em verso, publicadas na Fênix Literária, que corria nas mãos
de seus colegas. Logo que terminou o curso na Escola de Marinha, publica, na Gazeta de Notícias, o conto “A Chibata”, denunciando
publicamente o castigo físico em vigor entre os homens da Marinha. Estreava, assim, no jornalismo com um escrito que causava
surpresa e indignação entre seus superiores. Em 1885, tornou-se guarda-marinha, e, no ano seguinte, fez uma viagem de instrução
a bordo do Almirante Barroso, conhecendo, então, as principais capitais das Antilhas e várias cidades dos Estados Unidos. Essa
viagem inspirou-lhe a obra no País dos Ianques, publicada inicialmente em folhetins no Diário do Ceará e depois em livro.
De volta, serviu em diversos navios da Armada, na Guanabara, e em fins de 1888 foi servir no Ceará, junto à Escola de Aprendizes
de Marinheiros.
Naquela época, a Escola de Recife era um importante centro irradiador das principais idéias em vigor na segunda metade do século
XIX: cientificismo, republicanismo, abolicionismo, anticlericalismo, materialismo, entre outras. Caminha, então com vinte e um anos,
já em Fortaleza, participou ativamente da vida intelectual local, aderindo àqueles novos ideais, sendo inclusive membro fundador do
Centro Republicano Cearense.
Por aquela época, Caminha envolveu-se num caso passional, trazendo para si muitas complicações. A mulher era Isabel Jataí de
Paula Barros, casada com um companheiro de farda de Caminha. Freqüentemente eram vistos juntos, lado a lado, trocando sorrisos
e palavras nas ruas de Fortaleza. O ambiente tornou-se tenso entre seus colegas de farda e entre os membros da sociedade cearense.
Foi chamado ao Rio de Janeiro pelo Ministro da Marinha que reprovou sua conduta. Em junho de 1889, entrou em gozo de licença
e voltou para o Ceará para viver com Isabel. Transferiu-se com a mulher para o Outeiro, lugar mais distante, nas cercanias de
Fortaleza.
No entanto, novamente, foi chamado pelo Ministro da Marinha e, daquela vez, o caso se resolveu pela maneira mais dramática: na
iminência de ser mandado para a Europa, negou-se a partir e, em 15 de fevereiro de 1890, foi oficialmente desligado da Armada.
No Ceará, junto de sua mulher, Caminha conseguiu modesto emprego de escriturário de Tesouro Nacional, permanecendo ali até fins
de 1892, sempre cercado de hostilidade do meio social de sua terra, ao qual ele respondia com altivez, isolando-se e entregando-se
a uma crescente misantropia. Durante o tempo em que morou no Ceará, produziu intensamente. Lutou contra a apatia reinante no
meio literário e lançou, em janeiro de 1981, a Revista Moderna, na qual manteve a seção “Notas e impressões”, criticando as obras
recebidas e os acontecimentos sociais locais. Com outros intelectuais fundou a Padaria Espiritual, que se dedicava a difundir as
idéias realistas-naturalistas na província.
Em 1893, transferiu-se com a família para o Rio de Janeiro, onde dedicou-se, de maneira integral, à literatura, crítica literária e
jornalismo.
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Publicou no Rio de Janeiro os romances A Normalista (1893) e Bom-Crioulo (1895), livros que, apesar de já brilharem os
naturalistas, abalam os leitores: são considerados libidinosos, portanto, inteiramente nocivos à moral e aos bons costumes.
A literatura representou, para o naturalista Adolfo Caminha, a arma de que necessitava para denunciar a sociedade hipócrita de seu
tempo. Tal ousadia custou-lhe caro: foi ignorado pela crítica e seu reconhecimento como homem das letras é fato relativamente
novo. Morreu aos 29 anos, atacado pela tuberculose, doença incurável à época.
OBRAS
Romances
Contos
Poesia
A Normalista (1893)
Bom-Crioulo (1895)
Tentação (1896)
Judite (1887)
Lágrimas de um crente (1887)
Vôos incertos (1886)
Crítica Literária
Viagem
Cartas literárias (1895)
No país dos ianques (1894)
CONTEXTO HISTÓRICO
NATURALISMO: A CIÊNCIA NA LITERATURA
Não é possível falar-se do Naturalismo sem associá-lo ao Realismo. Grande parte da crítica literária chega mesmo a reconhecer
aquele como exagero deste. De qualquer maneira, as duas estéticas caminham juntas na segunda metade do século XIX e, muitas
vezes, interpretam-se, chegando mesmo confundir-se em algumas características e posicionamentos.
O Realismo, no Brasil, surgiu em conseqüência da crise criada com a decadência econômica açucareira, o crescimento do prestígio
dos estados do sul e o descontentamento da classe burguesa em ascensão na época, o que facilitou o acolhimento dos ideais
abolicionistas e republicanos. O movimento republicano fundou em 1870 o Partido Republicano, que lutou para substituir o trabalho
escravo pela mão-de-obra imigrante.
Nesse período, as idéias de Conte, Spencer, Darwin, Taine e Haeckel conquistaram os intelectuais brasileiros que se entregaram ao
espírito científico, sobrepujando a concepção espiritualista do Romantismo. Todos se voltam para explicar o universo por meio da
Ciência, tendo como guias o positivismo, o darwinismo, o naturalismo e o cientificismo. O grande divulgador do movimento foi
Tobias Barreto, ideólogo da Escola de Recife, admirador das idéias de Augusto Conte e Hipólito Taine.
O Realismo e o Naturalismo aqui se estabelecem com o aparecimento, em 1881, da obra realista Memórias Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis, e da naturalista O Mulato, de Aluísio Azevedo, influenciados pelo escritor português Eça de
Queirós, com as obras O Crime do Padre Amaro (1875) e Primo Basílio (1878).
CARACTERÍSTICAS
A literatura realista e naturalista surge na França com Flaubert (1821-1880) e Zola (1840-1902). Flaubert é o primeiro escritor a pleitar
para a prosa a preocupação científica com o intuito de captar a realidade em toda sua crueldade. Para ele, a arte é impessoal e a
fantasia deve ser exercida por meio da observação psicológica, enquanto os fatos humanos e a vida comum são documentados,
tendo como fim a objetividade. O romancista fotografa minuciosamente os aspectos fisiológicos, patológicos e anatômicos, filtrando
pela sensibilidade o real.
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Contudo, a escola realista atinge seu ponto máximo com o Naturalismo, direcionado pelas idéias materialísticas. Zola, por volta de
1870, busca aprofundar o cientificismo, aplicando-lhe novos princípios, negando o envolvimento pessoal do escritor que deve,
diante da natureza, colocar a observação e experiência acima de tudo. O afastamento do sobrenatural e do subjetivo cede lugar à
observação objetiva e à natureza sempre, aplicadas ao estudo da natureza, orientando toda busca de conhecimento.
Vindo da Europa com tendências ao universal, o Realismo acaba, aqui, modificado por nossas tradições e, sobretudo, pela
intensificação das contradições da sociedade, reforçadas pelos movimentos republicano e abolicionista, intensificadores do
descompasso do sistema social. O conhecimento sobre o ser humano amplia-se com o avanço da ciência e os estudos passam a ser
feitos sob a ética da Psicologia e da Sociologia. A Teoria da Evolução das Espécies de Darwin oferece novas perspectivas com base
científica, concorrendo para o nascimento de um tipo de literatura mais engajada, impetuosa, renovadora e preocupada com a
linguagem.
Os temas, opostos àqueles do Romantismo, não mais engrandecem os valores sociais, mas os combatem ferozmente. A ambientação
dos romances se dá, de preferência, em locais miseráveis, localizados com precisão, os casamentos são substituídos pelo adultério;
os costumes são descritos minuciosamente com reprodução da linguagem coloquial e regional.
O romance sob a tendência naturalista manifesta preocupação social e focaliza personagens vivendo em extrema pobreza, exibindo
cenas chocantes. Sua função é de crítica social, denúncia da exploração do homem pelo homem e sua brutalização.
A hereditariedade é vista como rigoroso determinismo a que se submetem as personagens, subordinadas, também, ao meio que lhes
molda a ação, ficando entregues à sensualidade, à sucessão dos fatos e às ciscunstâncias ambientais. Além de deter toda sua ação
sob o senso do real, o escritor deve ser capaz de expressar tudo com clareza, demonstrando cientificamente como reagem os homens
quando vivem em sociedade.
Os narradores dos romances naturalistas têm como traço comum a onisciência que lhes permite observar as cenas diretamente ou
por meio de alguns protagonistas. Privilegiam a minúcia descritiva, revelando as reações externas das personagens, abrindo espaço
para os retratos literários e a descrição detalhada dos fatos banais numa linguagem precisa.
Embora fossem contemporâneos e muitas vezes tenham se “interpenetrado”, o Realismo e o Naturalismo apresentam diferenças no
enfoque dado ao tratamento dos assuntos e características próprias. Assim, pode-se dizer que no Realismo as personagens são
mais “humanizadas”, enquanto no Naturalismo ocorre uma espécie de “zoomorfização” das personagens: degradadas à categoria
de animais, sem drama moral, movidas por instintos.
ENREDO
O enredo de Bom-Crioulo baseia-se num fato real, que causou escândalo no Rio de Janeiro, no século XIX, e enfoca a questão da
escravidão por meio de uma abordagem abolicionista e republicana. Atende, assim, à postura de engajamento proposta pela estética
naturalista: o compromisso com a análise, a crítica e a denúncia social.
A crítica e a denúncia se fazem, principalmente, por intermédio dos problemas vividos pelo protagonista, Amaro, que é marginalizado
por uma estrutura social injusta, preconceituosa e hipócrita devido à sua cor.
Narrada em terceira pessoa, a ação tem início com uma descrição, obedecendo ao que preceitua a estética naturalista:
“Marinheiros conversavam à proa, sentados uns no castelo, outros em pé, colhendo cabos ou estendendo roupa ao sol,
tranqüilamente, esquecidos da faina. As chapas dos mastros, a culatra das peças, varais de escotilha, tudo quanto é aço e
metal amarelo reluz fortemente, encandeando a vista.”
Amaro, o Bom-Criolou, é um jovem escravo fugido que se alista como marujo e impressiona todos por sua incomum massa muscular,
além de sua simpatia e disposição para o trabalho.
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Fracassos sexuais com mulheres, e sobretudo impulsos fisiológicos incontroláveis, levam-no a apaixonar-se por Aleixo, um jovem
grumete loiro de apenas quinze anos. Esse aceita o assédio de Amaro e quando estão em terra, vivem juntos num quartinho sórdido
de uma casa de cômodos.
Enlouquecido de paixão, o Bom-Crioulo torna-se péssimo marinheiro, mete-se em confusões e é removido para outro navio.
Após a transferência de Amaro, passam a se desencontrar e o amante adolescente, então, é seduzido pela dona da casa de pensão,
Dona Carolina, que, apesar de quarentona, também deseja Aleixo ardentemente.
Ao descobrir a traição, Bom-Crioulo foge do hospital de onde convalescia de um castigo físico, ordenado pelo oficial de sua
embarcação, e assassina Aleixo, em plena rua, sendo preso de imediato.
No romance, o relacionamento de Aleixo e Amaro é retratado como outro qualquer e Aleixo é sempre descrito como “feminino”,
tornando-se “masculino” só após algum tempo como amante de Dona Carolina.
Se somados a morbidez do amor homossexual de Amaro, seus ciúmes, seu tormento íntimo e seus ímpetos assassinos à descrição
precisa da vida no mar e às cenas terríveis de sadismo dos oficiais da Marinha de Guerra do Brasil (mandando os marujos para a
chibata) têm-se, em o Bom-Crioulo, o romance de atmosfera mais sufocante e opressiva do século XIX, no país.
RESUMO DA OBRA
Amaro, o Bom-Crioulo, é um ex-escravo, ainda num tempo em que a Abolição não fora proclamada, aos dezoito anos, ingressa na
marinha.
“Inda estava longe, bem longe a vitória do abolicionismo, quando Bom-Crioulo, então simplesmente Amaro, veio, ninguém sabe
donde, metido em roupas d’algodãozinho, trouxa ao ombro, grande chapéu de palha na cabeça e alpercatas de couro cru. Menor
(teria dezoito anos), ignorando as dificuldades por que passa todo homem de cor em um meio escravocrata e profundamente
superficial como era a Corte — ingênuo e resoluto, abalou sem ao menos pensar nas conseqüências da fuga.”
Bom-Crioulo torna-se hábil marinheiro, dedicado ao trabalho, vendo na pesada atividade uma situação muito melhor que antes:
afinal, era livre e “a disciplina militar, com todos os seus excessos, não se compara ao penoso trabalho da fazenda, ao regime
terrível do tronco e do chicote”. Além disso, “ali não se olhava a cor ou a raça do marinheiro: todos eram iguais, tinham as mesmas
regalias.”
Os oficiais o estimavam pelo caráter bom e modos ingênuos, por isso é que recebeu o apelido de Bom-Crioulo. (É possível perceber
que, se há “crioulo bom”, tal fato remete à concepção de que a cor da pele não era bem vista: resquícios da marginalidade em que
viveram os escravos).
Ganhou fama, na marinha, de negro forte, determinado, puro músculos, embora de caráter brando. Viajou o mundo afora, embarcado
a serviço.
Entretanto, durante uma viagem em que fora nomeado gajeiro (encarregado) de proa, tomou contato com a cachaça. Nessas horas,
saía de si, ficava violento de tal forma que os demais o temiam.
Nessa viagem conheceu o grumete Aleixo:
“Sua amizade ao grumete nascera. de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de
espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao
mesmo tempo duas naturezas de sexos contrários, determinando o desejo da posse mútua, essa atração animal que faz o homem
escravo da mulher e que em todas as espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar
a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante cousa, nunca homem algum ou mulher produziralhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda
a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de uma ímã.”
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Passou a dar conselhos ao jovem sobre a vida do marinheiro: que não se metesse em brigas.
Mas ele próprio, Amaro, quando serve num cruzador chegado da Europa, sob as ordens do comandante Varela, ao ser punido,
questiona a autoridade do chefe. Aleixo não saía de sua cabeça:
“Nas horas de folga, no serviço, chovesse ou caísse fogo em brasa do céu, ninguém lhe tirava da imaginação o petiz: era uma
perseguição de todos os instantes, uma idéia fixa e tenaz, um relaxamento da vontade irresistivelmente dominada pelo desejo de
unir-se ao marujo como se ele fora o outro sexo, de possuí-lo, de tê-lo a si, de amá-lo, de gozá-lo.
Ao pensar nisso, Bom-Crioulo transfigurava-se de um modo incrível, sentindo ferroar-lhe a carne, como a ponta de um aguilhão,
como espinhos de urtiga brava, esse desejo veemente uma sede tantálica de gozo proibido, que parecia queimar-lhe por dentro as
vísceras e os nervos.”
Amaro estava devastadoramente arrebatado pela paixão homossexual. Jeitosamente, aproxima-se de Aleixo. Tornam-se amantes:
“Depois de um silêncio cauteloso e rápido, Bom-Crioulo, aconchegando-se ao grumete, disse-lhe qualquer cousa no ouvido. Aleixo
conservou-se imóvel, sem respirar. Encolhido, as pálpebras cerrando-se instintivamente de sono, ouvindo, com o ouvido pegado ao
convés, o marulhar das ondas na proa, não teve ânimo de murmurar uma palavra. Viu passarem, como em sonho, as mil e uma
promessas de Bom-Crioulo: o quartinho da Rua da Misericórdia no Rio de Janeiro, os teatros, os passeios ...; lembrou-se do
castigo que o negro sofrera por sua causa, mas não disse nada.Uma sensação de ventura infinita espalhava-se-lhe em todo o corpo.
Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados, uma como vontade ingênita de ceder aos caprichos do
negro, de abandonar-se-lhe para o que ele quisesse uma vaga distensão dos nervos, um prurido de passividade ...
— Ande logo! Murmurou apressadamente, voltando-se.
E consumou-se o delito contra a natureza.”
O narrador é, sob certa ótica, brutal quando narra tais fatos. Não poupa o leitor, não sugere: ele descreve os acontecimentos, como
naturalista que é.
Ao aportarem no Rio de Janeiro, Bom-Crioulo procura sua amiga Dona Carolina e, num sobradinho da Rua da Misericórdia, encontra
para ele e Aleixo um quartinho aconchegante. Estava feliz o Bom-Crioulo:
“Bom-Crioulo, desde a primeira noite dormida no sobradinho, começou a experimentar uma delícia muito íntima, assim como um
recolhido gozo espiritual certo amor à vida obscura daquela casa onde ultimamente ninguém ia, e que era o seu querido valhacouto
de marujo em folga, o doce remanso de sua alma voluptosa. Não sonhava melhor vida, aconchego mais ideal: o mundo para ele
resumia-se agora naquilo: um quartinho pegado às telhas, o Aleixo, e ... nada mais! Enquanto deus lhe conservasse o juízo e a
saúde, não desejava outra coisa.”
Amaro enchia o quartinho de enfeites e, ao amanhecer, estendia sobre a cama de vento um grosso cobertor para “ocultar as
nódoas”.
Por meses e meses levou uma vida absolutamente em ordem. Com Aleixo também a vida ia certa e boa, exceto “Uma coisa desgostava
ao grumete: os caprichos libertinos do outro. Porque Bom-Crioulo não se contentava em possuí-lo a qualquer hora do dia ou da
noite, queria muito mais, obrigava-o a excessos, fazia dele um escravo, uma ‘mulher à-toa’ propondo quanta extravagância lhe
vinha à imaginação. Logo na primeira noite exigiu que ele ficasse nu, mas nuzinho em pêlo: queria ver o corpo ...
Aleixo amuou: aquilo não era coisa que se pedisse a um homem!”
A portuguesa, D. Carolina, dava carinhos a Aleixo, chamando-o de “bonitinho”, cuidando bem dele, admirando-lhe a aparência
sempre limpa, perfumado e vistoso.
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Como o navio estava atracado, Amaro e Aleixo podiam descer a terra e estavam sempre no quartinho. Os três, Amaro, dona
Carolina e Aleixo, passavam a formar família, falavam sobre tudo, riam-se. Dona Carolina gracejava sobre o romance deles:
“Vocês acabam tendo filho ...”
Entretanto, Bom-Crioulo começou, repentinamente, a emagrecer, a achar-se fraco e com dor no peito, sonolento após qualquer
esforço. Seu afeto ao menino já não era lúbrico nem ardente. Havia paz dentro dele: confiava em Aleixo, pois já estavam juntos
há um ano.
Então, Amaro é transferido para outro navio, um couraçado, “um de aço, muito conhecido pelo seu maquinismo complicado e pela
sua formidável artilharia; belo conjunto de forças navais, que fazia desse encouraçado um dos mais poderosos do mundo”, onde há
“um horror de trabalho” e sente profunda revolta contra seus superiores. Amaro não gosta da notícia: iria ter de separar-se do
grumete:
“Renasciam-lhe os zelos: aquela separação brusca e inesperada irritava-o, acordando no fundo de sua alma um egoísmo exacerbado,
uma desconfiança vaga no futuro. — É verdade que o grumete já não era mais criança para se deixar iludir, mas, meu amigo, podia
o rapaz se entusiasmar por algum oficialzinho bonito, e, adeus, Bom-Crioulo!...”
Amaro tem apenas uma folga por mês, devido à sua fama de briguento e indisciplinado.
Enquanto isso, D. Carolina sente por Aleixo uma irresistível atração e decide seduzi-lo, e consegue. Na verdade, durante a ausência
de Bom-Crioulo, D. Carolina empreendera um verdadeiro processo de sedução de Aleixo, até que, um dia, o ataca realmente. O
grumete gosta da experiência e pensa que seria uma felicidade nunca mais ver “o negro”:
“Há dias metera-se-lhe na cabeça uma extravagância: conquistar Aleixo, o bonitinho, toma-lo para si, tê-lo como amantezinho do
seu coração avelhentado e gasto, amigar-se com ele secretamente, dando-lhe tudo quanto fosse preciso: roupa, calçados, almoço e
jantar nos dias de folga — dando-lhe tudo, enfim.
Era uma esquisitice como qualquer outra: estava cansada de aturar marmanjos. Queria, agora, experimentar um meninote, uma
criançola sem barba, que lhe fizesse todas as vontades. Nenhum melhor que Aleixo, cuja beleza impressionara-a desde a primeira
vez que se tinham visto. Aleixo estava mesmo a calhar: bonito, forte, virgem talvez ...”
(. . .)
“Mas Aleixo sabia, por Bom-Crioulo, até onde chega a animalidade humana e, passado o primeiro momento de surpresa, sentiu
que também era feito de carne e osso, como o negro, e D. Carolina — Valia a pena decerto uma noite como aquela!”
“O efebo teve um arranco de novilho excitado ...”
(. . .)
“Bateu à porta e começou a se despir a toda pressa, diante de Aleixo, enquanto ele deixava-se estar imóvel, muito admirado para
essa mulher-homem que o queria deflorar ali assim, torpemente como um animal.”
(. . .)
“Ela, de ordinário tão meiga e tão comedida, tão escrupulosa mesmo, aparecia-lhe agora como um animal formidável, cheio de
sensualidade, como uma vaca do campo extraordinariamente excitada, que se atira ao macho antes que ele prepare o bote ...
Era incrível aquilo!
A mulher só faltava urrar.!”
Aqui está formado o triângulo amoroso que culminará na morte de Aleixo.
Amaro não estava feliz no couraçado, que ele julgava uma prisão de aço “que lhe consumia o tempo, e cuja disciplina um horror
de trabalho, privava-o de ir a terra hoje sim e amanhã não, como nos outros navios”. Estava infeliz longe de Aleixo a quem amava
e desejava e de quem sentia falta.
Tinha ódio aos superiores, como um bicho encurralado. Seu modo de agir metia medo aos oficiais que temiam deixá-lo ir a terra e
arranjar brigas. Evitavam que ele pudesse descer e promover toda sorte de animalidades.
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Insatisfeito e revoltado no couraçado, Amaro sonha desertar e fugir como o amante. Vale-se de um expediente para rever Aleixo:
oferece-se para remar no escaler que fará compras e, ao desembarcar, alegando uma desculpa, foge até seu quartinho em casa de
D. Carolina. Encontra tudo em desordem e desconfia, Aleixo não está e D. Carolina mente, dizendo que o moço quase não tem
aparecido.
Depois de esperar, em vão, por Aleixo, o Bom-Crioulo sai, bebe e arranja confusão; vai preso para o navio e é chicoteado e levado
para um hospital.
Aleixo, em dia de folga, vai ver dona Carolina, louco de desejo pela portuguesa. Ela estava feliz com o jovem amante: “o grumete,
por sua vez, experimentava o que experimentaria qualquer adolescente — uma tendência fatal para a portuguesa, um forte desejo
de possuí-la sempre, sempre, a toda hora, uma vontade irresistível de mordê-la, de cheirá-la, de apalpá-la num frenesi de gozo, num
ímpeto selvagem de novilho insaciável.”
Toda a noite amavam-se como dois bichos. À mente de Aleixo, vinha a figura de Amaro: era-lhe grato, embora reconhecesse nele
sinais de bestialidade. Queria varrê-lo da imaginação, arrancar aquele homem de seus pensamentos. O que o grumete e a portuguesa
não sabiam é que Amaro estava hospitalizado.
No hospital, Bom-Crioulo passava os dias tristemente, pensando em Aleixo, recordando os dias felizes que estivera ao lado dele.
Enquanto cicatrizavam nele os estragos da chibata, crescia o ódio surdo por tudo ao redor: enfermeiros, superiores, oficiais,
companheiros. Insultava os médicos. O seu único consolo era olhar uma fotografia de Aleixo.
Afinal, pediu a um funcionário do hospital que escrevesse um bilhete ao rapaz. Mas a resposta não chegava. Quase enlouquecido,
o Bom-Crioulo “Espojava-se na cama, de um lado para o outro, abafado, sem ar que lhe enchesse os pulmões, numa terrível crise
de nervos, como se estivesse a lutar com fantasmas, ora repuxando os lençóis, ora descobrindo-se todo na agonia de uma
formidável dispnéia. — Abandonado, ele! Abandonado por aquele que o devia estimar como a um pai! Abandonado por Aleixo,
pelo seu querido Aleixo ...”
Acaba sabendo, por um marinheiro, do caso entre Aleixo e D. Carolina:
“Amigado, o Aleixo! Amigado, ele que era todo seu, que lhe pertencia como o seu próprio coração; ele, que nunca lhe falara
em mulheres, que dantes era tão ingênuo, tão dedicado, tão bom!”
Amaro sai do hospital e vai à procura de Aleixo.
Olha, de longe, o sobradinho:
“Veio-lhe um não sei quê, uma saudade, como uma cousa que lhe entrasse n’alma, a dor de uma ingratidão muito velha, quase
apagada. Sim, a dor de uma ingratidão: ali é que ele se juntara ao outro com uma confiança de noivos; ali é que ele tinha passado
o melhor da sua vida; ali é que ele tinha aprendido a amar, a ‘querer bem’.
(. . .)
Enchiam-se-lhe os olhos d’água, turvava-se-lhe a vista, nem era bom pensar ...
Bom-Crioulo sentia-se mais do que abandonado, mais do que nunca lhe doía fundo o desprezo do grumete, esse desprezo calculado,
proposital, voluntário, com que Aleixo o esmagava, o ludibriava impunemente.”
Foi à padaria perguntar por dona Carolina e por Aleixo, uma vez que o sobradinho permanecia fechado; e soube pelo português que
dona Carolina e o Aleixo saíam à noite, levantavam-se tarde todos os dias: “Dizem até que está amigada com o pequeno.”
Foi quando viu Aleixo sair. Precipitou-se sobre ele, xingando-o, agarrando-lhe o braço de maneira desafiadora. Houve um
tumulto, gritos. E quando dona Carolina chegou à janela do dobrado, viu o rapazinho ensangüentado “levado como um fardo, o
corpo mole, a cabeça pendida para trás, roxo, os olhos imóveis, a boca entreaberta.”
Enquanto Aleixo era levado nos braços por dois marinheiros, já morto a navalhadas, o Bom-Crioulo seguia rua abaixo, preso pelos
guardas.
“Ninguém se importava com “o outro”, com o negro, que lá ia, rua abaixo, triste e desolado, entre baionetas, à luz quente da manhã:
todos, porém, queriam ‘ver o cadáver’, analisar o ferimento, meter o nariz na chaga ...
Mas, um carro rodou, todo lúgubre, todo fechado, e a onda dos curiosos foi se espalhando, se espalhando, até cair tudo na monotonia
habitual, no eterno vaivém.”
Consuma-se, dessa forma, um crime passional.
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ESTRUTURA E LINGUAGEM DO TEXTO
O romance Bom-Crioulo está dividido em doze capítulos numerados e sem títulos.
O ritmo da linguagem, que assume o tom coloquial, muito próximo da prosa (característica no naturalismo) chama a atenção do leitor:
“O Bom-Crioulo desembarcou, a pretexto de ‘fazer uma necessidade’, prometendo voltar logo.
— Era um pulo.”
......
“entrou pelo dia com ares de quem não quer se incomodar, o semblante carregado numa sombria expressão de aborrecimento,
falando pouco e em tom grosseiro, ameaçando: — que o deixassem, que o deixassem; não queria brincadeira; ainda rachava a
cabeça dum!”
No entanto, a linguagem coloquial — típica das falas das personagens, seres do povo —, cede lugar a uma linguagem
surpreendemente sofisticada, quando o narrador toma as rédeas da narrativa:
“O domingo amanhecia esplêndido e preguiçoso numa soberba ostentação de azul, fresco e transparente. As montanhas da
baía, o Pão d’Açúcar, os Órgãos, e, lá longe, o Corcovado, sem um floco de nuvem no topo, desenhavam-se na eteral limpidez do
ar calmo, davam à vista uma doce impressão de aquarela.”
Na obra, é valorizada a ação exterior, com destaque para cenas verdadeiramente cinematográficas, como os momentos de briga de
rua, de luta para controlar a embarcação em dia de tempestade ou a cena dos castigos corporais a que eram submetidos os
marinheiros que infringiam o regulamento. Merecem o mesmo tratamento as cenas de sexo, que são interrompidas ou não chegam
a minícias explícitas em virtude da moral social que também atinge o escritor e sua preocupação com a reação do leitor.
Embora o Naturalismo valorize mais a ação externa e o Realismo a ação psicológica, interior, observam-se, no romance, vários
monólogos interiores, tanto de Amaro quanto de Aleixo, para captar e revelar seus conflitos e seus momentos de mudança de
atitude.
FOCO E DISCURSO NARRATIVO
Bom-Crioulo é narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente e impessoal que busca não se confundir com a história, nem
com as personagens. O narrador conta os fatos de modo linear, gradativo, utilizando-se de uma linguagem clara, direta e objetiva.
Dessa forma, relata de maneira objetiva os acontecimentos, faz a denúncia social de maneira isenta e impessoal:
“Inda estava longe, bem longe a vitória do abolicionismo, quando Bom-Crioulo, então simplesmente Amaro, veio, ninguém sabe
donde, metido em roupas d’algodãozinho, trouxa ao ombro, grande chapéu de palha na cabeça e alpercatas de couro cru. Menor
(teria dezoito anos), ignorando as dificuldades por que passa todo homem de cor em um meio escravocrata e profundamente
superficial como era a Corte — ingênuo e resoluto, abalou sem ao menos pensar nas conseqüências da fuga.
......
Nesse tempo, o ‘negro fugido’ aterrava as populações de um modo fantástico. Dava-se caça ao escravo como aos animais, de espora
e garrucha, mato adentro, saltando precipícios, atravessando rios a nado, galgando montanhas ...”
Registra-se, por outro lado, a ocorrência do monólogo interior das personagens, o que enfatiza o estado emocional deles. Esse
recurso possibilita ao leitor a apreensão do verdadeiro estado de espírito da personagem e também a compreensão das diferenças
entre os sentimentos e as atitudes:
“Metidos em ferros no porão, Bom-Crioulo não deu palavra. Admiravelmente manso, quando se achava em seu estado normal,
longe de qualquer influência alcoólica, submeteu-se à vontade superior, esperando, resignado, o castigo. Reconhecia que fizera
mal, que devia ser punido, que era tão bom quanto os outros, mas, que diabo! Estava satisfeito: mostrara ainda uma vez que era
homem... Depois estimava o grumete e tinha certeza de o conquistar inteiramente, como se conquista uma mulher formosa, uma
terra virgem, um país de ouro... Estava satisfeitíssimo.”
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Os discursos empregados pelo narrador são, principalmente, o discurso direto e o indireto livre, com menor incidência para o
discurso indireto, já que esse distancia a fala das personagens.
“— Agora, D. Carolina vai nos arranjar um quartinho, mesmo que seja no sótão, rematou; mas um quartinho sem luxo, para
quando viermos à terra.
— Uma cama ou duas? Perguntou a quarentona.
— Como quiser... Marinheiro é gente que dorme aos quatro, aos cinco... aos cinqüenta! Se houvesse uma caminha larga...
— Arranja-se, meu Deus, arranja-se, tornou a portuguesa, O comodozinho de cima está desocupado, e, quer que lhe diga?, eu acho
que ficavam melhor...
......
O discurso indireto livre aparece em abundância no romance, pelo fato de o narrador-onisciente captar o fluxo do pensamento da
personagem protagonista Amaro:
“Maldita a hora em que o pequeno pusera os pés a bordo! Até então sua vida ia correndo como Deus queria, mais ou menos calma,
sem preocupações incômodas, ora triste, ora alegre, é verdade, porque não há nada firme no mundo, mas, enfim, ia-se vivendo... E
agora? Agora... hum, hum!... agora não havia remédio: era deixar o pau correr...”
......
“Ali ao menos, na fortaleza, ele tinha sua maca, seu travesseiro, sua roupa limpa, e comia bem, a se fartar, como qualquer pessoa,
hoje boa carne cozida, amanhã suculenta feijoada, e, às sextas-feiras, um bacalhauzinho com pimenta e “sangue de Cristo”... Para
que vida melhor? Depois, a liberdade, minha gente, só a liberdade valia por tudo.”
A história quase se narra por si, pela exposição direta dos fatos, que vão montando a estrutura narrativa, ou seja, a história das três
personagens envolvidas num caso de amor: Amaro, Carolina e Aleixo.
O narrador relata os episódios de forma crua, impessoal, distante, no sentido de que não é opinativo. Contudo, não deixa escapar
as minúcias das ações. A questão do homossexualismo em Bom-Crioulo prioriza a demonstração da relação amorosa, humana,
inerente ao ser, em detrimento de uma explicação da patologia sexual.
TEMPO NARRATIVO
Predomina, na obra, o tempo cronológico, a narração linear. O tempo da história coincide com o momento da escritura da obra: a
segunda metade do século XIX. Tal expediente atende à proposta contemporaneísta da corrente realista-naturalista.
A linearidade, no entanto, é rompida vez ou outra com a inserção de alguns flash-back (quando o narrador resgata o passado de
Amaro), rememorações ou digressões. Entretanto, essas ocorrências não quebram a referida linearidade e o romance, portanto, deve
ser considerado cronologicamente disposto.
“Inda estava longe, bem longe a vitória do abolicionismo, quando Bom-Crioulo, então simplesmente Amaro, veio, ninguém sabe
donde, metido em roupas d’algodãozinho, trouxa ao ombro, grande chapéu de palha na cabeça e alpercatas de couro cru. Menor
(teria dezoito anos), ignorando as dificuldades por que passa todo homem de cor em um meio escravocrata e profundamente
superficial como era a Corte”.
“Nesse tempo o ‘negro fugido’ aterrava as populações de um modo fantástico. Dava-se caça ao escravo como aos animais, de espora
e garrucha, mato adentro, saltando precipícios, atravessando rios a nado, galgando montanhas... Logo que o fato era denunciado –
aqui-del-rei! – enchiam-se as florestas de tropel, saiam estafetas pelo sertão num clamor estranho, medindo pegadas, açulando
cães, rompendo cafezais. Até fechavam-se as portas, com medo... Jornais traziam na terceira página a figura de um “moleque” em
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fuga, trouxa ao ombro, e, por baixo, o anúncio, quase sempre em tipo cheio, minucioso, explícito, com todos os detalhes, indicando
estatura, idade, lesões, vícios, e outros característicos do fugitivo. Além disso, o “proprietário” gratificava generosamente a quem
prendesse o escravo.
Conseguindo, porém, escapar à vigilância dos interessados, e depois de curtir uma noite, a mais escura de sua vida, numa espécie
de jaula com grades de ferro, Amaro, que só temia regressar à “fazenda”, voltar ao seio da escravidão, estremeceu diante de um
rio muito largo e muito calmo, onde havia barcos vogando em todos o sentidos, à vela, outros deitando fumaça, e lá cima, beirando
a água, um morro alto, em ponta, varando as nuvens, como ele nunca tinha visto...
Depois mandaram-no tirar a roupa do corpo (até ficou envergonhado..), examinaram-lhe as costas, o peito, as virilhas, e deram-lhe
uma camisa azul de marinheiro.
No mesmo dia foi para a fortaleza, e, assim que a embarcação largou do cais a um impulso forte, o novo homem do mar sentiu pela
primeira vez toda a alma vibrar de uma maneira extraordinária, como se lhe houvessem injetado no sangue de africano a frescura
deliciosa de um fluido misterioso. A liberdade entrava-lhe pelos olhos, pelos ouvidos, pelas narinas, por todos os poros, enfim,
como a própria alma da luz, do som, do odor e de todas as cousas etéreas... Tudo que o cercava: a planura da água cantando na proa
do escaler, o imaculado azul do céu, o perfil longínquo das montanhas, navios balouçando entre ilhas, e a casaria imóvel da cidade
que ficava atrás — os companheiros mesmo, que iam remando igual, como se fossem um só braço — e sobretudo, meu Deus!,
sobretudo o ambiente largo e iluminado da baía: enfim, todo o conjunto da paisagem comunicava-lhe uma sensação tão forte de
liberdade e vida, que até lhe vinha vontade de chorar, mas de chorar francamente, abertamente, na presença dos outros, como se
estivesse enlouquecendo... Aquele magnífico cenário gravara-se-lhe na retina para toda a existência; nunca mais o havia de
esquecer, ó, nunca mais!
Ele, o escravo, ‘o negro fugido’ sentia-se verdadeiramente homem, igual aos outros homens, feliz de o ser, grande como a natureza,
em toda a pujança viril da sua mocidade, e tinha pena, muita pena dos que ficavam na “fazenda” trabalhando, sem ganhar dinheiro,
desde a madrugadinha té... sabe Deus!”
Esse trecho, início do segundo capítulo do romance é um flash-back, que interrompe a narrativa linear, cronológica do livro a fim de
introduzir o passado da personagem principal, Amaro, e seus primeiros sonhos: a possibilidade de usufruir da liberdade, o que mais
tarde se revelará um engodo.
ESPAÇO NARRATIVO
A ação do romance desenvolve-se em dois espaços: no mar, a bordo de uma corveta, e na Rua da Misericórdia, localizada nos
subúrbios do Rio de Janeiro. Ora se apresenta como espaço aberto — de manhãs claras, muita luz e vento — ora fechado, em
espacialidades como o quartinho que o Bom-Crioulo alugou para si e para o grumete, ora a pensão de dona Carolina.
“A velha e gloriosa corveta — que pena! — já nem sequer lembrava o mesmo navio d'outrora, sugestivamente pitoresco, idealmente
festivo, como uma galera de lenda, branca e leve no mar alto; grimpando serena o corcovo das ondas!...
Estava outra, muito outra com o seu casco negro, com as suas velas encardidas de mofo, sem aquele esplêndido aspecto guerreiro
que entusiasmava a gente nos bons tempos de patescaria. Vista ao longe, na infinita extensão azul, dir-se-ia, agora, a sombra
fantástica de um barco aventureiro. Toda ela mudada, a velha carcaça flutuante, desde a brancura límpida e triunfal das velas té à
primitiva pintura do bojo.
No entanto ela aí vinha — esquife agourento — singrando águas da pátria, quase lúgubre na sua marcha vagarosa; ela aí vinha,
não já como uma enorme garça branca flechando a líquida planície, mas lenta, pesada, como se fora um grande morcego apocalíptico
de asas abertas sobre o mar...”
Por meio dessa descrição minuciosa e da riqueza de detalhes que auxiliam a compor o ambiente externo, nota-se como o autor
(naturalista) se debruça sobre o meio que terá papel decisivo no comportamento das personagens, estando de acordo com as
teorias deterministas em vigor na época: as circunstâncias externas determinam o comportamento humano.
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O ambiente de bordo é marcado pelo trabalho exaustivo e por uma vida sem privacidade, o que possibilita a explosão das mais
diversas perversões:
“O convés, tanto na coberta como na tolda, apresentava o aspecto de um acampamento nômade. A marinhagem, entorpecida pelo
trabalho, caíra numa sonolência profunda. Espalhada por ali ao relento, numa desordem geral de ciganos que não escolhem
terreno para repousar. Pouco lhe importavam o chão úmido, as correntes de ar, as constipações, o beribéri. Embaixo era maior o
atravancamento. /.../ No intervalo das peças, na meia escuridão dos recôncavos moviam-se corpos seminus, indistintos. Respiravase um odor nauseabundo de cárcere, um cheiro acre de suor humano diluído em urina e alcatrão. Negros, de boca aberta, roncavam
profundamente, contorcendo-se na inconsciência do sono Viam-se torsos nus abraçando o convés, aspectos indecorosos que a luz
evidenciava cruelmente.”
O ajuntamento de homem favorece a promiscuidade entre indivíduos que vivenciam a solidão da reclusão da vida no mar e que,
principalmente, sentem a falta de liberdade, vítimas de um sistema duro e cruel — a vida na marinha:
“Mas, havia ordem para não desembarcar, e Bom-Crioulo, como toda a guarnição, passou a tarde numa sensaboria, cabeceando de
fadiga e sono, ocupado em pequenos trabalhos de asseio e manobras rudimentares. — Diabo de vida sem descanso! O tempo era
pouco para um desgraçado cumprir todas as ordens. E não as cumprisse! Golilha com ele, quando não era logo metido em ferros...
Ah! vida, vida!...
Escravo na fazenda, escravo a bordo, escravo em toda parte... E chamava-se a isso servir à pátria.”
Por esse trecho, nota-se uma crítica implícita a Abolição dos Escravos que parece não passar de uma ilusão, já que os homens
oriundos das camadas mais baixas da população continuam a ser explorados.
Num segundo momento, a ação de desloca para a terra, mais exatamente para um quarto, de uma casa de pensão, na Rua da
Misericórdia, onde Amaro e Aleixo, após terem se conhecido no navio, vivem o auge e o declínio de seu relacionamento. O espaço
que abriga os dois homossexuais é sempre descrito de maneira disfórica (que causa mal-estar).
“O quarto era independente, com janela para os fundos da casa, espécie de sótão roído pelo cupim e tresandando a ácido fênico.
Nele morrera de febre amarela um portuguesinho recém-chegado. Mas Bom-Crioulo, conquanto receasse as febres de maucaráter, não se importou com isso, tratando de esquecer o caso e instalando-se definitivamente. Todo o dinheiro era para a compra
de móveis e objetos de fantasia rococó, ‘figuras, enfeites, cousas sem valor, muita vez trazidas de bordo.., pouco a pouco o pequeno
‘cômodo’ foi adquirindo uma feição nova de bazar hebreu, enchendo-se de bugigangas, amontoando-se de caixas vazias, búzios,
grosseiros e outros acessórios ornamentais. O leito era uma cama de vento’ já muito usada, sobre a qual o Bom-Crioulo tinha o
zelo de estender, pela manhã, quando se levantava, um grosso cobertor encarnado “para ocultar as nódoas”.”
O espaço aberto — o mar — , que não pertence a Amaro, contrasta com o quartinho sórdido que lhe serve de morada e em que
ocorrem as mazelas de uma vida promíscua com seu companheiro Aleixo. Às condições miseráveis acrescenta-se um dado importante
na visão naturalista: homem e meio intrinsicamente ligados.
PERSONAGENS
As personagens de um romance naturalista raramente são dotadas de alguma profundidade psicológica. São personagens planas,
não evoluem no transcorrer da narrativa, de modo que suas ações apenas confirmam as poucas características que as definem.
AMARO – protagonista, ex-escravo, bom marinheiro, que consegue fama pela força e pela valentia. É extremamente forte, fisicamente.
Sua força provém do trabalho escravo e do trabalho na Armada, em que se engajara após ter fugido da fazenda. Tem trinta anos, no
início da narrativa. Insatisfeito sexualmente em relação às mulheres, opta por um comportamento homossexual quando conhece
Aleixo.
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A força do negro é realçada pelo narrador, numa das cenas iniciais do romance, por meio da discrição de uma cena em que Amaro
está sendo punido com a chibata:
“— Uma! cantou a mesma voz. — Duas!.., três!...
Bom-Crioulo tinha despido a camisa de algodão, e, nu da cintura para cima, numa riquíssima exibição de músculos, os seios muito
salientes, as espáduas negras reluzentes, um sulco profundo e liso d'alto a baixo no dorso, nem sequer gemia, como se estivesse
a receber o mais leve dos castigos.
Entretanto, já iam cinqüenta chibatadas! Ninguém lhe ouvira um gemido, nem percebera uma contorção, um gesto qualquer de dor.
Viam-se unicamente naquele costão negro as marcas do junco, umas sobre outras, entrecruzando-se como uma grande tela de
aranha, roxas e latejantes, cortando a pele em todos os sentidos.”
Amaro, ao entrar para a Armada, é descrito como um homem bom: “seu caráter era tão meigo que os próprios oficiais começaram
a tratá-lo por Bom-Crioulo.” No entanto, corrompe-se pela vida de bordo, que o escraviza, tanto quanto a vida que levava antes da
Abolição:
“Aquele caráter dócil e tolerante, deixara-o ele no alto-mar ou nas terras por onde andara. Agora tratava com desdém os superiores,
abusando se esses lhe faziam concessões, maldizendo-os na ausência, achando-os maus e injustos.”
A mudança de caráter ocorre por influência do meio, traço fundamental da teoria determinista apregoada pelo Naturalismo.
ALEIXO – jovem grumete, claro, olhos azuis e baixa estatura. Tem quinze anos, formas rechonchudas e ar provocador. Assentara
praça em Santa Catarina, obrigado pelos pais:
“Era filho de uma pobre família de pescadores de Santa Catarina que o tinham feito assentar praça em Santa Catarina, e estava se
pondo rapazinho.”
Mas, “Aleixo estava satisfeitíssimo com a vida que ia levando naquele céu aberto da corveta, querido, estimado por todos, invejado
por meia dúzia. Nada lhe faltava, absolutamente nada. Era mesmo uma espécie de principezinho entre os camaradas, o “menino
bonito” dos oficiais, que o chamavam de “boy”. Habituando-se depressa àquela experiência erradia, foi perdendo o acanhamento,
a primitiva timidez, e quem o visse agora, lesto e vivo, acudindo à manobra, muito asseado sempre na sua roupa branca, o boné de
um lado, a camisa um poucochinho decotada na frente, deixando ver a cova do pescoço, ficava lhe querendo bem, estimava-o deveras.
Essa metamorfose rápida e sem transição perceptível foi obra de Bom-Crioulo, cujos conselhos triunfaram sem esforço no ânimo
do grumete, abrindo-lhe na alma ingênua de criançola o desejo de conquistar simpatias, de atrair sobre a sua pessoa a atenção de
todos.”
Aleixo, talvez por seu jeito indefeso, foi a primeira pessoa a conseguir penetrar na solidão em que Amaro vivia. Em vista disso,
é possível perceber que não era somente um ímpeto sexual que os unia, era a paixão embriagante, plena:
“Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de
espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao
mesmo tempo duas naturezas de sexos contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz
o homem escravo da mulher e que em todas as espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente
ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante impressão, desde que se conhecia!
Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo,
naquele mesmo instante, como a força magnética de um imã.”
Entretanto, a fascinação amorosa por parte de Aleixo esmorece tão longo Amaro tem de voltar ao trabalho de bordo. Cada vez mais
distantes, os encontros entre eles rareiam.
Aleixo é, na narrativa, o oposto de Amaro: branco, fisicamente fraco e pueril, subjugado pelas circunstâncias e por quem lhe é mais
forte — será assim com Amaro e com Carolina:
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“Aleixo só fazia responder timidamente: — sim senhor — com um arzinho ingênuo de menino obediente, os olhos muito claros,
de um azul garço pontilhado, e os lábios grossos extremamente vermelhos.”
No entanto, o ar de submissão do grumete transfigura-se ao longo da narrativa. Nada se sabe sobre seu passado, a não ser que era
filho de uma pobre família de pescadores que o tinham feito entrar para a Marinha em Santa Catarina. A ligação com Amaro oferecelhe um novo mundo, bastante diverso daquele de sua origem, e que, acima de tudo, propicia-lhe favores e proteção:
“Mas daí em diante Aleixo foi-se acostumado, sem o sentir, àqueles carinhos, àquele generosa solicitude, que não enxergava
sacrifícios, nem poupava dinheiro, e, por fim, já havia nele uma tendência acentuada para Bom-Crioulo.”
(...)
“Encolhido, as pálpebras cerrando-se instintivamente de sono, ouvindo, com o ouvido pegado ao convés, o marulhar das ondas na
proa, não teve ânimo de murmurar uma palavra. Viu passarem, como em sonho, as mil e uma promessas de Bom-Crioulo: o
quartinho na Rua da Misericórdia no Rio de Janeiro, os teatros, os passeios...”
Quando Aleixo assume o relacionamento com o negro Amaro, exibe uma postura feminina que se manifesta em todas as suas
atitudes, cedendo, mesmo contra a própria vontade, aos desejos de Amaro:
“Estava satisfeita a vontade de Bom-Crioulo. Aleixo surgia-lhe agora em plena e exuberante nudez, muito alvo, as formas roliças
de calipígio ressaltando na meia sombra voluptuosa do aposento. (...) Nunca vira formas de homem tão bem torneadas, braços
assim, quadris rijos e carnudos como aqueles... Faltavam-lhe seios para que Aleixo fosse uma verdadeira mulher!...”
Todavia, a relação de Aleixo e Amaro, aos poucos, esfria. Por causa da rotina e pela falta de novidades, Aleixo conclui que não vale
mais a pena ficar com Amaro:
“Sim, que podia esperar ele de Bom-Crioulo? Nada, e no entanto, estava sacrificando a saúde, o corpo, a mocidade... Ora, não valia
a pena! (...) precisava mudar de vida!”
A partir daí, o jovem marinheiro vai se revelando: à sua fraqueza física, soma-se sua fraqueza moral manifestada, principalmente, pela
inconstância de caráter. Essa inconstância presentifica-se pela indefinição do objeto sexual: Amaro – Carolina. Não lhe importa qual
seja o sexo de seus amantes, desde que as relações lhe ofereçam vantagens.
Demonstrando falta de gratidão, e mesmo nenhuma fidelidade a Amaro, o grumete deixa-se envolver por D. Carolina, que também lhe
proporciona mais regalias:
“Quando Aleixo vinha de bordo, nada lhe faltava naquele pobre sobradinho da Rua da Misericórdia. Tudo era guardado para o seu
formoso marinheirito: eram frutas, doces, comidas especiais, quitutes à portuguesa, isso, aquilo, aquilo outro...”
O caráter de Aleixo é notado claramente no episódio em que, numa cena de ciúme, ele proíbe D. Carolina de ver o açougueiro, que
ainda pagava pelos favores da portuguesa. D. Carolina promete romper com o amante, mas a conclusão do narrador é clara:
“Mas a verdade é que, se o açougueiro não continuasse a fornecer carne e a pagar o aluguel do sobradinho, tanto ele (Aleixo)
quanto a portuguesa teriam renunciado àquele amor.”
É evidente, portanto, que a relação entre o jovem marinheiro e a portuguesa é determinada por mútuos interesses. Mais uma vez,
Aleixo incorpora-se a essa nova relação, de tal forma que suas atitudes passam a ser enfocadas por um viés masculino.
A experiência com Amaro e a observação de vida de D. Carolina fazem que Aleixo se deixe levar pelos costumes locais, fazendo parte
de um jogo em que todos podem lucrar uns com os outros, mesmo que para isso tenham de negociar o próprio corpo.
Mergulhado em seu egoísmo, pensando somente em si mesmo, Aleixo é incapaz de perceber o que sua atitude de descaso para com
Amaro pode causar:
“Mais tranqüilo agora sem receio de que Bom-Crioulo o procurasse para uma vingança, identificado com a portuguesa, esquecido
mesmo de certas coisas que o faziam tímido e medroso, Aleixo ia passando uma vida regalada, ora em terra, ora a bordo da corveta.”
A autoconfiança de Aleixo e sua ignorância da força da paixão que movia Amaro, levaram-no a ser vítima de um ato passional.
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CAROLINA – ex-prostituta e mulher de negócios. Amaro conheceu D. Carolina quando a salvou de um assalto, era uma portuguesa
que mantinha uma pensão num sobradinho da Rua da Misericórdia: “somente para pessoas de “certa ordem”, gente que não se
fizesse de muito honrada e de muito boa, isso mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos, patrícios, amigos velhos... Não fazia
questão de cor e tampouco se importava com a classe ou profissão do sujeito. Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de venda,
tudo era a mesmíssima cousa: o tratamento que lhe fosse possível dar a um inquilino, dava-o do mesmo modo aos outros.
Vivia de sua casa, de seus cômodos, do aluguelzinho por mês ou por hora. Tinha o seu homem, lá isso pra que negar? Mas
independente dele e de outros arranjos que pudesse fazer, precisava ir ganhando a vida com um emprego certo, um emprego mais
ou menos rendoso para garantia do futuro. Isso de homens não há que fiar: hoje com Deus, amanhã com o diabo.
Quando moça, tinha seus vinte anos, abrira casa na Rua da Lampadosa. Bom tempo! O dinheiro entrava-lhe pela porta em jorros
como a luz do dia, sem ela se incomodar. Uma fortuna de jóias, de ouro e brilhante! Já era gorducha, então: chamavam-na Carola
Bunda, um apelido de mau gosto, invenção da rua...”
Depois esteve muito doente, saíram-lhe feridas pelo corpo, julgou não escapar. E, como tudo passa, ela nunca mais pôde reerguerse, chegando ao ponto de empenhar as jóias e tudo, porque ninguém a procurava, porque ninguém a queria (“pobre cadela sem
dono”).
D. Carolina revela-se que, desde o início, uma mulher de negócios, cuja mercadoria era seu próprio corpo. Teve seus revezes e
conseguiu se reerguer, observando como poderia lucrar com os outros, já que também lucravam com ela. No entanto, vive só. Nesse
contexto, Aleixo — assim como o foi para Amaro — é alguém capaz de preencher seu lado mais carente. Por um lado, o jovem
marinheiro representa o filho que ela nunca teve; por outro, o amante jovem e inocente, duas características que ela não possui.
Contudo, diferentemente de Amaro, D. Carolina encara sua relação com Aleixo de modo claro e racional: goza as delícias da carne,
porém sabe tudo o que representa para o grumete: algumas vantagens para seu bem-estar.
“Há dias metera-se-lhe na cabeça uma extravagância: conquistar o Aleixo, o bonitinho, tomá-lo para si, tê-lo como amantezinho do
seu coração avelhentado e gasto, amigar-se com ele, secretamente, dando-lhe tudo quanto fosse preciso: roupa, calçado, almoço e
jantar nos dias de folga — dando-lhe tudo enfim. /.../ Aleixo remoçava-a como um elixir estranho, milagrosamente afrodisíaco.
Sentia-se outra depois que se metera com o pequerrucho: retesavam-se-lhe os nervos, abria-se-lhe o apetite, entrava n’alma uma
extraordinária alegria de noiva em plena lua-de-mel, toda ela vibrava numa festiva exuberância de vida.”
Ao conquistar Aleixo, D. Carolina assume uma atitude masculina: ela o seduz e o possui sem lhe dar chance de escapar. A cena da
conquista é descrita à maneira naturalista, comparando as personagens a animais, evidenciando o que há de mais instintivo no que
as move:
“D. Carolina chegava-se pouco a pouco, estreitando-o, colando-se-lhe num grande ímpeto de fúria lúbrica, de mulher gasta que
acorda a uma sensação nova...
— Tu não podes comigo, disse trançando a perna sobre o joelho de Aleixo.
E envolvendo-o todo com o seu corpo largo de portuguesa rude:
— Dize lá: ficas ou não ficas ?
O efebo teve um arranco de novilho excitado, e, segurando-se à cadeira com as mãos ambas, todo trêmulo agora, sem sangue no
rosto:
Fico!
Então ela, como se lhe houvessem aberto de repente uma caudal de gozo, cravou os dentes na face do grumete, numa fúria brutal,
e segurando-o pelas nádegas, o olhar cintilante, o rosto congestionado, foi depô-lo na cama:
Prai, meu jasmim de estufa, prai! Vais conhecer uma portuguesa velha de sangue quente. Deixa a inocência pro lado, vamos!...
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Bateu a porta e começou a se despir a toda pressa, diante de Aleixo, enquanto ele deixava-se estar imóvel, muito admirado para essa
mulher-homem que o queria deflorar ali assim, torpemente, como um animal.
— Anda, meu tolinho, despe-te também: aprende com tu velha... Anda, que eu estou que nem uma brasa!...
Aleixo não tinha tempo de coordenar idéias. D. Carolina absorvia, transfigurando-se a seus olhos.
Ela, de ordinário tão meiga, tão comedida, tão escrupulosa mesmo, aparecia-lhe agora como um animal formidável, cheio de
sensualidade, como uma vaca do campo extraordinariamente excitada, que se atira ao macho antes que ele prepare o bote...
Era incrível aquilo! A mulher só faltava urrar! E a sua admiração cresceu ainda mais quando ela, sacando fora a camisa ensopada
de suor, caiu nua no leito, arquejante, segurando os seios moles, com um estranho fulgor no olhar de basilisco.”
A descrição dessa cena evidencia uma sensualidade quase animalesca e brutal das personagens, mostrando reações guiadas pelo
que neles há de mais instintivo.
No episódio final, o ponto de convergência das atenções será a luta e a morte e jamais os sentimentos que motivaram as pessoas:
“Muitas vistas dirigiam-se para o sobradinho.
Aleixo passava nos braços de dois marinheiros, levado como um fardo, o corpo mole, a cabeça pendida para trás, roxo, os olhos
tinham grandes nódoas vermelhas. (...)
A rua enchia-se de gente pelas janelas, pelas portas, pelas calçadas. Era uma curiosidade tumultuosa e flagrante a saltar dos
olhos, um desejo irresistível de ver, uma irresistível atração, uma ânsia!
Ninguém se importava com o “outro,” com o negro que lá ia, rua abaixo, triste e desolado, entre baionetas à luz quente da manhã:
todos, porém, todos queriam ver o cadáver, analisar o ferimento, meter o nariz na chaga...
Mas, um caro rodou, todo lúgubre, todo fechado e a onda dos curiosos foi se espalhando, se espalhando té cair tudo na monotonia
habitual, no eterno vaivém.
A narrativa gira em torno dessas três personagens que formam o eixo das principais e o triângulo amoroso do romance. Ao longo
da narração, alguns marinheiros aparecem, um ou outro oficial emite uma fala, contudo são figurantes nessa história passional.
HERCULANO – marinheiro, melancólico, imberbe. Morbidez aparente, retraído, é castigado no início da narrativa por estar se
masturbando.
AGOSTINHO – guardião da proa, fisicamente forte, especialista no trato com a chibata, ama o ofício em todos os momentos.
SANT’ANA – marinheiro castigado por ter brigado com Herculano. Gago, choroso e manhoso.
BIBLIOGRAFIA
Caminha, Adolfo. Bom-Crioulo. 7a ed. São Paulo, Ática. Série Bom Livro, 1999
www.navedapalavra.com.br
www.portrasdasletras.com.br
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AnotaÇões:
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