CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO JOSÉ DE ITAPERUNA
CURSO DE PSICOLOGIA
EVELYN FERREIRA CHAGAS
A MISSÃO FAMILIAR E O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO
Itaperuna/RJ
Dezembro/2012
1
EVELYN FERREIRA CHAGAS
A MISSÃO FAMILIAR E O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO
Artigo
apresentado
à
Banca
Examinadora do Curso de Psicologia do
Centro Universitário São José de
Itaperuna como requisito final para
obtenção do título de Psicólogo.
Orientador:
Boechat.
Itaperuna – RJ
Dezembro/2012
Profª
Esp.
Ieda
Tinoco
2
EVELYN FERREIRA CHAGAS
A MISSÃO FAMILIAR E O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO
Artigo
apresentado
à
Banca
Examinadora do Curso de Psicologia do
Centro Universitário São José de
Itaperuna como requisito final para
obtenção do título de Psicólogo.
Orientador:
Boechat.
Profª
Itaperuna, 05 de dezembro de 2012.
Banca Examinadora:
Profª Esp. Ieda Tinoco Boechat (Orientador)
UNIFSJ – Itaperuna
Prof. Ignael Muniz Rosa (Examinador 1)
UNIFSJ – Itaperuna
Profª Esp. Débora Cristina Rosa Fernandes (Examinador 2)
UNIFSJ – Itaperuna
Esp.
Ieda
Tinoco
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A MISSÃO FAMILIAR E O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO
Evelyn Ferreira Chagas*
Ieda Tinoco Boechat
Resumo: Este estudo busca lançar luzes sobre a missão familiar que o indivíduo
recebe ao nascer. Objetiva analisar quando a missão pode ser considerada
saudável e quando se torna patológica. Se a missão dada pela família e aceita pelo
indivíduo é favorecida pela diferenciação, este pode exercê-la com originalidade,
beneficiando, assim, seu próprio desenvolvimento, o de seu sistema familiar e o da
sociedade; entende-se, aí, que a missão mostra-se saudável. Se, no entanto, o
indivíduo não consegue diferenciar-se, escolhendo perpetuar padrões de
comportamento pautados em valores de seus antepassados sem reflexão e sem
atualização ao novo contexto familiar, histórico e sociocultural, a missão, que tenta
cumprir a todo custo, mostra-se patológica.
Palavras-chave: Família. Individuação. Missão. Patologia.
Introdução
Ao nascer todo indivíduo é recebido em uma família, onde já existem padrões
de interação pré-estabelecidos e existe uma história que perpassa gerações, cheia
de segredos, medos, expectativas, conquistas. Assim, esse novo indivíduo recebe,
antes mesmo de nascer, toda essa bagagem familiar, que será ainda acrescida da
missão que a família lhe destinará, a qual terá seu cumprimento favorecido ou não
pelo processo de diferenciação. Este é o tema a que o presente estudo pretende
dedicar-se.
O artigo ora apresentado justifica-se pela experiência em Estágio Específico
Supervisionado em Psicologia Escolar e no Estágio Específico Supervisionado em
Psicologia Clínica na Clínica São José, ao se perceber que as famílias perpetuam
padrões de comportamento, pautadas em valores de seus antepassados, e o fazem
muitas vezes sem reflexão e sem atualização ao novo contexto histórico e
sociocultural em que se inserem.
A pesquisa tem por objetivo discutir a missão familiar, destacando seus
aspectos saudáveis e também mostrando quando ela se torna patológica. Pretende_______________________________
*Graduanda do Curso de Psicologia do Centro Universitário São José de Itaperuna.
Psicóloga. Terapeuta de família. Psicopedagoga. Professora do Curso de Psicologia do UNIFSJ
e Professor-Orientador do CEJA-Itaperuna.
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se, ainda, discutir questões como as expectativas das famílias nuclear e extensa, a
missão patológica, os conceitos de legado de lealdade e a projeção multigeracional.
O presente estudo de caráter bibliográfico busca uma revisão de literatura
específica, norteada pela obra de autores como Murray Bowen, Vera Calil, Moisés
Groisman, Mônica Lobo e Regina Cavour.
1 Família e o processo de individuação
A família e o indivíduo são sistemas que estão sempre em evolução, atuando
de forma interdependente junto com o meio e perpassando todos os fatores externos
que influenciam seu funcionamento e transformação.
Com base na teoria de Von Bertallanfy (1972), a família pode ser
considerada como um sistema aberto, devido ao movimento de seus
membros dentro e fora de uma interação uns com os outros e com
sistemas extrafamiliares (meio ambiente-comunidade), num fluxo
recíproco constante de informação, energia e material. A família
tende também a funcionar como um sistema total. As ações e
comportamentos de um dos membros influenciam e simultaneamente
são influenciados pelos comportamentos de todos os outros. (CALIL,
1987, p. 17).
A família e seus membros são interdependentes, o comportamento e as
escolhas de cada membro influenciam direta ou indiretamente o comportamento e
as escolhas de todos os outros componentes da família. Além de sofrer também
influências do meio em que vivem, e também de influenciá-lo.
Segundo Andolfi (1989, p. 18), a família é um sistema ativo que se altera
constantemente e, ao mesmo tempo, um grupo cuja coesão garante sua unidade.
Tal processo caracterizado pela continuidade e crescimento psicossocial de seus
membros, promove a diferenciação dos mesmos.
A família está sempre em transformação, por estar sempre em movimento,
passando por alterações provocadas pelo ambiente, pelas exigências sociais e pelas
questões da própria família, como o papel desempenhado pelo indivíduo nesta, e
pela própria transformação que cada um experimenta no cotidiano. Os membros de
uma família são interdependentes: a mudança em uma parte afeta todas as outras
partes componentes desse sistema, ou seja, as vivências de um membro da família
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vão interferir de maneira direta ou indireta nas vivências dos outros familiares,
invariavelmente.
É nesse jogo recíproco de forças – as relações intrafamiliares – que o indivíduo
aprende, em primeira mão, sobre si e sobre o outro. Faz-se necessário enfatizar:
[...] a importância da família tanto ao nível das relações sociais, nas
quais ela se inscreve, quanto ao nível da vida emocional de seus
membros. É na família, mediadora entre o indivíduo e a sociedade,
que aprendemos a perceber o mundo e a nos situarmos nele. É a
formadora da nossa primeira identidade social. Ela é o primeiro “nós”
a quem aprendemos a nos referir. (REIS, 1999, p. 99).
A família não somente tem papel fundamental no que tange à identidade social,
mas também tem relevante participação na constituição da identidade pessoal. No
convívio familiar aprende-se não somente a relacionar-se com os outros, mas
também a olhar para si mesmo, a perceber-se e, assim, construir sua identidade
pessoal.
Segundo Andolfi (1989, p. 19), o processo de diferenciação é o processo de
separação-individuação, em que o indivíduo tem a capacidade de se diferenciar de
sua família, de se expressar de forma única, em que ele tem a liberdade de mudar
ou não, a autonomia para pertencer ou separar-se e alcançar um equilíbrio funcional
por meio de fases de instabilidade e desorganização, necessárias à mudança. “[...]
Isso pode acontecer somente se a família é capaz de tolerar a diferenciação de seus
membros.” (ANDOLFI, 1989, p. 19).
A instabilidade e a desorganização necessárias à mudança somente
acontecem em famílias dispostas a aceitar mudanças. Logo, a diferenciação só pode
ocorrer satisfatoriamente nas famílias que suportam tal instabilidade.
A partir do conceito supracitado, Andolfi (1989, p. 22-25) propõe que a família
pode ser saudável, em risco ou rígida. A família saudável promove um equilíbrio
entre a diferenciação individual e a coesão grupal, cada indivíduo tem autonomia
para se diferenciar e ao mesmo tempo mantém a estabilidade da família, onde um
desequilíbrio temporário pode trazer mudanças. Na família em risco, um membro
mantém toda tensão sobre ele, a fim de preservar a estabilidade e a coesão do
grupo, em que cada membro estabelece sua função em relação a ele; ele adoece,
mas a família busca alternativas. Na família rígida, não há espaço para
autoexpressão
e
crescimento
pessoal,
não
acontecem
mudanças
nem
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aprendizagens, visto que esta é fechada a toda nova experiência. Se um de seus
membros adoece, ele permanece adoecido, pois a família não se abre a procurar
ajuda.
Tudo o que é vivido na interação entre os membros da família passa a orientar
as escolhas do indivíduo: “a experiência humana de identidade tem dois elementos:
um sentido de pertencimento e um sentido de ser separado. O laboratório em que
esses ingredientes são misturados e administrados é a família, a matriz de
identidade.” (MINUCHIN apud GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p. 39,40)
A matriz familiar funciona como um modelo de interação aprendido no decorrer
da vida, uma marca adquirida pelo convívio em família, que é observada nas
relações e na vivência do indivíduo.
[...] a matriz representa o que foi impresso, carimbado no corpo e na
mente, enfim, no self, e que funcionará, enquanto uma estrutura,
como uma resposta interacional em todas as relações presentes e
futuras, como um negativo de uma fotografia onde as silhuetas,
construídas através da vivência com membros de nossa família de
origem, se delineariam de forma clara ou escura de acordo com a
carga emocional dessas experiências. (GROISMAN; LOBO;
CAVOUR, 2003, p. 40, grifo do autor).
A família está em constante transformação por interagir não somente com seus
membros, mas por lidar também com toda a influência do meio externo em que vive.
Seus membros são interdependentes. A família é a primeira formadora da identidade
social do indivíduo e esta contribui, também, para a construção da sua identidade
pessoal, podendo favorecer ou não o processo de diferenciação dos seus membros,
caso suporte vê-los se expressarem com autonomia e liberdade, caso tolere
vivenciar a instabilidade que requer esse processo, que se caracteriza por permitir a
separação e garantir o pertencimento. As relações vivenciadas na família de origem
são impressas no self do indivíduo e conduzirá suas relações atuais e futuras.
2 Missão familiar
Toda família possui sua própria história e sua forma de funcionamento diferente
das demais. Cada nova família constituída une a história de duas pessoas
diferentes, que tiveram uma criação diferente, em lugares diferentes. Com o
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nascimento do primeiro filho, a nova família passa por um conflito em que precisa se
reorganizar para receber o novo membro.
O nascimento do primeiro filho deflagra uma crise, criando um
conflito necessário ao crescimento e evolução daquela família
nuclear, provocando uma desorganização no sistema que tem de
buscar novas formas de equilíbrio e funcionamento, ampliando-o no
sentido vertical, família de origem, e horizontal, família nuclear.
(GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p. 101, 102).
Este novo membro, antes mesmo de nascer traz com ele as expectativas
dessas duas pessoas diferentes – os pais –, além das expectativas dos avós e
demais parentes. Ele também vem inserido em uma cultura e em uma sociedade
que também esperam algo dele. O meio em que ele nasce, a época, as
circunstâncias, o funcionamento da família nuclear e extensiva, as crises familiares,
tudo isso irá influenciar na missão que este indivíduo receberá.
Groisman; Lobo; Cavour (2003, p. 29), fazendo menção a Stierlin e Bowen
apontam que a criança ao nascer já participa de uma história familiar que abrange
várias gerações e recebe uma série de expectativas e delegações além de
projeções dos pais, avós e da família extensiva.
Cada indivíduo, tendo seu nascimento planejado ou não, desejado ou não,
recebe uma missão familiar, um papel a ser cumprido para perpetuar os aspectos
que caracterizam determinada família. O indivíduo recebe essa missão de transmitir
algo considerado importante por esta família, sejam seus valores, princípios,
tradições que se mantém por gerações, ou até mesmo questões mais pessoais
como substituir um membro da família que já se foi, como realizar algo desejado,
porém não realizado pelos pais, como ser resposta aos anseios e medos da família.
Falar sobre missão familiar implica necessariamente conceituar legado e
lealdade. O legado pretende comunicar e transmitir às próximas gerações a
essência da família atual: “[...] o legado é o fenômeno que revela para as gerações
seguintes os principais aspectos da família atual e o que se espera que tenha
continuidade.” (FALCKE; WAGNER, 2005, p. 39).
A lealdade tem por objetivo unir as gerações passadas e futuras de uma família
e “[...] institui uma força saudável ou não, que cria vínculos de conexão entre
gerações passadas e futuras numa família.” (PACCOLA apud FALCKE; WAGNER,
2005, p. 29).
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Todo indivíduo recebe delegações, a missão familiar é inevitável. “Todo ser
humano tem uma missão familiar a cumprir, explícita ou implícita, grande ou
pequena, possível ou impossível.” (GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p. 30)
Nem sempre a missão familiar se mostra possível ou saudável. Por vezes, o
indivíduo pode receber uma missão contrária as suas habilidades e interesses, o
que pode trazer um conflito ao indivíduo, porém cabe a cada um aceitar ou não a
missão familiar que lhe foi conferida. O indivíduo que aceita uma missão que lhe é
prejudicial, tem algum ganho, de alguma forma; ele não pode ser considerado
vítima, visto que também recebe benefícios.
Se olharmos o indivíduo e sua família no aqui e agora de uma forma
circular, tornar-se-á mais fácil o entendimento de que o paciente
referido não é uma vítima dos pais ou do sistema. Existem lucros e
prejuízos de ambos os lados. (GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003,
p. 30).
De acordo com Groisman, Lobo, Cavour (2003, p. 31), é possível perceber a
missão familiar que o indivíduo recebe a partir da observação da função que exerce
na família, da sua profissão e seu nome, das demais relações que estabelece,
estando a missão diretamente relacionada à história geracional familiar.
O conhecimento da história geracional do indivíduo deve ser alcançado
tomando-se para estudo pelo menos três gerações. Murray Bowen formula o
conceito de transmissão multigeracional, assim entendido por Groisman, Lobo,
Cavour (2003, p. 102,103):
[...] incorporação feita pelo(a) neto(a) na terceira geração de
fragmentos maiores ou menores das famílias de origem materna e
paterna. A relação emocional que existia, ou que foi interrompida por
morte ou separação, entre o filho ou a filha na segunda geração com
seus respectivos pais é transferida para a terceira geração. De
acordo com a carga positiva ou negativa dos conflitos não resolvidos
nas gerações anteriores, ela é incorporada pelos netos. Essa
distribuição se dá aos netos que vão nascendo em função do
momento do ciclo vital da família nuclear e extensiva. Cada um vai
receber através de seus pais traços maiores ou menores da
personalidade de seus avós. Esse fenômeno caracterizado por nós
como “incorporação” de um dos avós, ou deles combinados,
caracteriza a tentativa na terceira geração de resolver padrões de
relacionamento anteriores. Provoca uma intervenção na construção
da família, uma vez que o neto no lugar do avô produz um
desbalanceamento nas relações com os pais, que ficam no lugar de
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filhos, impedindo ou bloqueando a formação da terceira geração e,
consequentemente, da família nuclear.
Questões não resolvidas ou mal resolvidas nas famílias de origem podem ser
transferidas às gerações seguintes, dificultando as relações nas novas famílias
nucleares que se estabelecem. Quando o sistema familiar não favorece a
diferenciação de seus membros, estes tendem a repetir os padrões de
comportamento e de interação nas próximas gerações. Na relação familiar, é
possível observar a indiferenciação dos pais com suas próprias famílias de origem.
Bowen (1976) afirma que o processo emocional mostra o modo como
a indiferenciação dos pais, vivida nas experiências com as suas
famílias de origem, é expresso na sua própria relação familiar. O
processo de transmissão multigeracional postula a passagem do
processo de projeção familiar de geração para geração, que fica
explicitado por frases como: "ele tem o gênio do avô", "ela é vaidosa
como os Almeida" etc. Esse processo de projeção familiar aplica-se
em maior ou menor grau de flexibilidade, impedindo movimentos de
mudança pessoal. (BATISTA, 2009, p. 15).
Todo indivíduo que pertence a um sistema familiar é fortemente influenciado
por legados e lealdades, e possui uma missão estabelecida por sua família nuclear
e/ou extensiva. Missão esta que pode favorecer o desenvolvimento, crescimento e a
autonomia deste indivíduo. Ou, por outro lado, pode mantê-lo indiferenciado e sendo
um repetidor de padrões familiares, que, por vezes, podem estar desatualizados e
inadequados ao contexto em que vive.
3 Missão familiar e o processo de individuação
A missão familiar tem grande influência no processo de individuação; esta
poderá favorecer ou prejudicar o referido processo, tornando-se saudável ou
patológica.
Segundo Martins; Robinovick; Silva (2008, p. 182), inicialmente, todo indivíduo
ao nascer encontra-se indiferenciado em relação à sua família. Deverá, então,
conquistar sua independência e autonomia através da diferenciação. A família é o
lugar onde se experimenta o pertencimento e a diferenciação: o primeiro refere-se a
sentir-se participante das crenças, valores, segredos e mitos familiares; o segundo,
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diz respeito a colocar-se como singular e poder pensar e manifestar-se a despeito
do que seus familiares consideram importante.
A missão familiar é saudável quando o indivíduo tem a liberdade e autonomia
para expressar-se de forma diferente dos demais membros da família e, se desejar,
modificar o que aprendeu em seu sistema familiar, modificar algumas de suas
crenças e valores, sem que isso traga um rompimento ou distanciamento de seus
familiares a ponto de não mais sentir-se pertencendo a esse sistema.
Tal movimento promove o desenvolvimento não só do indivíduo como também
de seu sistema familiar e da sociedade na qual está inserido, já que são sistemas
mutuamente interdependentes, em que o funcionamento de um interfere no do outro.
Ele consegue com originalidade desempenhar sua missão, atualizando-se e
buscando adequação ao contexto histórico e sociocultural, em que vive.
A possibilidade de cada indivíduo, no desempenho de sua missão,
conferir um toque de originalidade ao seu sistema familiar é o que vai
propiciar o seu desenvolvimento, o daquele sistema e,
consequentemente, o da sociedade. As famílias deixam de ser meras
estações repetidoras para se tornar estações transmissoras.
(GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p. 32).
Importa ressaltar que, quando um só membro da família muda, todo o sistema
familiar é convidado a passar por uma mudança também. É preciso reorganizar o
sistema para atender as mudanças de cada indivíduo. A mudança favorece a
atualização dos indivíduos dentro da família ao assumirem novas funções e do
sistema familiar dentro de um contexto social mais amplo.
A mudança nas funções de um membro do sistema acarreta
mudança simultânea nas funções complementares dos outros e
caracteriza tanto o processo de crescimento do indivíduo como a
reorganização contínua do sistema familiar através de seu ciclo de
vida. (ANDOLFI, 1989, p. 19).
Contrariamente ao exposto, ou seja, se o indivíduo não pode diferenciar-se, se
é impedido de alternar funções pela imposição do sistema, tem dificultada a
afirmação de sua personalidade, comprometido seu nível de autonomia e sua
diferenciação.
Pode acontecer de as regras de associação e comunicação que
governam o sistema familiar impedirem a individuação e a autonomia
de membros isolados. Essa falta de autonomia, vista na
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incapacidade de alterar funções durante um período de tempo,
resulta em pessoas que coexistem apenas a nível de funções, isto é,
cada um é forçado a viver apenas como uma função dos outros.
Nessa situação, cada um encara a dificuldade de afirmar e
reconhecer sua própria identidade, bem como a dos outros. Ninguém
pode sempre escolher livremente entre elaborar certas funções ou
libertar-se. Cada um acha-se forçado a ser sempre aquilo que o
sistema impõe. (ANDOLFI, 1989, p. 19).
A missão familiar se torna patológica quando ela é, por exemplo, impossível, ou
seja, quando não é compatível com as possibilidades do indivíduo, com suas
habilidades. Um exemplo disso seria quando um pai espera que seu filho seja
jogador de futebol e este, além de não desejar o mesmo, não possui nenhuma
habilidade para tal. Também, a missão pode ser patológica, quando está pautada
em valores ou crenças que se impõem sem reflexão ou atualização condizentes com
o novo contexto histórico e sociocultural, o indivíduo apenas pode repetir o que foi
aprendido.
A patologia se instala quando a família é mais uma estação
repetidora do que transmissora: a missão precisaria se realizar
segundo os desígnios das gerações anteriores, sem possibilidade de
transformação por parte do agora designado paciente referido.
(GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p.32)
A missão familiar pode ser cumprida com originalidade, se favorecida pela
diferenciação que a família oportuniza ao transmitir seus valores e verdades, a partir
de reflexões e abertura a mudanças. Porém, quando a família se atém apenas a
repetir o que lhe foi passado, além de não promover a diferenciação, exige o
cumprimento de uma missão a todo custo, o que poderá produzir o adoecimento de
um de seus membros.
4 Uma história clínica como ilustração
A partir dos conceitos aludidos, faz-se o relato do caso clínico “A Maldição da
Múmia”, apresentado por Groisman; Lobo; Cavour (2003, p. 33-38), a fim de
contextualizar e clarificar tais conceitos.
Júlia, 15 anos, usando antidepressivos, vem à terapia familiar encaminhada por
seu psiquiatra. Ela sente-se ora magra ora gorda; ora está excitada ora triste; tem a
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sensação de seus dentes estarem caindo e de sua pele estar grossa; retrai-se, isolase, não se relaciona com seus pares, troca sempre de escola, por não se adaptar.
O pai de Júlia descende de uma família italiana; é o caçula e tem sua irmã mais
velha como sua segunda mãe. O avô de Júlia era um homem rígido, com o qual seu
pai tinha dificuldade em se relacionar. Ao contrário de sua mãe, que o tinha como
companhia.
A mãe de Júlia era filha de pais separados, vivia com o pai. Quando os avós
maternos de Júlia foram à terapia, foi descoberto um segredo mantido desde a
separação. Júlia sempre teve apenas a versão da avó, por ser muito próxima a ela.
Esta dizia ser maltratada pelo marido. O avô de Júlia nunca falara a respeito com os
filhos e manteve sem relatar seu lado da história. Ficou subentendido que houvera
adultério por parte da avó. A separação dos avós de Júlia não era comentada, e
todos viviam na tentativa de apagar o passado.
Quando a família paterna de Júlia comparece à terapia, dois de seus tios não
aparecem. Dentre eles, um é Suzana, a qual é tida como “a vergonha da família”. Ao
conseguir que Suzana participe de uma das sessões, um temor vem à tona: o pai de
Júlia receia que ela siga os passos de sua tia.
Suzana se recusava obedecer ao pai. Engravidou cedo, casou-se três vezes,
ficou viúva por duas vezes e um de seus maridos enlouqueceu. Ela relatou que vive
na tentativa de voltar à terra natal, que sente-se como a maldição da múmia, por
achar que faz mal a tudo que toca.
Júlia possuía, então, uma missão impossível, segundo a hipótese da equipe
terapêutica: como primeira filha do casal inaugura a família nuclear, que deve
separar-se das respectivas famílias de origem, e ao mesmo tempo, demonstra
sempre o desejo de unir todos numa grande e única família. Isso fica evidente na
realização do genograma.
Logo após a mudança da família de Júlia para longe da casa de sua avó
materna, ela começou a ter depressão. Os sintomas apresentados por ela deixaram
claro o conflito entre a tentativa de eternizar a família, fazendo com que seus pais
permaneçam unidos às suas famílias de origem, e a necessidade de seu processo
de individuação, que proporcionará a ela a construção futura de sua própria família.
É possível perceber a dificuldade de Júlia em encontrar sua própria identidade.
A partir da descoberta da missão familiar, o trabalho terapêutico auxiliou no
desenvolvimento de Júlia, que passou a se relacionar mais com seus pares. E seus
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pais desviaram o foco de atenção sobre ela. A família passou a se preocupar menos
com o que acontecerá no futuro com Júlia.
O processo de individuação de Júlia entrou em conflito com a missão familiar
que ela recebeu de sua família e também aceitou-a, por esta ser impossível, e por
isso, tornou-se patológica. A depressão de Júlia mostrou a necessidade da
diferenciação e de uma reavaliação de sua missão. Como esta não era saudável,
houve necessidade de atualização da mesma.
Todo indivíduo tem a necessidade de se diferenciar, e esta necessidade pode
ou não entrar em conflito com a missão recebida pela família. É nesse momento que
o indivíduo decide colocar ou não sua marca na missão recebida. Este, ao decidir
colocar sua marca, a partir de sua liberdade e autonomia para tal, ele pode atualizála, modificá-la, ou apenas dar um toque de originalidade, tornando-a possível e de
acordo com seus desejos e pretensões. Por outro lado, ele pode decidir não
diferenciar-se, e continuar repetindo os padrões familiares, não atualizando sua
missão que pode não ser saudável, como no caso de Júlia.
O processo de diferenciação, então, pode ser um aliado para a realização da
missão familiar, e em contrapartida, pode ser um empecilho. Neste caso ela se torna
patológica.
A família de Júlia deu-lhe uma missão, missão esta que ela abraçou e tentou a
todo custo cumprir. Sua lealdade era tal que ela preferiu adoecer a decepcioná-los.
Como sua família não permitia que Júlia fizesse seu processo de individuação,
coube-lhe apenas cumprir a missão. Por falta de autonomia não conseguia atender
às expectativas da família e também as suas.
Considerações Finais
A família está sempre em transformação, podendo ser influenciada pelo meio
em que vive, sobre o qual também exerce influência. Além de ser a formadora da
primeira identidade social de seus membros, pois é onde o indivíduo aprende a se
relacionar, a família também promove a construção da identidade pessoal, que se
funda essencialmente no processo de diferenciação, onde o indivíduo é estimulado a
se diferenciar e, ao mesmo tempo, pode sentir-se pertencendo ao seu núcleo
familiar.
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Dentro da família, o indivíduo recebe sua missão familiar, a partir de
expectativas não só dos pais, mas também da família extensiva. Além de influências
históricas e socioculturais. A missão oferecida pela família pode ser aceita ou não
pelo indivíduo que é alvo de delegações e expectativas familiares. Este, a partir do
grau de diferenciação alcançado, pode atualizar e modificar a missão que lhe foi
estabelecida ou mesmo cumpri-la cabalmente com originalidade.
A missão pode ser saudável, por exemplo, quando é possível ao indivíduo
cumpri-la, e quando a família permite que o indivíduo atue com originalidade,
podendo modificá-la quando achar necessário, tendo autonomia para tal. A missão
pode ser patológica quando se mostra, por exemplo, impossível de ser cumprida e
quando não permite que o indivíduo faça modificações a partir de uma reflexão
sobre sua missão. O indivíduo, então, passa a ser um mero repetidor de padrões
familiares, que podem não estar coerentes com o contexto histórico e sociocultural
em que vive nem com suas próprias aspirações e desejos.
A partir deste estudo, foi possível observar que a família, com suas
delegações, expectativas e a missão atribuída ao indivíduo, pode promover a saúde
ou favorecer a instalação de uma patologia em seus membros. O que vai conduzir a
uma situação ou a outra é o processo de diferenciação.
Referências
ANDOLFI, Maurizio e cols. Por trás da máscara familiar. Porto Alegre: Editora
Artes Médicas Sul LTDA, 1989
BATISTA, Marcia Almeida. Valorização dos Avós na Matriz de Identidade. Revista
brasileira psicodrama, São Paulo, v.17, n.1, 2009. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010453932009000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 31 out. 2012.
CALIL, Vera Lúcia Lamanno. Terapia familiar e de casal. São Paulo: Summus,
1987.
FALCKE, Denise; WAGNER, Adriana. A dinâmica familiar e o fenômeno da
transgeracionalidade: definição de conceitos in Adriana Wagner (coord.) Como se
perpetua a família?: a transmissão dos modelos familiares. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2005.
GROISMAN, Moisés; Lobo, Mônica de Vick; CAVOUR, Regina Maria Annibal.
Histórias dramáticas: terapia breve para famílias e terapeutas. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Record Rosa dos Tempos, 2003.
15
MARTINS, Elizabeth Medeiros de Almeida; RABINOVICH, Elaine Pedreira; SILVA,
Célia Nunes. Família e o processo de diferenciação na perspectiva de Murray
Bowen: um estudo de caso. Psicol. USP, São Paulo, v. 19, n. 2, jun. 2008 .
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365642008000200005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 31 out. 2012.
REIS, José Roberto Tozzoni. Família, emoção e ideologia in LANE, Silva T.M;
CODO, Wanderley (orgs) Psicologia social: o homem em movimento. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1999.
16
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