QUANDO O MINISTÉRIO PÚBLICO INVESTIGAR...
Douglas Roberto Ribeiro de Magalhães Chegury
Delegado da Polícia Civil do Distrito Federal
I- A CONSOLIDAÇÃO DE UM ENTENDIMENTO
Foram necessários muitos anos e
renhidas discussões doutrinárias, jurisprudenciais e metajurídicas para que se
atingisse o entendimento relativamente pacificado acerca da legitimidade do
Ministério Público para realizar investigações criminais. As teses e antíteses
esgrimidas ao longo do tempo pelos interesses envolvidos a princípio foram
exaustivamente trabalhadas e discutidas, e são por demais conhecidas. Como
sói ocorrer em querelas desta natureza, nas quais se disputa a titularidade de
um instrumental que se mostrou desde sempre tão estratégico para os que
detêm os mecanismos de controle social, nem sempre o discurso oficial
correspondeu aos reais propósitos que se insinuam nas entrelinhas.
Polícias e Ministério Público foram
colocados e, algumas vezes, se colocaram em pólos opostos, o que redundou
em desgastes institucionais e pessoais e em prejuízo tão somente da
sociedade. Enquanto caprichos, vaidades, discussões rasteiras, perseguições
e retaliações se manifestavam em público e nos ambientes forenses, para
gáudio dos investigados, as falanges delinquentes estimulavam ainda mais o
cisma institucional. Separar para enfraquecer, dividir para conquistar, esta a
bandeira de todos aqueles que sempre temeram órgãos de persecução penal
afinados e trabalhando em harmonia.
II- O VIÉS POLÍTICO DA PERSECUÇÃO CRIMINAL
A investigação criminal apresenta vieses
que, detidamente analisados ao longo da história, permitirão ao intérprete se
deparar com uma ideologia adrede construída com o objetivo de manter as
coisas como elas sempre foram. Já integra o senso comum a noção de que os
clientes exclusivos do direito penal são formados pela trilogia clássica dos “P’s”
(verdadeiros párias). As exceções apenas confirmam a regra e são divulgadas
pela imprensa com estardalhaço face ao inusitado de prisões de
personalidades habituadas a freqüentar apenas as páginas das colunas
sociais.
Certamente, do rol dos direitos fundamentais
insculpidos na CRF, e reiteradamente negados à imensa massa dos “não
cidadãos”, tais como saúde, educação, moradia, a segurança pública constitui
o mais dramático exemplo de uma interpretação constitucional distorcida e
contrária aos interesses da maioria. Paradoxalmente, o Estado, omisso na
implementação de políticas públicas imprescindíveis à dignidade humana,
emprega de forma aviltante a segurança estatal como resposta às
conseqüências de sua não atuação no cumprimento da promessa
constitucional de construção de uma sociedade justa, livre e solidária. O
sistema penal, seus dramas e seus protagonistas, Ministério Público, polícia e
Judiciário, mantiveram-se como predominante resposta dos governos às
aflições dos marginalizados e despossuídos.
III- CAMINHOS E REALIDADES DISTINTOS
Todavia, com o tempo, o MP, graças a um processo
de empoderamento social que atingiu seu ápice na Constituição de 1988,
paulatinamente conscientizou-se da necessidade de alforriar-se do papel de
órgão de repressão, de titular exclusivo da ação penal, e se reconstruiu como
uma das mais legítimas instituições democráticas defensoras dos alijados. Este
processo de redenção, no entanto, encontra-se ameaçado de regressão, como
adiante se detalhará.
A polícia, por outro lado, em que pese o contato
diuturno com todas as faces da miséria humana, manteve-se quase sempre
anestesiada e inoperante em seu papel de coadjuvante desta transformação
solidária. Os gestores de segurança pública, notadamente os delegados de
polícia, “optaram” por fazer coro a um arcabouço erigido a serviço do capital e
dos privilégios de uma casta que desde sempre explora os mais humildes. Bem
verdade que, a forma como se organizou constitucional e legalmente os
aparelhos de segurança pública, comprometeu a margem de autonomia dos
policiais, já que prerrogativas como a inamovibilidade de maneira
incompreensível não lhes foram estendidas. Na verdade, a mentalidade
oligárquica e patrimonialista de nossos dirigentes jamais admitiria uma polícia
que caminhasse com as próprias pernas e afrontasse “os coronéis” e suas
ilicitudes e imoralidades.
IV -UMA HISTÓRIA DE DESCONTRUÇÃO INSTITUCIONAL
Absurdamente, a Polícia Judiciária, de Judiciária
possui apenas o nome, considerando que se encontra submissa ao executivo,
e destituída de autonomia e de independência funcional. Recentemente, a
tentativa de resgate da dignidade policial levada a efeito na Polícia Federal
revelou-se fracassada, uma vez que, ao ousar contrariar interesses
inconfessáveis da classe dirigente, tornou-se alvo de uma campanha de
desconstrução insidiosa jamais vista. A experiência de se elaborar uma Polícia
Federal republicana, pós-moderna, com quadros altamente selecionados,
treinamento de ponta, meios materiais satisfatórios, bons salários e pessoal
estimulado, esbarrou em uma superestrutura de corrupção e privilégios que há
décadas se agarra com suas ventosas insaciáveis nas riquezas da nação.
Durante alguns auspiciosos meses, a população brasileira teve a impressão de
que a engrenagem criminal começava a girar de forma diferente, alcançando
empresários, políticos de alto escalão, magistrados e servidores públicos
graduados, enfim, a verdadeira criminalidade organizada que sangra os cofres
públicos impunemente desde a colônia. Todavia, o “status quo” beneficiado
percebeu a tempo o equívoco em que incorrera ao pretender uma polícia de
primeiro mundo, e deu início a um processo contínuo de sabotamento logístico
da PF que a redireciona para seu curso natural, a trilogia supra referida. A PF
foi abandonada a sua própria sorte, guerras fratricidas entre integrantes
desmotivados, delegados, agentes, antigos e recém ingressos, alimentadas de
forma solerte, a não valorização dos membros, o sucateamento de meios, o
desprestígio das regiões de fronteira, o abandono de operações, etc... apontam
para o início da derrocada de uma utopia que deu falsas esperanças à
sociedade.
V- AVISO AOS NAVEGANTES
Contextualizada desta forma a situação, a
experiência malograda da Polícia balança do cadafalso como uma advertência
e um desafio ao Ministério Público. Ao contrário do que possa parecer a
muitos, o reconhecimento pelo sistema da legitimidade de investigação criminal
por parte do MP e a não oposição das elites a este poder traz consigo uma
armadilha. O establishment, espicaçado pela combatividade de promotores
aguerridos que fiscalizam e reprimem de maneira intransigente os “esquemas e
propinodutos” (os ralos de dinheiro público) não cederia tão fácil à legitimidade
investigativa do MP se não vislumbrasse nesta nova atribuição a oportunidade
de assistir ao auto-engolfamento do “Parquet” em uma realidade que asfixiará
mortalmente a instituição como ocorreu com a polícia, caso se mantenha o
“script”. O MP brasileiro, lamentavelmente, ainda não possui sequer a estrutura
desejável para fazer frente a todos os desafios que se impõem na nova ordem
social, e seria temerário aventurar-se em um mundo de investigação sucateado
e totalmente dilapidado, sem que para tanto seja minimamente aparelhado,
inclusive de ideologia menos elitista. Ademais disto, a destinação de tempo,
recursos humanos e orçamentários preciosos a esta nova linha de
enfrentamento, tão somente atrasará e prejudicará o processo de mudança que
se encontra em curso, capitaneado pelo MP (nas áreas de educação, saúde,
patrimônio público, meio ambiente, dentre outros).
Não se está a defender que o MP se
mantenha afastado da investigação criminal, mas sim que sua atuação se
paute na persecução de delitos e delinqüentes que normalmente não são
alcançados pela polícia, ela mesma vítima de intromissões políticas
paralisantes. Não incorrer na demagogia de combater “os crimes de sempre” a
partir da perseguição desproporcional às verdadeiras vítimas miseráveis é um
de muitos desafios a serem superados. Paralelo a este movimento, o próprio
Ministério Público, em um gesto de significativo compromisso democrático,
deve deflagrar gestão que objetive conferir condições para maior autonomia e
eficiência do trabalho na ação policial. Destarte, o comprometimento do MP
nesta empreita traduzirá em sua autêntica acepção o significado de órgão de
controle externo da atividade policial, que não se limita a recriminar os desvios
e faltas funcionais, mas que colabora efetivamente para a construção de uma
polícia democrática e cidadã. A boa fé e o espírito público conformarão novas
redes de relacionamento entre policiais e promotores, todos imbuídos do
desejo de formarem um só corpo em busca de dias melhores e mais justos
para nosso sofrido povo.
VI- EM UM FUTURO NÃO TÃO DISTANTE
O MP já investiga. De forma um tanto
neófita, é verdade, cambaleando nos primeiros passos, alguns com mais
proficiência e outros com menos, e aos poucos, à medida que adquire
conhecimento e experiência, se destaca por operações bem conduzidas e com
sucesso, mas também apercebe-se dos dilemas e angústias que afligem
aqueles que fazem da atividade investigativa sua vida e sua vocação, os
policiais. Mais dia menos dia, “Quando o Ministério Público Investigar....”
com i maiúsculo, em toda a sua potencialidade e plenitude, a advertência
destas mal traçadas linhas talvez seja lembrada por alguns e talvez, apenas
talvez, a realidade de nosso país possa ser diferente. Para melhor, espera-se!
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