EDITORIAL
O
encontro anual “Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA”
aconteceu em Canela de 28 a 30 de maio. Confrontados com
as páginas sempre atuais de “Análise finita e infinita”, membros
e participantes de nossa Instituição tiveram a oportunidade, incessantemente renovada, de verificar as conseqüências sobre a formação e a
transmissão da psicanálise que as diferentes concepções clínicas acarretam. O debate iniciou-se sobre a análise comparativa dos textos em
alemão e as diferentes traduções em português, o que permitiu verificar,
mais uma vez, o minucioso trabalho sobre a língua, que Sigmund Freud
precisou fazer para recortar nela os significantes capazes de expressar
sua nova conceituação da psique. Um trabalho de esmero literário – que
lhe valeu o prêmio Goethe - com um endereça-mento singular: o de revelar a eficácia racional da língua e seu valor demonstrativo. Simultaneamente, nessa “operação literária”, desvelava que aquilo que escapa à sua
razão se encontra, precisamente, em sua contraface, o que, pelo avesso
que o inconsciente suporta, permite sua interpretação.
Que o inconsciente esteja “estruturado como uma linguagem” é o
que permite seu acesso por meio da palavra. Mas, ao mesmo tempo que
oferece o fundamento da prática psicanalítica, coloca os limites de seu
alcance. Com efeito, a psicanálise é tão interminável quanto o é a
combinatória infinita do significante com o significado.
Surge ali, então, a pergunta sobre o fim de uma análise, no duplo sentido de sua finalidade e de sua conclusão. Abriu-se, nesse ponto, o leque acerca dos delicados dispositivos da psicanálise de crianças e da psicanálise das psicoses. Nelas a prática analítica encontra a
especificidade das relações do sujeito com o significante, perfeitamente diferenciadas do que acontece nas neuroses. Não é por acaso, então, que os casos paradigmáticos da história da psicanálise tenham
sido Anna O. (a histeria, modelo inicial das neuroses), Dick (a dialética
entre o sujeito infantil e o infantil do sujeito) e Aimée (demonstração
inaugural da analisabilidade das psicoses). Respectivamente, Sigmund
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
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EDITORIAL
Freud, Melanie Klein e Jacques Lacan abrem, em cada um desses casos, um novo capítulo da pesquisa e da prática psicanalíticas. Foi a partir
deles que se estabeleceram os princípios da finalidade de uma análise.
Em concordância com o texto freudiano “Análise finita e infinita”, ficou
demonstrado, pela prática clínica, a pertinência de restabelecer o equilíbrio entre a articulação pulsional ao objeto e a capacidade enunciativa do
eu do discurso. O que, necessariamente, implica, para o sujeito em questão, o reconhecimento do que sua rede inconsciente se empenha em
revelar, enquanto sua consciência teima em ocultar. Ou seja, o reconhecimento dos limites de sua relação com o objeto de seu desejo, enquanto que, face ao Outro, tropeça com os limites de sua liberdade.
Desse modo, através do desdobramento conceitual, proposto por
J. Lacan, entre o eu imaginário (aquele que deriva o “complexo do próximo” na direção do semelhante – de acordo com o texto de Freud colocado em discussão) e o eu do discurso (aquele que deriva tal complexo no
viés da lei simbólica), a resolução de uma análise se inclina muito mais
na direção da descoberta de uma forma enunciativa do fantasma que
situou o sujeito nos limites de seu sofrimento e de seu prazer, do que na
adaptação satisfeita à realidade. O endereçamento à verdade da vida vem
substituir o aconchego na satisfação burguesa. Esta última, por outro
lado, é cada vez menos consistente.
A proposição de 17 de dezembro de 1989, contida na Ata de
Fundação da APPOA, constituía uma aposta ao mesmo tempo que um
compromisso, cuja análise, dez anos depois, se impõe. Os significantes
que ali se lançaram pretendiam ser eficazes na resolução dos complicados impasses que, no mundo atual, se abrem entre a vida individual
e a coletiva. Eficazes na resolução clínica, na formação, na transmissão e na difusão da psicanálise. Eficazes, no entanto, não no sentido
da produção de um conforto exterior (disso já se encarrega o bastante
– ou demasiado – a sociedade industrial), mas na direção de encontrar
as equações que permitam desenredar o desejo de sua armadilha ima-
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EDITORIAL
ginária. Armadilha que o conduz, invariavelmente, à resolução contrária à de seu ensejo.
Os efeitos na extensão da prática clínica nas mais diversas instituições da comunidade, as conseqüências de autonomia e, ao mesmo tempo, de responsabilidade na formação dos psicanalistas, o valor
interpelativo (e, conseqüentemente, de produção) junto a outras instituições psicanalíticas, e os efeitos de inserção do discurso psicanalítico na pólis, demonstram as razões do texto fundacional não ser um
mero registro de um evento, mas constante fonte de consulta e debate
durante estes dez anos. Por isso, no après coup de uma década de
trabalho, ele assume a hierarquia de uma proposição.
A presença expressiva de membros da APPOA, num encontro a
eles reservado, demonstra a transmissão de responsabilidade que se
tem operado. Com efeito, a diferença da posição do analista consiste
nesse pequeno traço que recorta sua presença como semblante do
real. Alguém disposto a suportar a verdade e seu exercício em presença, e não de um modo virtual.
Ao imaginário da comunicação no espaço virtual (divertido exergo
da mais livre fantasia sobre o outro), o psicanalista opõe o desdobramento simbólico do ato analítico que, para ter conseqüências de “cura”,
precisa de um espaço real.
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NOTÍCIAS
AS BOAS NOVAS DE JULHO
Iniciamos o ano de 1999 com nova presidência e mesa diretiva renovada pela participação de novos colegas. Novas escutas e novas falas revigoram
o trabalho da instituição, impedindo que o comodismo burocrático e o conforto
das relações bem sucedidas desvirtuem a tarefa institucional.
O resultado já aparece: estamos de casa nova e inauguramos mais uma
capa para o nosso Correio.
A simpática casa que nos acolheu, desde 1996, estava pequena para
nossas múltiplas atividades. Encontramos no Bairro Petrópolis, na Rua Faria
Santos no 258 - uma rua tranqüila - uma casa ampla, que oferece mais conforto
e espaço para as nossas atividades de ensino, podendo abrigar melhor nossa
Biblioteca (que tal uma sala de leitura?) e, também acolher eventos de porte
médio.
Todavia, para que ela possa vir a ser a nossa casa, precisamos arrumála do nosso jeito. Certamente, não teremos, nesse momento, móveis suficientes para o aproveitamento de todos os espaços. Contamos com nossos associados para o trabalho de habitar essa nova casa: idéias, sugestões, doações de
móveis, plantas e quadros serão bem-vindos.
Com relação ao nosso Correio a novidade é óbvia! Capa nova!
Há um ano implementamos uma mudança importante: passamos a fazer a editoração em casa, num esforço de redução de custos e de erros (de
gramática, gráficos e de endereçamento), que a Comissão do Correio tomou a
seu encargo mais diretamente. Este trabalho teve, na coordenação de Jaime
Betts e na experiência editorial de Henriete Karam, o empenho necessário para
tal empreitada.
Aprimorar cada vez mais a edição, que começou como cópia xerográfica
há seis anos, é uma forma de retribuir o interesse que essa publicação passou
a ter como um dos representantes do que se produz na Instituição.
Nossa capa, executada por Flávio Moreira Wild da Macchina, faz alusão
ao ato da escrita, representado pelo manuscrito de Freud; e sobre o que se
escreve, através do nó borromeu proposto por Lacan, que passa a fazer parte
do logotipo da nossa APPOA.
Maria Ângela C. Brasil
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NOTÍCIAS
RELENDO FREUD E CONVERSANDO SOBRE A APPOA
O texto de Freud escolhido para embasar nossas discussões deste ano
foi “Análise finita e infinita” - segundo a escolha de título feita pelo Cartel que
produziu uma nova tradução do original em língua alemã. As questões levantadas por Freud, em um de seus últimos trabalhos, remetem à atualidade da
práxis dos psicanalistas. Quais as condições para que uma análise possa ser
considerada como terminada e qual a finalidade da prática psicanalista eram
considerações que, simultaneamente, associavam-se aos questio-namentos a
respeito de se os psicanalistas poderiam fazer previsões sobre os resultados
de seu trabalho e, mesmo, encurtar o tempo de duração das análises, assim
como fazer uma profilaxia dos futuros tratamentos. Frente às idealizações e
esperanças de adaptação, o texto freudiano é claro e rigoroso - não devemos
achar que nosso trabalho tenha qualquer coisa de mágico, ou que os conceitos
servirão para eximir os psicanalistas de sua responsabilidade ou de colocar
seu desejo em causa.
Tópicos como estes articulam-se muito bem com este encontro na serra
gaúcha, marcado pela passagem dos dez anos de fundação da APPOA. Pois,
como foi discutido ao longo dos três dias (28, 29 e 30 de maio passado), após
este decênio, cabe uma interrogação sobre nossa relação com o compromisso
assumido no ato de fundação da Associação. Quais os efeitos deste ato na
produção da psicanálise em nossa pólis e como podemos pensar a efetividade
de nosso trabalho, ou seja, examinando os efeitos de formação e as possibilidades de seguir rompendo com a ilusão especular, não permitindo que o conforto da amizade ou do gozo narcísico das pequenas diferenças, transformado
em inimizades, possam emperrar nosso trabalho e responsabilidades.
Como estes encontros - “Relendo Freud e conversando sobre a APPOA”
- não têm a preocupação de fechar as discussões, mas exatamente de possibilitar a abertura de espaço de fala e de engajamento, o simples fato de podermos enfrentar o mal-estar e discutir os pontos que o texto freudiano, e a própria
Ata de Fundação da APPOA analisa, nos parece um indício de que o que era
uma aposta, hoje, transformou-se efetivamente num lugar de responsabilidades para com a psicanálise.
A disponibilidade, desta feita, passou por um programa que na sexta-
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NOTÍCIAS
feira à noite, contou com uma discussão inicial, na qual Mario Fleig apresentou
questões produzidas a partir da tradução do texto e que tinham as conseqüências psíquicas como eixo principal. A partir da letra freudiana. Ana Costa e
Robson Pereira teceram, respectivamente, comentários sobre o final de análise e alguns tópicos sobre a idealização, evocados a partir do texto. No sábado,
a discussão esteve conduzida, inicialmente, pelos dois grupos que estão encarregados de fazer circular as questões a respeito da análise de crianças e da
clínica das psicoses dentro e fora das instituições. Estes dois temas articularam-se com os limites da clínica psicanalítica pensados por Freud, assim como
com a atualidade da APPOA, onde se organizam dois departamentos nestas
duas particularidades da prática psicanalítica.
No domingo, a Ata de Fundação foi o documento base para todas as
discussões. Exatamente dando uma amostra de que as questões que o texto
buscava interpretar fazem parte do real da clínica ainda hoje. Daí, podemos
destacar um ponto que nos parece exemplificar a singularidade da prática da
Associação, desde os primórdios de seu funcionamento: as entrevistas de acolhimento. Dos depoimentos e questionamentos importantes surgidos a partir
dos encarregados de iniciar os debates (Alfredo Jerusalinsky, Maria Ângela
Brasil e Lucia Serrano Pereira, membros da atual direção), e mesmo por parte
das pessoas presentes, gostaríamos de destacar uma frase de Anna Callegari,
que durante vários anos fez parte da Comissão de Acolhimento: “a respeito da
demanda que eu recebo, não sou eu que decido segundo minha subjetividade.
Aquilo que eu escuto tem que passar pela escuta dos outros”.
A escuta dos outros propicia que um sujeito não fique entregue aos
caprichos da subjetividade e da transferência imaginária. Poder contar com o
reconhecimento e a crítica e com espaços onde a palavra tem seu valor são
formas de contar com os outros para compartilhar como estamos engajados na
psicanálise.
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NOTÍCIAS
BIBLIOTECA
ROLAND CHEMAMA
UM QUESTIONAMENTO LACANIANO NA ATUALIDADE
Em agosto próximo, sob este título geral, estará trabalhando conosco
Roland Chemama. Teremos, na APPOA, além de suas atividades na Unisinos
e no Espaço de Estudos Psicanalíticos, vários encontros de trabalho, cada um
com as suas peculiaridades. Por hora, informamos os dados principais e, oportunamente, seguirá o folder com maiores detalhes, que estarão à disposição na
Secretaria da APPOA.
CAXIAS DO SUL
12/08 – 19h e 30min – Discussão Clínica: Neurose obsessiva feminina hoje
Local: Hotel Cosmos – Rua 20 de setembro, 1563
Inscrições: Sede da APPOA
Valores: associados da APPOA - R$ 45,00 / não associados - R$ 50,00
SÃO LEOPOLDO – UNISINOS
13/08 – das 14h e 30min às 17h e das 19h e 30min às 22h e 30min –
Problematizações sobre o conceito de clivagem
Local: Auditório Centro 4
Inscrições e informações: (051) 590 8305
14/08 – 8h e 30min às 12h e 30min – A questão masculina
Local: Auditório Centro 4
Inscrições e informações: (051) 590 8305
IJUÍ – Espaço de Estudos Psicanalíticos (EEP)
16/08 – 15h – A clínica psicanalítica e a sexuação na atualidade
Local: Auditório da Sede Acadêmica da UNIJUÍ
Inscrições e informações: EPP – tel. (055) 332 9464
Valores: Associados do EEP – R$ 10,00
Estudantes – R$ 15,00
Profissionais – R$ 25,00
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NOTÍCIAS
PORTO ALEGRE – APPOA
14/08 – 14h e 30 min
Reunião do Cartel do Interior, com apresentação de um caso clínico por parte
de um membro do Cartel e discussão com R. Chemama
Local e inscrições: Sede da APPOA
Valor: R$ 15,00 – (vagas limitadas)
17/08 – 18h – Reunião da Mesa Diretiva (aberta a membros e participantes da
APPOA), com participação de R. Chemama. Entre outros assuntos, serão discutidos os possíveis projetos de trabalho entre AFI e APPOA.
Local: Sede da APPOA
17/08 – 20h e 30min – Reunião com membros e participantes da APPOA, com
intervenção de R. Chemama sobre o tema: O pai e o mestre na transmissão da
psicanálise.
Local: Casa de Cultura Mario Quintana – sala A2B2
18/08 – 20h e 30min – Conferência: Indagações sobre o Brasil e sua aposta
para a psicanálise
Local: Hotel Everest – Salão Rio Grande do Sul – Rua Duque de Caxias, 1357
Inscrições e informações: sede da APPOA
JORNADA DE NOVEMBRO
Estamos dando início ao trabalho de preparação das jornadas do segundo semestre. Desta vez foi escolhido um tema que se tem constituído como
fonte das indagações mais atuais sobre as neuroses: a peculiaridade com que
a neurose obsessiva tem se imposto ao trabalho clínico. Esta apresentação da
neurose – mais resistente aos efeitos de transferência – toma sua
contextualidade na forma como o laço social se constitui hoje. Voltar a indagarnos sobre os pressupostos das neuroses requer um exercício constante, na
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NOTÍCIAS
medida em que as construções sintomáticas são sempre precipitações do
tempo em que estamos.
Há alguns anos atrás, o diferencial das neuroses parecia definir as
identidades sexuais: histéricas, as mulheres; obsessivos, os homens. Hoje,
cada vez mais mulheres parecem ter na obsessão uma escolha de sintoma.
Se não tantos anos se passaram, cabe a indagação se as duas neuroses
compõem estruturas distintas, na medida em que a prática clínica permite
pensar que há uma migração de uma a outra, quando muda o apelo fálico
(social) no que diz respeito à representação do sexo. Nesse sentido, talvez
não se trate de duas estruturas, mas de uma só, que compõe o laço histeriaobsessão como par complementar. Essa parece-nos uma questão que merece ser pesquisada.
Ampliando a indagação sobre a neurose obsessiva hoje, eis um elenco
preliminar que poderia constar nessa pesquisa:
- a peculiaridade da busca obsessiva no declínio da confiança num
universal;
- o tabu do contato e as expressões atuais do sublime e profano;
- a passagem do corpo flagelado ao corpo perfeito (corpo-idéia): as
disciplinas corporais;
- a desnaturação da mulher-mãe;
- a temporalidade obsessiva: a evitação (ou procrastinação) e a anulação (ou... ou...);
- o artifício da não escolha sexual na obsessão;
- a atividade homossexual e a separação amor e sexo (sublime e
profano);
- a busca das mulheres por realizarem o nome do pai.
O encontro do Cartel terá lugar no dia 15/07, às 19h30min, na sede da
APPOA. Está aberto a todos que queiram participar.
Responsáveis pelo cartel: Ana Maria da Costa, Conceição Beltrão e Lucia
Mees.
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NOTÍCIAS
Solicitamos que, caso alguém disponha de versões em português
dos seminários abaixo listados, entre em contato com a Biblioteca.
Seminário 6 – xerox (O desejo e sua interpretação) – APPOA
Seminário 12 – Problema cruciais para a psicanálise
Seminário 13 – O objeto da psicanálise – nenhum exemplar
Seminário 14 – A lógica do fantasma
Seminário 15 – O ato psicanalítico
Seminário 16 – De um outro ao outro
Seminário 18 – Um discurso que não seria do semblante
Seminário 19 - ... ou pior
Seminário 22 – R.S.I
Seminário 23 – O sintoma
Seminário 24 – L’insu que saint de l’une-bévue s’aile à mourre
Seminário 25 – O momento de concluir
Seminário 26 – A topologia e o tempo
NOVAS AQUISIÇÕES DA BIBILIOTECA
Livros
Roudinesco, E. e Plon, M. Dicionário de psicanálise.
Kandinsky, V. De lo espiritual en el arte. (Doação de Mercês Ghazzi)
Sujeito e Linguagem: colóquio psicanálise e filosofia - Letra Freudiana - n.22
Outros
Correo de La E.F.B.A - Abril/99, n. 2596
Escritos da Criança. Centro Lydia Coriat. Porto Alegre/1998, n. 5 (Doação do
Centro Lydia Coriat)
Revista do CEP de PA. Edição especial mar/1999 (Doação do CEP)
Revista Latinoamerica de Psicopatologia Fundamental, vol. II, n. 1, mar. 1999.
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NOTÍCIAS
A CLINICA INSTITUCIONAL EM DEBATE
– DEMANDA DE ATENDIMENTO –
Apesar do subtítulo acima pecar pela falta de rigor, decidimos mantê-lo,
em favor do uso corriqueiro que dele muitas vezes fazemos. Entretanto, não
nos ocuparemos disto no presente texto.
Interessa-nos pensar em que consiste um pedido de tratamento endereçado a uma instituição. A quem se endereça? O que nos diz daquele que o
enuncia?
Quais as condições de analisabilidade que tal pedido porta?
O Fórum da APPOA convida todos os interessados pelo tema a discutirem tais questões com o Banco de Horas-Programa de Acolhimento do Instituto da Mama do Rio Grande do Sul.
Data: 15 de julho
Horário: 21h
Local: nova sede da APPOA – Rua Farias Santos, 258
Fórum
PUBLICAÇÕES
A Comissão de Publicações informa que Marcelo Gensas é o encarregado da implantação de um programa de divulgação e distribuição da APPOA.
Solicitamos que informações de possíveis locais de distribuição e eventos vindouros sejam endereçadas para :
[email protected]
MUDANÇA DE ENDEREÇO
Eda Estavanell Tavares e Alfredo Néstor Jerusalinsky informam seu novo
telefone residencial: (051) 328 2497
Lúcia Alves Mees informa seu novo endereço e telefone do consultório: Rua 24
de Outubro,1100 sala 701 – (051) 222 9300
Beatriz Kauri dos Reis informa seus telefones residencial: (051) 3422370 e
celular: (051) 9615570
Maria Lúcia Müller Stein informa seu novo telefone residencial: (051) 3385621
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SEÇÃO TEMÁTICA
A
s discussões que antecederam a preparação desse número do
Correio foram atravessadas por uma fala recorrente: “Precisamos marcar uma diferença em relação à edição cuja Seção
Temática foi “O Virtual e a Criança”; “Não é repetitivo falar do virtual?”.
Bem, a repetição não é assunto estrangeiro aos psicanalistas que, desde
Freud, ocupam-se desse fenômeno que “compulsivamente” assola o
cotidiano neurótico. Também não nos é estranho o fato de que aquilo
que se repete se sustenta não só numa igualdade em relação ao que
está sendo reatualizado, mas também na diferença que aí se inscreve.
Nesse sentido, a repetição sempre fracassa...
E, por sorte, não fugimos a isto. Fracassamos em produzir o
igual, para alívio dos mais preocupados. Porém, não nos furtamos ao
fato de que, se trouxemos à baila novamente o tema, é porque ele é
significante. Significante também pela polissemia que os textos testemunham. Pois, mesmo se debruçando sobre o mesmo assunto, os
artigos com os quais o leitor se encontrará abordam o virtual nas suas
mais diversas intersecções. Repetimos o mesmo, pois a interrogação
a respeito dos efeitos produzidos pelos novos artefatos que nossa
contemporaniedade cunhou, principalmente os relacionados às novas
tecnologias, insistem. Mas, por outro lado, não fechamos lugar ao
diferente... Em tempos de ciberespaço, escrevendo com nossos modernos editores de texto, repetimos, tal como Freud descreveu com
sua pena a quase cem anos atrás.
Simone Moschen Rickes
Maria Lúcia Müller Stein
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RICKES, S. M. Um texto amarrotado.
UM TEXTO AMARROTADO
UMA PSEUDO-RESENHA
Simone Moschen Rickes
A
palavra virtual pode trazer consigo a idéia de um ambiente
informático, onde a realidade possa ser reproduzida por modernos softwares, que permitam aos sujeitos experimentarem sensações, terem determinadas percepções, sem correrem o risco do contato com o semelhante. Ou seja, dizer virtual pode evocar, quase em
um movimento automático, as tecnologias informáticas de que dispomos e seus efeitos em nosso cotidiano. Estranhamente, é no livro O
que é o virtual?, de Pierre Lévy, alguém que tem-se caracterizado por
estudar as conseqüências do advento informático nas possibilidades
de laço social que marcam a contemporaneidade, que encontramos a
tentativa de conceitualizar o virtual como categoria passível de adjetivar
entidades que não estejam exclusivamente ligadas aos ambientes
telemáticos. É no intuito de trazer alguns elementos para contribuir na
problematização do tema reservado pelo Correio para este mês - o
virtual -, que proponho fazer um breve percurso por este livro de Lévy,
colhendo deste noções que permitam, para além de pensar tal conceito a partir deste autor, interrogar a leitura e a escrita como objetos
adjetiváveis pelo virtual.
Conforme Lévy, “a palavra virtual vem do latim medieval virtualis,
derivado por sua vez de virtus, força, potência. Na filosofia clássica, é
virtual o que existe em potência e não em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal.
A árvore está virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real mas ao atual: virtualidade
e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferentes” (1996, p.15).
Assim, quando se fala de virtual, não se está falando de algo que se
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SEÇÃO TEMÁTICA
encontra em potência, já constituído, apenas esperando por sua realização, não se está aludindo à esfera do possível que em si guarda
identidade com o real - tomado por Lévy enquanto realidade factual , sendo que apenas ainda lhe falta existência. Falar de virtual é remeter-se a um complexo problemático, a “um nó de tendências ou de
forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto,
ou uma entidade qualquer e que chama a um processo de resolução:
a atualização” ( Idem, p.16). O que marca uma virtualidade é seu
potencial criador, sua capacidade de colocar questões, de abrir caminhos, e essa não é uma característica qualquer, mas sim algo que é
estrutural a certas entidades (acontecimentos, objetos, situações...).
As características que compõem o virtual permitem tomá-lo
como puro movimento, onde a cada problematização surgem novas formas, novas maneiras, novos lugares, que retroalimentam a
capacidade de virtualização da entidade que lhe deu origem. Esse
movimento contínuo de problematização que o virtual comporta faz
dele algo que, com freqüência, não está presente, que não encontra lugar no espaço físico e geográfico comuns, nem na temporalidade cronológica.
Ao analisar o virtual, Lévy se debruçará sobre três aspectos:
o corpo, a economia e o texto. Quanto ao primeiro, apontará para
uma série de problematizações que os avanços tecnológicos trazem à própria noção de corpo, seja, por exemplo, por uma externalização da percepção propiciada pelo telefone, em relação à audição, ou pela televisão, em relação à visão - isso para não falarmos
de artefatos muito mais “modernos” -, ou ainda, pelos avanços
médicos que permitem que se transplantem corações de babuíno ou
fígados de porco para prolongar a vida dos humanos. “A carne e o
sangue, postos em comum, deixam a intimidade subjetiva, passam
ao exterior” (1996, p.30), virtualizando a categoria corpo, à medida
que problematizam a sua própria definição1.
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RICKES, S. M. Um texto amarrotado.
A economia, por sua vez, é concebida por Levy como o lugar
princeps da desterritorialização e da virtualização. O que marca, por
excelência, o virtual, a saber, “o desprendimento de um aqui e agora
particular, passagem ao público e sobretudo heterogênese” (Idem, p.57),
está presente de forma ineludível na economia contemporânea. Se as
relações de consumo, dirigidas aos bens de produção, buscavam a
sua apropriação exclusiva, bem como, derivavam na destruição do próprio bem como efeito do ato de consumi-lo, as relações que se dirigem
ao conhecimento e à informação, principais fontes de riqueza da atualidade, não redundam em destruição dos mesmos, nem em sua perda
como conseqüência de sua cedência - isso porque não perco ou destruo a informação que compartilho. Essa nova forma de se relacionar
com as riquezas, conforme nos aponta Lévy, faz com que assistamos
a uma economia que se inscreve sobre outras bases, onde as noções
de consumidor, produtor, intermediário e produto encontram-se
problematizadas e reclamam por soluções qualitativamente diversas.
Problematização esta que atinge a própria idéia de trabalho, assim como
a de profissão, que, por conta de uma produção de informação e conhecimento que se renova em ciclos cada vez mais curtos, é também
posta em xeque em tempos cada vez menores, fazendo com que assistamos ao surgimento e ao ocaso de várias profissões, o que traz conseqüências que tivemos oportunidade de examinar no Congresso sobre o
Valor Simbólico do Trabalho.
E sobre o texto? O que diz Lévy?
Tal problematização acerca da imagem que o homem tem de seu corpo já aparece,
desde muito cedo, nos estudos de Freud e Lacan. Nas palavras deste último: “é sempre
ao redor da sombra errante do seu próprio eu que vão-se estruturando todos os objetos
de seu mundo. Terão todos um caráter fundamentalmente antropomórfico, podemos até
dizer egomórfico. É nesta percepção que é evocada para o homem, a todo instante, sua
unidade ideal, que como tal, nunca é atingida e a todo instante lhe escapa.” (Lacan, 1985,
p. 211). A idéia de uma relação corpo / objeto, em que a fronteira entre ambos não se
encontra definida de forma rígida, de forma a garantir um dentro e um fora estabelecidos
de maneira estanque, já se faz ver nas teorizações psicanalíticas acerca da construção
da imagem do corpo que parecem, tomando a noção de Lévy, virtualizar o conceito de
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SEÇÃO TEMÁTICA
Uma característica do virtual é um certo efeito Moebius, uma suspensão da divisão exterior-interior, em que vemos se dissiparem as categorias, por exemplo, do autor e do leitor. Desde os primeiros tempos da
escrita, a posição do leitor tem sido também a de uma certa autoria, pois
ler o texto é esburacá-lo, riscá-lo, semeá-lo de brancos. “Tal é o trabalho
da leitura: a partir de uma linearidade ou de uma planitude inicial, esse
ato de rasgar, de amarrotar, de torcer, de recosturar o texto para abrir um
meio vivo no qual possa se desdobrar o sentido. O espaço do sentido não
preexiste à leitura. É ao percorrê-lo, ao fotografá-lo, que o fabricamos,
que o atualizamos” (p. 36). Além desse movimento de dobra do texto
sobre si mesmo, produzimos também outro, de relação com outros textos, costurando idéias, tecendo sensações...
A escrita trouxe à história uma virtualização da memória, fazendo
surgir um novo tipo de comunicação, na qual a mensagem está normalmente separada, no tempo e no espaço, das condições de sua emissão,
acarretando com isso o desenvolvimento de formas de redação que possibilitassem uma certa universalização do acolhimento das mensagens.
O advento da informática vem enfatizar as possibilidades de
virtualização que a escrita encerra. Não a informática por si só, pois o
simples fato de ver digitalizado um texto não indica que a forma como
o homem irá com ele se relacionar será distinta da do texto que tem
como suporte o papel. Apertar um comando, para que o computador
decodifique a mensagem contida no disquete e a apresente em
caracteres por nós reconhecíveis, é simplesmente mergulhar na esfera de um possível que se torna real - usando as palavras de Lévy -,
pois as combinações contidas em tal disquete são finitas e previsíveis.
Ao contrário, na virtualização estamos sempre num campo que se abre,
em tese, para questionamentos infinitos e imprevisíveis. A leitura pode
ser virtual, não porque as informações encontram-se armazenadas em
um suporte informático, mas porque nela vemos intervir as possibilidades singulares de um determinado sujeito, que se encontrará de forma
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RICKES, S. M. Um texto amarrotado.
única com determinado texto, que contém em si aberturas para determinadas leituras. Muito embora quem escreveu o texto tenha intencionado propiciar uma certa direção de leitura, essa, por certo, não está
garantida, à medida que depende do encontro pontual entre o leitor e o
texto. Encontro este que produzirá um novo texto, na medida em que, a
partir dele, o leitor passará a habitar também o lugar de autor. E isso,
tão radicalmente, de forma a que um mesmo leitor produza, a cada
leitura de um mesmo texto, novas direções de interpretação - porque,
embora o suporte material da escrita, o texto em si, possa permanecer
o mesmo, sabemos que o leitor nunca será igual àquele que era no
momento anterior.
Produz-se, dessa forma, um emaranhado, uma sobreposição do
lugar de leitor e de autor, o que tem como efeito “colocar em loop a
exterioridade e a interioridade, no caso a intimidade do autor e a estranheza do leitor em relação ao texto. Essa passagem contínua de dentro para fora, como num anel de Moebius, caracteriza já a leitura clássica, pois, para compreender, o leitor deve ‘recriar’ o texto mentalmente e, portanto, entrar dentro dele. Ela diz respeito também à redação,
uma vez que a dificuldade de escrever consiste em reler-se para corrigir-se, portanto um esforço para tornar-se estranho ao próprio texto”
(Idem, p. 45).
As proposições de Lévy nos colocam diante da íntima relação
existente entre o lugar de produção do texto - o do escritor - e o de sua
interpretação - o do leitor. Para ele, ditos lugares não encontram fronteiras rígidas, mas se estabelecem em uma relação, na qual aquele que
aqui ocupava o lugar de leitor, mais adiante se verá transformado em
autor do texto, pois introduzirá neste uma forma própria de percorrê-lo. E
isso para além do suporte físico em que o texto se inscreva. Muito embora seja claro que a informática, a partir do advento do hipertexto, tenha
aberto novas portas à capacidade de virtualização de que a leitura / escrita são tributárias.
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SEÇÃO TEMÁTICA
Ao retomar o processo de leitura como comportando algo de um
corte e de uma recostura do texto, Lévy utiliza-se da palavra amarrotar.
Permitamo-nos fazer um grande desvio e retomar tão singelo vocábulo, agora na voz do pequeno Hans: “De noite havia uma girafa grande
no quarto, e uma outra, toda amarrotada; e a grande gritou porque eu
levei a amarrotada para longe dela...” (Freud, 1909, p. 44). O pai de
Hans, ao escutá-lo, de pronto se surpreendeu com a alusão a uma
girafa amarrotada. Hans, por sua vez, sempre tão perspicaz, percebeu
que, mais uma vez, deveria esclarecer seu pai e, pegando um papel,
amassando-o, disse: “estava amarrotada assim”. Mas, afinal, o que
tem a ver a leitura como um objeto virtual com a girafa amarrotada de
Hans? Tentemos tecer alguns laços...
Lacan, ao trabalhar o que do caso Hans nos remete a uma travessia do imaginário ao simbólico, retoma a fantasia da girafa amassada como um momento dessa passagem. Uma girafa que pode ser
amarrotada, que assume as vezes do pai, da mãe, do próprio Hans, ou
ainda de Hanna, é um elemento cuja significação é transformada, recriada a cada novo tempo de fala. É um elemento que aparece em sua
potencialidade simbólica. “O caráter de passagem aqui de um elemento que até aí teve sua função imaginária a um tipo de intervenção de
simbolização radical formulada pelo sujeito (...), sublinhada pelo gesto
que ele faz em seguida de apoderar-se, de ocupar, se podemos dizer
essa posição simbólica - ele se senta sobre (...) - é, no pequeno Hans
alguma coisa especialmente satisfatória.” (Lacan, 1992, p.165).
Assim como Hans amarrotou sua girafa, inscrevendo-a em sua
potencialidade simbólica, o leitor precisará, para produzir sua tarefa,
amarrotar o texto que lê, o que, por sua vez, fará com que também o
escrito possa produzir, em quem o percorre, efeitos simbólicos. Emparelhar a girafa e o texto conduz à pergunta acerca do quanto o conceito
de Lévy pode ser aproximado do registro simbólico proposto por Lacan.
Pergunta que pretendemos deixar ecoando, pois nada melhor, para
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RICKES, S. M. Um texto amarrotado.
um texto que trate sobre o virtual, do que encerrar com um ponto de
interrogação. Ponto que sempre produz a abertura a múltiplos caminhos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. [1909] Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In: _____.
Edição Standard Brasileira da Obras Completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio
de Janeiro, Imago, 1974.
LACAN, Jacques. [1954-55] O seminário - O eu na teoria de Freud e na técnica
psicanalítica. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
_____. [1956-57] A relação de objeto e as estruturas freudianas. Porto Alegre,
Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1992.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo, Editora 34, 1996.
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SEÇÃO TEMÁTICA
COMO VAI SE CHAMAR
A CINDERELA DO NOVO SÉCULO?
Diana Lichtenstein Corso
J
á era tempo do reinado de Cinderela chegar ao fim. Cinderela
representava o sonho de todas as mulheres por ser o único possível, só lhes restava esperar que um homem, um príncipe, viesse para levá-las ao altar. Vida de mulher consistia em sair do jugo paterno para o jugo matrimonial e as que conseguiam isso ainda podiam
se considerar abençoadas. O mundo mudou e os sonhos mudaram,
timidamente, aliás, pois os sonhos parecem ter uma inércia maior do
que a realidade.
Se Cinderela está se aposentando, como vamos chamar a nova
forma do ideal feminino? Que padrão vamos oferecer a crianças e adolescentes como espelho para sonhar? Aposto num nome: Lara Croft.
Se não for ela, não vai ser alguém muito diferente. Para quem ainda
não a conhece, trata-se de uma aristocrata, criada como filha de Lorde,
que tinha tudo para, mesmo nos dias de hoje, transitar do berço para o
casamento tranqüilamente. Neste trajeto, uma fatalidade: seu avião cai
no Himalaia, onde ela, única sobrevivente, aprende a depender apenas de si mesma para salvar-se num ambiente hostil. Dali em diante
compreende que não mais poderá levar uma vida pacata. Torna-se
arqueóloga, escreve livros e, de posse de seus dotes físicos generosos, luta contra uma série de inimigos no “Tomb Rider”, game em que
em que vive, para delícia de seus jogadores habituais. Lara Croft é
uma boneca virtual, forte como Rambo, curiosa e ousada como Indiana Jones, intelectualizada como um enciclopedista, atraente e tantas
coisas mais....
Cinderela sai das cinzas, da feiúra do ambiente doméstico, para
brilhar no baile. Neste espaço social permitido, podia incumbir-se da
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CORSO, D. L. Como vai se chamar ...
única função pública que lhe cabia: arranjar marido. A escolha do príncipe
arrebata-a da miserável cozinha. Ressurge de suas cinzas, agora princesa ou rainha.
Lara também passa por provações, mas anda em sentido contrário. Ao invés da imobilidade do destino feminino, a errância geográfica; ao invés da fragilidade, as qualidades de guerreira; ao invés da
busca da segurança do amor e do ambiente doméstico, o desprezo por
tudo o que signifique qualquer tipo de dependência. Levamos um ideal
conosco para transpor o milênio; entramos com Cinderela, saímos com
Lara. Mas não é nada tranqüilo manter essa imagem.
Já faz, na verdade, mais de 100 anos que a outra metade dos
habitantes da terra, as mulheres, clamam por ocupar plenamente os
espaços que nossa inteligência propiciou: o saber, a tecnologia, a política. Não é uma batalha, é uma longa guerra na qual ainda estamos
envolvidos, e cada mulher sabe como o fantasma da “Amélia” ainda
ronda seu ser, uma espécie de alter-ego, algum tipo de passado que
cada mulher possui.
A mulher mudou. Na sua esteira, a ficção tem que se moldar a
ela, velhas histórias que traduziam o ideal feminino precisam ceder
lugar a novas versões. Queremos ser como Lara, mas o fantasma de
Cinderela assombra a vida até mesmo das mais independentes.
Cinderela representou como ninguém a alma feminina clássica:
beleza, virtude, resignação, mãos caprichosas e a esperança de servir
um homem. Ela deixava o egoísmo narcisista às tão desajeitadas filhas da madrasta; a verdadeira mulher não ostentava. Basta lembrar
do dito “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”,
para notar que à mulher restava ser grande apenas na sombra. O universo de realização de uma mulher podia até ser público, mas como
celebração do privado: o casamento que fundava a família.
A heroína virtual é uma caricatura, trata-se de uma boneca de computador, mas ideais são assim, toscos e irrealizáveis. Por isso, podemos
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SEÇÃO TEMÁTICA
usar Lara Croft como representante do novo sonho feminino. O espaço
virtual tem se configurado como um grande território de tráfego do ideal.
Os seres humanos, em aparente paradoxo, têm-se alimentado o imaginário de rios de palavras, mensagens nas redes acompanhadas de imagens que se montam aos poucos, linha a linha, com exasperante lentidão; em verdade, na rede muito se escreve. Nesse lugar tão prolixo em
discursos, cada um monta seu personagem, na home-page, no chat,
num mail. Escritos rápidos, em ritmo de conversa ou impassíveis, esperando visita, sites pessoais, o lugar de alguém ou de um grupo, de uma
mania, etc. Em comum há um pacto onde, qual um baile de máscaras, noite
e dia cada um pode brincar do que quiser e procurar fantasias afins. Não há,
portanto, espaço melhor para a materialização desse personagem.
Diferente de Lara, que é sem contradições, a mulher pós-cinderela
é uma metamorfose ambulante. Sua complexidade pode ser sistematizada em três aspectos: primeiro, é uma verdadeira guerreira, tal qual
um homem seria, mas é no amor que ela consagra sua vitória; segundo, torna-se legítima herdeira da tradição familiar, com uma filha mulher já é possível a continuação de uma linhagem; terceiro, é órfã de
mãe, sua progenitora ou não compreende seu pensamento, ou
tampouco pode guiá-la por não ter mais parâmetros do que a filha.
O século XX, século denso e plural como poucos, será conhecido por muitas coisas no futuro, mas certamente também vai ser conhecido como o século da mulher. O acesso à educação timidamente começou antes, mas foi nestes cem anos que as conquistas começaram
a ser massivas. A mulher, até então, tinha três destinos: casar, ser
religiosa ou prostituta. Esta classificação simplificada revela que a identidade feminina estava nas mãos do amor de um homem ou, caso este
faltasse, sempre restava o casamento com Jesus. O movimento feminino
do privado ao público inicia timidamente com nosso século. Inicialmente
vestida de homem, a mulher explora, estuda, discursa. Foi preciso esperar que os homens fossem à guerra para que as saias pudessem colorir
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CORSO, D. L. Como vai se chamar ...
fábricas, universidades, laboratórios, protestos, meios de transporte, enfim, a rua.
Não faltaram, em tempos anteriores, mulheres diferentes, aquelas que dedicaram vidas a causas humanitárias, científicas, religiosas
ou políticas. Essas aventureiras do destino feminino, outrora exceções,
tornaram-se hoje a regra. Hoje, os caminhos para a mulher são menos
marcados, a reivindicação já não é tanto de novos espaços, mas de
que mais e mais mulheres possam ter liberdade de escolher a causa
em nome da qual dedicar sua vida, seja ela social ou doméstica, pública ou privada, amorosa ou celibatária.
Os contos de fada, que tantas gerações escutaram antes de dormir, precisam ser incluídos na bagagem da nova mulher, mas não mais
daquele jeito. Já não são mais só contados, agora necessariamente
possuem imagens; o cinema faz parte desta transmissão de histórias.
Existe um filme recente que tenta uma saída para Cinderela,
chama-se: “Para sempre Cinderela”. No filme, descobrimos que ela
não era boba e submissa como pensávamos e sim inteligentíssima e
letrada. A jovem orfã teve tempo de ser introduzida não só no gosto
pela leitura por seu pai, mas também no uso das espadas. O resultado
é uma moça muito moderna, cujo único problema é que talvez não
possamos chamar de Cinderela tão simpática personagem.
É preciso preparar as mulheres para a complexidade de seu
novo papel e é aí que, mais uma vez, o cinema faz sua parte. Às mulheres principiantes este último ano foram oferecidos dois filmes: Mulan
(estúdios Disney) e o menos comentado A espada mágica (estúdios
Warner). Trazem trama similar: duas jovens são forçadas a percorrer
um destino de guerreiras e o fazem com maestria. Mulan salva toda a
China da dominação Mongol, e a outra salva um rei que não é outro
senão Arthur. Ambas passaram por revéses no começo, pois se revelavam inadequadas para o casamento e as tarefas do obscuro papel destinado às mulheres. Antes de demonstrar seu surpreendente desempenho
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SEÇÃO TEMÁTICA
na terra dos homens, afinal não há espaço mais masculino do que a
guerra, passaram por um estado extremamente incômodo, no qual não
eram aceitas em nenhum dos mundos. Mulan é uma lenda chinesa da
qual não conhecemos muitos paralelos no ocidente; apenas para situar
em termos de literatura brasileira, temos nossa Diadorim passando os
impasses da nova mulher pelo Grande Sertão Veredas.
A mulher tem seu próprio método para ir à guerra. Não canta
para espantar o medo, ela se apavora, desce ao abismo e sobe com
consciência de seus limites. Curiosamente, sua recompensa, para além
da pompa e da glória, provém acima de tudo do amor. Assistimos, pasmados, à jovem Mulan sobrepor em importância o amor de um jovem
guerreiro e o perdão de seu pai pela travessura à própria consagração
de sua coragem na Praça Imperial. A glória por ela conquistada seria
suficiente para inebriar qualquer homem, mas para a mulher nada significa sem o amor. Toda ovação popular só é audível quando o guerreiro que conquistou seu coração atravessa o portão da casa paterna
para pedir sua mão. É digno de nota que este amor é o por ela escolhido, não o designado pela rigidez da tradição.
O amor romântico, a livre escolha amorosa é uma conquista importante. Sejamos sinceros, não é só para as mulheres que o amor
funciona como contraponto das conquistas pessoais a que cada indivíduo contemporâneo se lança. O ser amado é um espelho que dispõe
de respostas eficazes a todos os impasses identitários. Se amado, sabese quanto se vale e para quem. Assim, a mulher não busca o repouso
do amor por ser mais fraca e dependente do que o homem, mas porque é o ideal romântico que funciona como contraponto à solidão nestes tempos de individualismo.
Amantes modernas, as mulheres da geração de Lara também são
filhas especiais. Os pais das heroínas de que nos ocupamos, por exemplo, não tinham gerado filhos homens. Sabemos que este sempre foi
mais um dos desafios masculinos: fabricar seu sucessor. A filha mulher
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CORSO, D. L. Como vai se chamar ...
traria possibilidades apenas através do casamento. Os dias que correm
propõe um uso mais interessante da filha mulher do que casá-la. É enquanto filha, mais do que enquanto amante, que a mulher disputa em
novos territórios. Os revéses da vida de seu homem, seja ele pai ou marido, não mais selam o destino da mulher, assim como a falta do filho
homem não mais encerra o poder de uma família.
A liberdade das novas mulheres traz a dolorosa consciência da
condição pantanosa do chão que pisamos: os patriarcas fraquejam,
envelhecem, vacilam, e os amados já não são também futuros respeitáveis senhores de bigode. À mulher independente corresponde um
homem sensível, cujo melhor modelo é o rapazola romântico de Titanic.
Perdida a ilusão da fortaleza masculina, a mulher encontra novo tipo
de fragilidade, frente a essa está só, como Lara Croft, sobrevivente,
dependente apenas de suas habilidades para seguir adiante.
A menina que cresce hoje não deixa de ser delicada e romântica, apenas detesta limitações. A velha versão do conto de fadas jogava com a contradição entre a boa mãe, encarnada pela finada e a fada
(versões da mãe da primeira infância), e a madrasta-bruxa (representante da mãe da adolescente), que deixa de cuidar a filha para disputar
no mesmo território, invejosa e envelhecida. Na versão que tenta resgatar Cinderela, encontramos uma mãe mais do que má, retrógrada,
incapaz de entender a vastidão dos destinos de uma mulher, e que só
pode oferecer velhas fórmulas. A outra mãe era ótima, mas morreu.
Trata-se de uma ou várias gerações de mulheres órfãs de mãe. Não
que não as tenham, mas estas tampouco têm respostas, apenas questões, dúvidas, culpas, problemas de agenda, dificuldades para encaixar seus múltiplos papéis. Já não mais modelo, agora parceira de aventuras, descortina-se um espaço interessante de convívio. Falta, porém,
a figura da guia.
As novas meninas precisam encontrar, desde cedo, os modelos
em que pautar esse jeito nada apagado de ser, e o conto de fadas con-
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SEÇÃO TEMÁTICA
temporâneo, ou seja, o cinema, é um lugar privilegiado aos modelos que
vieram em substituição da velha e submissa Cinderela, da desfalecente
Bela Adormecida ou da ingênua Branca de Neve.
Nos produtos culturais dedicados à infância e aos adolescentes,
capturamos nossa organização social em seus ideais. Para os mais
jovens, buscamos sintetizar o que cremos ter de melhor, ou, talvez, o
que consideramos essencial. Às meninas estamos contando de onde
vêm as mulheres e apontando para o que de melhor consideramos que
o feminismo pôde legar: queremo-las guerreiras, independentes, femininas e desejáveis ao mesmo tempo. Parece impossível, mas é nesta
exata corda bamba que se equilibra cada mulher do quase findo século
XX. Conforme constatamos, não é pouco o que queremos das mulheres.
Para dar conta de um ideal desses só mesmo armadas até os dentes,
como Lara Croft.
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COSTA, A. M. M. da Será que virtualidade...
SERÁ QUE VIRTUALIDADE É FICÇÃO?
Ana Maria Medeiros da Costa
“E
stou apaixonada”, me diz uma mulher, com aquele brilho
característico do enlevamento que a paixão desperta. “Ele é
bárbaro, nunca conheci ninguém assim”, continua ela, que,
próxima dos 50 anos, já somava experiências consideráveis nesse assunto, inclusive casamentos e filhos. Quando quis saber detalhes sobre
o escolhido, ela me surpreende dizendo que nunca o tinha encontrado
pessoalmente, que era um namoro pela internet, que já durava há algum
tempo. Esse episódio reportou-me, imediatamente, para meu tempo de
adolescência, quando compartilhava, com as amigas, o gosto dos namoros por correspondência. Não sei como era na capital, mas na cidade
onde morava tínhamos o hábito de responder a anúncios de rádio, numa
certa reedição dos contos infantis do príncipe encantado: o homem dos
sonhos, só poderia estar em outro lugar, inacessível, apesar de reservado
pelo destino. É certo que, na adolescência, não se pensaria em reedição
de sonho infantil, que é sempre o sonho irrealiza-do da mãe. De qualquer
maneira, a escrita das cartas materializava a fantasia, confirmada na
chegada pelo correio, ansiosamente aguardado, dos traços, letras, poesias, fotos, daquele que por fim poderia ganhar corpo sem sair do mundo
dos sonhos. Essa atividade adolescente continha toda uma ambigüidade: se, por um lado, bancava o risco de colocar em ato a fantasia, testando sua consistência ao dar corpo a uma abstração (uma idéia onírica);
por outro, preservava o sonho.
Essas associações, que me surgiram a partir do que acontecia
com essa mulher, não deixaram de instigar-me. Poderia simplesmente
menosprezar sua experiência taxando-a de “fantasística”, ou “adolescente”, todos adjetivos que se usa quando se quer caracterizar superioridade sobre outro, demonstrando toda a distância que se tem sobre
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SEÇÃO TEMÁTICA
a “primitividade” e “irracionalidade”, que sempre queremos controlar e na
qual raramente nos reconhecemos. Mas a proximidade da sua idade não
me deixava indiferente, na medida em que pressupõe um determinado
caminho por questões muito particulares a essa geração. Que os adolescentes da atualidade usem a internet como uma sucedânea das cartas,
ou mesmo como sucedânea das fotos de revista, dos prazeres dos meninos escondidos nos banheiros, talvez não traga nada de tão novo na
forma como, culturalmente, se começa a estabelecer o sublime e o profano. Mas, que isso tenha efeitos na geração que pretendeu uma revolução sexual, não deixa de ser surpreendente.
Na verdade, esse preâmbulo me ajuda a pensar que não é possível dar uma explicação única para os dispositivos culturais. A cultura
sempre precisa lidar com universais e o reconhecimento mediado por
instrumentos leva-nos a interpretar o instrumento e não a experiência.
O que primeiro estabelece a diferença não é a identidade sexual, como
por vezes o recurso ao édipo leva a crer. O que verdadeiramente estabelece a diferença é a multiplicidade de endereços que a diferença das
gerações coloca. O endereço, aqui, você pode tomar como o apelo (ou
demanda) do Outro.
Partindo deste suposto, recuso-me a pensar que a experiência
dessa mulher (que não é a única deste gênero, diga-se de passagem)
possa ser interpretada com fundamentos em abordagens genéricas do
que seria a virtualidade no nosso tempo. Prefiro lançar algumas hipóteses sobre a singularidade de seu caminho. Assim, retorno à indagação
sobre essa geração da “revolução” sexual. Lacan tinha um pensamento sobre esse termo, que considero muito apropriado. Ele dizia que,
numa revolução, tratava-se de dar uma volta completa, ou seja, voltar
ao ponto de partida. No entanto, para não sermos reducionistas, muita
coisa acontece no caminho dessa “volta” e é isso que faz com que a
repetição nunca seja do “mesmo”.
A liberação sexual da geração dos que hoje são pais, e muitas
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COSTA, A. M. M. da Será que virtualidade...
vezes avós, parecia ter tirado do caminho o que, aparentemente, tornava
a atividade sexual mais desconfortável: sua proibição fora dos lugares
estabelecidos (casamento ou bordel), ou sua associação exclusiva à reprodução. O prazer e o orgasmo das mulheres passava a compor a
temática do dia, coisa que antes sequer era cogitado representar no
ambiente da família. A exibição compulsiva das atividades sexuais dos
adolescentes de então parecia ter invertido o olhar da cena primária, dos
filhos para os pais. As experiências de sair de casa para morar em repúblicas transformava a vida “familiar” numa vivência entre pares, mais permissiva para o considerado saudável e normal, compondo muitas vezes
um naturalismo de inspiração hippie.
Talvez seja excessivo lembrar de coisas que, pela proximidade
temporal, todo mundo sabe como foi. Entretanto, estamos em tempo
de recalque pela vizinhança de uma terceira geração. Assim que, seguindo um gosto bem freudiano, brinquemos um pouco com as hipóteses para testar a consistência de algumas idéias que esse tema desperta. A primeira questão que me faço – tomando o exemplo acima – é
se os atos realizados produzem alguma diferença na ficção que nos
anima. Aparentemente não produzem, o que confirmaria a idéia
freudiana da atemporalidade do inconsciente e do infantil que o caracteriza. No entanto, prefiro avançar um pouco mais na indagação para
pensar se é mesmo disso que se trata.
Temos, então, essas duas produções para pensar: a ficção e os
atos realizados. Pelo colocado antes, talvez pudéssemos considerar a
ficção como “fora” do tempo e os atos marcando intervalos, interrupções, finalizações. Mas o que significa mesmo esse “fora” do tempo?
Poderíamos considerá-lo como sendo o “mesmo” para todo e qualquer
contexto? Poderíamos afirmar que a ficção da quarentona, mediada
pela internet, é a mesma que a entretinha na adolescência?
A matriz da ficção constitui-se a partir do primeiro grande enigma
formulado na infância: de onde vêm os bebês, que Freud analisou tantas
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SEÇÃO TEMÁTICA
vezes. A fabulação da infância constrói o primeiro corpo ficcional, que nos
ensina porque o incesto é impossível. Na produção narrativa a criança
nos apresenta o corpo do incesto como uma totalização mãe-criança,
numa espécie de corpo conjugado. Ao enigma de onde vêm os bebês,
que seria uma representação do corpo da mãe, a criança responde a
partir da experiência pulsional de seu próprio corpo (pela boca, ânus,
etc.). Freud se deteve na face individual desta produção narrativa, atribuindo-a a um desconhecimento da criança, tanto do genital feminino, quanto
da relação sexual.
Já me detive, em outros momentos, na análise desta questão,
mas arriscarei a repetição para melhor situar o tema que me ocupa
agora. O corpo ficcional da narrativa infantil não é uma produção individual. Ele responde a um “desconhecimento”, ou engano, também da
mãe, que precisa tomar o corpo de seu filho como um representante do
falo. Assim, a narrativa infantil é uma ficção compartilhada mãe-criança.
A partir disso, vou acrescentar uma questão que nos interessa
aqui. A ficção é uma forma de representar a experiência, logo, de produzir mediações no real, de abordar o impossível. Mas, de quê experiência se trataria, no caso desta narrativa infantil? Se concordarmos
que a ficção não é individual (até mesmo porque estamos analisando
sua matriz, o momento de sua constituição), teremos duas naturezas
de experiências, decantadas numa só narrativa: a da mãe e a da criança. Se, do lado da criança, entendemos que se trata de representar a
experiência a partir de seus orifícios corporais, como seria do lado da
mãe?
De alguma maneira, para uma mulher, a experiência de gestar
um filho é também a colocação em ato do que foi a fantasia de sua
infância, do enigma de seu nascimento. A condição de um enigma é a
impossibilidade de sua resolução. Assim, mesmo que uma mulher tenha
adquirido o conhecimento e a experiência, tanto dos genitais, quanto do
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COSTA, A. M. M. da. Será que virtualidade...
ato sexual, o enigma da origem permanece. É verdade que sua experiência acrescenta mais uma versão para esse enigma, que é a versão do
édipo. Essa versão tem influência na forma como ela recebe seu filho
que, por seu turno, produz efeitos na ficção infantil. Mas, como nenhuma
das versões resolve o enigma, elas podem conviver sem contradição.
Podemos, também, partir do princípio de que a ficção resulta do
fracasso que a produção dos atos imprime numa totalidade. A totalidade, se ela existisse, estaria em dois lugares: na representação (ou código) e no corpo (se ele fosse somente real). Assim, a ficção media
momentos de passagem. Esses momentos caracterizam-se pelo trânsito de um lugar a outro, quando se relativiza tanto o código, quanto o
real, por uma determinada atividade. No caso da infância, a atividade
pulsional, na sua particularidade de erotismo, permite uma primeira
apropriação e domínio tanto do código, quanto do próprio corpo, mediados pela fantasia. A fantasia é o que garante que não há realização
do absoluto, porque resulta da interdição do Outro (castração). Outro
momento de passagem característico situa-se na adolescência, onde
a fantasia do terceiro excluído é o que vai estar em causa.
Retornando à nossa apaixonada da internet, talvez possamos
pensá-la num determinado momento de passagem. Essa passagem
tem a ver com a constituição, no laço social, de uma outra volta na
temática do sublime e do profano. O sublime, no sentido de todas as
representações do amor, e o profano, naquilo que a atividade sexual
sempre carrega de degradação, de resto, de margens, de transgressão. Se a apaixonada da internet foi aquela que se arriscou, junto com
sua geração, a colocar em ato a insatisfação da mãe (ou seja, o apelo
que a precedia) pela vertente do exercício sexual, agora a encontramos numa outra volta, reconstituindo um corpo impedido. Como referi
antes, todo exercício comporta uma dimensão de fracasso e é este que
impede que cada volta (retorno do recalcado) se produza no mesmo lugar. Nesse sentido – o da experiência –, é que não há atemporalidade e
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SEÇÃO TEMÁTICA
que as produções da cultura engendram um outro real. O corpo impedido, que vemos retornar nas inibições contemporâneas, não é o mesmo
de antes de sua dessacralização pelo exercício sexual “liberado”. Ele
decorre do fracasso em totalizar a satisfação do lado do ato sexual, coisa que antes sempre poderia ser mantido “em reserva” no horizonte, pelo
impedimento das mulheres.
Se as considerações acima ajudam-me a contextualizar o que
seria o corpo ficcional – isso que media, no coletivo, nossas relações –
ainda deixam muitas indagações sobre a função destas maquininhas,
das quais nos tornamos dependentes. Mas não podemos pensá-las
sem um determinado contexto. Freud também nos legou a matriz dessas maquininhas: o carretel de seu neto no jogo do fort-da. É ele que
nos permite pensar que a desnaturação do corpo – sua transformação
em ficção compartilhada – é correlativa da desnaturação e instrumentalização dos objetos, que se tornam nossa memória.
O carretel do neto do Freud é esse objeto indiferente que anima
e é animado pela memória do que nunca existiu (o que faltaria à mãe)
e, nesse sentido – porque nunca existiu -, precisa do reconhecimento
do outro para que seja autorizado como um representante. O carretel
tanto pode ser resto de uma operação nunca concluída (materializar o
que faltaria ao desejo), quanto pode representar a mãe, ou mesmo a
criança. Que a criança emita fonemas na sua atividade, indica que demanda a um Outro o reconhecimento daquilo que ele representa (nos
dois sentidos, como ativo e passivo). Paradoxalmente, no jogo ele pode
ser o autor de uma falta que o precedeu e da qual ele veio a constituirse num objeto substitutivo.
É desta forma que nos fazemos autores da falta de nossos pais
e que nos sentimos responsáveis, cúmplices e irremediavelmente culpados, na medida em que nossa presença a criou, a materializou e é
sua própria memória. Por isso, não podemos deixar de repetir essa
memória, porque é a única garantia de representação que temos: mais
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
COSTA, A. M. M. da. Será que virtualidade...
tarde o carretel vira livro, quadro, carro ou qualquer outro produto cultural. E, como no jogo do carretel, cada vez que criamos esse objeto,
nós o perdemos.
Desta forma, a ficção que anima os momentos de passagem
precisa tanto do suporte do semelhante, quanto da inscrição dos atos
no real, que a escrita e a criação de objetos suportam na sua circulação. É bem verdade que essa “passagem” pode se tornar infinita, como
um navegador solitário da internet que não arrisca colocar em ato, com
outros, a ficção que o sustenta. No entanto, se, individualmente, é possível estabelecer-se essa espécie de fixidez, isso não se mantém no
andar das gerações, onde, necessariamente, se opera a castração (apesar das nossas loucuras individuais). Por todas essas considerações,
pode-se dizer que a ficção não se reduz à virtualidade. Esta última está
mais do lado do carretel do nosso tempo, que vamos tentar à exaustão
fazer fracassar, para poder criar algum outro.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
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SEÇÃO TEMÁTICA
ESSA INTIMIDADE TÃO ESTRANHA
Robson de Freitas Pereira
S
exo, autômatos e virtualidade. Nossa cultura está enredada
nestes tópicos há bastante tempo. Para circunscrevermos um
pouco e nos atermos às investigações psicanalíticas, talvez possamos afirmar – junto com eminentes economistas e historiadores –
que, desde a primeira revolução industrial, as máquinas vêm alterando
o cotidiano do trabalho e do restante da vida das pessoas.
O aperfeiçoamento tecnológico tem possibilitado que o trabalho
humano repetitivo venha sendo substituído rapidamente. Os primeiros
teares industriais e as máquinas agrícolas podem estar incluídos nos
primórdios desta “mecanização”, inicialmente nomeada, e automatização das funções, como estamos acostumados, atualmente, a lidar
com este significante.
A literatura de ficção foi uma das artes a denunciar as conseqüências destas transformações tecnológicas, funcionando como um
contraponto crítico à nossa ingenuidade e sedução ao discurso da ciência e suas promessas. É só nos lembrarmos que HG Wells editou “A
máquina do tempo”, na mesma época em que Freud e Breuer publicavam seus “Escritos sobre histeria”.
A psicanálise nasce neste século, em que a automação, efeito
do avanço da ciência, assume velocidade jamais vista. O cinema, contemporâneo da psicanálise, também se ocupou desde cedo a desvanecer as promessas de que nosso mal-estar poderia terminar na mesma velocidade do avanço tecnológico. Ao final do século vinte, um filme como “Metrópolis”, de Fritz Lang, ainda cobra sua atualidade.
Não só pelo vaticínio de que, num futuro distante, a divisão entre
os mestres e os escravos estaria cada vez mais acentuada, mas pela
particularidade de que a libertação dos escravos viria através de uma
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
PEREIRA, R. de F. Essa intimidade tão estranha.
criatura, um autômato: “Maria”. Mulher de corpo perfeito, esta andróide
criada pelo Dr. Rotwang, para aliviar a vida dos trabalhadores, logo
transforma-se em fonte de mais angústia e agitação das massas – a
cena do clube onde ela se desnuda e enlouquece a platéia é antológica.
O estranho que nós amamos
A materialização de “Maria” no cinema, nos endereçou a um reencontro com outra andróide importante para a psicanálise: “Olímpia”.
Este era o nome do autômato por quem o jovem Nataniel fica perdidamente apaixonado. Primeiro, porque a viu através de binóculos e prismas – que remetiam à sua lembrança infantil; depois, porque conseguiu dançar e “conversar intimamente” com aquela que seria a encarnação de sua “alma gêmea”. Estamos nos referindo aos personagens
da novela de E.T. A. Hoffman, “O homem da areia”, da qual Freud se
utilizou para realizar o conceito de “das unheimliche”. Este estranho,
“siniestro”, “uncanny”, para citar algumas tentativas de tradução, desta
estranha intimidade que nos causam algumas situações ou objetos.
Lacan chegou a cunhar um neologismo: “extimidade”, para tentar aproximar-se da conceitualização freudiana.
O surgimento do autômato na novela fantástica é tomado por
Freud como um elemento quase secundário dentro da situação geral.
Afinal, o que estava interessando, naquele momento, era encontrar
formas nas quais a literatura apresentava o conceito que Freud buscava articular, depois de haver feito uma pesquisa lingüística das mais
exaustivas para aproximar os conceitos de “heimlich” e “unheimlich”. A
inquietante estranheza indicava que algo familiar retornava, como o
recalcado e seu retorno.
Entretanto, o conceito freudiano forjado em sua articulação com
a literatura também nos mostra como, para o sujeito atual, as relações
entre o olhar, o autômato e a ficção estão articuladas na sua relação com
a tecnologia moderna.
Base da estrutura do eu do sujeito, a relação ao outro, em sua
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
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SEÇÃO TEMÁTICA
dialética de alienação/separação, aponta alguns importantes elementos
para lidarmos com a hegemonia da virtualidade nos tempos modernos.
Como se pudéssemos afirmar que, exatamente por fazer parte da nossa
constituição subjetiva, a relação especular assume tanta importância em
nossa cultura. Uma hegemonia diferente daquela que a técnica do retrato
na pintura nos mostrou ao legar aos nossos olhos os efeitos do individualismo1. Os outros são nossos espelhos particulares – mostram aquilo
que nos falta.
Então, como não ficarmos fascinados com um objeto/fetiche que
nos promete perfeição e total autonomia do mal-estar que nos aflige
cotidianamente? Ainda mais quando a imagem que ele nos oferece é
de um corpo, fruto da mais avançada tecnologia, aquela que realiza
nosso sonho de materializar “A mulher”. Além das novas próteses que permitem implantes, transplantes e indagações, a respeito de como
vamos nomear estes avanços da medicina que protelam nosso encontro com a morte2 -, temos a perspectiva de poder gozar com o corpo
perfeito. Além de conseguir superar a angústia causada pela prótese,
teríamos a promessa de gozar com esta limitação, incorporando o objeto artificial ao nosso ideal de perfeição. Tecno-fetichismo. Há algum
tempo atrás, o filme “Crash”, dirigido por David Cronenberg, abordou
esta temática3.
Talvez seja esta uma das promessas que estão colocadas no horizonte de nossa atual relação com os desdobramentos da informática e
da biotecnologia. Pela ameaça de terminar com a falta, o fascínio tornaPara maiores detalhes sobre as origens do retrato e mesmo da figuração feminina, ver
Norbert Schneider, “A arte do retrato – obras-primas da pintura retratista européia – 14201670”, Ed. Taschen, 1997.
2
Trabalhamos esta relação dos órgãos artificiais e da cultura do consumo em um texto
intitulado “Retratos eloqüentes sobre o corpo e outros objetos”, proferido por ocasião do
Curso de Extensão “Psicanálise e colonização – leituras do sintoma social no Brasil”.
3
Ver Laura Frost , “Circuits of desire – techno fetishism and millennial technologies of
gender”, in Artbyte, feb.-mar. 1999, USA.
1
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
PEREIRA, R. de F. Essa intimidade tão estranha.
se angustiante (no melhor dos casos). Por isto, nos preocupamos tanto
com as questões morais e éticas que eles levantam. Além disto, porque
nossa primeira interrogação, mesmo frente a uma máquina com uma
telinha de algumas polegadas, é sobre o gozo a que nós não temos
acesso.
Na atualidade, a interrogação torna-se mais premente, uma vez
que só temos nossa existência para dar conta de nosso valor simbólico. Um valor que cada vez mais foi-se constituindo através da hegemonia do olhar , em detrimento de outras funções (lembremo-nos de Freud
fazendo alusão a diminuição do olfato, por exemplo). Assim, não é difícil perceber o quanto podemos ficar, freqüentemente, à mercê do confronto entre as previsões mais desastrosas versus a utopia de Xanadu.
Porém, talvez seja mesmo em função deste real, ao qual tentamos
inscrever seu litoral, que possamos articular algumas coisas mais plausíveis como o correio eletrônico, “home-pages” e alguns “chats”, onde
podem “rolar” até som e imagem.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
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SEÇÃO TEMÁTICA
NAS TELAS DOS NOVOS TEMPOS1
Roselene Gurski Kasprzak
Maria Teresa Wassermann
“ (...) Temeu que seu filho meditasse nesse privilégio
anormal e descobrisse de alguma maneira sua condição
de simulacro. Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem (.....) com alívio, com humilhação,
com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando”.
(Ruínas Circulares – Jorge Luis Borges)
1
949. Filme: “Nunca te vi sempre te amei”. Cenário: Nova York e
Londres do pós-guerra. Enredo: escritora nova-iorquina em busca de livros clássicos e antigos começa a se corresponder com
livreiro tradicional de Londres. Do gosto comum pelos livros, sem nunca se verem, constróem uma relação amorosa (virtual), através de cartas escritas ao longo de mais de uma década.
1998. Filme: “Mens@gem para você”. Cenário: Nova York. Enredo: dois livreiros, ela dona de uma tradicional livraria infantil, preocupada com a formação e o gosto literário das crianças. Ele, herdeiro de
uma rede de “lojas de livros”, ocupado com os lucros de seu negócio.
Rivais absolutos no trabalho, conhecem-se pela Internet através de
nicknames e apaixonam-se pelas imagens (virtuais) um do outro.
Tempos distintos, meios de comunicação paradigmáticos de cada
época e uma mesma história: relação amorosa construída a partir de
conversas imaginárias, sem contato visual, só contato virtual. Interação
1
Texto produzido a partir de discussões do Núcleo de Pesquisa em Mídia – Fabico/
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
KASPRZAK, R. G. e WASSERMANN, M. T. Nas telas...
tecida nas malhas dos restos de ideais próprios, projetados tanto nos
“escrevedores” de cartas como nos parceiros de navegação. Perguntamos: o que, afinal, muda nas interações, com o advento das novas
tecnologias? Qual é o impacto dos novos meios de comunicação na
estruturação das trocas amorosas e sociais do humano?
Já de princípio parece-nos que nossos piores temores apocalípticos, erigidos em meio à ascensão das mal-assombradas novas
tecnologias, carecem de originalidade. No Fedro de Platão, vê-se o
quanto, na história da humanidade, toda modificação dos instrumentos
de transmissão e comunicação social detonou crises e ameaças ao
modelo cultural precedente. O filósofo ateniense, por exemplo, alegava que a escrita traria o aprendizado mecânico e a reminiscência no
lugar do pensamento, afetando a dialética verdadeira e a indagação
viva da verdade, presentes no discurso e na conversação. Para quem
não reconhece do que estamos falando, nos referimos à ameaça que a
escrita trouxe à narrativa oral e à memória, na época de seu surgimento.
Estranho para nós que, muitas vezes, ao profanar os novos meios,
sacralizamos a escrita e a leitura, comungando do que McLuhan2 denomina “monopólio do livro”: a imposição da palavra impressa como
cultura séria em detrimento de outros meios de transmissão cultural.
Vê-se, então, que o desenvolvimento de meios novos de comunicação
não é privilégio do mundo contemporâneo, como também não o são as
profecias a respeito de uma outra (des) ordem que deles seria decorrente.
Entretanto, certo é que não temos mais como desprezar a acelerada proliferação de novos meios e sua repercussão no estilo atual de
trocas sociais. Desde o advento do rádio e da televisão, passando pelo
computador e, mais recentemente, pela Internet, muitas são as muMCLUHAN, M. Visão, som e fúria. In: LIMA, L.C.(org). Teoria da cultura de massa. Rio de
janeiro, Paz e Terra, 1990.
2
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
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SEÇÃO TEMÁTICA
danças que vêm ocorrendo na forma do homem perceber e interagir com
o mundo que o cerca.
Mas, se por um lado, não há como ignorar a natureza dos fenômenos contemporâneos, tais como as denominadas comunidades virtuais, ou “chats”; por outro, não podemos esquecer, como aponta
Contardo Calligaris3, que apesar das diferentes épocas oferecerem
meios tecnologicamente inéditos de comunicação, os mesmos não
deixam de constituir belas telas projetivas, onde, apesar das “ameaças, a projeção sempre continua”...
Ainda assim retorna a questão: haveria uma especificidade nas
interações virtuais? Qual a diferença, por exemplo, entre os “chats” da
Internet e os adeptos das trocas de cartas em tempos mais remotos?
Será, como pregam alguns, que tornamo-nos mais diretos, mais objetivos também por obra das novas tecnologias de comunicação? Estaríamos realmente perdendo a profundidade do Desejo para a instantaneidade e objetificação?
Comecemos reconhecendo que as novas mídias ou novas
tecnologias funcionam como promotoras das necessidades e desejos,
acelerando, sim, no mesmo ritmo da instantaneidade que propõem, a
ilusão do encontro com o objeto que nos completaria. Mas, afora a
“velocidade”, sabemos que essa é uma questão humana por excelência, que não esperou as novas tecnologias para se fazer presente.
Inegável, também, é o fato do paradigma pós-moderno legar ao
homem contemporâneo novas concepções de tempo e de espaço.
Cultivamos, atualmente, uma noção pontual sobre o tempo, na qual o
presente, o agora, é o que rege nossa vida relacional. Quanto ao espaço,
criam-se novas referências. As salas virtuais de conversação, ou “chats”,
simulam lugares reais, seguindo uma dinâmica própria, nas quais as
CALLIGARIS, C. et alli. A televisão pode ameaçar o cinema, mas a projeção continua.
In:_____. Educa-se uma criança? Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1994.
3
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
KASPRZAK, R. G. e WASSERMANN, M. T. Nas telas...
pessoas interagem na mesma rapidez do meio, se ligam e se desligam
na fugacidade dos “clicks”. É através de algumas dessas noções inéditas, de distância e de lugar, que experimentamos um mundo pequeno
demais para a velocidade dos “clicks” e grande demais para a geografia
que sobra na onda da virtualidade.
Nesta perspectiva, arriscamos sugerir que o lugar no ciberespaço
não possui identidade, pois não apresenta constância nos traços que o
definem, constituindo-se apenas pela fugaz relação que os indivíduos
mantém com ele. Além disso, não pode ser caraterizado como pertencente a algum domínio, já que é todo lugar e lugar nenhum ao mesmo
tempo. Noção que o antropólogo Marc Augé4 trabalha através do conceito de “não-lugar”.
Admitamos, ainda com relação à noção de tempo, que realmente nos tornamos mais instantâneos, com certeza mais superficiais. No
rastro do fast-food vieram vários outros “fast”; “fast-narrativas”, “fastrelação”, “fast-transa”... Neste sentido especulamos junto com Baudrillard5, se a comunicação nestes meios não acaba, realmente, reduzida
à sua função fática, quer dizer, o contato pelo contato.
Acerca disso, uma especificidade importante de elencar no formato dos diálogos virtuais é a padronização semântica nas conversas
dos navegadores. Para os iniciados na “rede”, existe à disposição uma
lista de palavras e expressões previamente produzidas. Esta lista é
composta por uma série de ícones, ou seja, símbolos que funcionam
como representantes das emoções do navegador. Além dos ícones, o
sistema é formado por um vocabulário de abreviaturas que, apesar de
reduzido, quer dizer, não dispensar a linguagem comum, coloca os
navegadores de primeira viagem em uma situação no mínimo inusita4
AUGÉ, Marc. Não lugares – Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas/São Paulo, Papirus, 1994.
5
BAUDRILLARD, Jean. A tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto
Alegre, Sulina, 1997.
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SEÇÃO TEMÁTICA
da, visto que não é exatamente corriqueiro ser convidado para um “TC”.
Estes novos formatos parecem operar uma espécie de economia do
estilo, não deixando muito espaço para aquilo que Pirandello chama
de “extrair da língua o individual, isto é, precisamente o estilo”, segundo nos lembra Ana Costa6.
Todavia, mesmo considerando essas várias particularidades,
pensamos que o ambiente de encontros virtuais não deixa de ser mais
uma versão (pós-moderna) da tão humana necessidade de interagir
com os semelhantes. Logicamente, uma versão que traz peculiaridades relativas às suas nuanças tecnológicas e linguagem própria, mas,
ainda assim, um meio de comunicação que, apesar das inovações no
formato, não produz o abandono das concessões que, via de regra, o
humano faz à socialização.
Segundo Sérgio Porto7, em pesquisa recente sobre “Sexo, afeto
e era tecnológica”, os papéis sociais, mesmo neste pretenso meio democrático, estão bem definidos, com toda uma normatividade regrando
as interações de cada categoria. Os canais são perfilados por critérios
tais como idade, sexo, interesses comuns, localidade. Existem os canais de homossexuais, de amizade, de sexo, de intelectuais. Quer dizer, as comunidades virtuais que se formam no ciberespaço comungam das mesmas necessidades das comunidades ditas “reais”.
Aqui, vale lembrar a chamada de uma reportagem recente de
jornal de grande circulação na cidade, na qual constava: “Paqueras
pelo computador e amigos que só se conhecem por pseudônimos congestionam a Internet com desejos”. Parece que ainda que reclamemos
da fugacidade e da superficialidade dos contatos virtuais, alegando, por
exemplo, a aparente possibilidade do objeto de encanto desaparecer a
6
COSTA, A. A ficção do si mesmo – Interpretação e ato em psicanálise. Rio de Janeiro,
Companhia de Freud, 1998.
7
PORTO, Sérgio D. et alli. Pesquisa “Sexo, afeto e era tecnológica: um estudo sobre os
chats”. Brasília, UnB, [1999].
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
KASPRZAK, R. G. e WASSERMANN, M. T. Nas telas...
qualquer momento, “na velocidade de um click”, o que, de fato, produz a
referida evanescência é mais o deslizamento próprio da “fisiologia” do
desejo humano, para o qual o meio cibernético não é mais do que uma
âncora. Vemos que apesar das críticas veementes e das especulações
acerca do perigo dos “internautas substituírem a realidade por idealizações”
(Zero-Hora, 29/05/1999), os sujeitos, mesmo os contemporâneos, seguem buscando meios que os coloquem em interação com seus semelhantes. Demonstrando o que Lacan8 denominava a “natureza” do homem: sua relação com outros homens.
Quanto à veracidade ou profundidade destas interações, pensamos que não se pode “medi-las” a partir dos sentidos (visual, auditivo....) em questão na forma de contato. Lembremos que, quando Freud9,
em 1921, definiu a identificação como “a mais remota expressão de um
laço emocional”, não determinou que seu meio teria que necessariamente ser o “visual”. O que teorizou acerca da identificação não parece
excluir a possibilidade da mesma se estabelecer a partir de um traço
escutado, de uma emoção, de um estilo de conversação... Pelo contrário, o importante na formação de um laço amoroso, ainda segundo
Freud, é que exista “a percepção de uma qualidade comum partilhada”
com o semelhante em questão. Ora, sabemos que essa percepção,
por mais que tenha a visão como suporte, é sempre de natureza virtual, ou seja, trata-se sempre de um recorte muito particular do sujeito
sobre o real, apesar da incansável insistência humana em provar o
contrário.
Parece-nos que as críticas aos novos meios carregam uma espécie de crença numa realidade factual das interações, na qual a presença
LACAN,J. Mais além do princípio da realidade (1936). In: _____. Escritos. Rio de Janeiro, Zahar,1998, p. 91.
9
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: _____. Obras Completas.
Rio de Janeiro, Imago,1980.
8
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
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SEÇÃO TEMÁTICA
física e o contato, pela via do olhar, viriam garantir uma “relação real
(verdadeira)” em oposição à “falsidade” das relações virtuais. Oposição
complicada no terreno das interações pessoais, posto que o caráter
ficcional da estruturação humana e a natureza polissêmica da linguagem
situam a busca do encontro “real e transparente” das relações na ordem
do impossível. Compreensão essa que sublinha o ficcional como o que
melhor define a “natureza” do homem. Como bem lembrava Lacan10, é só
a partir da ordem definida pelo muro da linguagem que o imaginário toma
sua “falsa” realidade, que contudo é a única realidade a que temos acesso.
Portanto, mesmo que se verifiquem especificidades nas interações sociais atuais, não se pode responsabilizar os novos meios pela
ausência de um caráter factual das relações, ou eventualmente, pelos
mal-entendidos que delas advém. Mas, importa, na esteira dessa discussão, relativizar a resistência a estes (novos) meios, a bem de que
não deixemos que o saudosismo de outros tempos, nos ensurdeça
para as narrativas e marcas singulares que certamente se inscrevem nas
“telas” dos novos tempos.
10
LACAN, J. Seminário 2. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
44
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
JERUSALINSKY, A. O ciberfalante e o ato analítico.
O CIBERFALANTE E O ATO ANALÍTICO
Alfredo Jerusalinsky
F
az exatamente cem anos que Sigmund Freud desenhou sua primeira topologia do aparelho psíquico. No capítulo “Psicologia
dos processos oníricos”1, propôs um esquema que recebeu o
apelido de pente pela sua aparência:
Com um pólo de entrada - o perceptivo - e um de saída - o motor
-, ele permite compreender a dinâmica do sonhar: a carga maior do
perceptivo descarrega - inibe - o motor. Tal é o fundamento da relação
entre o sonho e o descanso. Trata-se da substituição do trabalho muscular pelo trabalho ideatório do inconsciente: a perlaboração do sonho
comandada pelo desejo.
A invenção do divã, como parte do dispositivo psicanalítico, reconhece esse fundamento: inibir a manifestação motriz para facilitar o
livre curso da palavra. Acrescenta-se, mais tarde, o argumento da necessária quebra da identificação, mediante a suspensão do olhar, para
colocar a palavra fora do alcance da restrição especular de seu sentido, devolvendo-lhe sua máxima abertura de polivalência semântica.
1
Cap. VII da Interpretação dos sonhos - 1899.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
45
SEÇÃO TEMÁTICA
Quando aparece, no fim do milênio, a palavra dançando livremente no palco da informática, totalmente desvencilhada do corpo, por
fim liberada da escravidão da voz ou do movimento caligráfico dos dedos, autônoma da presença dos interlocutores, independente de todo
tempo e distância real, pareceria ter-se realizado o ideal da psicanálise. Sem nenhum lastro motor, sem outro tempo senão o tempo lógico
do discurso, sem outra imagem que não a do semblante do fantasma
colocado pelo sujeito em questão, a palavra alí, na tela do computador,
completamente solta, se oferecendo nuazinha ao idílio com o psicanalista: enfim sós.
Porém, mais uma vez as aparências enganam. Qual seria a eficácia da palavra numa tal posição? É óbvio que, para o “analisante
cibernético” se furtar às conseqüências da interpretação, seria uma
mera questão de clicar um enter para passar para um software menos
intrometido (mais soft). A presença do outro, por ser meramente virtual
(imaginária), pode ser administrada de modo imediato na posição que
mais convier, ou seja, dificilmente a que corresponde à verdade do
desejo. De fato, a comunicação pode ser suspensa a cada instante. A
perturbação eventual, que se pode derivar de um texto, se insere num
contexto onde a presença real que o alteriza não comparece, o que
permite amortecer a palavra dissociando-a do ato. Dito de outro modo,
não há corpo que suporte as conseqüências do que se diz, nem que
seja no espaço hipotético da transferência. Não há risco do desejo que
alí se expressa vir a se tornar realização. Em todo caso, esse risco,
administrado à distância, depende de uma escolha subjetiva que advém
num segundo momento.
Tal é a diferença entre a comunicação virtual e o ato psicanalítico. Sublinhamos, aqui, o valor comunicacional do espaço virtual criado
pela tecnologia eletrônica, precisamente porque nele o valor relacional
da palavra, enquanto laço de amarração ao Outro, fica notoriamente
amortecido. Curiosamente, a expansão, sem dúvida fabulosa, do es-
46
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
JERUSALINSKY, A. O ciberfalante e o ato analítico.
paço comunicacional, gera a sensação de facilitar a relação com o outro, enquanto instala o sujeito na mais intensa disposição inibitória. O
“ciberfalante” fica, assim, sem advertências, produzindo seu texto - a
menos que seja para se corresponder ou publicar -, destinado ao “éter
internético” (vale aqui a escansão: intern-ético, ou seja uma ética meramente interna, o que constitui um contrasenso), vale dizer, confinado
num devaneio.
Por sua vez, o hipotético “psicanalista cibernético” ficaria a escutar um devaneio inscrito numa tela sem corpo, ou seja, sem real que
suporte as conseqüências de sua própria enunciação. Qual seria então o destino de sua intervenção?
O fato de que os analistas não tenham estabelecido um site de
intervenção clínica, evidentemente, não se deve a uma posição conservadora, nem a uma ideologia contrária à informática. De fato, muito
nos valemos dela para ampliar nossa comunicação. Mas reconhecemos a diferença que faz a palavra do ciberespaço, daquela que opera
no espaço real. No fim das contas, é nosso trabalho evidenciar essa
pequena diferença entre o imaginário e o simbólico.
Com efeito, que o corpo é para o sujeito o que suporta as conseqüências de uma relação com o Outro, moldada pela linguagem, é o
que constitui o valor simbólico da palavra. Por fim, é o que constitui o
fundamento de qualquer saber. O resto é mera comunicação.
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SEÇÃO DEBATES
ENTREVISTA: MARIA CRISTINA KUPFER
E
m julho deverá ser lançada a Revista da APPOA nº16, versando sobre “Psicanálise e Educação: a TransMissão Possível”.
Em função disso e aproveitando a recente presença de Maria
Cristina Kupfer no estado - referência nacional neste tema - a comissão de publicações realizou a entrevista que sintetizamos a seguir.
APPOA: Como surgiram os campos da psicanálise e da educação na tua experiência?
KUPFER: Em 74, éramos um grupo de 100 psicólogos da prefeitura sem nenhuma preparação, instrumental de trabalho. Então, escuto um pedido dos educadores: “precisamos da psicologia”. Entendi que
era de uma psicologia que fosse aos confins do inconsciente, portanto
a psicanálise.
Eu comecei a estudar psicanálise, só que já cruzei direto com
Lacan. E aí eu já fiquei ouvindo as recusas do encontro entre psicanálise e educação. Não sei por que insisti, porque o que eu escutava era
uma recusa radical, um impedimento. Tinha alguns trabalhos que não
eram de lacanianos. Sara Paín, Izabel Isuriaga, leituras psicanalíticas
dos problemas de aprendizagem super interessantes, mas kleinianas.
Mas quando comecei a escutar os psicanalistas lacanianos, o pessoal
da Biblioteca Freudiana de São Paulo, ligada ao Campo Freudiano,
milleriana, eu só escutei recusa.
Luis Carlos Nogueira, um pioneiro da psicanálise lacaniana, que
até hoje não discute a psicanálise em extensão, topava discutir estas
articulações entre psicanálise e educação. As leituras você podia fazer, a iluminação da psicanálise sobre o campo da educação, Freud
tinha feito isso com textos da literatura, você pode fazer articulações
psicanálise-cultura (mas numa perspectiva muito diferente daquela que
eu vejo vocês fazendo aqui). Esta idéia de iluminação é uma idéia completamente anti-psicanalítica, é extremamente racionalista, temos aqui
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
ENTREVISTA: Maria Cristina Kupfer
a educação, a psicanálise vem, ilumina, e dá a ver mais. Era esta idéia
que Mannoni, inclusive, divulgava. Só que o que se observa é que na
prática ela fez muito mais Psicanálise e Educação do que declarava.
Mas, enfim, eu usei esta idéia. Fiz leituras da relação professor-aluno
no mestrado, depois leitura do desejo de saber no doutorado, sendo
que esse já era um título não permitido, porque também topei com as
formulações lacanianas, segundo as quais, ou você fala em desejo, ou
em saber. O desejo é o desejo de nada saber, é desejo de saber sobre
o desejo. Desejo de saber, não. O desejo está em relação oposta ou
antinômica em relação ao saber. Trabalhei, ainda assim, com este tema
no doutorado, sempre na iluminação. E me mantive nesta posição, de
que se trata de uma iluminação, até há pouco tempo. A Millot me deu
a munição para esta argumentação de que só podemos trabalhar na
dimensão da iluminação, da clareagem.
Neste percurso cruzei com o trabalho com psicose e autismo.
APPOA: Esta questão não aparecia na época em que tu estavas
nas escolas?
KUPFER: Nós não esbarrávamos com estas crianças porque
elas não estavam na escola. Isto é impressionante, não sei onde elas
estavam, estavam trancadas em casa. Recebia no consultório crianças com problemas de aprendizagem, de repente eram crianças bem
mais comprometidas. Sentindo muitas dificuldades com este tipo de
clínica, começamos um trabalho institucional. Mas logo em seguida, o
que aconteceu? Logo que nós começamos veio um casal de pais que
nos disse: “Ah, mas o que nós queríamos mesmo era uma escolinha
para o nosso filho!”. De início a pergunta era: “o que estes pais querem
com uma escola para uma criança que não fala?” Aí fomos vendo que
fazia todo sentido do mundo. Um pouco depois, nós introduzimos as
atividades educacionais no grupo de crianças psicóticas e autistas. Neste momento, todo aquele trabalho que vinha acontecendo, que eram leituras, começou a ganhar um solo clínico, um sentido. Os estudos teóricos
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SEÇÃO DEBATES
sobre psicanálise e educação passaram a ser orientados por uma prática clínica.
APPOA: Que respaldo vocês encontraram no campo psicanalítico para desenvolver este trabalho?
KUPFER: Nenhum (risos). Esqueci de dizer que foi muito importante neste trabalho com psicose e autismo que, logo que começou,
em 90, fomos para a Universidade. Ao irmos para a USP, ganhamos
um contorno institucional que, longe de ter sido um entrave, foi um
impulsionador, lá se permite que a gente faça o que quer. Eu acho que
é uma realidade da USP, não sei como seria em outra universidade.
Nós não tínhamos, no começo, um reconhecimento das instituições
psicanalíticas e isso foi mudando no decorrer do trabalho. Foi muito
interessante, porque, justamente, o que passou a contar foi o que estava sendo montado, os atendimentos, estas crianças voltarem para a
escola. A gente começou a publicar. Teve um momento em que fui
chamada no “Campo” para um seminário clínico, falei como trabalhávamos em grupo, com atividades educacionais nossas referências Mannoni e Dolto - devidamente criticadas no que têm que ser criticadas.
E nos escutaram muito bem.
APPOA: E do lado da educação, como fica? Não permanece um
pedido de recobrimento das suas falhas por uma psicologização?
KUPFER: Quando os educadores demandam, por mais que venha uma demanda imaginária, se eles vêm me pedir uma coisa, lhes
dou outra, mas que venham. E vêm. No Lugar de Vida os cursos lotam,
tem 150 pessoas, 200. Então, eu não posso recuar. Eles estão me
pedindo isso, que eu venha recobrir. E eu posso usar esta mesma
psicanálise para ajudá-los a ver este buraco, tentar dar conta dele e
pensar que não é com a psicologia que eles vão sair da enrascada em
que a educação se encontra.
Devemos falar como começamos a articular este educacional com
o terapêutico. Nosso trabalho foi tentar fundamentar esta articulação que
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
ENTREVISTA: Maria Cristina Kupfer
nós denominamos de educação terapêutica. Aos poucos, fomos vendo
que fazer isso era uma forma de preparar estas crianças para a volta à
escola, ou para a ida. E aí, nesse meio de caminho, começou toda uma
reflexão em torno do que produziria para uma criança a designação de
um lugar numa certa cadeia, no discurso escolar. Que efeitos subjetivantes
poderiam se produzir? E a gente vê que o lugar da criança escolar é
extremamente estruturante. A questão não era aprender, mas ir à escola,
circular na escola, botar uma lancheira, carregar uma pasta... Eles, depois, iam para outras escolas, mas não adiantava. A professora se desesperava. E aí começou a escuta de professores nas classes especiais. E vimos que falar com aquela professora não era só para receber
aquela criança diferente, a gente via que ela queria saber de todas as
outras. Foi aí que começou o diálogo com estes professores. Alguns
prosseguem nesta mesma demanda imaginária, outros se desencantam
e outros vêem que a psicanálise é muito complicada, mas ficam.
APPOA: Terias então dois campos, da educação terapêutica e da
educação do sujeito...
KUPFER: No começo era o educacional aqui e o terapêutico ali.
E a gente começava a ver que esta divisão não se sustentava muito.
Lasnik, Soler, têm falado de “psicanálise invertida”. A psicanálise invertida não é outra coisa, senão uma reeducação, no sentido de constituir
um sujeito, permitir a construção do sujeito. Então, o tratamento que se
vai propor para uma criança que está completamente desmontada, sem
lugar no simbólico, é uma reeducação. É um tratamento pela via da
educação, é um conjunto de atividades, tem os atelliers, tem o contar
histórias, tem a recreação, tem o grupo de pais, tem a escuta individual, enfim, é um dispositivo de tratamento atravessado pela educação,
isto é educação terapêutica.
A construção da escrita implica a construção de um sujeito, numa
certa forma. Se eu entendo a escrita desta maneira para uma criança
psicótica, aí eu estou educando e, ao mesmo tempo, propiciando a
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SEÇÃO DEBATES
construção de um sujeito. Mas eu acho que este jeito de pensar a alfabetização também serve e é importante para uma classe regular. Então, já
não estamos mais na educação terapêutica, estamos numa educação
que eu tenho que chamar de educação para o sujeito.
APPOA: E o que poderias comentar sobre a psicopedagogia?
KUPFER: Se a proposta fosse, e alguns psicopedagogos pedem isto, uma psicopedagogia psicanalítica, então vou ter que dizer
que não, concordar com Millot. Não dá pra fazer a pedagogia comparecer aí como uma ciência positiva, com métodos, técnicas, objetivos
colocados de entrada e nos quais o sujeito tem que se enquadrar. Então, nada de pedagogia analítica. Agora, psicopedagogia é ainda pior,
porque então eu quero aproximar psicologia de pedagogia e da psicanálise. A psicologia comparece com seus instrumentos comportamentais,
porque a psicologia, mesmo a clínica, tem um compromisso com sua
tradição comportamentalista, ela tem toda uma visão, você tem contato
com o objeto, pode conhecê-lo. Se você vê como Freud fala de representação do objeto, você está numa outra posição teórica. Eu não
posso pensar num campo teórico construído na articulação da pedagogia, psicologia e psicanálise.
Agora, às vezes penso que o que o psicopedagogo está pedindo é uma coisa parecida com o que a gente está chamando de educação terapêutica. Quer dizer, ele também precisa acionar seus instrumentos de educação e tem que ser capaz, ao mesmo tempo, de escutar os pais, de ter um referencial que o ajude a entender a posição
desta criança no discurso familiar, no discurso social, no discurso escolar... Só que eu não penso que devamos trabalhar na direção de
uma nova especialidade, o que eu defendo é uma prática articulada. A
psicopedagogia é uma tentativa de unir duas especialidades numa só.
Eu tenderia a achar que não é necessário, que não tem que se constituir
novos campos, tem que melhorar as especialidades.
APPOA: Diz-se que Piaget teria explorado a estruturação, a gê-
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ENTREVISTA: Maria Cristina Kupfer
nese do sujeito epistêmico e a psicanálise teria exatamente dado conta
do sujeito desejante. Aí então haveria um problema teórico, de qual
relação haveria entre este sujeito epistêmico e o sujeito desejante.
KUPFER: Eu tendo a pensar o seguinte, que Piaget aborda a
gênese de um sujeito epistêmico, como é que se organiza este sujeito
que vem a conhecer. Então, eu primeiro pensaria que não haveria uma
continuidade entre sujeito desejante e sujeito epistêmico, que são sujeitos de ordem diversas. O sujeito epistêmico está montado na positividade da biologia e o sujeito desejante está montado na negatividade
do sujeito da psicanálise. Só que daí você diz que disso decorre que
não se poderia fazer uma continuidade entre psicanálise e educação.
A continuidade não precisa se fazer pela via do sujeito, a continuidade
se faz por um modo de entender as relações entre psicanálise e cultura,
por um modo de entender a posição do sujeito no discurso, pelo modo de
entender a educação como sendo instrumento privilegiado de instalação
do sujeito. Mas é porque há sujeito desejante que há sujeito aprendente.
Como é que se articulam estes dois, a psicanálise não tem esta teoria e
não é pela via do Piaget que a gente vai chegar lá. Estamos falando de
campos diferentes, mas as duas coisas se articulam.
APPOA: Falaste da importância que teve para o trabalho de vocês
esta entrada institucional na universidade. Pelo que tu falavas antes,
parecia que a universidade serviu para conter uma resistência da instituição psicanalítica...
KUPFER: A universidade tem que acolher a diversidade. Ela tem
uma grande vantagem em relação à instituição psicanalítica que com
isso muitas vezes não consegue trabalhar, o que é um nó, pois a psicanálise está montada na diferença, mas na hora da instituição é o homogêneo que dirige os trabalhos. Por isso, não cabiam outros trabalhos no
“Campo”. Agora, na universidade cabe, e é isso que possibilita que os
trabalhos avancem. Antes de começar a andar dentro da universidade,
sempre ouvi o contrário: na universidade pública há a burocracia, o
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SEÇÃO DEBATES
emperramento, a impossibilidade de trabalho, de produção... E lá dentro
estou vendo que é um dos poucos espaços, de produção na cultura que
tem movimento, tem oxigenação, tem troca. Estou num momento de
entusiasmo com a universidade. Eu estava lendo outro dia o começo de
uma conferência do Miller de 81, no instituto de psicologia da USP, e aí
ele começa a falar o seguinte: que a criação do departamento de psicanálise de Paris VIII, foi um lapso, um efeito dos movimentos de 68 e que
até hoje se colhem os efeitos disto ter sido um tropeço, e daí pra frente...
Ou seja, não cabe a psicanálise na universidade. Porém, nós sabemos
dos esforços inauditos que ele faz para se manter lá. Agora, recentemente, o Miller disse que os professores universitários psicanalistas são parasitas das instituições psicanalíticas e, ao mesmo tempo, ele e seus
seguidores em SP não param de se esforçar para ancorar suas posições
na universidade. Então a questão não é ética, é política.
Agora, eu estou descobrindo que é o oposto, a psicanálise indo
para a universidade está tendo a chance de circular, de fazer o seu
trabalho na cultura, de sair um pouco das instituições psicanalíticas,
não que elas não devam existir, mas se produzir junto com outros discursos, fazer efetivamente uma produção em pesquisa. Vocês conseguem escrever e fazer algo parecido com uma tese fora da universidade? Dá pra fazer artigos, quem já tem um grande percurso até consegue escrever um livro, mas a chance para muitos são os mestrados e
doutorados.
Entrevista concedida a
Carlos Kessler, Mário Fleig e Analice Palombini
Transcrição de Ana Laura Giongo
Edição de Carlos Kessler
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JERUSALINSKY, A. Como era bela ...
COMO ERA BELA A VIDA EM DENVER...
Alfredo Jerusalinsky
Q
uando Roberto Begnini declarou que queria fazer amor no
espaço sideral com todos os implicados no outorgamento do
Oscar, um raro incômodo tomou conta da platéia mundial. O
alarme de estar sendo cometido um equívoco ofuscou por um instante
a brancura do sorriso dos convidados. Até a veterana hostess do momento - Sofia Loren - congelou (o que, convenhamos, é o mais improvável de sua figura farta). Mas, imediatamente, todo mundo se refez,
acomodando a desfaçatez de Begnini à série do espalhafato próprio da
idiossincrasia italiana. Afinal de contas essa personagem forma parte
da galeria familiar americana sob a forma de um imigrante simpático
que se alimenta de macarrão. Alí, deu para continuar rindo. Que alívio,
não passou de um susto! Podemos todos continuar no mesmo engano.
Qual engano? O do filme que se acabou de premiar. Esse engano que surpreende o divertido garçom, quando percebe que o médico
nazista não conhece a diferença entre o jogo e a vida. O mesmo que
emerge quando, num compreensível desespero, o pai pretende proteger seu filho mediante a construção duma bolha de fantasia, recusando a percepção do real. Aquele do final: “Nos divertimos como loucos”,
onde, precisamente, o “como loucos” revela, apesar do diretor, o preço
que se tem a pagar quando se dissolve a fronteira entre a brincadeira e
a tragédia. Todos ficam “como loucos”. E, certamente, é muito improvável que se divirtam. Apesar do diretor acreditar que, ainda assim, a
vida continua sendo bela.
Que a criança seja levada a acreditar que as significações do que
percebe podem ignorar o contraste entre o imaginário e o real, isso a
conduz, inexoravelmente, ao terreno do delírio social. Bastará ela chegar
à adolescência, tempo em que normalmente o jovem é chamado a produ-
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SEÇÃO DEBATES
zir seu ato, para que se revele em toda a sua virulência o preço da ilusão
de poder criar nossos filhos num mundo feliz, apesar de tudo.
Com efeito, algumas semanas depois, Hollywood teve a triste
chance de perceber o que havia premiado. Eric Harris (17) e Dylan Klebold
(18) demonstraram nos subúrbios de Denver, Colorado, com bombas e
balas, as conseqüências de formar nossas crianças acreditando que
podemos enganá-las. Educá-las nessa estranha suposição de que tudo
o que se diz e acontece em volta não tem conseqüência nenhuma para
elas.
O pior não é que Begnini exerça sua simpática loucura. O mais
dramático é que os principais produtores da novela ocidental - que hoje
se faz sob a forma de cinema - se iludam pensando que é possivel ocultar
de nossos filhos o mundo que estamos fabricando.
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RESENHA
MUNDOS IMAGINADOS
DYSON, Freeman. Mundos imaginados. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. 160 p.
A
o longo da leitura de “Mundos imaginados”, temos a impressão de transitar em uma zona limite entre a ficção
científica e uma previsão bem fundamentada
do futuro da civilização humana. Radio-telepatia, colonização espacial e a criação de novas
formas de vida são alguns dos assuntos abordados pelo autor. Nesta obra, Freeman Dyson,
um físico inglês radicado nos Estados Unidos,
elabora uma interessante especulação a respeito dos futuros cenários
que podem ser delineados pelo progresso da ciência e da tecnologia.
Produzido a partir de uma série de conferências proferidas pelo autor em
1995, o livro aborda as relações entre ética, ciência e tecnologia, com
base em histórias imaginadas ou reais que colocam questões acerca do
futuro.
A preocupação de Dyson com questões éticas é constante durante o escrito. Segundo ele, o progresso na ciência está destinado a
fazer confusões e trazer miséria ao ser humano, a menos que seja
acompanhado de progressos na ética. Aponta para as conseqüências
da tecnologia presentes na guerra e no aumento da distância econômica entre ricos e pobres.
A obra inicia com relatos de fracassos de tecnologias conduzidas
por ideologias. O autor considera este tipo de fracasso tecnológico como
mais danoso, na medida em que a tecnologia costuma assumir um caráter de perfeição em seu atravessamento pela ideologia. Uma promessa
de infalibilidade é oferecida ao público, trazendo desconfiança e impedin-
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57
RESENHA
do que o fracasso possa ser tomado como parte de um processo produtor de melhorias e de um possível sucesso futuro. Histórias de fracassos
ligados aos dirigíveis, à aviação, à energia nuclear e aos tanques de gelo
ilustram estas idéias. Poderíamos interrogar se esta promessa de perfeição, ao invés de ser considerada como produto da condução ideológica,
não seria inerente à própria estrutura do discurso científico.
Dyson considera a existência de dois estilos de mudanças ligadas à criação de novas tecnologias. O primeiro deles, chamado de
“napoleônico”, caracteriza-se por organização e disciplina rígidas. As
fases dominadas por este estilo demandam enormes quantidades de
dinheiro, pois seus projetos são grandes e caros. O segundo, denominado de “tolstoiano”, liga-se ao caos e à liberdade criativa. Caracterizase pela improvisação, pelos esforços individuais e pela colaboração.
Dyson acredita que os empreendimentos tolstoianos serão mais viáveis no futuro, pois as missões pequenas e baratas terão melhores
chances de materialização.
Segundo o autor, a biologia, em particular a genética e a
neurofisiologia, dominará o cenário da ciência no século XXI. Na genética, a possibilidade de compreensão dos programas que controlam o
desenvolvimento dos organismos superiores, que acompanham o
seqüenciamento do genoma humano, poderá levar o homem a responder o enigma da origem da vida, conduzindo a sua simulação em
computador e reprodução em laboratório. Dyson traz uma história de
ficção, “O Parque dos dinossauros”, para alertar quanto a desastres
futuros surgidos da prática da engenharia genética. A referência a obras
de ficção científica enriquece o texto ao longo de toda a leitura. Livros
de autores deste gênero literário são analisados e associados aos reais progressos tecnológicos.
A neurofisiologia progredirá num ritmo mais lento do que a genética, procurando soluções para problemas ligados à organização do
sistema nervoso central. As mudanças decorrentes desses setores po-
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RESENHA
dem trazer modificações mais profundas para a cultura humana do que
o computador, que seria o agente de mudanças sociais mais poderoso
dos últimos cinqüenta anos, no entender de Dyson.
A evolução do homem é abordada de acordo com diferentes escalas temporais. Partindo de um intervalo de dez anos, o autor remete
ao infinito. Quanto mais nos afastamos do presente, encontramos referências cada vez menos positivadas e mais especulativas, que vão
desde a colonização da galáxia pelo homem, até sua proliferação em
espécies diferentes e variadas.
O principal interesse desta obra está na reflexão acerca dos efeitos subjetivos ligados às mudanças tecnológicas e os aspectos éticos
associados a elas. Mesmo que se trate de pura especulação, apesar
de bem fundada na história passada e no momento atual, é interessante sublinhar o quanto grande parte das previsões de Dyson apontam
para a exacerbação narcísica e o conseqüente apagamento da castração. Em determinado trecho, comenta a possibilidade de que seja atingida pela primeira vez a igualdade completa entre os status biológicos
de homens e mulheres. Em outro, chega a cogitar a hipótese de que,
num futuro longínquo, seja alcançada a imortalidade. Tratam-se de mitos
que revelam explicitamente a promessa de perfeição veiculada pela
ciência.
Gerson Smiech Pinho
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59
RESENHA
DESLOCAMENTOS DO FEMININO
Kehl, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher
freudiana na passagem para a modernidade. Rio de Janeiro, Imago, 1998. 348 p.
N
a folha de rosto do livro que comprei, por ocasião da noite de autógrafos, leio a dedicatória da autora:
“Para Ângela, obrigada pela leitura! Com
carinho da M. Rita.” Na medida em que vou
avançando na leitura, mais forte fica meu
desejo de tomar esta frase como uma conversa com a autora e de responder-lhe com
sinceridade: - “Obrigada você, pela enorme contribuição às questões
do feminino, nas quais estamos de uma forma ou outra implicadas,
pela conseqüente abertura de possibilidades na escuta clínica e pelo
estilo tão agradável como um chá no fim da tarde.”
Esta segunda obra de Maria Rita Kehl, sobre a posição feminina
na sua diferenciação com a mulher e a feminilidade, não é um livro de
história ou literatura e, apesar do rigor de um estudo detalhado da obra
freudiana e da pesquisa aprofundada sobre o estilo narrativo de Flaubert,
não perde a leveza de um romance e mantém a curiosidade sobre os
fatos como um bom livro de história.
O primeiro capítulo busca encontrar, através das produções
discursivas da burguesia no século XIX, o que constituía o campo imaginário das mulheres naquele período. A autora questiona o conceito
de “natureza feminina eterna e universal”, que se contrapõe nesta época com as exigências da nova racionalidade burguesa, que convocava
os sujeitos a se lançarem em trajetórias individuais de liberdade, aventuras e conquistas. É na literatura que a mulher da época encontra
respaldo para o conflito que vivia entre ser a “Rainha do Lar” ou “tornar60
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
RESENHA
se uma outra”, como convocavam os novos ideais da modernidade.
Para isso, a autora passa pelo exame do conceito de estrutura e
sexuação em Freud e Lacan, situando o vetor da pulsão, do objeto do
desejo, dos ideais e das identificações, como disponíveis no campo
simbólico, mas não organizados para cada um dos sujeitos. A conseqüência disto está na própria ética da psicanálise, que exige que o
analista saiba que “homem”, “mulher” e “sujeito” são conceitos datados, contingentes, portanto, mutantes. “Dominar (relativamente) nossas práticas linguageiras, em vez de sermos inteiramente alienados a
elas, eis uma possibilidade de cura vislumbrada pela psicanálise.” A
caracterização do sujeito moderno, feito pela autora como sujeito neurótico, é extremamente rica e pertinente a toda reflexão sobre a modernidade, desde o estudo sobre a posição do adolescente como representante do enfraquecimento das regras de transmissão familiar e do
definhar das virtudes hereditárias, até a relação conflitante entre a vida
pública e a privada do homem moderno. Kehl percorre um notável percurso de pesquisa para demonstrar que a idéia da feminilidade que
nos parece tradicional, na verdade, faz parte da história da constituição
dos sujeitos modernos e que a histeria, mais do que caracterizar a
“mulher moderna”, faz parte da constituição de um sujeito convocado
a “escrever seu próprio destino, de acordo com sua própria vontade”
(p. 53).
O objetivo do segundo capítulo é a investigação de quem foi a
histérica freudiana e, para isso, a autora toma a literatura, especialmente Gustave Flaubert que, com sua obra - o romance “Madame
Bovary” - marcou a vida de muitas mulheres, de l856 em diante. Kehl
examina não só o porquê da enorme repercussão desta obra na época
em que foi publicada, mas também a relação do autor com sua obra no
seu estilo irônico,que caracterizaria a literatura moderna, numa tentativa do autor em superar sua própria narrativa, ao mesmo tempo em que
se revelava o quanto estava identificado a ela. Emma Bovary é toma-
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61
RESENHA
da, por Kehl, como o paradigma da mulher freudiana, associando o
que Freud na época diagnosticou como histeria com o que caracterizou-se como “bovarismo”. No entanto, a autora assinala, no capítulo
sobre o julgamento da obra de Flaubert, que” tanto a acusação quanto
a defesa tratam do autor, narrador e personagens como única voz”,
isto é, o conceito de “bovarismo” reflete o próprio desconforto que o
estilo do autor provoca, enquanto implica a sociedade burguesa e a si
próprio na formação dos desejos e ilusões da sua personagem. “A singularidade de Flaubert está na obsessão em criar um estilo que dê
conta, perfeitamente, desta tensão entre a palavra e o real, que ele
percebe ser apenas um desdobramento da tensão entre o imaginário e
o literário.”(p.191) Além disso, a ironia de Flaubert é examinada pela
autora como um modo pelo qual ele toma distância da própria feminilidade, o passado imperfeito usado na narrativa dá a idéia de distância e
indiferença, mas o “assassinato“ de Emma revela a tentativa frustrada
da posição de transcendência do autor. O suicídio de Emma é a destruição final de todas as tentativas desesperadas da personagem em
“ser outra”, isto é, de uma enorme necessidade de mudança subjetiva,
para viabilizar a realização de desejos, que na época de Flaubert, seriam incompatíveis com uma posição feminina.
No terceiro capítulo, a autora passa pelos textos freudianos que
tratam da feminilidade. Situa duas grandes indagações de Freud a respeito das mulheres: “As mulheres têm cura?” ou “O que a psicanálise
pode oferecer para diminuir a infelicidade cotidiana das mulheres e
resgatá-las da inveja que as constitui?” E ainda: “Afinal, o que quer
uma mulher?” Dos textos de Freud, desde “Estudos sobre a Histeria”
até “Análise Terminável e Interminável”, encontra-se o que caracterizou o pensamento moderno, até a primeira metade do século: as mulheres são “atadas” pela natureza, pela força das representações das
funções do corpo materno, enquanto os homens se definem pelo estatuto de “seres de razão”. Neste sentido, “toda mulher em transição para
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RESENHA
a modernidade seria uma ‘bovarista’, empenhada pela via imaginária
em ‘tornar-se uma outra’ e, ao mesmo tempo, capturada por uma posição na trama simbólica de completa dependência em relação ao que o
homem poderia desejar dela.” (p.313) Na análise da autora, Freud demonstrou uma progressiva decepção quanto ao destino das mulheres
na sua relação com a feminilidade. Isto ficou revelado na própria vida
de Freud, como homem de seu tempo, mergulhado nas condições de
produção da moral burguesa, principalmente na sua relação amorosa
com Marta Bernays, que caracterizou-se por fixá-la num “ fim da linha”
semelhante ao que Emma não quis conformar-se. Também na análise
de Dora, Kehl mostra-nos um Freud que não quis escutar o que sua
paciente procurava na Sra. K: não uma realização de suas tendências
bissexuais, mas alguém que lhe mostrasse o caminho de “como ser
mulher?” “Freud não podia ter se dado conta da magnitude do movimento social que alimentava a crise vivida por suas histéricas, entre os
anseios recém-mobilizados pelas condições na Europa dos ideais de
feminilidade que ainda alimentavam o desejo masculino.” (p.335)
No último capítulo de seu livro, intitulado “A discutir ainda: As
mulheres tem cura? M. Rita inicia com uma fala anônima, extremamente ilustrativa de uma certa posição frente à feminilidade: “Todas as
mulheres são chatas. Só que algumas valem a pena...” Isto remete a
um dos seus argumentos finais desta obra, que aponta a feminilidade
como aquele lugar de mal-estar revelador da impossibilidade de uma
identidade sexual. Seja do lado do homem ou da mulher, trata-se do
próprio efeito de castração, que em última análise, tem tudo a ver, não
com o “prazer na dor”, como a condição masoquista, mas com “sustentar o prazer, apesar dos riscos da dor”, condição do sujeito moderno
desejante.
Ângela Lângaro Becker
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
63
JULHO - 1999
Dia
Hora
05
21h
07 e 21 20h30min
Local
Sede da APPOA
Sede da APPOA
08
21h
08 e 22 20h
09
18h
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
09
16h30min
12 e 26 20h
12 e 26 21h
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
14
17h30min
Sede da APPOA
14
15
20h30min
19h30min
Sede da APPOA
Sede da APPOA
22
21h
Sede da APPOA
29
21h
Sede da APPOA
Atividade
Reunião do Fórum
Seminário “A dimensão trágica da psicanálise” - Responsável: Enéas Costa de Souza
Reunião da Mesa Diretiva
Reunião da Comissão de Biblioteca
Seminário “Novos apontamentos para a
clínica das psicoses” - Responsável: Alfredo
Jerusalinsky
Cartel do Envelhecimento
Reunião da Comissão do Correio da APPOA
Seminário “Memórias...” - Responsáveis: Ana
Maria Medeiros da Costa, Edson Luiz André
de Sousa e Lucia Serrano Pereira
Seminário “A topologia fundamental de
Jacques Lacan” - Responsável: Ligia Víctora
Cartel Brasil 500 anos
Cartel Preparatório para a Jornada de Novembro
Reunião da Mesa Diretiva aberta aos membros da APPOA
Relendo Freud e Conversando sobre a
APPOA - Análise Finita e Infinita
PRÓXIMO NÚMERO
BRASIL 500 ANOS
64
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
EXPEDIENTE
Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Rua Olavo Bilac, 786 CEP 90040-310 Porto Alegre - RS
Tel: (051) 333 2140 Fax: (051) 333 7922 e-mail: [email protected]
Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956
Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.
Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (051) 318 6355
Comissão do Correio
Coordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira
Integrantes: Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam,
Liz Nunes Ramos, Luzimar Stricher, Marcia Helena Ribeiro, Maria Aparecida Loss,
Maria Lúcia Müller Stein e Marta Pedó
Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events
in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criação da capa: Flávio Wild - Macchina
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
GESTÃO 1999/2000
Presidência - Alfredo Néstor Jerusalinsky
1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira
2a. Vice-Presidência - Maria Ângela Brasil
1a. Tesouraria - Carlos Henrique Kessler
2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes
1o. Secretário - Jaime Alberto Betts
2a.Secretária - Marta Pedó
MESA DIRETIVA
Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa, Ana Marta Goelzer Meira,
Cristian Giles, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos,
Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora, Liz Nunes Ramos,
Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Mario Fleig, Robson de Freitas Pereira,
e Valéria Machado Rilho.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 70, julho 1999
65
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Correio nº 70 - APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre