O Ciclo de Cinema Escravatura e Tráfico de Seres
Humanos
Entre os dias 6 e 9 de maio de 201, realizou-se na delegação de Lisboa co
CES, promovido pelo Comité português do projeto da UNESCO “A Rota do
Escravo”, em colaboração com o CES de Coimbr e o CEsA do ISEG, um ciclo
de cinema “Escravatura e Tráfico de Seres Humanos: Ontem e Hoje. Uma
dúzia de filmes e dois debates constituíram o programa deste ciclo, que
contou com a participação de várias dezenas de pessoas.
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Qual o sentido deste ciclo de
cinema,
próximo
das
comemorações do dia de África a
25 de Maio. Tráfico de pessoas
humanas
é
um
fenómeno
presente. Todos sabemos. O
Esquecimento é outro fenómeno
que afecta as sociedades do norte,
aquelas que mais se envolveram
no fenómeno histórico do tráfico
negreiro. Um tráfico que favoreceu
uma determinada acumulação de
capital
num
sistema
précapitalista. Uma alavancagem para
a acumulação do norte. E qual o
efeito do fenómeno da escravatura
nas sociedades do sul. Das novas
sociedades constituídas com o
contributo e integração destes
escravos. Terá o fenómeno da
dupla consciência de Paul Jilroy
um oposto no fenómeno do
esquecimento analisado por Jung,
Lacan e Riceur?
Vale a pena acentuar algumas
questões que este ciclo levantou.
Em primeiro lugar a pertinência
dum ciclo de cinema para discutir
fenómenos históricos. Sabemos
que muitas das reconstituições do
passado são meras reinvenções.
Conhecemos descrições sobre as
condições de captura e transporte
dos
cativos.
Sabemos
e
imaginamos o que pode ser o ser
humano
considerado
como
mercadoria. Como valor de uso e
de troca, ultrapassando a sua
dimensão ontológica. Mas mais
recentemente podemos olhar para
o cinema, quer na sua dimensão
estética, quer na sua dimensão de
documentário como um processo
narrativo de denúncia.
Deixem-me subir à palmeira,
filmado em Moçambique nos anos
finais do colonialismo mostra,
através duma narrativa poética
essa tensão entre o mundo
tradicional, o filha da terra que
parte para a cidade e regressa
para o funeral. Já por seu lado, o
Amistad, do realizador Steven
Spliberg, reconstrói através da
gramática
de
Hollywood
a
violência e o sofrimento do tráfico.
Ensaia mesmo uma releitura sobre
a fundação da nação americana,
com base nesse combate pela
liberdade do ser escravo.
Por seu lado, o documentário “Not
my live” mostra a dimensão atual
do fenómeno. Uma visão mais
moralista, mês nem por isso
menos violenta do que é o
fenómeno do tráfico de seres
humanos na atualidade. Em suma.
O filme como documento e o
debate
como
processo
de
consciência.
Uma segunda questão que mercê
ser acentuada, esta de natureza
mais histórica, relaciona-se com a
análise
do
fenómeno
da
escravatura.
Em
regra
este
fenómeno inclui três dimensões do
problema:
A
questão
da
escravatura como sistema; o
tráfico
de
escravos;
e
o
abolicionismo.
No primeiro caso temos uma
análise
dum
fenómeno
que
acompanha a história dos grupos e
das comunidades de forma mais
ou menos persistente. Seja como
cativo
de
guerra,
seja
por
nascimento, milhões de seres
humanos foram escravizados ao
serviço de grandes estados ou
pequenas comunidades. Trata-se
da análise dum sistema complexo
e durável que leva um ser humano
a reduzir outro ser a um objeto.
No segundo caso, falamos dum
fenómeno
que
alicerça
um
processo de concentração de
capital. O tráfico organizado,
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transatlântico de milhões de seres
humanos, destinado a serrem
usados como mão-de-obra em
numa economia de plantação nas
terras americanas e caribeanas.
Um trafico que é organizado pelos
europeus, que se alicerça numa
pratica antiga, mas que ganha
formas próprias no âmbito da
formação do sistema económico
capitalista.
marcado pela barbaridade e pela
violência.
Com efeito o “Tráfico” é uma
forma de comércio que está
intimamente ligada às políticas
mercantilistas europeias. É um
fenómeno que deve ser analisado
no âmbito das responsabilidades
(europeia
e
das
chefatura
africanas),
no
quadro
duma
organização económica que forma
um sistema mundo (comércio
triangular), com um objetivo de
acumular capital na lógica dos
interesses europeus.
Finalmente no terceiro caso, o
fenómeno do abolicionismo, que é
não poucas vezes tratado como
que
um
processo
de
branqueamento
do
fenómeno.
Uma forma de expiação da culpa.
Depois do reconhecimento do mal,
valoriza-se o processo de abolição,
como
que
através
do
reconhecimento da “nobreza do
ato concedido” se procura o
perdão. Um perdão moral que
confere dignidade a quem o
reconhece, ao mesmo tempo que
apela a quem foi vítima para se
erguer a partir do ponto em que
está. Um processo que por vezes
procura apaziguar a memória dos
fenómenos.
Trata-se da formação dum sistema
internacional e intercontinental
que se tornou progressivamente
autónomo, que criou os seus
atores próprios produzindo um
enriquecimento dos intermediários
e das instituições de suporte. É um
processo que paralelamente ao
enriquecimento de uns se produz
uma desumanização do outro. O
escravo torna-se um objeto:
Despersonalizado, dessacralizado,
descivilizado, e desterritorializado.
O escravo africano é retirado dos
seus
quadros
de
referência
africanos e obrigado a recriar
outras
sociabilidades,
noutros
territórios,
com
outras
comunidades. Quando não morre
no processo de transporte, ou no
processo de trabalho, torna-se
ator de outras sociabilidades
mestiças1. Um processo que é
1
Ver Claude Meillassoux (1986) Anthropologie
de l'esclavage: le ventre de fer et d'argent
Trata-se, para a fenomenologia da
história duma questão que analisa
o processo do tráfico negreiro
como um processo que assegura a
desumanização do ser. O ser
humano passa a objeto. “A
coisificação do se humano” como
base dum processo social
Estes três modos de abordagem
conduzem-nos a um terceiro ponto
que gostaríamos de acentuar: O
fenómeno da transformação do ser
humano em mercadoria. Trata-se
duma questão da actualidade,
sobretudo na análise das questões
do trabalho.
Sem procurar, nesta reflexão,
abordar as questões do trabalho,
interessa revelar os processo
como, ao longo dos séculos, e ao
longo dos diferentes processos a
desvalorização do ser se confronta
com a dignidade da afirmação do
ser e das suas formas de
( 1991) trad. The Anthropology of Slavery: The
Womb of Iron and Gold)
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organização. O processo do tráfico
negreiro é um exemplo do modo
como se constituem ideias tipo
(preconceitos)
que
perduram
transformando o preto em escravo
e em africano. No século XV, o
preto que qualifica um ser pela
sua forma (adjetivo) transformase num substantivo (confere-lhe
substância pelo conteúdo). Tratase dum processo estruturante que
mostra
como
a
linguagem
produziu a desubstancialização dos
africanos.
Um processo violento que retira
valor e memória aos africanos,
que está na génese de criação de
preconceitos em relação aos
outros, na recusa da aceitação da
diferença, neste caso através da
cor da pele.
Um processo que nos conduz à
questão da análise da memória. A
análise da memória social revelanos mais as crenças do que as
verdades. Ou por outra, a crenças
na verdade. A Memória da
escravatura remeto-nos para a
análise dum fenómeno terrível, de
visões divergentes de diferentes
comunidades, de memórias de
diferentes atores
Situar os Estudos Africanos na
análise
do
fenómeno
da
escravatura.
A análise do discurso africano, da
oralidade é situar a análise da
palavra. O movimento da palavra
que é ritualizada. A palavra é o
exercício de símbolos. Os simbolos
expressam a ligação com o
mundo. A vida e a morte. A
ligação à organização social, o
poder da comunidade, mediado
pela
sua
sacralização.
A
importância do parentesco. A
família e os seus membros tem
um lugar social. O estatuto dum
indivíduo liga-se ao da sua família,
e a sua família liga-se ao seu
passado.
A dimensão coletiva do poder
africano está ligada ao processo
da
sua
relalção
com
os
antepassados. Os objetos do poder
conferem prestígio e mostram a
sua riqueza. (Tecidos, armas,
conchs, espelhos)
Apresentação de "La Route de
l’escalavage
dans
l´océnan
Indien2
Resumo : Uma viagem por lugares
da memória para resgatar do
esquecimento o tráfico negreiro no
Oceano Índico. Este documentário
mostra os resultados do projecto
da UNESCO, entre 2004 e 2010,
que levou á criação de jardins de
memória em seis locais ligados
entre si pelos laços do trato
humano. Madagáscar, Reunião,
Moçambique, Maurícias, Mayotte e
Pondcherry na India.
O oceano Índico é hoje um espaço
de culturas mestiças. Espaço
híbrido que resultou dos intensos
movimentos
de
pessoas
e
mercadorias que deixaram marcas
nos rostos e nos modos de ser e
estar das gentes. Uma história
feita de sofrimento no passado
que este projeto mostra hoje
como um grito de liberdade em
defesa dos direitos humanos.
2
Documentário de 65 „:realização: Sudel
Fuma e Vitor Randrianazary, produzido
por : Cátedra da UNESCO da Ilha de
Reunião, 2011
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