D. MYRTHES: A SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO E CULTURA DA FUSÃO
Yolanda Lima Lôbo - Universidade Estadual do Norte Fluminense
INTRODUÇÃO
Quando nos propusemos investigar aspectos da História da Educacão Fluminense nosso
interesse inicial era compreender a natureza das políticas públicas de Educação do novo
Estado do Rio de Janeiro. Chamava nossa atenção o caráter descontínuo das políticas
educacionais e a constante substituição dos titulares da pasta de Educação. Em sete
governos, 17 secretários. A percepção desse fenômeno exigia explicá-lo. Um fato
percebido ou observado deve, previamente, ser criticado e reconstruído de maneira que
sua tradição conceitual possa ser reformulada. Assim sendo, buscamos organizar o
Centro de Memória da Educação do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro
tendo como eixo principal o projeto de pesquisa “O empreendimento educativo-cultural
da Fusão: Memórias de Secretários de Educação”. A escolha do tema objeto de estudo
justifica- se por duas razões. Em primeiro lugar, porque pretendíamos implantar, no
Centro de Memória, um programa de História Oral e isto exigia projeções de longo prazo,
de modo que pudesse inaugurar um tipo de trabalho que não se exaurisse, mas que se
estendesse de modo a sedimentar-se. Assim sendo, o recorte inicial do objeto de estudo
deveria ser bastante abrangente, capaz de viabilizar o investimento contínuo de
entrevistas.
De fato, ao tomarmos como tema o testemunho dos titulares da pasta da Educação, a
partir da fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, ocorrida em 1975, o
consideramos capaz de proporcionar desdobramentos e novos projetos de pesquisa, a fim
de aprofundar assuntos específicos, incluídos no tema,
tais como: municipalização,
carreira docente, museus, construção escolar, formação docente, democratização do
ensino, financiamento da educação, educação rural, ensino fundamental, educação e
trabalho. A escolha de um tema gerador
continente”
– Alberti (1990) usa a expressão “tema
– define a linha de acervo do programa e o desenvolvimento de suas
atividades, proporcionando a construção de sua identidade institucional.
Em segundo lugar, consideramos as possíveis contribuições que o tema gerador produzirá
para a pesquisa histórica e em ciências humanas.O conjunto de documentos produzido
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pela investigação pode ser usado como fontes para novas pesquisas, isto é, pode criar
temas ainda não investigados por outros acervos.
Lembramos que a construção do objeto de investigação exige que se tenha perante os
fatos uma postura ativa e sistemática. Para isso, afirma Bourdieu (1989) é preciso romper
com as pré-noções do senso comum, e isto não significa propor-se construções teóricas
vazias, mas abordar um caso empírico com a intenção de ligar os dados pertinentes de tal
modo que eles funcionem como um programa de pesquisas que põe questões
sistemáticas, apropriadas a receber respostas sistemáticas: “Trata-se de interrogar
sistematicamente o caso particular, constituído em caso particular do possível, para
retirar dele as propriedades gerais e invariantes que só se denunciam mediante uma
interrogação assim conduzida” (p.32).
O processo de conhecimento do objeto nos levou a dialogar com duas vertentes da
literatura existente: a da Fusão e a da Educação. Enquanto a primeira vertente – a Fusão
- vem sendo objeto de estudo de pesquisadores do CPDOC, a segunda, ainda é pouco
explorada. Um dos estudos na área de educacão, particularmente, nos instigou pôr em
diálogo o tema objeto de nosso estudo. Trata-se do excelente trabalho de Libânea Nacif
Xavier. Nele a autora apresenta uma análise da política educacional desenvolvidada no
Estado do Rio de Janeiro, após a fusão, tendo como categoria principal a
descontinuidade, termo que não pode ser entendido como ruptura, no sentido
epistemológico. Neste aspecto, teríamos que aprofundar a interlocução com Libânea, o
que, no limite desse trabalho, não será possível fazê-lo. Preferimos trabalhar pontos que
a referida autora destacou como não sendo objetivo do seu trabalho, coincidentemente
aqueles sobre o qual nos debruçamos: “redesenhar, na História da Educação
Fluminense, as trajetórias de educadores responsáveis pela formulação e
implementação de propostas de renovação pedagógica e de política educacional no
Estado do Rio de Janeiro, a partir da fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de
Janeiro” (Xavier Nacif , 2001 p.127).
Para reconstruir o itinerário dos educadores que exerceram o cargo de titulares da pasta
de educação e cultura do novo Estado do Rio de Janeiro, optamos por registrar a voz e,
através dela, suas vidas e seus pensamentos, destacando, aqui, a gestão da Professora
Myrthes de Luca Wenzel, primeira Secretária de Educação e Cultura do Estado do Rio
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de Janeiro. É, pois, um estudo sobre memórias. Este registro alcança uma memória
pessoal que é também uma memória social. O nosso sistema social encontra-se
integralmente em cada um dos nossos atos, em cada um dos nossos sonhos, delírios,
obras, comportamentos. E a história desse sistema está contida, por inteiro, na história
de nossa vida individual. Toda vida humana revela-se como a síntese vertical de uma
história social e todo comportamento ou ato individual parece a síntese horizontal de
uma estrutura social. A concepção do trabalho situa-se numa fronteira de cruzamernto
entre os modos de ser do indivíduo e de sua cultura.
Em 1º de julho de 1974, o Presidente Ernesto Geisel sanciona a Lei Complementar n º
20 que regula a criação de novos Estados e Territórios e fixa disposições para a fusão
dos Estados da Guanabara e Rio de Janeiro. Os dois Estados passam a se constituir em
um só, com o nome de Estado do Rio de Janeiro, a partir de 15 de março de 1975.
Convidada pelo Governador Faria Lima para coordenar os trabalhos da equipe
encarregada de planejar a pasta da Educação e Cultura, a Profª Myrthes de Luca
Wenzel, fundadora da Fundação Centro Educacional de Niterói, Inspetora Federal de
Ensino, autora de livros didáticos e professora com vasta experiência em educação,
assume a responsabilidade de gerir o empreendimento educativo-cultural da Fusão. Sob
sua coordenação, a equipe monta a estrutura administrativa da nova Secretaria de
Educação e Cultura fundamentada em princípios de descentralização e experimentação
e segundo o princípio racional da divisão do trabalho e a distribuição de funções pelo
princípio da meritocracia. A estrutura e organização da secretaria compreendia órgãos
colegiados – os Conselhos de Educação, de Cultura e de Tombamento -, de
planejamento, apoio técnico, administrativo-financeiro, de contabilidade e auditoria e
fundações. Vale destacar, ainda, a criação de uma das mais importantes instituições da
administração Myrthes Wenzel, o Laboratório de Currículos, responsável pela
implantação de escolas experimentais.
SOUVENIRS DE D.MYRTHES
Descendente de famílias de italianos que vieram fazer a América, no final do século
XIX, e se instalaram no município de Além Paraíba no Rio de Janeiro, D. Myrthes é a
primeira dos quatro filhos de Maria Antonia Gagliardi De Luca e de Giuseppe Umberto
De Luca, “profissional muito brilhante na Odontologia”. A escolaridade da mãe atingia
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o grau elementar “... minha mãe fez como todo mundo naquela época, o curso
correspondente ao primário completo, até a sexta série, em Angustura. Depois, ela teve
aulas particulares ... estudou canto, tinha uma voz maravilhosa ... o canto que eu ouvia
de minha mãe, de meu avô, que ouvia dos italianos de minha família me fez uma
apreciadora de música clássica, de ópera” (Wenzel, depoimento, 2001). As formas
familiares da cultura manifestam-se no seu cotidiano contribuindo para a formação do
gosto musical. A cultura escrita se faz presente no dia-a-dia da família De Luca, de
formas as mais diversas: na leitura e escrita de cartas, no arquivo de clientes do Dr. De
Luca – que mantinha seu consultório nas dependências de sua residência -, na leitura de
jornais (o pai era leitor assíduo de jornais). No consultório dentário do pai, a menina
inicia sua preparação para seguir a “carreira do pai”. Ocupa-se de guardar os
instrumentos, auxilia de “enfermeira”, demostrando toda a sua “inabilidade para esse
ofício”. Sua “vocação” era outra e provinha de ‘uma professora chamada Jacira”, com
quem iniciou sua vida escolar, em Angustura, distrito de Além Paraíba: “...as minhas
primeiras letras foram adquiridas com uma professora chamada Jacira. Eu, desde o
início, gostei muito dela ... me tornei uma grande amiga dela e ela era minha amiga”.
... dizia minha mãe que eu já lecionava para as minhas bonecas. Mas, não sentava as
bonecas uma atrás da outra. Sentava as bonecas em círculo. ... as bonecas
conversavam umas com as outras, faziam brincadeiras, faziam coisas bonitas. Mamãe
sempre dizia que era um problema, um grande problema que eu só queria brincar de
professor e aluno. ... desde pequena eu sempre achei que a sala de aula é uma sala de
vida, é uma sala de convivência, é uma sala de melhoria do entendimento humano”
(Wenzel, depoimento, 2001). Na divisão sexual dos papéis familiares, cabia ao pai o
exercício da autoridade moral doméstica e, assim sendo, as pretensões profissionais da
primogênita estavam sendo encaminhadas para formar o herdeiro da profissão paterna.
Muito cedo, porém, o pai compreendeu e aceitou a inclinação da filha para o setor de
humanidades.
Pioneiro na odontologia brasileira na implantação de roach (pontes móveis), Dr. Zeca,
como era conhecido, transfere-se de Angustura para a cidade do Rio de Janeiro, onde a
família se instala definitivamente. A preocupação com a educação dos filhos influiu,
também, na decisão de se estabelecer nessa cidade.
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No Rio de Janeiro, escolhe um colégio feminino, frequentado pela alta burguesia
carioca, para cuidar da educação de D. Myrthes, o Colégio Sion, localizado no Cosme
Velho. A família passa por graves problemas de adaptação na nova cidade. Os
problemas de saúde da mãe –asmática – provocam uma série de mudanças (de
Copacabana para o Rio Comprido e depois para Laranjeiras) e a dificuldade do pai para
firmar-se profissionalmente na capital da República ocasiona períodos de grande
instabilidade financeira para a família, que terá repercussões na educação dos filhos.
Impossibilitada de arcar com os custos do Sion, a família procura um outro Colégio
tradicional de educação feminina, o Sacré-Coeur de Marie, situado em Copacabana.
“...Eu sempre me interessei muito pela leitura e pela literatura, pela poesia, sobretudo.
... estudei um tempo no Colégio Sion, depois saí ... porque papai teve problemas de
dinheiro. ... embora eu renda minhas homenagens ao Sion porque, realmente, adquiri
muitas coisas lá, ...saí falando perfeitamente o Francês, conhecendo bem o
Português,... o Sacré-Coeur era mais democrático porque as irmãs eram abertas a
bolsas de estudo. Eu tinha muitas colegas bolsistas, então, isso democratizava muito
nossos contatos e foi muito bom para a nossa formação” (Wenzel, depoimento, 2001).
As condições e disposições econômicas da família a introduziram no universo escolar
que lhe possibilitou uma formação clássica rigorosa, com ênfase no domínio de línguas
– francesa, latina -, uma disciplina intelectual e o fortalecimento de relações sociais,
para a qual estava socialmente preparada para recebê-la. Ainda na qualidade de aluna do
Sacré-Coeur, conhece D. Hélder Câmara, personagem cuja influência foi decisiva na
sua vida profissional: “...padrezinho foi um grande amigo. E os exemplos que ele nos
dava. ...ele foi meu grande formador, minha grande faculdade de educação. ... a
convivência com D. Hélder, Hilda Fernandes Mattos, os educadores Luiz Alberto
Torres e Dr. La-ffayete Cortes e com minha colega de faculdade Bertha Gladson
Ribeiro e seu esposo, Darcy Ribeiro, me deu a convicção de trabalhar pela educação”
(Wenzel, depoimento, 2001).
É no ensino religioso do Distrito Federal que D. Myrthes inicia o seu magistério,
convocada por D. Hélder Câmara, na segunda metade da década de trinta. “...comecei
lecionando religião, com D. Hélder Câmara. Ele achava que eu tinha que lecionar
religião. ...O meu acesso foi pelas mãos de D. Hélder. Porém, como havia falta de
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professores, eu passei para aquilo que era o meu caminho: professora de Geografia e
história. Depois, na década de quarenta, o Dr. La-Fayette me convidou para lecionar
no Instituto La-Fayette. ... Simultaneamente, eu me apresentei ao Colégio Brasileiro de
São Cristóvão, dirigido pelas ilustres educadoras Adalgisa e Augusta Quaresma”
(Wenzel, depoimento, 2001). A tríplice jornada de trabalho decorria das dificuldades
financeiras: “... meu marido era professor de línguas, alemão e inglês; era professor da
antiga escola alemã, que foi fechada durante a guerra”. Alemão, naturalizado
brasileiro, o professor Wenzel, durante a Segunda Guerra Mundial, não conseguiu
trabalhar: “... naquela época, meu marido não estava bem colocado e o que eu ganhava
para sustentar os três não era assim tanto; então papai nos convidou para morar com
eles e nós ficamos uma temporada com meus pais ”(idem).
Em 1942, presta concurso público para o cargo de Inspetora Federal do Ensino Médio
do Ministério de Educação e Saúde. Preparada para o concurso por D. Hélder, consegue
classificar-se entre os primeiros colocados; contudo, não consegue ser nomeada, de
imediato. Aguardou sua nomeação por dois anos, quando decidiu abordar o Ministro
Capanema na saída do Ministério. A cena é por ela relatada: “...o Ministério ficava na
rua onde hoje é o Teatro Regina, ali na Cinelândia, no 14° andar. ... Fiquei vigiando os
horários do Ministro Capanema. O motorista ficou distraído, não fechou as portas do
carro; entrei no carro, no momento em que o Ministro entrava por uma porta, eu
entrava pela outra. E ele disse: - mas o que é isso? - Quem é a senhora? Eu lhe disse: sou uma professora concursada e que o senhor não nomeia; estou precisando do
lugar, porque estou com o marido sem trabalho e preciso ganhar dinheiro para
sustentar a família. Sabe que ele me nomeou?” (Wenzel, depoimento, 2001).
Os anos cinqüenta são de intensas atividades educacionais. Gradua-se em Geografia e
História, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da então Universidade do
Distrito Federal (depois, denominada Universidade do Estado da Guanabara, e, hoje,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Na UDF, estabelece relações com um grupo
de colegas que, juntas, seguirão tentando implantar “uma escola diferente”. Trata-se do
grupo que, sob a direção da educadora Henriette de Holanda Amado, reúne-se na recém
inaugurada Escola Brigadeiro Schörtch, em Jacarepaguá. “Eu sou fundadora daquele
grupo de professores que Henriette reuniu no Brigadeiro Schörtch ... os professores do
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Brigadeiro implantaram uma escola diferente ... fornecendo aos seus alunos a
oportunidade de desenvolvimento intelectual e emocional, ensinando os alunos a amar
o saber, a buscar o saber, aprender a aprender, a gostar da arte, da música, da pintura
... a participar dos clubes de Geografia, de Ciências, de Inglês e Francês. ... aos
sábados ainda íamos dançar no Brigadeiro Schörtch. E, assim, tivemos uns anos muito
agradáveis... tudo começou lá, no Brigadeiro Schörtch, colégio dirigido pela ilustre
educadora Henriette Amado, a quem presto minha homenagem” (Wenzel, depoimento,
2001). Percebe-se, aqui, a ênfase na aprendizagem tanto no plano do conhecimento
(estudo das matérias) como no da criação (gostar da arte, da música,etc). Os clubes são
instrumentos para aplicação de uma pedagogia que se desenvolve num contexto social
e comunicativo que permite o desenvolvimento emocional dos alunos proporcionandolhes a autodisciplina e o respeito pelo outro.
O Brigadeiro Schörtch é uma escola da rede estadual de ensino médio. Sob a direção de
Henriette Amado desenvolveu com alunos do ensino médio (ginásio) da rede pública do
Distrito Federal uma proposta educacional inovadora. A idéia central era de construir
uma escola em que os alunos pudessem ser felizes, com liberdade de criar, de viver em
sociedade e, ao mesmo tempo, ser preparados de modo completo e científico para
participar da vida social. Composto em duas partes, o programa incluía atividades
comuns, que compreendía os conhecimentos técnico-científicos, de formação geral, e
uma parte de escolha livre do aluno, música, arte, línguas, desenvolvida em clubes. O
forte dessa proposta são as atividades em grupos, onde a cooperação se constitui
elemento operativo do programa escolar. A topografia da escola, situada na zona rural
da cidade do Rio de Janeiro, favorecia o desenvolvimento de atividades fora da sala de
aula. As aulas de geografia, muitas vezes, segundo D.Myrthes, realizavam-se escalando
as montanhas de Jacarepaguá ou pescando nos rios que atravessam aquela região. Os
indícios paracem indicar a influência de Célestin Freinet na orientação que Henriette
Amado procurou dar ao Colégio.
A experiência do Brigadeiro Schörtch é significativa para a implantação da Fundação
Centro Educacional de Niterói. Em seu trabalho na Campanha Aperfeiçoamento e
Difusão do Ensino Secundário do Ministério da Educação e Cultura – CADES -, D.
Myrthes ministra cursos de Geografia para professores de todo o Brasil. A experiência
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do Brigadeiro Schörtch mereceu publicação da Editora do Brasil, livro de autoria de D.
Myrthes em colaboração com Hilda Fernandes Mattos, que passou a ser utilizado pela
CADES. Um dos principais colaboradores do Professor Anísio Teixeira no INEP,
Professor Armando Hildebrand, convida D. Myrthes para criar uma escola de ensino
médio diferente, em Niterói. Aceito o convite, D. Myrthes dedica-se a transformar uma
pedreira em uma escola. Em 1960, planta o embrião da Fundação Centro Educacional
de Niterói com alguns companheiros do Brigadeiro Schörtch. “Quando fui convidada
pela Fundação Brasileira de Educação para abrir uma escola diferente, uma escola de
formação que desse ao aluno oportunidade de desenvolvimento, de trabalho, imaginei
tudo aquilo que fazíamos no Brigadeiro Schörtch” (Wenzel, depoimento, 2001). A
extensão do experimento dá condições para a disseminação de princípios de uma teoria
da educação fundamentada na liberdade do aluno e do professor (que pode experimentar
propostas curriculares alternativas) e no caráter progressista e libertário da escola (que
D. Myrthes chamou de "Escola aberta"), que se consolida no modelo do Centro
Educacional de Niterói e que orientará, nos anos setenta, a proposta do Laboratório de
Currículo da Secretaria Estadual de Educação do novo Estado do Rio de Janeiro na
gestão Myrthes De Luca Wenzel.
Porém, antes de mesmo de exercer o cargo de Secretária de Educação e Cultura, D.
Myrthes teve oportunidade de difundir os princípios teórico-pedagógicos dessa “escola
diferente” nos cursos de aperfeiçoamento para professores do ensino médio do Estado
da Guanabara – SADEM -, que funcionava nas dependências do Instituto de Educação
do Rio de Janeiro. A adesão dos professores à “escola diferente” decorre do
reconhecimento da excelência da qualidade do trabalho realizado por D. Myrthes. Sua
autoridade e seu prestígio moral provêm da natureza pedagógica do trabalho que
desenvolvia e, sobretudo, porque os professores identificavam-se com as idéias
pedagógicas de sua obra. A indicação para o cargo de Secretária de Educação e Cultura
do novo Estado do Rio de Janeiro partiu de uma professora que trabalhava com D.
Myrthes no SADEM. “Devo dizer que Iva Bonow, com quem trabalhei no Instituto, me
fez Secretária de Educação. ...foi quem me indicou ao Faria Lima ...e, também, minhas
colegas do Instituto de Educação; ele consultou Iva Bonow, que ele conhecia e
apreciava o seu trabalho, e ela me indicou...” (Wenzel, depoimento, 2001).
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Nomeada Secretária de Educação e Cultura, D. Myrthes convida para compor a sua
equipe os professores do Brigadeiro Schörtch e expressivos intelectuais do Rio de
Janeiro, o que lhe trará aborrecimentos com a “linha dura”do governo Militar. “D.
Myrthes ... conseguiu reunir figuras representativas da cultura do Estado do Rio de
Janeiro e expressivas no plano nacional e internacional” (Barbieri, depoimento, 2002).
O Departamento de Cultura, dirigido por Paulo Affonso Grisolli, nome conhecido no
teatro e na televisão, participante do movimento renovador do teatro brasileiro, autor da
peça “Onde canta o Sabiá, que marcou a história do teatro brasileiro, desenvolveu uma
política de cultura integrada à educação através de vários projetos: Concertos Didáticos,
Ação Educativa nos Museus, a Escola vai ao Teatro e a Praça. Na cidade, a praça é o
centro aglutinador social e cultural e como tal é centro de manifestação das diferentes
atividades culturais populares: musicais, folclóricas, artísticas.
No Conselho Estadual de Cultura, “D. Myrthes reuniu uma equipe, um naipe de
intelectuais da maior expressão... o escritor José Rubens Fonseca, ... Edson Mota –
maior restaurador na área das artes plásticas, que ocupou-se da restauração das
pinturas originais de Visconti, no Teatro Municipal -, entre outros” (Barbieri,
depoimento, 2002). As preocupações e a concepção das atividades culturais do novo
Estado do Rio de Janeiro podem ser encontradas no Jornal Revista editado pelo
Conselho de Cultura, Artefato. Marco dessa política, os encontros regionais promovidos
com so Conselhos Municipais destinavam-se a promover intercâmbio cultural, o
levantamento da cultura regional; através desses encontros regionais surgem os
animadores culturais. A figura do animador cultural, representante local de suas
manifestações, tem um papel decisivo na política cultural do Departamento de Cultura.
É oportuno destaca a concepção do papel que cumpria aos Conselhos de Educação e
Cultura desempenhar, como órgãos pensadores da cultura e da educação. Os Conselhos
de Educação e de Cultura desenvolviam trabalho de “doutrinação, normativo,
consultivo ... através de encontros e seminários ... se buscou não só a normatividade ...
como também a explicitação de novos instrumentos conceituais e operativos” (SEEC:
Informações n. 9, p.12). A concepção orientadora da política cultural e educacional
“buscou institucionalizar a simbiose existente entre educação e cultura, estimulando o
desenvolvimento de um complexo a ser partilhado por todos, cabendo à escola
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reelaborar o dado cultural colhido, mediante a organização do conjunto de
experiências da comunidade, que se constitui no currículo” ( SEEC: Informações n. 9,
p.12). Propagava-se a concepção de “que educar é função social de que todos
participam, e que o âmbito de atuação da escola alcança as diversas agências culturais
da comunidade” (SEEC: Informações n. 9, p.13).
Segundo essa visão, a reformulação de currículos orientar-se-ia no sentido de organizar
os dados do contexto cultural de cada localidade, estimulando a integração escolacomunidade. O projeto CARE – Comissão de Assistência à Rede Escolar – inaugura um
modelo descentralizado para gerir e aplicar os recursos destinados à manutenção e
recuperação das escolas e promover a participação comunitária na realização de obras
de pequeno e médio porte. Ainda, como mecanismo de descentralização, implantou-se
os Centros Regionais de Educação, Cultura e Trabalho em 16 regiões-programas do
Estado e 58 Núcleos Comunitários de Educação, Cultura e Trabalho. Nesta perspectiva
de
descentralização
administrativo-pedagógica
programou-se
a
implantação
experimental em 15 escolas de 9 municípios, mas, efetivamente, somente uma
conseguiu funcionar: a do Núcleo de Cordeiro, que passou a ser a Escola Experimental
do Laboratório de Currículos. A Escola de Cordeiro ocupou o Pavilhão de Exposição da
cidade de Cordeiro, num projeto que integrava quatro secretarias: educação, transporte,
agricultura e saúde. Com uma proposta curricular inovadora para o ensino rural, de base
científico-tecnológica, a Escola de Cordeiro atraiu a atenção de organizações latinoamericanas, asiáticas e européias, mas, mesmo assim, não conseguiu sobreviver à
“política de apagar impressões digitais” (expressão usada por uma educadora
sintetizando a descontinuidade das políticas educacionais do Estado do Rio de Janeiro;
para ela, os governantes teriam como prioridade “apagar as realizações de seus
antecessores”), sendo desativada em Governos posteriores.
D. Mythes permaneceu à frente da Secretaria de Educação e Cultura por todo o período
do Governo Faria Lima, fato que somente se verificará com o seu sucessor, Arnaldo
Niskier, no Governo Chagas Freitas. O traço mais característico de sua extensa vida de
educadora é explicitado por um dos seus colaboradores de muitas décadas, Ivo Barbieri:
“um indicativo da estatura moral, intelectual pública de D. Myrthes, que mesmo em um
período difícil como aquele da repressão política, no regime militar, é que ela se
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manteve sempre firme na defesa de seus princípios, que basicamente tinha como regra
de trabalho educativo, de educação, um trabalho de crescimento na liberdade, não na
coação, na repressão, que são antídotos do trabalho educativo....[ela] dava todas as
condições para as pessoas atuarem dentro desse plano, que era um plano de educação
de extraordinário valor” (Barbieri, depoimento, 2002). A estatura moral e intelectual
da educadora é a tradução de seu nome: D. Myrthes.
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