REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA ANO 3: NÚMERO 3/ DEZEMBRO 2011/ ISSN 1984-47347
A EDUCAÇÃO SOB O DOMÍNIO DO CAPITAL
Luciano Accioly Lemos Moreira1
RESUMO
Analisaremos a luz do campo teórico da ontologia marxiana as diferentes
formas históricas da educação, e suas diversas funções sociais na reprodução
dos indivíduos em cada modo de produção. Posteriormente, demonstraremos
sob a perspectiva teórica da economia política clássica e neoclássica a
interpelação ideológica e política do capital sobre a classe trabalhadora através
da educação.
Palavras-chave: educação; capital; emprego; empregabilidade.
LA EDUCACIÓN BAJO LA DOMINACIÓN DEL CAPITAL
RESUMEN
Vamos a analizar a la luz de la ontología teórica marxista de las diversas
formas históricas de la educación y sus diversas funciones sociales en la
reproducción de individuos en cada modo de producción. Más tarde, vamos a
demostrar en la perspectiva teórica de la economía política clásica y neoclásica
interpelación ideológica y el capital político de la clase obrera a través de la
educación.
Palabras-clave: educación, capital, empleo y empleabilidad.
A relação entre trabalho e educação, como afirma Saviani (1994,
p.148), “praticamente coincide com a própria existência humana”. O homem, ao
construir-se como ser social por meio de sua vida ativa transforma a natureza
de forma consciente em resposta às suas carências historicamente
constituídas. Esse movimento de transformação se dá por um processo
ininterrupto de apropriação dos conhecimentos dos meios necessários à sua
prática e de objetivação de algo materialmente novo, necessário à sua
existência. O mundo dos homens, tanto material como espiritual, dá-se
essencialmente pelo modo em que esses indivíduos coletivamente produzem
suas vidas pelo trabalho. Contudo, as sínteses das objetivações singulares de
cada indivíduo produzem, de forma dinâmica, o complexo do todo social. A
totalidade social se movimenta por leis independentes das vontades dos
indivíduos, os objetos criados pelos homens se distinguem de suas
1
Doutor em Análise do Discurso na Universidade Federal de Alagoas. Professor do Curso de
Pedagogia da Universidade Federal de Alagoas - UFAL– Campus de Arapiraca, E-mail:
[email protected]
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consciências. Ao se porem sobre determinadas relações sociais tomam rumos
e conseqüências por vezes inesperadas. Por outro lado, a atividade humana
munida pela consciência poderá apreender as possibilidades dessa nova
realidade, e diante das novas necessidades para a sua reprodução como ser
social, escolher, dentre as alternativas possíveis no real, a que melhor
responde ao processo de autoconstrução humana.
Os homens são concretamente os demiurgos do seu próprio destino,
porém, ao analisarmos as ações desses homens no construto de sua história
nos variados modos de produção, percebemos que suas decisões dependem
do nível de desenvolvimento de suas forças produtivas e das possibilidades
abertas pelo movimento da totalidade social em cada momento histórico.
Analisaremos a educação numa perspectiva histórico-concreta, ou
seja, a educação na sociedade capitalista. Contudo, precisaremos historicizar,
mesmo que de forma breve, a educação existente nos outros modos de
produção anteriores ao capital. Nessa análise, tentaremos demonstrar as
interdições, limites e possibilidades de uma prática educativa perpassada pelas
questões políticas e ideológicas, inerentes a uma forma de sociabilidade
dividida em classes sociais antagônicas, em que a exploração do homem pelo
homem participa das relações sociais, econômicas, políticas e culturais.
Nos diferentes modos de produção em que os homens engendram
sua existência, a educação ocupou funções e lugares distintos, conforme a
necessidade dessa esfera social na reprodução de um tipo de sociabilidade. O
homem, em sua organização primitiva, fundamentava-se no trabalho coletivo,
no qual, tanto as atividades laborativas como as distribuições de seus produtos
eram comunitariamente divididas. A educação desse homem não se restringia
a um momento específico, pois sua vida era limitada à luta diária na
manutenção de sua existência pelo trabalho. Toda a comunidade participava
das atividades produtivas que eram organizadas numa divisão sexual das
funções. A educação se configurava, então, pelo próprio processo de vida
ativa, ou seja, era pelo e no trabalho que as novas gerações adquiriam a
cultura necessária à manutenção dessa forma de vida. "Nas comunidades
primitivas, o ensino era para a vida e por meio da vida; para aprender a
manejar o arco, a criança caçava; para aprender a guiar um barco, navegava"
(PONCE, 1988, p.19). Com o passar do tempo, através de uma intensa,
complexa e contraditória transformação no modo de produzir, os homens
primitivos aprimoraram e diversificaram seus instrumentos de trabalho,
realizaram a revolução neolítica (descoberta da agricultura) e domesticaram
animais para o corte. Essas transformações sociais e econômicas
possibilitaram o sedentarismo, o uso da terra de forma privada e a exploração
do homem pelo homem.
A educação passa a ser, nesse momento, organizada
sistematicamente por um setor específico de cada sociedade de classe, pois
dependendo dos interesses da classe dominante, o acesso daquilo que é
necessário aprender estará em seu controle. Ponce (1988, p.36) explica esse
fato:
O ideal pedagógico já não pode ser o mesmo para todos; não só as
classes dominantes têm ideais muitos distintos dos da classe
dominada, como ainda tentam fazer com que a massa laboriosa
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aceite essa desigualdade de educação como uma desigualdade
imposta pela natureza das coisas, uma desigualdade, portanto, contra
a qual seria loucura rebelar-se.
Nas civilizações clássicas da antiguidade ocidental, teremos como
seus principais representantes a Grécia e o império Romano. O trabalho, nesse
período, caracterizava-se essencialmente pela atividade escravista. Aristóteles
(2004, p.21), um dos maiores filósofos da Grécia antiga, nos traduz a
concepção que o mundo clássico tinha sobre a atividade humana:
Existem escravos e homens livres pela própria ação da natureza.
Essa distinção permanece em alguns seres, sempre que do mesmo
modo pareça útil e justo para alguém ser escravo, para outrem
comandar; porque é preciso que aquele atenda e este mande
conforme o seu direito natural, quer dizer, com uma autoridade plena.
Conforme o autor, era natural a existência do escravo, visto que ele
cumpria um papel produtivo da mesma forma que um instrumento de trabalho
ou qualquer outro animal. Os cidadãos políticos detinham um poder sobre essa
estrutura de exploração através de forças jurídicas e políticas, pois os lugares
econômicos dos indivíduos eram naturalmente determinados. O poder do
direito e da política, mediado pela vigilância dos militares, forçava a massa
trabalhadora a exercer sua função diariamente, mantendo os privilégios de uma
vida ociosa para os cidadãos gregos e romanos. A educação para o
trabalhador escravo restringe-se ao ato direto do trabalho, apenas de forma
particular, em Roma onde havia casos de alguns proprietários de escravos
treinarem seus trabalhadores com o objetivo de explorá-los de forma mais
intensa. Furtado2 (2003, p.16) demonstra tal questão quando afirma que:
A prática histórica romana diferenciou-se da grega, ainda que
esporadicamente, havendo indícios de treinamento para seus
escravos. De fato, a despeito de manterem a educação privilegiada,
de cunho humanista, para a elite, de considerarem indigno o trabalho
e, por conseguinte, impróprio aos homens livres, os romanos
reconheciam a necessidade de habilitar os escravos para o trabalho.
Referida prática, incluindo o ensino da leitura e da escrita, era usual
entre os proprietários mais empreendedores, para melhor explorar o
trabalho escravo, sobretudo daqueles mais qualificados.
A referida autora, no entanto, nos alerta para o fato de não atribuirmos
essa qualificação como investimento em capital humano, pois não há nenhuma
equivalência histórica entre esse fato e a qualificação em capital humano no
capitalismo moderno.
No modo de produção escravista não houve qualquer resquício de
capital humano, isto porque: nem o escravo era considerado um
homem, nem tampouco havia lá capital. O escravo era um meio de
2
A base das nossas reflexões sobre os autores da Economia Clássica e Neo-clássica, nesse
item, estará fundamentadas na autora: Maria Isabel de Araújo Furtado. Tese de doutorado
intitulada: Economia Política, Liberalismo e Utilitarismo: As revelações e os segredos entre
emprego e educação. Programa de Pós-graduação em Educação – Universidade Federal do
Ceará, 2003.
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produção, e o retorno financeiro obtido do investimento em
qualificação era ganho equivalente a aumento da capacidade
produtiva. Somente isto! (idem, p.17)
Quanto à elite dominante, tanto na Grécia como em Roma, ao viver
com um tempo ocioso diferentemente dos escravos, podia dedicar-se a uma
formação escolar específica e necessária à sua formação cultural e política,
imprescindível à sua reprodução como classe dominante. Na Grécia antiga, a
vida pública determinada pela cidade-estado necessitava de um cidadão
político preparado para o exercício do poder. O discurso político e a arte da
guerra pressupunham o ideal pedagógico desse momento histórico. A
formação do cidadão grego compunha tanto o aspecto intelectual político e
estrategista militar, como também a moral, a arte e, por fim, o desenvolvimento
corporal por meio da ginástica.
No caso da educação romana, a formação da elite política se dava
por uma educação voltada para a retórica, a dialética e a jurisprudência,
cabedal cultural necessário à função da classe dirigente de Roma.
Com a decadência da antiguidade, motivada pela insustentabilidade
da manutenção do seu próprio sistema reprodutivo, os homens e mulheres
desse período são empurrados pelas contradições advindas do esfacelamento
do sistema escravista a formação de um outro modo de produção3, o
feudalismo. Esse processo de transição levou pelo menos três séculos para se
completar, pois a não existência de uma classe revolucionária (impossível para
as condições objetivas da época) consciente e detentora de um projeto
transformador da realidade, fez com que essa transição ocorre-se de maneira
caótica e lenta.
A base do sistema feudal estava fundada na produção autosuficiente e essencialmente rural, em que o trabalhador servil e o proprietário
de terra mantinham laços de dependência entre si, pois o servo estava preso à
terra, e o senhor feudal ao servo.
Durante todo o sistema feudal, a educação do servo limitava-se ao
próprio trabalho e no caso da classe dominante, a ociosidade conseguida pela
exploração dos trabalhadores possibilitava o surgimento de uma educação
monacal intelectualizada e do ensino paroquial controlado pela igreja católica, a
qual detinha um poder ideológico essencial na transmissão e no doutrinamento
das massas através da religiosidade. Com o passar do tempo, surgem como
possibilidade educativa, nesse mesmo sistema, as universidades que
buscavam um conhecimento mais geral e a educação para o trabalho,
representado pelas corporações de ofícios. Essa última forma de ensino pelo
trabalho artesanal veio a surgir por uma transformação do sistema feudal que,
ao entrar em crise, começa a desenvolver novas formas de produção nas
cidades, ressurgindo o comércio que quase pareceu sumir na alta Idade Média.
3
Explicando melhor esse fato histórico, recorreremos a Lessa e Tonet (2003, p.38): “o
escravismo pelo seu próprio desenvolvimento, gerou contradições que o conduziram, no dizer
de Lukács, a um ‘beco sem saída’. Não tinha como continuar a existir e, contudo, não havia
nenhum projeto de uma nova sociedade capaz de superar aquele impasse histórico. Os
homens não podiam intervir conscientemente no processo de transição; pelo contrário, foram
por este empurrados sem perceber adequadamente o que ocorria”.
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O feudalismo, tendo uma produtividade voltada para o valor de uso
no qual a lógica da produção se restringia a subsistência dos habitantes dos
feudos, apresentava em seu interior uma possibilidade maior ao
desenvolvimento das forças produtivas, ao contrário da economia escravista. O
servo, diferente do escravo, tinha o direito a posse da metade do que se
produzia, inserindo nesse momento uma condição real entre aumento de
produtividade e melhoria de vida do servo, acarretando assim, num maior
desenvolvimento de seus instrumentos de trabalho e, consequentemente, num
aumento da quantidade de excedente de alimentos. Como resultado desse
processo, a população alimentava-se melhor, contribuindo no aumento
demográfico dos feudos instaurando-se, nesse instante, o processo de crise do
sistema feudal. Os feudos tinham mais servos do que precisavam e mais
produtos do que o necessário. Lessa e Tonet (2003, p.40) explicam as
transformações dessa crise da seguinte forma:
Frente a crise, os senhores feudais romperam o acordo que tinham
com os servos e expulsaram do feudo os que estavam sobrando.
Estes, sem terem do que viver, começaram a roubar e a trocar o
produto do roubo com outros servos. Como todo mundo estava
produzindo mais do que necessitava, todos tinham o que trocar e
voltou a florescer o comércio. Em pouco mais de dois séculos, as
rotas comerciais e as cidades renasceram e se desenvolveram em
quase toda a Europa.
Abre-se nesse momento um outro campo produtivo para longe do
sistema agrário feudal, as cidades com o seu comércio apresentam na
estrutura social, novas classes, os comerciantes e os artesãos. Surge nesse
instante o sistema de corporações de ofícios, no qual, mestres artesãos
ensinavam seus aprendizes a confeccionarem seus produtos. O processo do
trabalho dos artesãos e de seus aprendizes detinha o controle do que
produziam e para quem produziam, não havia uma cisão entre a educação e o
seu trabalho, pois o ensino era feito na própria prática artesanal. A lógica
produtiva artesanal era limitada ao valor de uso e seus clientes eram reduzidos
a um número restrito, tendo seus ganhos essencialmente limitados. O
desenvolvimento produtivo do sistema artesanal não desenvolve para além de
sua capacidade restrita. A concorrência e o ímpeto do enriquecimento
desenfreado eram fatalmente refreados e controlados por uma produção que
mantinha seus pés na lógica da auto-suficiência dessa produção. Torna-se
visível tal questão quando Furtado (2003, p.20) explica que:
As associações de profissionais eram umas formas de
enfrentamento, não só da concorrência dos inúmeros servos que
afluíam às cidades, como também das guerras constantes e dos
benefícios gerados em compartilhar o trabalho comum, tais como
instalações e comercialização coletiva. As relações patrimonialistas
entre mestres e aprendizes eram estruturadas por inúmeras regras
que compunham, ao todo, um rígido contrato formal.
A relação entre mestre e aprendiz fundamentava-se no
patrimonialismo, no qual o aprendiz respeitava e almejava alcançar os
conhecimentos e as habilidades do seu mestre. Os aprendizes passavam por
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um rígido critério de seleção, sua formação se dava tanto pelo aprendizado de
um ofício, como também, na garantia da alimentação, moradia, vestuário e
assistência médica. Sua total formação poderia durar até de dez anos de
aprendizagem. A relação entre educação e trabalho nessa formação em
nenhum momento se compõe em capital humano4, pois a formação e a
produção eram direcionadas ao valor de uso dos bens produzidos. A economia
significa ainda nesse momento, em um lugar secundário em relação à ordem
jurídica e política da nobreza feudal, e ao poder da igreja católica, a qual regia
e direcionava a ação das massas. A exploração do homem pelo homem se
resumia a uma economia de subsistência, não havendo nessa forma de
reprodução social, o estímulo ao avanço da produção. “A economia subjugavase à justiça: o justo preço a justa troca, o justo salário eram manifestações de
uma sociedade que utilizava o sistema de valores, sobretudo os divinos, para
manter o status quo” (FURTADO, 2003, p.20).
A dualidade entre trabalho e educação no escravismo e no
feudalismo são uma constante, a classe trabalhadora aprendia no trabalho e a
elite aproveitando seu tempo livre, intelectualizava-se.
Na construção da sociabilidade capitalista, que se dá pela passagem
do feudalismo ao capitalismo, a base produtiva, ou melhor, o trabalho, precisou
passar por todo um processo de transformação. O servo e o artesão,
representantes da laboralidade feudal, dariam lugar ao trabalhador assalariado
imprescindível ao capital. A construção de uma atividade produtora de
mercadoria (trabalho abstrato), direcionada ao acúmulo de capital privado nas
mãos da classe burguesa, se estabeleceu num processo árduo, violento e
coercitivo da classe burguesa sobre a classe trabalhadora. A classe dominante
capitalista necessitava direcionar o trabalho produtor de mais-valia como a
única saída na sobrevivência do trabalhador, pois a cada desenvolvimento do
capital, a classe produtiva se via espoliada dos meios materiais e espirituais
para a produção de suas vidas.
O capital precisou e precisa manter cotidianamente para sua
reprodução, como forma de sociabilidade todo um mecanismo complexo,
contraditório e nunca homogêneo (no entanto hegemônico) de formas políticas,
econômicas, culturais e ideológicas. Formas essas que convençam os
indivíduos a adentrarem todos os dias numa rede de relações de produção e
reprodução de suas vidas, como algo natural e estranho a suas forças sociais.
Com isso, segundo Hobsbawm (2000, p.279) “as classes nunca estão prontas
no sentido de acabadas, ou de terem adquirido sua feição definitiva. Elas
continuam a mudar”.
A classe burguesa para manter o seu poder sobre o trabalho
necessita, desde sua origem e continuamente, resignificar seus mecanismos
4
Capital Humano de acordo com os teóricos neoclássicos, principalmente Theodore W. Shultz
(1960), considera o homem um capital, enquanto que a educação representaria um
investimento, potencializando a capacidade produtiva do homem. Por esse viés, tanto o
capitalista, como o trabalhador, se configuram em capitais. O primeiro dispõe de meios de
produção e o lucro como resultado do seu investimento, o segundo, proprietário de si mesmo,
coloca seu capital humano a serviço da produção, recebendo no fim, seu salário. Os dois,
portanto, participam, conforme esses autores, harmoniosamente na reprodução da forma de
sociabilidade do capital.
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de poder e convencimento na perspectiva da manutenção de sua forma de
exploração.
Do emprego a empregabilidade: as interpelações do capital sobre o
trabalho e educação
O capitalismo movido por uma lógica para além da produção de
subsistência estabelece uma dinâmica voltada a expansão e acumulação de
riqueza. As forças produtivas do capital são impulsionadas para um
desenvolvimento inigualável, atingindo o ápice na Inglaterra do século XVIII,
com o advento da revolução industrial.
A sociedade burguesa marcou o surgimento de uma nova forma de
relação entre os homens. Enquanto no feudalismo e no escravismo a
vida dos indivíduos estava bastante associada à coletividade, no
capitalismo as relações sociais são, antes de qualquer coisa,
instrumentos para o enriquecimento pessoal. Se para o burguês se
enriquecer, ou se tornar ainda mais rico, for necessário jogar milhões
na miséria -- ou mesmo matar milhões -- ele assim o fará, e a
sociedade burguesa aceitará este fato como natural: idiota o burguês
5
que deixar de ganhar dinheiro para promover a vida alheia.
Com o início do período industrial, o trabalho no capitalismo adquire
uma complexidade tecnológica maior, exigindo, para sua reprodução, um
trabalhador capaz de operar e colocar em movimento novas forças produtivas.
A qualificação dos trabalhadores deveria responder nesse instante, as
necessidades dessa produção
A burguesia não podia recusar instrução ao povo, na mesma medida
em que fizeram a Antigüidade e o Feudalismo. As máquinas
complicadas que a industria criava não podiam ser eficazmente
dirigidas pelo saber miserável de um servo ou de um escravo. Para
manejar certas ferramentas é necessário aprender a ler. (PONCE,
1988, p.145).
O trabalhador precisava aprender as competências e habilidades
imprescindíveis a suas funções laborativas. O conhecimento contribuía na
formação de indivíduos que pudessem operar e consumir o mundo das
mercadorias. Weber (2002, p.53) explica que:
o trabalho deve ser executado como se fosse um fim em si mesmo,
como uma vocação. Contudo, tal atitude não é produto da natureza.
Não pode ser estimulada apenas por baixos ou altos salários, mas só
pode ser produzida por um longo processo educativo.
O mundo da mercadoria, da venda e compra da força de trabalho foi
produzido, inicialmente, de forma violenta. O capitalista precisava destruir todos
os laços políticos feudais, como também, os instrumentos de trabalho e a terra
5
Lessa (2004, p.9 - mimeo)
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a que o servo estava ligado. Marx (2000, p.14) apresenta de forma contundente
essa passagem violenta da expropriação do servo para o trabalhador
assalariado do capital:
A essência do sistema capitalista está, pois, na separação radical
entre o produtor e os meios de produção. Esta separação torna-se
cada vez mais acentuada e numa escala progressiva, desde que o
sistema capitalista se estabeleceu; mas, como esta separação
constituía a sua base, ele não se poderia estabelecer sem ela. Para
que o sistema capitalista viesse ao mundo foi preciso que, ao menos
em parte, os meios de produção já tivesse sido arrancados sem
discussão aos produtores, que os empregavam para realizar o seu
próprio trabalho; que esses meios de produção se encontrassem já
nas mãos dos produtores comerciantes e que estes os empregassem
para especular sobre o trabalho dos outros. O movimento histórico
que separa o trabalho de suas condições exteriores indispensáveis
eis a causa da acumulação chamada 'primitiva', porque ele pertence à
idade pré-histórica do mundo burguês. [...] A história de sua
expropriação não pode ser objeto de conjecturas: está escrita nos
anais da humanidade com letras de sangue e de fogo.
O trabalhador passa a possuir apenas sua força de trabalho que deve
ser vendida todos os dias ao capital. O trabalho não lhe pertence, os meios de
produção não são seus, a objetivação do seu trabalho lhe é estranho. Weber
(2002, p.49), ao explicar o processo de desenvolvimento do desejo lucrativo
dos homens nessa sociabilidade, afirma que “o espírito do capitalismo, no
sentido em que usamos o termo, teve de lutar por sua supremacia contra um
mundo inteiro de forças hostis”.
O trabalho no capital deveria ser livre de todos os limites objetivos e
subjetivos da feudalidade. O espaço do trabalho burguês torna-se
paulatinamente um caminho para o sucesso individual. O burguês e o
trabalhador alcançariam à dignidade e a produtividade integrando-se
ativamente nesse sistema produtivo.
O empreendedor da nascente sociedade capitalista foi, com esta
ideologia religiosa, liberado para a busca do lucro no âmbito da
produção. Teria ele se libertado dos entraves éticos que a idéia cristã
medieval impunha, sobretudo aos homens ricos. A partir de então,
ter-se-ia legitimado a busca do lucro pelo lucro e do trabalho como
instrumento de utilidade. Daí, as relações de produção capitalistas
passariam a ser consideradas não só naturais, mas sobretudo
desejáveis, normais e necessária (FURTADO, 2003, p.24)
O mundo da mercadoria se desenvolveu por meio de uma relação
alienada, ou seja, tanto o processo da produção, como a relação dos indivíduos
entre si, e o com o mundo produzido pelo trabalhador, precisa ser apropriados
pelo capital e para o capital. A relação engendrada pelo trabalho no
capitalismo, a qual se estabelece como fundante das outras esferas sociais
(educação, política, arte...), dá-se desde sua gênese aos dias atuais, pela
lógica da mercantilização. Marx (2000, p.13) demonstra essa problemática:
A relação oficial entre o capitalista e o assalariado é de caráter
puramente mercantil. Se o primeiro desempenha o papel de senhor e
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este o de servidor, é graças a um contrato pelo qual este não
somente se pôs ao serviço daquele, e portanto sob sua dependência,
mas por cujo contrato ele renunciou, sob qualquer título, a
propriedade sobre seu próprio produto. Por que, então, teria o
assalariado feito este negócio? Porque ele nada mais possui senão a
sua força física, o trabalho em estado potencial, ao passo que todas
as condições exteriores necessárias a dar corpo a esta força, tais
como a matéria-prima e os instrumentos indispensáveis ao exercício
útil do trabalho, o poder de dispor das subsistências necessárias à
manutenção da força operária e à sua conversão em movimento
produtivo, tudo isto se encontra do outro lado, isto é, com o
capitalista.
Essa forma de sociedade gera relações entre mercadorias e não entre
os homens. O trabalhador transforma-se em mercadoria e participa de um
mundo vazio de sentido para a sua autoconstrução humana. O que interessa a
essa forma de sociedade é a auto-reprodução do capital. "Com a valorização
do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do
mundo dos homens" (MARX, 2003, p.111).
Tudo no capital deve se transformar em um veículo de troca, de
acumulação de riqueza. Os valores-de-uso dos produtos são subjugados aos
valores-de-troca. Marx (2002a, p.60) expõe as implicações desse processo na
produção das mercadorias, na relação dos homens entre si e com seu mundo:
Pondo de lado seu valor-de-uso, abstraímos, também, das formas e
elementos materiais que fazem dele um valor-de-uso. Ele não é mais
mesa, casa, fio ou qualquer outra coisa útil. Sumiram todas as suas
qualidades materiais. Também não é mais o produto do trabalho do
marceneiro, do padeiro, do fiandeiro ou de qualquer outra forma de
trabalho produtivo. Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do
trabalho, também desaparece o caráter útil dos trabalhos neles
corporificados; desvanecem-se, portanto, as diferentes formas de
trabalho concreto, elas não mais se distinguem umas das outras, mas
reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o trabalho
humano abstrato.
As relações produtivas do capital eliminam através do valor de troca, as
diversas qualidades referentes aos produtos. O próprio processo do trabalho
com suas diferenças e especificidades intrínsecas a cada atividade produtiva
cede lugar à quantificação do tempo capitalista, que a tudo abarca e transforma
em mera mercadoria com possibilidade de ser trocada no mercado do capital.
O homem, nesse processo, torna-se mercadoria que precisa ser trocada todos
os dias por salário, pois a mercadoria homem apresenta-se como o único
produto que diariamente para subsistir, necessita suprir suas necessidades
vitais. As forças do capital se colocam como um mundo insuprimível e
avassalador para o trabalhador, pois a economia capitalista
moderna é um imenso cosmos no qual o indivíduo nasce, e que se
lhe afigura, ao menos como indivíduo, como uma ordem de coisas
inalterável, na qual ele tem de viver. Ela força o indivíduo, a medida
que esse esteja envolvido no sistema de relações de mercado, a se
conformar às regras de comportamento capitalista (WEBER, 2002,
P.48).
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O indivíduo deveria, no processo de transição do feudalismo para o
capitalismo, vender-se ao capitalista, pois a ociosidade era considerada
vagabundagem e preguiça. O lugar do não trabalho seria o castigo ou a
caridade religiosa. Leis e toda ordem de controle policial e estatal oprimiam os
indivíduos e os forçavam a trabalhar para essa nova lógica. Marx (2000, p.47)
demonstra este fato de maneira contundente ao afirmar que a criação
(...) do proletariado sem lar nem pão – despedido pelos grandes
senhores feudais e cultivadores, vítima de repetidas e violentas
expropriações – era necessariamente mais rápida que a sua
absorção pelas manufaturas nascentes. Por outro lado, estes
homens, bruscamente arrancados de suas ocupações habituais, não
se podiam adaptar prontamente à disciplina do novo sistema social,
surgindo, por conseguinte, deles, uma porção de mendigos, ladrões e
vagabundos. Daí a legislação contra a vadiagem, promulgada nos
fins do século XVI, no oeste da Europa. Os pais da
atual classe operária foram duramente castigados por terem sido
reduzidos ao estado de vagabundos e pobres. A legislação os tratou
como criminosos voluntários, supondo que dependia de arbítrio o
continuar trabalhando como no passado e como se não tivesse
sobrevindo nenhuma mudança em sua condição de existência.
Desde a constituição do sistema capitalista aos dias atuais, o Estado
representa uma força de vital importância na reprodução dessa forma de
sociabilidade. Furtado (2003, p.27) expõe essa afirmação ao explicar que “o
papel do Estado absolutista foi decisivo na constituição do trabalho assalariado.
Utilizou uma legislação coercitiva e arbitrária para domestificar e amoldar os
antigos campesinos ao assalariamento”. As formas e o modo de controle do
Estado sobre o trabalho revestem-se de variadas faces de acordo com o
momento político, econômico e ideológico de um dado instante histórico do
capitalismo. A ordenação e a legitimação da exploração dos homens pela
lógica desse sistema têm sua personificação na figura do Estado burguês. No
século XVI na Europa os mendigos eram trancafiados em torres, asilos e
hospitais, e a educação aliada com a religião e o Estado realizavam toda
ordem de interpelações a massa para participarem do trabalho capitalista.
“Praticava-se uma pedagogia autoritária para reeducar os trabalhadores e fazêlos membros úteis do Estado. Assim, no período de transição, havia um vínculo
direto entre educação e trabalho, permeado pela religião”. Associavam-se nos
“hospitais: trabalho forçado, orações e educação” (FURTADO, 2003, p.28).
O processo tanto de transição do feudalismo ao capitalismo, quanto
o estágio desenvolvido dessa nova sociabilidade, pode ser compreendida a
partir dos teóricos da Economia Política Pré-clássica, Clássica e Neo-clássica.
Discutiremos com alguns representantes dessas correntes teóricas, procurando
traduzir a relação entre educação, emprego e capital, partes constitutivas a
nossa análise.
Iniciando, William Petty (1623-1687) denominado pré-clássico,
defende a educação do trabalhador como uma responsabilidade do Estado. A
função dessa formação seria o de tornar a massa de desprovidos em “súditos
fiéis e colaboradores incondicionais do governo” (idem, p.33). Petty é um dos
primeiros teóricos a demonstrar uma relação entre educação e aumento de
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riqueza, pois o trabalho, para esse autor, se constitui numa fonte de riqueza e o
homem, num mero fator de produção.
Não é exagero afirmar que o economista mercantilista predisse a
teoria do capital humano, não só porque relacionou crescimento
econômico e qualificação mas, também, porque defendeu a
necessidade
destas
habilidades
e
capacidades
serem
constantemente ativadas, já que sua ociosidade implicava em sua
redução (ibidem, p.34)
Educação, para Petty, era um poderoso propulsor do crescimento
econômico de um país. Inaugura-se, através desse ideal educativo, a relação
entre mais qualificação, maior rendimento ao capital. Contudo, Petty, por
encontrar-se num capitalismo ainda em formação, não pode captar as teses
sobre a teoria do valor trabalho igualmente aos seus contemporâneos da
economia clássica. Limitando-se, assim, à proposição de políticas públicas de
proteção social, segundo o qual o Estado deveria investir em políticas de saúde
ao trabalhador para o combate a pestes e epidemias que viesse a arrasar a
população e a produção, não conseguindo, com isso, compor um projeto de
formação educacional público como possibilidade de um investimento futuro
para o capital.
A natureza humana para Petty era o de um ser indolente, ou seja,
preguiçoso, e por isso, era imprescindível mantê-lo ocupado, mesmo que por
meio de trabalhos inúteis, formulados e mantidos pelo Estado, pois era preciso
formar os indivíduos na compulsão pelo trabalho, impedindo a ociosidade
inoperante para o desenvolvimento. O desemprego, para o referido autor,
transforma-se no principal gerador de pobreza e violência; assim, o Estado
deve assumir a manutenção dos pobres e desempregados. Nesse momento,
tanto a compreensão como as ações sobre o desemprego partiam de um
prisma moral. A falta de disciplina, a desocupação e a preguiça são fatores
perturbadores da ordem social. A pobreza para Petty é algo natural em
qualquer sociedade, portanto, tem-se que selecionar dentre os miseráveis os
que estão nesta condição por falta de emprego e resubmetê-los ao trabalho, e
para os desocupados voluntários é necessário toda uma ordem de políticas
repressoras com o intuito de refrear a vagabundagem. A compreensão do
desemprego circulava em torno de uma questão social e não econômica.
Assistencialismo e repressão eram vistas como a única saída para os
desocupados.
Outro teórico da economia política, David Hume (1711-1776),
correlacionava a educação ao fator progresso. O saber detinha um resultado
imediato em relação ao desenvolvimento de um país. “A educação tem três
importantes impactos positivos sobre a vida humana: adaptar para o trabalho,
garantir a sociabilidade humana e qualificar mão-de-obra para a produção”
(FURTADO, 2003, p.40). A educação poderia ser um mecanismo de
preparação e qualificação dos indivíduos ao mundo urbano e industrial do
capitalismo. A educação seria um importante locus para a domestificação de
uma classe para o trabalho e sua sujeição aos espaços dos direitos e deveres
garantidos pelo Estado através da cidadania. Hume constrói um dos alicerces
que sustentaria, no futuro, a teoria moderna do capital humano: qualificação,
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habilidade e experiência resultariam num aumento da produtividade. Para o
referido autor, o prazer material e a busca pelo lucro faziam parte da natureza
humana, que, em sua essência, fundava-se num hedonismo materialista. O
mercado capitalista ainda não estava totalmente desenvolvido, havia um
aspecto nacionalista e estatal muito forte entre os pensadores desse período.
Com isso, Petty e Hume elaboram suas teses numa racionalidade regulada
pelo Estado e não pelo livre mercado de Adam Smith. As ações sugeridas por
Petty e Hume se limitam, portanto, ao campo de atuação do Estado capitalista.
No século XVII, na Europa, a filosofia inglesa organiza os alicerces
do pensamento liberal. Thomas Hobbes e John Locke, apresentam-se como
um dos maiores representantes desse pensamento. Furtado (2003, p.51)
explica que, mesmo Hobbes não sendo um liberal, sua concepção da natureza
humana e das relações sociais presentes no capitalismo retratam a concepção
do comportamento competitivo e egoísta, que conforme Hobbes (2004, p.99)
“da guerra de todos contra todos”, ou seja, da natureza inalienável de uma
socialidade humana movida pelo interesse individual, contrário ao bem comum.
A natureza do homem para Hobbes (2004, p.97) se constitui em três
causas que levam inerentemente a discórdia: a competição, a desconfiança e a
glória são características intrínsecas as relações humanas e por isso, levam
aos seguintes resultados:
A primeira leva os homens a atacar os outros visando o lucro. A
segunda, a segurança. A terceira, a reputação. Os primeiros praticam
a violência para se tornar senhores das pessoas, mulheres, filhos e
rebanhos dos dominados. Os segundos, para defendê-los. Os
terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença
de opinião e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente
endereçado a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes,
amigos, nação, profissão ou seu nome (idem, p.97-98).
A natureza humana leva os homens a um constante estado de
conflito. Furtado (2003, p.53) demonstra que “toda competição inter-humana
advêm da própria natureza do indivíduo, pelo fato de ser finalidade de todo
sujeito a obtenção de lucro e poder, capacitando-o ao exercício de domínio
sobre os homens”. A partir dai, “Os indivíduos, inerentemente egoístas e
competitivos, tendem naturalmente ao conflito” (idem), essa luta entre os
indivíduos pelo poder apenas cessa, com a morte. De forma contraditória,
Hobbes definiu o homem como um ser egoísta, individualista, materialista,
competitivo, iguais e livres por natureza.
A partir do século XVIII o trabalho assume um lugar superior ao
período pré-capitalista. Com as idéias sobre a propriedade privada de Locke e
do trabalho como fonte de toda a riqueza de Adam Smith, a relação de troca do
capitalismo passa a ser o fundamento das relações sociais, levando sempre
essas relações ao equilíbrio do mercado capitalista. Consequentemente, a
liberdade de troca deve pressupor todas as relações do capital, pois tanto o
mercado como os postos de trabalho devem ser regidos por essa lei da livre
concorrência. Furtado (2003, p.45) expressa de forma sucinta este momento:
Os eixos fundantes da nova sociedade – liberdade de trabalho,
valorização da iniciativa privada, gosto pelo risco e pelo esforço
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pessoal, competição acirrada e mobilidade ascendente, como motor de
ascensão social – são, ineludivelmente, antípodas das sociedades
tradicionais.
O mercado, nesse momento, torna-se o espaço equacionador das
diferenças sociais, os indivíduos isolados e proprietários de si mesmos podem
movimentar-se e, por sua natureza egoísta e interesseira, realizar trocas que
satisfaçam mutuamente seus desejos.
Locke (2002) afirma que a propriedade representada pelo direito à
vida, à liberdade e aos bens matérias produzidos pelos homens, mostra-se
como o princípio definidor ontológico do homem. A humanização do homem se
encontra no fato de ele se apresentar como propriedade de si mesmo e, dessa
maneira, a relação dos indivíduos com os outros ocorre pela mediação de
interesses individuais, por meio da troca. O mercado capitalista apresenta-se, a
partir dessa constatação teórica, num espaço natural e necessário as relações
de sobrevivência entre os homens. O homem, de acordo com esse autor,
encontra-se inicialmente num estado de natureza, no qual, seu interesse e sua
liberdade são totais. No entanto, esse estado poderá, motivado pelo desejo
egoísta, levar a relações injustas entre os indivíduos, impossibilitando com isso
a manutenção de suas propriedades. Locke (2002, p.28) explica que
é provável que surjam objeções a esta estranha teoria, isto é, que no
estado de natureza todo o mundo tem o poder executivo da lei da
natureza – que não é razoável que os homens sejam juízes de suas
próprias desavenças, que o amor-próprio tornará os homens parciais
a seu próprio favor e de seus amigos; e também, que a inclinação
para o mal, a paixão e a vingança os induzirão a excessos na punição
a outrem, advindo disso tão-somente confusão e desordem; e que,
por isso, certamente foi Deus quem estabeleceu o governo com o fito
de restringir a parcialidade e a violência dos homens.
Assim, com o objetivo da conservação da propriedade privada e da
liberdade individual, os homens saem do seu estado natural, perigoso à
manutenção de suas vidas e de seus bens, para a vida em sociedade,
possibilitada apenas pela regulação de um Estado sobre os indivíduos. O autor
define de forma contundente tal necessidade, pois
o homem nasce com direito a perfeita liberdade e gozo ilimitado de
todos os direitos e privilégios da lei da natureza, tanto quanto
qualquer outro homem ou grupo de homens, e tem, nessa natureza, o
direito não só de preservar a sua propriedade – isto é, a vida, a
liberdade e as posses – contra os danos e ataques de outros
homens, mas também de julgar e punir as infrações dessa lei pelos
outros, conforme julgar da gravidade da ofensa, até mesmo com a
própria morte nos crimes em que o horror da culpa o exige, se assim
lhe parecer. Contudo, uma vez que uma sociedade política não pode
existir nem manter-se sem ter em si o poder de preservar a
propriedade e, para isso, punir as ofensas cometidas contra qualquer
um de seus membros, só podemos afirmar que há sociedade política
quando cada um dos membros abrir mão do próprio direito natural
transferindo à comunidade, em todos os casos passíveis de recurso à
proteção da lei por ela estabelecida. E assim, excluído todo
julgamento privado de cada cidadão particular, a comunidade torna-
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se árbitro em virtude de regras fixas estabelecidas, impessoais e
iguais para todos; e por meio de homens, a quem a comunidade
outorga o poder para execução dessas regras, decide todas as
desavenças que possam surgir entre quaisquer membros da
sociedade, sobre qualquer assunto de direito, e pune as infrações
cometidas com as penalidades estabelecidas pela lei (LOCKE, 2002,
p.69)
O princípio o qual nivela os homens é a propriedade, assim, a liberdade
de cada indivíduo se compõe em dispor desse direito. O Estado, portanto, deve
conservar e proteger esse direito natural e inerente à existência dos homens.
A economia política, a partir do século XVIII com Adam Smith,
fundamenta-se numa visão economicista de homem, ou seja, a única força
motriz de suas relações sociais é o lucro material. O trabalho lança-se como o
lugar produtivo, pois é a partir dele que as riquezas de uma nação são
produzidas. Porém, o indivíduo moderno não sobreviveria apenas com o fruto
do seu trabalho. As relações de troca no mercado capitalista por intermédio da
compra e venda dos produtos dos variados trabalhos humanos complementaria
e tornaria rico ou pobre cada indivíduo, dependendo então do seu poder de
consumo. Smith (1985, p.63) demonstra esse movimento como algo natural e
necessário, visto que,
todo homem é rico ou pobre, de acordo com o grau em que consegue
desfrutar das coisas necessárias, das coisas convenientes e dos
prazeres da vida. Todavia, uma vez implantada plenamente a divisão
do trabalho, são muito poucas as necessidades que o homem
consegue atender com o produto de seu próprio trabalho. A maior
parte delas deverá ser atendida com o produto do seu próprio
trabalho. A maior parte delas deverá ser atendida com o produto do
trabalho de outros, e o homem será então rico ou pobre, conforme a
quantidade de serviço alheio que está em condições de encomendar
ou comprar. Portanto, o valor de qualquer mercadoria, para a pessoa
que possui, mas não tenciona usa-la ou consumi-la ela própria, senão
trocá-la por outros bens, é igual à quantidade de trabalho que essa
mercadoria lhe dá condições de comprar ou comandar.
Consequentemente, o trabalho é a medida real do valor de troca de
todas as mercadorias.
Para Smith, a divisão social do trabalho advém da propensão natural
dos homens a relações de troca. Os homens são movidos por interesses
egoístas de possuir os bens que não podem por si só produzir. A troca
comercial é algo da própria natureza humana. “Todo homem é uma espécie de
comerciante e o universo das relações sociais, um mundo mercantil fundado
nas vantagens e nos proveitos pessoais. A sociedade é, em última instância,
um simulacro do mercado” (FURTADO, 2003, p.59).
Nessa lógica de Smith, os indivíduos por serem egoístas e
propensos a troca, se relacionam-se com os demais por interesses em adquirir
o que não possuem. Para adquirirmos os bens de outros homens devemos
mostrar-lhes não o que iremos ganhar deles, mas o que eles ganharão com
essa troca. Cada indivíduo é proprietário de habilidades, conhecimentos e
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talentos próprios, que podem no mercado serem trocados, beneficiando o
conjunto da sociedade. Os interesses individuais por riqueza levarão em seu
conjunto o aumento da riqueza de uma nação.
A educação entra nesse processo como um propulsor do capital
humano. Investir em educação poderá equipar os indivíduos com atributos
manuais e intelectuais necessário ao capital, valorizando a possibilidade de
troca no mercado. O capital fixo imprescindível à produção capitalista se
equipara, de acordo com Smith, ao capital humano. A educação a qual Smith
defendia para o trabalhador era limitada às necessidades do capital. O ensino
seria para o trabalhador manual direcionada a uma rápida qualificação e a uma
formação mais intelectualizada para os trabalhadores que ocupassem
hierarquicamente níveis e funções as quais precisassem dessa qualificação.
Saviani (1994, p.156), citando Smith, expõe que o ensino para o trabalhador
deveria ser administrado de forma homeopática, ou seja, sem que essa
formação entre em contradição com a ordem vigente.
A concorrência no mercado capitalista levaria, conforme Smith, a
uma equalização dos salários e dos lucros do capital. A mão invisível do
mercado livre do capitalismo harmonizaria as relações entre os diferentes
interesses humanos. Quanto ao Estado, não deveria interferir no movimento
natural do mundo da troca, mas apenas cumprir sua função de guardião da
propriedade privada.
David Ricardo representa outro importante economista clássico.
Podemos por seu intermédio, esclarecer, do ponto de vista do capital, o
desemprego. Para esse autor, o emprego e o desemprego estariam
relacionados a três variáveis: o salário, a população e o desenvolvimento
tecnológico. O trabalho é uma mercadoria como outra qualquer e seu preço
dividem-se em duas situações: a primeira denomina-se de preço natural, com
esse valor correspondente a uma base mínima de subsistência para a
reprodução do trabalhador; o segundo valor representa o preço do salário em
relação às leis de mercado, ou seja, a oferta e a demanda por trabalhadores
pelo capital resultará em oscilações para mais ou para menos em relação ao
valor natural do salário. Com o possível aumento do valor de mercado do
salário, consequentemente, há uma melhoria nas condições de vida do
trabalhador, e com isso, um aumento populacional. Esse aumento numérico de
indivíduos joga no mercado de trabalho excedente de oferta de mão-de-obra,
restabelecendo assim, um novo equilíbrio entre o preço do salário natural e o
de mercado. Furtado (2003, p.64) conclui, a partir dessas afirmações, que “a
oferta de trabalho e, consequentemente, seu preço, são regulados pela
população”.
Para os economistas clássicos, o salário e a população são os
grandes vilões para o sistema de acumulação do capital. O lucro do capital está
intrinsecamente relacionado ao salário, visto que com o aumento da
acumulação de capital haverá no mesmo montante um aumento populacional.
Dessa maneira, será necessário a produção de mais meios de subsistência
para o trabalhador, exigindo, assim, um maior investimento em cultivos de
produtos para a reprodução dessa classe laborativa. Seguindo esse caminho, o
capital precisará empregar mais trabalhadores, os salários aumentarão
motivados pela demanda, ampliando os custos para o capitalista, diminuindo
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por fim seu lucro. O progresso, desse modo, encontra-se refreado e
diretamente o emprego sofrerá da mesma forma que o lucro uma diminuição.
Uma saída para o não estancamento do lucro do capital apontada por Ricardo,
se configura no investimento em maquinaria, no uso da ciência e da tecnologia
na produção de mercadoria, com um menor número de trabalhadores. O autor
parece, assim, encontrar uma possibilidade do capital e do mercado capitalista
manter seu crescimento, contudo, em relação ao desemprego considera-o
como um mal inerente ao crescimento econômico.
A economia clássica teria a partir de Jean Baptiste Say (1767-1832)
uma grande reviravolta na compreensão da teoria do valor. Smith atribuía ao
trabalho a capacidade em produzir valores. Ao criticar Smith, Say defende que
sua compreensão acerca da produção do capital apreende elementos
despercebidos por Smith, pois o valor dependeria de um critério subjetivo.
Assim, os valores das mercadorias estariam na utilidade que elas teriam para
cada consumidor, e não no trabalho. A satisfação de cada indivíduo pela
aquisição de algo pela troca constrói os valores em cada mercadoria. Com
isso, se o trabalho não produz o valor das mercadorias, não há mais a distinção
entre a quantidade de renda e de propriedade do capital sobre o trabalhador.
Os trabalhadores e os capitalistas, tanto urbano como os ligados a renda da
terra, são apenas partícipes de uma mesma produção. As classes
desaparecem, havendo apenas sujeitos que contribuem de acordo com sua
especificidade na produção da riqueza. Say defende que há uma harmonia
entre as esferas e o que conta, no final, é o esforço dessas esferas em criar
valores úteis a serem consumidos no mercado capitalistas. “Say define o
homem como um ser de necessidades. Quanto maior o consumo, maior o bemestar da sociedade e maior o progresso da indústria”. (FURTADO, 2003, p.66).
O espírito humano, definido por Say, é essencialmente hedonista, ou
seja, deseja incessantemente o prazer imediato, uma vez que o é o caminho
para a felicidade e para a satisfação pessoal. Sendo o mercado consumidor o
gerador de valor e de riqueza, o país será tanto mais rico quanto mais
consumir.
A educação surge como um proporcionador no aumento de capital
humano para o trabalhador. Os talentos e as habilidades apreendidas por seu
investimento em educação não podem ser transferidos e nem retirados desse
ser, apenas pode ser convertido em aumento de produção e progresso para o
país. Educação voltada para a qualificação do trabalhador é, para Say, o
mesmo que capital acumulado, já que talento e conhecimento acumulado é
uma forma de riqueza.
A partir do século XIX surgem os precursores da Economia Política
Neoclássica. Em 1848, John Stuart Mill (1806-1873) formula as bases de uma
teorização sobre o capital humano. A qualificação escolar técnica equivaleria o
mesmo que meio de produção, e com isso, a educação profissional uma
riqueza externa do homem que deveria ser adquirida por uma formação.
Furtado (2003, p.69) demonstra as bases desse corpo teórico:
Como o conjunto de capacidades e competências constitui riqueza
produtiva, a tarefa de educar para o trabalho, propedêutica
imprescindível na transformação do indivíduo num trabalhador futuro,
mais habilidoso e produtivo, comporta custos que devem ser
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ressarcidos tais quais outros custos de produção quaisquer. Como
são estes custos relativos ao trabalho, o retorno acontece através de
maiores salários pagos ao trabalho qualificado, ou ainda mediante
restituição das despesas auferidas com referida aprendizagem.
Ganha, nessa formação, o trabalhador, por adquirir um valor melhor
no mercado de trabalho, e o capitalista, pela possibilidade concreta do aumento
da produtividade. Complementando a formação educativa, Mill indica o cuidado
com a manutenção à saúde do trabalhador, para que essa classe laboral não
pereça. A formação escolar e a assistência com a saúde do trabalhador
deveriam ser computadas como um custo produtivo do capital.
A educação toma em Mill, explicitamente, um aspecto importante
para o crescimento da riqueza material de uma sociedade. O trabalhador ao
acrescentar habilidades e talentos, incorpora utilidades essenciais a sua
autovalorização como capital de si mesmo e potencializa seu poder produtivo
para a lógica desse sistema. “O trabalhador é um capitalista dele mesmo, por
ser possuidor de um capital pessoal acumulado com trabalhos pretéritos”
(idem, p.70). Capital e trabalho são análogos, ou seja, são dois elementos
necessários e iguais para a produção de riqueza, os dois são proprietários, o
primeiro de si mesmo, e o segundo, dos meios de produção. Desaparece assim
a luta de classes, os antagonismos dão lugar a um acordo entre elementos
úteis à produção de mercadoria.
Mill explica, em relação ao salário, que de acordo com a qualificação,
o salário deverá diferenciar-se de preço, pois, para quem é melhor preparado,
seu valor de mercado será superior. Os preços se equalizarão no movimento
da concorrência dos mais qualificados com os menos preparados.
O Estado não deve interferir nas leis livres do mercado, no entanto,
poderá intervir em saídas a quais não diminuam os ganhos do capital. A
criação de mais postos de trabalho na tributação; a redução de salários; um
maior investimento em qualificação do trabalhador, o qual poderá produzir mais
em um menor tempo, aumentarão a produção e, consequentemente, a
necessidade de novos empregos. Uma outra saída defendida pelo referido
autor ocorre pela introdução da tecnologia e da maquinaria na esfera da
produção, demandando em outros setores novos postos de trabalho.
Mill opõem-se as políticas públicas de controle sobre os salários e
empregos, pois o assistencialismo anula as leis da concorrência. Os
trabalhadores, ao perceberem que suas existências independem dos seus
esforços, acomodar-se-ão a ajuda do Estado.
Stuart Mill sofre uma forte influência da lei de Malthus, ou seja, a
propensão a alta reprodutividade da classe trabalhadora faz surgir um aumento
crescente da população e, com isso, uma intensificação do desemprego, da
fome e da miséria em geral. Os instintos animalescos e naturais da reprodução,
principalmente dos trabalhadores, devem ser regidos e orientados pela
civilidade racional do homem moderno. Mill “propõe a divulgação de uma teoria
da população entre os pobres. Seu objetivo manifesto era adequar os hábitos e
costumes da classe trabalhadora ao mercado” (FURTADO, 2003, p.), fazendoa consciente das leis invariáveis da concorrência. Portanto, a educação seria
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um dos meios mais importantes e eficazes na formação de uma ‘civilidade’
domestificadora e adequadora dos homens a ordem do capital. “O mercado
passou a ser o eixo da vida social, e, em torno dele, tudo passou a girar,
inclusive a educação” (FURTADO, 2003, p;75).
Os homens, para Mill, continuam em sua essência: egoístas,
materialistas, individualistas, movidos pelo lucro e interesses pessoais; faltava
apenas inserir a educação à condição também de mercadoria. Todas as
relações e esferas sociais do capital começam a fazer parte do binômio
lucro/custo.
As relações entre os homens vão tomando um rumo cada vez maior
para o individualismo. Cada indivíduo, sendo proprietário de si mesmo, detém o
poder e a posse de suas habilidade e talentos. Cada ser humano basta-se a si
mesmo. As relações que os levam a terem entre os outros indivíduos partem
essencialmente da possibilidade do autobeneficiamento de cada um em
adquirir bens úteis a sua auto-satisfação. O Estado deve garantir a propriedade
privada a cada indivíduo. Os limites e a liberdade das relações sociais são
demarcados pela propriedade que cada indivíduo possui no mercado livre
capitalista.
Furtado (2003, p.77) esclarece o caminho do homem econômico de
Adam Smith e Ricardo ao homem do mercado de Say e Mill, essa passagem
traz conseqüências importantíssima na instauração da educação como capital
humano, pois
do homem econômico naturalmente inclinado para a troca originou-se
a divisão do trabalho e, com ela, a lógica de uma sociabilidade
fundada no mercado. Com efeito, a interdependência de sujeitos,
intensificada pela divisão do trabalho é teoricamente fonte de
cooperação e solidariedade social. Logo, o mercado, esta instituição
inumana, impôs como força social impessoal, externa e coercitiva
conquanto tenha gerado benefícios para todas as classes, sendo
ainda, para os liberais, fonte de harmonia social, justiça e equidade.
Com certeza a teoria de Adam Smith e Ricardo contribuiu para a
formação de uma base no surgimento de uma teorização do capital humano, só
que seus fundamentos teóricos, por partirem do trabalho como o fundamento
da produção de mercadoria, limitam a questão do valor aos bens materiais e
concretos produzidos pela atividade humana. Os economistas clássicos não
superam a dicotomia entre capital e trabalho, necessária ao desenvolvimento
pleno da teoria do capital humano. A educação apenas pode se tornar
mercadoria, ou melhor, capital humano, quando existir a equivalência absoluta
entre capital e trabalho. Essa equivalência é iniciada pelos economistas Say e
Mill entre outros, que atribuem a um fator subjetivo o valor das coisas. A
utilidade de cada mercadoria reside na satisfação pessoal de cada ser humano.
O valor, portanto, é medido na sensação de prazer que os indivíduos de
maneira particular sentem ao possuir uma dada mercadoria.
Jeremy Bentham, no século XIX, revive o hedonismo de Hobbes. A
teoria utilitarista de Bentham define o valor como um fator psicosocial, em que
tudo que serve a vida, a felicidade e a satisfação produzem valor. O homem se
movimenta pela busca do prazer (lucro), incessante e imediato, e, para isso,
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deve constantemente confrontar-se com a dor (custos) na conquista dos seus
desejos pessoais.
Alfred Marshall (1842-1924) lança-se como um dos grandes
representantes da Economia Política neoclássica. Sua concepção da
sociedade capitalista parte da idéia de um todo complexo harmonioso, de onde
o capital e o trabalho cumprem funções complementares e de iguais estaturas,
maximizando utilidades para serem trocadas e adquiridas no mercado.
No capitalismo, para Marshall, não existem relações de antagonismo,
ou seja, de exploração de uma classe sobre a outra, pois tanto o trabalhador
como o capitalista são donos de capital. O primeiro do seu capital humano, sua
própria força de trabalho, habilidade, talento e conhecimento se apresentam
em propriedades imprescindíveis para a produção; e o capitalista, dono dos
meios de produção, participa em igual poder com o trabalhador na produção de
bens úteis para os consumidores. Furtado (2003, p.91) explica que a igualdade
entre o capital e o trabalho
fez deles dois agentes produtivos que cooperam mutuamente na
produção, sendo remunerados por suas respectivas competências.
Para Marshall, o congraçamento entre ambos estava também na esfera
da distribuição. Os lucros resultam de um esforço extra dos
empreendedores, equivalentes aos ganhos adicionais dos operários
pela realização de trabalhos extras. A paridade entre lucro e salário
justifica-se, para o economista neoclássico, através de um argumento
hedonista e utilitarista: toda remuneração econômica advinha do
desprazer, da fadiga de um trabalho, o qual considerou universal.
O desprazer ou a dor da atividade de ambos (capitalista e
trabalhador) produzem no fim a possibilidade da satisfação, expresso no lucro
e no salário, possibilitando o consumo. Essas são as bases para a
compreensão da educação como capital, visto que o conhecimento e as
habilidades ensinadas por essa atividade social se constituirão numa potente
máquina produtiva, possibilitando a transformação da natureza em produtos
que satisfaçam as necessidades dos homens. A maior liberdade defendida pelo
autor está no trabalhador, já que por ser proprietário de si mesmo, do seu
capital humano, pode empreender em qualificar-se, potencializando seu capital,
que por sua natureza não poderá ser transferido a ninguém, nem tampouco
roubada dele mesmo. Assim, por esse intermédio, o capitalista que
possivelmente investiu na aprendizagem do seu trabalhador, precisa apropriarse desse capital humano para poder produzir. O trabalhador pode livremente
escolher o melhor preço por seu capital qualificado e necessário aos
produtores.
Marshall, ao discutir sobre o desemprego, explica que na relação
entre salário – renda do trabalhador e custo para o empreendedor está
justamente o fator que poderá gerar esse mal. Se o salário for maior que a
produtividade, poderá haver desemprego, pela relação desigual entre esses
dois agentes produtivos. “Contudo, os conflitos entre empregados e
trabalhadores sobre os salários reais são eliminados pelos ajustes que decerto
ocorrem no mercado, caso este permaneça livre” (idem, p.98).
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Partindo do pressuposto que tanto os trabalhadores como os
empreendedores são capitais, os primeiros devem para burlar o desemprego
(fato natural regido pela própria lei da oferta e procura do mercado), explorar
novos ramos de atividades nascentes no mercado de trabalho. Para isso, se
qualificar para o inesperado, tornando-se mais criativos; ou pelo contrário,
como os indivíduos são movidos pelo prazer, evitando a dor, a busca por
salários e rendas mais altas (prazer) levar-nos-iam a evitarem os baixos
salários ofertados no momento.
Sendo assim, o referido autor formula uma equação que poderia ser
representada da seguinte forma: Trabalho+qualificação=capital humano e
progresso.
Por fim, Theodore W. Schultz a partir de 1960, sistematiza a teoria
sobre o capital humano. Esse economista pertencente à Escola de Chicago
vincula a capacitação do trabalhador por meio do conhecimento como um
mecanismo potencializador do crescimento econômico.
Furtado (2003, p.104) define de maneira sintética o que seria capital
humano para Schultz:
De acordo com os argumentos de Schultz, o capital humano
compreende um conjunto de habilidades, conhecimentos, técnicas
específicas, hábitos de trabalho, saúde etc., os quais influem
diretamente na capacidade pessoal para a realização de trabalhos
produtivos. Os gastos financeiros investidos para melhorar referidas
competências influem positivamente sobre o trabalho e as estruturas
socioeconômicas, aumentando a renda futura, as possibilidades de
emprego, de mobilidade social e fomentando, ainda, o crescimento
econômico, entre outras influências.
Capital e trabalho se complementam e, intrinsecamente, entrelaçamse num movimento produtivo, no qual todos ganham. Portanto, deve-se investir
no capital fixo e, sobretudo, no capital humano do trabalhador. Não há, diz o
autor, diferença entre o operário e o capital, mas uma interdependência
produtiva e necessária. A relação dialética entre essas duas esferas daria, em
síntese, o capital.
A educação, por esse prisma, adquire um sentido de investimento
humano necessário ao crescimento da produção. O capital humano
desenvolvido no trabalhador, através de uma formação sob a lógica desse
sistema, transforma o individuo produtivo em um bem de consumo e um bem
de inversão, ou seja, o trabalhador consome conhecimentos, talentos,
habilidades e competências que os tornam capitais humanos com um maior
valor produtivo para o mercado. “No presente e no futuro”, o capital investido
em si mesmo se converterá em potencializador de serviços necessários à
produção. O capital humano para ser adquirido demanda custo numa dada
formação. O preço para obtê-lo deve advir de investimentos públicos e privados
na formação dos indivíduos trabalhadores. Esse investimento converte-se
numa ampliação de salários e rendas, estimulando, por sua vez, um
desenvolvimento do capital.
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“Cabe a educação desvelar talentos, aperfeiçoando-os para a
tomada de decisões no universo do mercado, supostamente caracterizado
como um mundo de opções em função da diversidade da oferta e demanda de
produtos e serviços” (FURTADO, 2003, p.109). A formação para a aquisição de
capital humano não se restringe ao fato de formar para a produção ou para a
prestação de serviços ao capital, mas também na elaboração de um ser
humano que, em todo o seu ser expresse-se e movimente-se em função da
reprodução dessa forma de sociabilidade. Sua formação, atividade produtiva,
seus direitos e sua satisfação com o consumo acontecerá no entrelaçamento e
no envolvimento do indivíduo nas relações da sociabilidade capitalista. É a
formação de um ser integralmente capitalista, visto que não há mais classes,
pois tudo é capital. Portanto, por esse intermédio, há uma mercantilização e
uma integração do ser dos homens a um sistema que lhes dá sentido, pois
permite, estimula e valoriza o desenvolvimento da sua natureza humana que,
desde a gênese do capital, vem se construindo. É nesse momento que a
formação do homem, por esse ponto de vista, expressa a essência humana. O
impulso natural à posse, ao lucro, ao egoísmo, ao individualismo e a
preservação e expansão de sua propriedade (tanto humana, como meio de
produção) podem, nessa estrutura relacional do mercado livre e igual desse
sistema, desenvolver-se ao infinito. Furtado (2003, p.110) perfaz um caminho,
demonstrando um fio condutor teórico que se mantém e se complementa dos
primeiros liberais aos economistas neoclássicos em relação às questões mais
essenciais sobre a relação entre educação, trabalho e capital:
Dessa forma, o indivíduo foi dicotomizado em dois outros,
aparentemente opostos. Para o paradigma liberal, a partir da
formulação de Locke, o sujeito humaniza-se por ser um proprietário
de si mesmo, tendo, pois, a fruição de suas capacidades físicas e
intelectuais. Mas é ele, também, a um só tempo, portador de ativos
produzidos pelo capital humano, sendo assim, um investidor de si
próprio e, como tal, capaz de gerar rendimentos, os quais lhe
proporcionarão futuras satisfações. Referido capital é, a um só tempo,
humano, por ser parte integrante do homem, e capital por propiciar,
no futuro, recompensas determinadas. Por fim, a categoria teórica
capital humano tem, como corolário, a educação como propriedade
possuída, da qual seu dono tem a fruição. Referido postulado
neoclássico indica, como proposição dedutível, que os indivíduos se
diferenciam uns dos outros, não só por seus atributos herdados, mas,
sobretudo, por aquelas capacidades adquiridas.
O capital humano é, para Schultz, intransferível, pois quem possui
poderá satisfazer-se tanto na produção, como no consumo, explicando, os
indivíduos ao adquirirem as capacidades as quais o capital necessita, tornamse mais produtivos, e com isso, propícios a empregar-se no mercado
capitalista. Satisfazendo dessa maneira, as necessidades de lucro do sistema
do capital e conquistando por meio dos seus rendimentos pessoais, a
possibilidade do prazer e da satisfação pessoal por intermédio do consumo.
Por meio dessa formação, de acordo com os teóricos do capital, os indivíduos
poderão adequar-se a qualquer circunstância e situação que esse sistema
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necessitar. O trabalhador, possuindo capital humano, poderá metamorfosearse naquilo que o sistema precisa.
Educar para o emprego, ou seja, preparar os indivíduos teórica e
praticamente para o mundo do trabalho no capital representa um processo de
vital importância na continuidade dessa forma de exploração. A composição de
uma classe trabalhadora refém de um poder estranho ao seu controle na busca
para a sua sobrevivência configura-se num longo e contraditório processo
histórico, no qual o capital precisou e precisa continuamente manter seu
controle sobre o trabalho. O sistema social capitalista insere cotidianamente um
número suficiente e necessário de trabalhadores à lógica produtiva, garantindo
e naturalizando essa dinâmica embrutecedora e deformadora dos homens
como uma relação eterna e única para o trabalho humano. As interpelações do
capital sobre os trabalhadores apresentam as mais variadas formas,
dependendo do momento histórico, das crises conjunturais ou estruturais a
quais o sistema esteja passando e das condições possíveis de convencimento
abertas pelas lutas de classe.
Na atualidade de crise profunda do capital de modo global a
educação não se ocupa apenas da formação para o emprego, mas também, e
principalmente, numa formação para o desemprego, o emprego precário, o
subemprego. O controle das tensões sociais cada vez maiores em todo o
mundo revela a necessidade da preparação das mentes, dos espíritos e das
forças sociais do trabalhador cada vez mais explorado, ou pior, desempregado.
Este controle toma forma política, ideológica e econômica variada, conforme o
jogo e a luta de classes. A reprodução do sistema do capital nunca precisou
tanto do poder ideológico da educação no intuito de manter a ordem em meio
ao caos. No entanto, na história do capitalismo a cada período
contrarrevolucionário, tem-se na mesma proporção e força, um movimento
revolucionário. Desse modo, se vivemos o período mais longo de
contrarrevolução da história, no qual o capital coloca de joelhos sua força
antagônica: o trabalhador; esperamos que em algum outro momento esta luta
se inverta, e quem sabe como diz Marx, inicie-se a história da humanidade com
base no trabalho livre e associado.
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1c- A EDUCAÇÃO SOB O DOMÍNIO DO CAPITAL