Um Platão lacaniano
um estudo sobre o Parmênides de Platão e o “y a d l’un” de Lacan
Márcia Rosa*
Resumo: Este estudo desdobra o comentário feito por Lacan segundo o qual, no diálogo
Parmênides, Platão teria antecipado o essencial do que se refere a concepção do Um,
antecipação que lhe teria aberto o caminho para afirmar: “y a de l’un”.
Palavras-chave: Parmênides; Lacan; Uno
A Lacanian Plato
A study on Plato’s Parmenides and Lacan’s “y a d l’un”
Abstract: This study discusses the comment made by Lacan under which, in the
dialogue Parmenides, Plato would have advanced the essential regarding the conception
on the One, anticipation that led him to state: "y a de l'un".
Key-words: Parmenides; Lacan; One
“ (...) que preço deve pagar o pensamento para introduzir, com o simbólico, a
tese 'Há Um' aí aonde, manifestamente, não me é apresentado senão o
múltiplo? ” (Alain Badiou, 1991:144).
Na sétima lição de seu seminário ...ou pior (15/03/72)1, Lacan afirma que de
Parmênides a Platão um limiar é franqueado. Em um meio em que se tratava de saber o
que é Real, há um limiar transposto por Parmênides: o de permitir formular um fator
*
Psicanalista. Doutora em Literatura Comparada (UFMG). Pós-Doutorado em Teoria Psicanalítica
(UFRJ). Professora recém-doutora no Depto. de Psicologia da UFMG (Bolsista da FAPEMIG). Membro
da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise; e-mail:
[email protected].
1
comum entre o ar, a água, o fogo, a terra, a saber, o fato de serem dizíveis. Se esse é o
passo de Parmênides, o passo de Platão é diferente. Trata-se de mostrar que desde que
se tente dizer a estrutura de modo articulado, o real faz objeção a isso. Esse Real é na
via do ‘eidos’ que Lacan nos propõe localizá-lo. O ‘eidos’ platônico, que Lacan diz ter
sido traduzido impropriamente como ‘forma’2, possibilitaria localizar aquilo que faz
hiância no dizer. Assim, nos dois limiares franqueados, algo da estrutura da linguagem
está em questão: seja ao se estabelecer algo como dizível, seja ao se esbarrar no limite
do dizível.
Segundo Lacan, o diálogo Parmênides de Platão teria antecipado o essencial do
que se refere à concepção do Um, nesse sentido ele seria uma antecipação do que o teria
levado a afirmar: “Há Um” (y a de l'Un). Portanto, conclui ele, Platão era lacaniano!3
1- A construção do conceito de Idéia (eidos) em Platão
Para localizar o diálogo Parmênides e a construção do conceito de Idéia, é
interessante notar que os diálogos de Platão se dividem em três grandes grupos: nos
primeiros, aqueles nos quais Sócrates é o personagem principal, ele desenvolve
discussões sobre a ética, a política e a retórica. Nos seguintes, diálogos de transição
escritos sob a influência do pitagorismo, Platão introduz a sua Doutrina das Idéias.
Reconhecemos aí alguns daqueles com os quais Lacan estabelece uma interlocução ao
longo do seu ensino: Ménon, Fédon, Banquete, República, Fedro, etc. Em um terceiro
grupo, constituído pelos diálogos de plena maturidade intelectual, localizam-se o
Parmênides, o Teeto, o Sofista e o Político.
Se as primeiras formulações da Doutrina das Idéias surgem no Fédon, no
Parmênides elas começam a ser revistas (PESSANHA, 1983, p. XV-XVII). Nesse
último diálogo, “tanto a aparente autocrítica da primeira parte como a aporética4 sobre o
Uno, nos discursos antitéticos da segunda, parecem questionar, na raiz, a própria teoria
1
Pelo fato deste seminário de Lacan não ter uma versão estabelecida, vamos nos referir a ele citando as
datas das lições em questão.
2
Ao estabelecer uma conexão entre a ‘filosofia platônica’ e ‘teoria psicanalítica’, Jacques Alain-Miller
retoma aquilo que Sócrates e Platão denominam ‘eidos’ (Forma, Idéia) com o termo ‘significante’
(MILLER, 1998, p. 65-67).
3
Isto não implicaria na conclusão de que Lacan é um platônico, nos lembra Badiou. Este último sugere
que Platão seria um sintoma para Lacan (BADIOU, 1991, p. 145).
2
das Idéias” (ECHANDIA, 1987, p. 8). Não obstante tais afirmações, constata-se nos
diálogos que se seguem ao Parmênides a reafirmação de que o conhecimento verdadeiro
não pode dispensar a fundamentação nas Idéias (Teeto e Sofista).
O conceito de Idéia, “uma essência existente em si, independente das coisas e
do intelecto”, representa a adoção, por Platão, de um método de pesquisa de índole
matemática (PESSANHA, 1983, p. XV). O termo Idéia ou Forma (eidos) nasce sob a
influência do pitagorismo, no qual tinha o sentido de ‘modelo geométrico’ ou ‘figura’ e
deriva de um verbo cujo significado é ‘ver’; o eidos tem a acepção inicial de ‘forma
visível’, no sentido de ‘formato’.
Desde seus primeiros diálogos, Platão busca algo idêntico e Uno que estaria por
trás das múltiplas maneiras de se entender conceitos como ‘temperança’ ou ‘coragem’.
Naquele momento esse ‘mesmo’, que existiria em diversas coisas, não era ainda uma
entidade metafísica, algo existente em si e por si. Nos diálogos de transição, seguindo a
sugestão do método dos geômetras, a investigação platônica seguirá “uma dialética
ascendente” deixando de lado, por um tempo, a natureza do sensível enquanto sensível.
Deixando de estar na matéria a razão de sua inteligibilidade, as Idéias ou Formas
transformam-se em tipos ideais que transcendem o plano mutável dos objetos físicos e
acabam caracterizando-se como ‘modelos’ ou ‘paradigmas’ reais, eternos, sempre
idênticos a si mesmos, perfeitos, dos quais as coisas materiais seriam apenas cópias
imperfeitas e transitórias (PESSANHA, 1983, p. XV-XVII).
Depois de distanciar o inteligível do sensível, Platão formulará de dois modos a
relação entre os dois: pela ‘imitação’ (mimesis) e pela ‘participação’. Pelo primeiro, o
mundo sensível é uma imitação imperfeita do mundo inteligível, os objetos sensíveis
seriam apenas cópias dos arquétipos ideais, incorpóreos e perenes; enquanto pela noção
de participação, o sensível – múltiplo, concreto, perecível – participa da Idéia inteligível
na medida em que a realiza sensivelmente. Nesse sentido, uma coisa é una pela presença
nela do Uno em si, da Idéia do Uno. A propósito, Lacan observa que é ao participar da
Idéia de Cavalo que o cavalo se sustenta, ou seja, “o que há de mais real é a Idéia de
cavalo” (LACAN, 19/04/72). Indica-se assim o realismo idealista da filosofia platônica.
4
Na aporética levantam-se diferentes modos de se conceituar, denuncia-se a fragilidade dos conceitos e
deixa-se a questão aberta, inconclusa.
3
2- O Parmênides e as astúcias do Uno5
O diálogo Parmênides é apresentado por uma ‘Introdução’ segundo a qual
Céfalo e dois amigos chegam a Atenas e são conduzidos à casa de Antifonte para que
ele lhes relate o diálogo que, outrora, tiveram Sócrates, Zenão e Parmênides, diálogo
cujo relato Antifonte ouviu de Pitodoro. Teremos, pois, o relato, do relato, do relato.
A simples menção dos personagens escolhidos – os eleatas Parmênides e Zenão
–, deixa sugerido que haverá um debate entre Platão e os pré-socráticos, isto é, que o
monismo parmenídico estará em questão6.
Que Sócrates seja um jovem e que apareça o velho Parmênides pode ser lido nos
termos: “Sócrates chega justo a tempo para dar uma olhada sobre aqueles que serão os
pré-socráticos e que ainda não o sabem. Sócrates dialoga no limite. O pré-socrático é tão
velho que logo vai morrer e Sócrates está apenas chegando à filosofia” (MILLER, 1998,
p.51). Parmênides não é escolhido senão por ter formulado hipóteses sobre o ser. Jogarse-á aí, portanto, com o Uno e o Ser e tratar-se-á de combiná-los e de ver como
participam um no outro e em que medida podem se equivaler.
O diálogo se divide em duas partes, na primeira fazem-se objeções à teoria das
Idéias, temos aí “Platão contra Platão” (MILLER, 1998, p. 62), e na segunda há um
exercício dialético sobre o Uno.
Em uma alusão ao modo como o texto é construído, Lacan diz que na primeira
parte temos as preliminares, as entrevistas preliminares de Parmênides e, na segunda, a
prefiguração da associação dita livre, onde encontramos as tagarelices sobre o Uno, as
tagarelices do Uno. Esse Uno não teria relação com aquilo que engloba, nem com a
díade, o maior - o menor, o mais jovem - o mais velho, o incluso - o incluído (LACAN,
15/03/72). Assim, o que entra em jogo aí não é exatamente o binarismo da lógica
simbólica e nem mesmo o Um do Simbólico, do traço unário descrito por Freud na
segunda identificação, mas o Um do Real (LACAN, 10/05/72). Há Um (y a de l'Un),
5
Para este título me refiro a uma expressão utilizada por A. Badiou. (1991, p. 144).
Tal como nos diz G. Reale, na sua História da Filosofia Antiga, “o problema do Uno nasce com o
surgimento da própria pesquisa filosófica, que é, nas suas origens, tentativa de explicar a multiplicidade
das coisas em função, justamente, de um princípio. Já no âmbito dos pré-socráticos, podemos distinguir
duas diferentes concepções do Uno: a) a que introduz o Uno sem negar os muitos, antes, para justificá-los
e b) e a eleática [na qual estão Parmênides e Zenão] que, ao invés, nega os muitos, dissolvendo-os sem
resíduo no Uno. Esta última é uma concepção do Uno absoluto, que se funda sobre uma concepção
igualmente absoluta do Ser” (REALE, V, 1992, p. 262).
6
4
afirma Lacan. Este ‘há’ não surge aí senão sob um fundo de indeterminação, sob um
fundo de algo que não tem forma, há aí uma existência que não surge senão sob um
fundo de inexistência. O discurso comum ilustra esse fundo de indeterminação quando
diz, por exemplo: “há os que pensam que...”, “há os que se exprimem que...”, “há os que
relatam que...” (LACAN, ibid.).
Ao tomar o Uno por meio de uma interrogação discursiva, quem está aí
interrogado? Depois de indagá-lo, Lacan responde a isso questionando o caráter
dialógico do texto de Platão: isso não parece denominar-se ‘diálogo’ senão para ilustrar
que diálogo, justamente, não o há. O que é denominado entrevista preliminar, e que
constitui o osso do texto, é justamente a possibilidade de apreender qual é o real que
pode fazer crer, que dá a ilusão de que a gente chega a alguma coisa dialogando com
alguém. É preciso, portanto, nada menos do que “Parmênides e seu bando” para que se
possa enunciar alguma coisa que faz falar o Um (LACAN, 15/03/72).
No seminário ... ou pior (1972) estamos distantes do Lacan de “Intervenção
sobre a transferência” (1951), quando ele menciona o ‘diálogo psicanalítico’ na sua
dimensão intersubjetiva, isto é, do Lacan que concebe a psicanálise como uma
experiência dialética (no sentido hegeliano). Se ele trabalhara o Um da identificação
simbólica no seu seminário sobre a identificação (1961-62), nesse momento ele lança
luz sobre o Um do real, o Um da relação que não há. Ao operar com o seu aforismo
“não há relação sexual”, o psicanalista deixa indicado que, na associação livre, o sujeito
fala a partir da relação que não há.
Vamos então ao dialogo Parmênides de Platão.7
3.1. Primeira parte do diálogo: objeção à teoria das idéias
Na primeira parte temos os diálogos de Zenão e Sócrates e, a seguir, de Sócrates
e Parmênides.
7
Para apresentá-lo e comentá-lo vamos nos valer, preferencialmente, de G. R. Echandia, J. A. M.
Pessanha e de J.-A. Miller, cujas referências detalhadas encontram-se no final do texto.
5
3.1. a – Sócrates e Zenão
O eleata Zenão, discípulo de Parmênides, faz perante Sócrates um discurso sobre
a inexistência do múltiplo, tese que desembocará na impossibilidade do movimento:
(...) se as coisas são múltiplas haverão de ser também semelhantes e dessemelhantes, o que seria
impossível ,(...). Portanto se é impossível que as coisas dessemelhantes sejam semelhantes e as
semelhantes, dessemelhantes, então é impossível que as coisas sejam múltiplas, pois se fossem
múltiplas seria impossível escapar a esta conseqüência (127e).
A isso Sócrates responde:
– Mas, o que há de extraordinário em mostrar-me a mim como ser uno e múltiplo, dizendo, por
exemplo, quando se me quer fazer aparecer como múltiplo, que existe em mim um lado direito e
um lado esquerdo, uma parte dianteira e uma parte traseira, e algo que está acima e algo que está
abaixo? (...).
Sócrates apresenta-se como múltiplo e, a seguir, mostra-se uno: “(...) no grupo
nosso de sete eu sou um homem uno (...)” (129 c/d). Ele aparece como uno que é
contável, numérico. Posto isso, Zenão objetará que se os diferentes objetos não têm um
ser estável, o múltiplo enquanto tal não existe. Só o Uno existe. Como seria possível
dizer-se a mesma coisa de duas maneiras diferentes? Nota-se que, ao negar o múltiplo,
Zenão pretende defender a tese de Parmênides sobre o Uno, a tese de que o Uno é todo.
3.1.b – Objeção de Sócrates
Com a sua objeção Sócrates visa exibir o ridículo da demonstração de Zenão.
Sócrates objeta a Zenão, evocando a teoria das Idéias e distinguindo, por um lado, as
coisas em sua multiplicidade e, por outro, as Idéias (eidos) em si. Se Sócrates, enquanto
uma das coisas do mundo sensível, pode ser Uno e Múltiplo (isto é, pode ser objeto de
uma predicação contrária), por outro lado, o Uno e o Múltiplo em si não são
susceptíveis de uma predicação contrária. A tese explícita de Sócrates “(...) é que não há
predicação contraditória ao nível do significante, que cada significante é o que é, que,
por exemplo, o semelhante é semelhante, que o Uno é Uno. (...) Nesse sentido, a tese de
Sócrates é a da auto-predicação do eidos” (MILLER, 1998, p. 65).
Constata-se que Platão defende a multiplicidade sem se tornar, entretanto, um
pluralista:
6
(...) todas as contradições do múltiplo sensível são resolvidas e superadas com a doutrina das Idéias.
A participação das coisas às Idéias explica todas as contradições no plano do múltiplo sensível. Seria
bastante grave se as contradições assinaladas no âmbito do múltiplo sensível se reapresentassem na
mesma forma ou em forma análoga no novo plano das Idéias, isto é, no plano da pluralidade
inteligível. (...) Esse desafio socrático provoca a intervenção do próprio Parmênides (...) (REALE, II,
1992, p. 110).
O problema surgirá quando se provar que existe a mesma contradição ao nível
da Idéia. A finalidade do diálogo é mostrar que a “guerra entre o Uno e o Múltiplo se
coloca também ao nível dos significantes, isto é, das Idéias” (MILLER, 1998, p. 66): “ –
o que verdadeiramente causaria meu assombro – diz Sócrates – é que a essência do Uno
fosse apresentada como múltipla (...)” (129 b/c).
3.1.c. – Sócrates e Parmênides
Temos aqui a crítica de Parmênides à teoria das Idéias. Sócrates acabará
retrocedendo.
3.1.c. 1 – Objeções de Parmênides à teoria das Idéias
Parmênides introduzirá uma problemática que pode ser apresentada nos termos:
se se admite a separação entre coisa e Idéia, pode-se dizer que existe uma Idéia que
corresponda a tudo que existe, a tudo que é?
Ao responder a Parmênides, Sócrates não se embaraça em afirmar que há Idéia
quando se trata de termos lógico-matemáticos tal como os de ‘semelhança’, de ‘uno’, de
‘múltiplo’. Do mesmo modo, haveria uma ‘Idéia em si’ de termos éticos, tais como o
‘Bem’ e, estéticos, tais como o ‘Belo’. É menos claro para Sócrates que exista uma Idéia
em si no caso das espécies vivas, tais como o homem, e dos elementos, tais como a
água, o fogo, etc.
Parmênides interroga então:
Vamos ver Sócrates – e a respeito de coisas que poderiam parecer ridículas, como, por exemplo, o
cabelo, o barro, a sujeira ou qualquer outra coisa indigna e sem valor, duvidas também se há de
admitir-se para cada uma delas uma forma separada (...)? (130 c/d). De nenhuma maneira –
respondeu Sócrates –. Embora estas coisas existam, elas são só o que vemos; pensar que há uma
Idéia delas só seria demasiado extravagante. (...) quantas vezes tropecei com esta questão saí
fugindo por temer perder-me e cair em um palavrório sem fundamento, (...) (130e).
7
Jacques Alain-Miller (1998, p. 67) observa que Parmênides apresenta a Sócrates
objetos contrários ao agalma, objetos que não valem nada: há eidos dos restos? Sócrates
recua, não ousa dizer que há significantes em si que correspondam a esses objetos. Para
o leitor de Lacan, “não há em Platão outro lugar onde toquemos mais de perto a questão
do estatuto do objeto ‘a’, do objeto fora do significante (ibid.)”. Com essa lista de
dejetos, o cabelo, o barro, a sujeira, etc., “evoca-se um objeto que não tem correlato
significante. Sócrates retrocede, encontra isso demasiado atopos, não pode situá-lo com
precisão” (ibid).
3.1. c. 2 – Objeções de Parmênides à teoria da participação
A teoria da participação – coisas diferentes são unas porque têm a mesma
relação com o Uno –, será objeto de seis objeções levantadas por Parmênides.
A primeira objeção – a ‘metáfora do todo e da parte’ –, mostra que a
participação das coisas nas Idéias as dividiria, isto é, a multiplicidade das coisas
dividiria as Idéias. Aqui o Múltiplo divide o Uno.
Parmênides levanta então o ‘argumento do terceiro homem’ (2º objeção) através
do qual, diante de vários objetos parecidos, objetos com a mesma referência eidética,
interroga-se qual é a relação do modelo (Idéia) com cada uma das cópias. Ao distinguir,
por exemplo, as coisas que são unas e que participam do Uno, pode-se interrogar: se o
Uno é a essência comum dessas coisas, tal se passa porque o Uno é Uno? Ou seja, se o
Uno é colocado entre as coisas unas, será necessário um novo Uno como referência e
assim por diante. Chega-se a um processo interminável: a mesma Idéia multiplica-se ao
infinito.
Não há como superar essas objeções com uma concepção subjetivista do
pensamento (3º objeção) e, se se concebe as Idéias como paradigmas e as coisas como
imagens, recai-se novamente no ‘terceiro homem’ (4º objeção).
Interessa-nos sobremaneira a 5º objeção: se as coisas e as Idéias estão separadas,
acaba não havendo relação entre coisa e Idéia, haveria apenas relação das coisas entre si
e das Idéias entre si. Concluir-se-ia, pois, pela incognoscibilidade das Idéias.
Há aí uma objeção não só à teoria da participação como ao significante idêntico
a si mesmo: se os significantes são entre si, quem pode conhecê-los? O homem, sem
8
dúvida, não o poderia e, se há um deus, ele possuiria a ciência desses significantes em
si, mas, tal como o Deus de Schreber, ele não entenderia nada do que se passa aqui
embaixo (Miller, 1998: 69).
3.2. O Um enquanto ser: o caso Platão
É interessante observar que se há um “caso Platão”, se há uma interpretação de
Lacan sobre o sujeito Platão8, ela se faz a partir do exemplo que Platão coloca na boca
de Parmênides no exame desta 5º objeção à teoria da participação.
Para Lacan é preciso ler o dialogo Parmênides não como o fazem os filósofos –
como um exercício particularmente brilhante –, é preciso lê-lo com inocência, é preciso,
de vez em quando, se deixar tocar por alguma coisa (LACAN, 08/03/72). De acordo
com Platão, as coisas estariam relacionadas entre si e não com as Idéias, do mesmo
modo que essas últimas estariam relacionadas entre si e não com as coisas (5° objeção).
A conseqüência disso é que, ao construir a sua dialética do Senhor e do Escravo, Platão
acredita que a essência Mestre e a essência Escravo não têm nada a ver com aquilo que
é realmente o Mestre e o Escravo. Em que pese o fato de que na época de Platão quando
os mestres eram feitos prisioneiros eles se tornavam escravos, e quando os escravos
eram libertados eles se tornavam mestres, Lacan mostra que Platão fica flutuando entre
os discursos, fica “à côté de la plaque” e, tal como um débil mental, mostra-se incapaz
de se instalar solidamente em um discurso. Um passo a mais e o psicanalista interpreta a
inocência9 do sujeito Platão: ao separar as Idéias e as coisas, a Idéia de Senhor e de
Escravo e a realidade do senhor e do escravo, Platão chega no “somos todos irmãos”. E
a gente sabe a que serve a fraternidade! (LACAN, 15/03/72) Lacan se serve da noção de
fraternidade para indicar, ironicamente, o caráter segregacionista da filosofia platônica.
Cabe lembrar que, tanto Platão como Aristóteles julgaram injusto tornar escravo
um grego, mas natural e correto escravizar um bárbaro. “Eles limitaram-se a uma
posição que (...) na realidade tem uma marca extremamente racista, pressupondo,
8
O texto de Alain Badiou “Lacan et Platon: le mathème est-il une idée? ” permite perceber que existem
outras.
9
O termo ‘inocência’ poderia ser lido aqui no sentido em que ele surge no texto de Lacan “Proposição de
09 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, isto é, na sua articulação à destituição subjetiva.
Diz ele: “(...) falar em destituição subjetiva jamais deterá o inocente, que não tem outra lei senão o seu
desejo” (LACAN, 2003, p. 258).
9
justamente, a superioridade da raça grega” (REALE, V, 1992, p. 99). Para Lacan, a
dialética do Senhor e do Escravo não tem chance de subsistir senão com a condição de
que se veja precisamente aquilo que Platão descarta, a saber: o escravo não é escravo
senão da essência do Mestre, do S1, do Significante-Mestre – e quanto ao Mestre, se
não houvesse o S2, o saber do Escravo, o que é que se faria dele? (LACAN, 15/03/72).
Ao finalizar os comentários sobre a primeira parte do diálogo, nota-se que ela
conclui pela constatação da necessidade de que se “exercite na dialética”, uma vez que
as Idéias são a condição necessária de todo pensamento e discurso, é necessário
concebê-las de outro modo.
Na segunda parte do diálogo, a discussão sobre a relação entre as Idéias e as
coisas será encarnada no debate sobre a oposição entre o Uno e o Múltiplo. Parmênides
responderá aí ao jovem Sócrates que lhe pedira para demonstrar as oposições entre as
Idéias e as coisas no plano do inteligível. Nesse sentido, esse diálogo seria “um desafio,
feito por Platão, um convite aos leitores sutis e dialéticos para que separem o joio do
trigo, isto é, as ‘falácias’ dos ‘verdadeiros problemas’, isto é, a ‘lógica zenônica’ da
‘autêntica dialética da unidade’” (ECHANDIA, 1987, p. 40).
Ao lermos a segunda parte como uma ginástica, como um exercício de lógica, e
afirmarmos que as hipóteses construídas aí sobre o Uno são vazias, isto é, elas concluem
tanto que o Uno é como que o Uno não é, observamos que essa ginástica é um exercício
de lógica diferenciada da retórica, ou seja, é um exercício que antecipa e, de algum
modo invoca, a lógica matemática e que coloca em questão algo da estrutura da
linguagem e, por conseguinte, da estrutura do sujeito do inconsciente (MILLER, 1998,
p. 48).
3.3. O exercício dialético da segunda parte
Depois de oferecer um programa de exercício, para demonstrá-lo Parmênides
elege para objeto de exame a sua própria tese. Tratar-se-á, assim, de examinar as
conseqüências que se seguem da sua hipótese sobre o Uno em si, isto é, se o Uno é ou
não é (137b).
10
Se, na primeira parte, do texto temos os diálogos entre Zenão e Sócrates, e entre
Sócrates e Parmênides, na segunda são personagens Parmênides e Aristóteles10. Platão
os apresenta valendo-se de uma díade simbólica: Parmênides, o mais velho e,
Aristóteles, o mais jovem. Ao se apresentar como “um campeão já velho”, Parmênides
diz “(...) sentir um grande temor ao ter que atravessar a nado, na sua idade, um oceano
de argumentação de tal qualidade e magnitude” (137 a ) e, então, convoca o mais jovem
para contestá-lo, já que ele “complicaria menos as coisas e contestaria mais diretamente
o que penso, de vez que suas respostas seriam um descanso para mim” (137c).
Parmênides se dispõe aí “(...) a jogar esse jogo trabalhoso” (137b) que começa por ele
mesmo.
Há aí um jogo carregado de realidade, “um jogo, certamente, mas um jogo que
contém o objeto” (MILLER, 1998, p. 70). Nessa parte do diálogo, ao invés do Uno
surgir como “um idiota e fixado em sua auto-predicação” (ibid.), Platão mostra que não
há identidade em si das Idéias. Em outros termos: se há significantes, eles não são
idênticos a si mesmos, logo não há auto-predicação do significante (MILLER, 1998, p.
70).
Se o significante é idêntico a si mesmo, refuta-se a teoria da participação das
coisas no mundo das Idéias e chega-se ao incognoscível. Logo, será necessário mostrar
que a Idéia não é idêntica a si mesma de modo a solucionar a aporia da teoria da
participação. Tal é o desafio da segunda parte do diálogo. Far-se-á aí um exercício
através da formulação de nove hipóteses sobre o Uno:
IIIIIIIVVVIVIIVIIIIX-
10
Se o Uno é Uno
Se o Uno é
Se o Uno é e não é
Se o Uno é, que são os Outros?
Se o Uno é Uno, que se segue negativamente para os Outros?
Se o Uno não é, que se segue?
Se o Uno não é, carece de determinação
Se o Uno não é, que serão os Outros?
Se o Uno não é em absoluto, que se segue para os Outros?
Tudo indica que não se trata aí do Aristóteles estagirita; Lacan mesmo o assinala em ...ou pior.
(15/03/72).
11
3.3. a. Comentário sobre as cinco primeiras hipóteses
Primeira hipótese: Um Uno incognoscível
Na primeira hipótese, “Se o Uno é Uno”, o Uno surge como absolutamente Uno,
logo não se pode estabelecer sobre ele nenhuma predicação: ele não é múltiplo, nem um
todo de partes; não tem limites, nem extensão, nem figura; não está em repouso, nem
em movimento; não é idêntico, nem diferente; etc.
Este Uno (...) não participa de nenhum modo do tempo, antes não há sido, nem era, nem foi; agora
não chegou a ser, nem chega ao ser, nem é; depois não chegará a ser, nem haverá chegado a ser,
nem será. (...) O Uno, então, não participa de nenhum modo no Ser. (...) Logo o Uno não é de
modo algum (141e).
A pura unidade do Uno exclui o “é”, logo, sendo distinto do Ser, o Uno não admite
nenhuma predicação. A particularidade dessa hipótese é a de termos o Uno como sujeito
e como predicado. Se se predica o Uno, “o Uno é Uno”, não podemos dizer mais nada,
somos forçados a dizer que “é o Uno o que é”. Tomado ‘em si’ e ‘por si’, ele torna-se
alheio ao pensamento discursivo, logo nada se pode dizer dele. Temos aí o
incognoscível, ao qual os neo-platônicos denominarão “inefável” (MILLER, 1998, p.
71-72).
Segunda hipótese: Há um
Se, na primeira hipótese, estabelece-se uma disjunção entre o ‘Uno’ e o ‘Ser’, na
segunda “Se o Uno é”, interroga-se exatamente a conjunção. Temos aí um ‘Uno-Ser’
que é um todo de partes (uno e múltiplo); que tem extensão e figura; que está em si
mesmo e no outro; em movimento e em repouso; que é idêntico e diferente, semelhante
e dessemelhante, etc.
Se, na hipótese anterior, por não estar no tempo, o Uno ficava excluído do Ser,
nessa, participar no Ser significa estar no tempo: “(...) que é o ser senão uma
participação no Ser segundo o tempo presente, assim como o ‘foi’ o é segundo o tempo
passado e o ‘será’ uma comunidade com o Ser em um tempo porvir?” (152a). A
conseqüência da inclusão do Uno no tempo faz com que ele se torne cognoscível, o que
se anuncia nos termos: “(...) poderá haver algo em relação com ele e próprio dele;
12
houve, há e haverá. (...) E poderá haver então ciência, opinião e sensação dele (...).
Possui, pois, um nome e uma razão própria, e se lhe pode nomear e expressar em um
discurso racional, (...)” (155d/e).
Embora não o tenha dito explicitamente, a tradução dessa hipótese feita por
Lacan é exatamente o “há um”, ‘y a de l'Un’. Temos aí a passagem da auto-predicação à
pura posição de existência do Uno; temos aí um puro ‘há’ cujos predicados são deixados
em aberto. Se o Uno é, se ele existe, seria ele Uno? Múltiplo? Não se prejulga nada,
afirma-se apenas: há um! (MILLER, 1998, p. 53-54).
Ao suprimir o predicado, o Uno surge como sujeito de um juízo de existência11.
Ao estabelecermos uma aproximação dessa segunda hipótese com a psicanálise,
observamos que ela é necessária nas elaborações do conceito de castração, no manejo de
aforismos como o ‘não há relação sexual’ e no manejo de uma escritura tal como a do
sujeito barrado ou dividido ($) (MILLER, 1998, p. 79-80). A propósito do juízo de
existência, Lacan afirma que “(...) não há existência senão sob um fundo de inexistência
e inversamente. (...) Ex-sistire não se sustenta senão de um fora que não é, localiza-se
exatamente aí o de que se trata no Um” (15/03/72). Para o psicanalista, “o Um começa
no nível em que há Um que falta. O conjunto vazio é (...) a porta cuja transposição
constitui o nascimento do Um. O que constitui o Um é que ele não começa senão de sua
falta” (Ibid.).
Lacan encontrará na segunda hipótese do Parmênides uma espécie de primeiro
assento de um discurso propriamente analítico e, ao centrar a interrogação não sobre a
cifra ‘Um’ mas sobre o significante ‘Um’, ele localiza este ‘Um’ no lugar do S1
produzido pelo Discurso do Analista (LACAN, 19/04/72). Nesse sentido, pode-se
entender a formulação ‘há um’ como ‘há significante’. Em outro sentido, depois de
separar o Uno e o Ser, interroga-se a zona de intersecção entre os dois para saber se ela
está cheia ou vazia: há algo ali? A segunda hipótese afirma que há algo ali, ‘há um’
(MILLER, 1998, p. 55-56).
11
Tal como posto por Freud no texto sobre a Verneinung, o juízo de existência “deve conceder ou
impugnar a existência de uma representação na realidade”. Trata-se de saber se “algo existente no eu
como representação pode ser reencontrado também na percepção (realidade)”. (FREUD, 1925/1976, p.
297).
13
Terceira hipótese: O Uno e o instante
Na terceira hipótese, “Se o Uno é e não é”, ao estar no tempo o Uno ‘existe’ e
‘deixa de existir’. Ele participa durante algum tempo no Ser já que ‘é’, mas deixa
também de participar já que ‘não é’, ele comunica-se e está separado, chega a ser
semelhante e dessemelhante, aumenta e diminui. O ponto importante a destacar é que a
transição em chegar a ser e a mudança ocorrem no instante. Ao realçar a natureza
atópica (physis atopos) desse Uno, a única coisa que Parmênides consegue colocar
nessa categoria é o ‘instantâneo’, ou seja, ‘o movimento mesmo da passagem’
(MILLER, 1998, p. 73-74).
Poderíamos, à guisa de exercício, pensarmos uma Escola de Psicanálise nos
termos de Platão. Se, ao nos exercitarmos dialeticamente, dissermos que “a Escola é
Escola” (1ª hipótese), a Escola torna-se auto-predicativa e não poderemos afirmar dela
senão: “é a Escola o que é”. Pensar a Escola com essa hipótese acabaria transformandoa em um (algo) inefável. Interessa-nos, pois, seguir adiante e afirmar que “a Escola é”,
isto é, ‘há Escola’ (2° hipótese). Existe Escola, mesmo que sob um fundo de
inexistência, de indeterminação que, necessariamente, permanece: “há os que pensam
que...”, “há os que pensam que...”. Dessa Escola que ‘é’ não se saberia dizer se ela é
Una ou Múltipla, a predicação fica em aberto, afirma-se apenas que ‘existe Escola’! É,
por conseguinte, ao afirmarmos, com a 3° hipótese, que “a Escola é e não é” que
poderíamos pensar em algo como uma “Escola Uma”, essa Escola Una e Múltipla
caracterizar-se-ia pelo movimento mesmo da passagem.
Vamos ao exercício das outras hipóteses.
Quarta hipótese: Há Outro
Na quarta hipótese, “Se o Uno é, que são os Outros?”, se o Uno é, os Outros,
entendidos como tudo aquilo que não é Uno, mas que participa do Uno, constituem uma
pluralidade de Outros “unos”, que formam um todo do qual cada parte é “uma”. Se o
Uno é, os Outros serão afetados por todos os caracteres predicados ao Uno na 2°
hipótese. Poderíamos, portanto, afirmar: Há Outro!
14
Não haveria no conjunto das nove hipóteses uma que se prestasse melhor a
introduzir a abordagem lacaniana do feminino: as mulheres participam do Uno fálico,
não sendo, todavia, redutíveis a ele; elas permanecem Outras tal como essas entidades
apresentadas aí que, se são múltiplas, cada uma, entretanto, é uma. Lacan dirá em ...ou
pior que uma mulher é do Outro e que, sendo do Outro, “ela não suspira (s’...oupire)
pelo Uno” (MILLER, 1998, p. 80).
Quinta hipótese: O Outro Incognoscível
Ao indagar, na quinta hipótese, “Se o Uno é Uno, que se segue negativamente
para os Outros?”, o Uno surge como absolutamente uno e inteiramente separado dos
Outros (como na 1° hipótese), os Outros não podem ter unidade nem como todos, nem
como partes, pelo que não podem ser entendidos como uma pluralidade de outros unos.
Carecendo de unidade, não se pode aplicar aos Outros nenhum dos predicados opostos
anteriores. Temos aí um Outro que, por não participar do Uno, torna-se incognoscível,
inefável. Logo os Outros:
não são, pois, nem idênticos, nem diferentes, nem estão em movimento, nem em repouso, nem
nascem, nem perecem, (...). Porque se suportassem alguma determinação similar, participariam do
dois, do três, do par, do ímpar; mas já ficou claro que é impossível que participem destas coisas, já
que estão inteiramente privados de unidade (160 a/b).
3.3. b. Comentário sobre as quatro últimas hipóteses
As quatro últimas hipóteses nos interessam na medida em que elas nos
possibilitarão localizar a aporia a qual nos leva a tese do pré-socrático Parmênides e ao
modo como Platão permite ultrapassá-la. Essas hipóteses são os desdobramentos da
sexta hipótese: “se o Uno não é, que se segue?”:
VII: Se o Uno não é, carece de determinação
VIII: Se o Uno não é, que serão os Outros?
IX: Se o Uno não é em absoluto, que se segue para os Outros?
15
Sexta hipótese: Há um que não
Depois de concluir que Há Um, (hipótese II) indaga-se “Se o Uno não é, que se
segue?” e conclui-se que, “se o Uno não é” há um Uno que não existe, ‘Há um que não’.
Esse Uno é cognoscível e distinto de outras coisas, logo ele pode ser predicado de
múltiplas maneiras. Esse Uno que não existe pode passar à existência e participa de
algum modo do ser, “(...) posto que o que é participa no não ser e o que não é no ser, é
também necessário que o Uno, já que não é, participe no ser para não ser. (...) Assim o
Ser aparece no Uno, embora não seja. (...) E também o não Ser, já que não é” (162b).
Sétima hipótese: Um não-ser inexistente
Surge com essa hipótese, “Se o Uno não é, carece de determinação”, um
contraponto da primeira (‘se o Uno é Uno’) na qual se esbarrou em uma espécie de
‘positividade absoluta’ ou de ‘inteireza’, que fez com que o Uno se apresentasse como
incognoscível. A contrapartida seria, pois, uma espécie de ‘negatividade absoluta’, que
não deixa de nos fazer evocar uma espécie de “pura cultura de pulsão de morte”, ou de
‘negativismo’ tal como encontrado em certos psicóticos (FREUD, 1925/1976, p. 300).
“Se o Uno não é” significa, nessa hipótese, que não há em absoluto um Uno. Ele
é simplesmente um não-ser inexistente. De um não-ser inexistente não se pode
estabelecer nenhum predicado; ele não pode determinar-se como distinto de outras
coisas, nem está em algum tempo, nem é objeto de conhecimento ou sujeito de discurso.
Assim não se poderá referir ao que não é “(...) termos como ‘dele’, ‘nele’, ‘algo’, ‘este’,
‘deste’, ‘de outro’, ‘antes’, ‘depois’, ‘agora’, ou ‘conhecimento’, ‘opinião’, ‘sensação’,
‘razão de ser’, ‘nome’ ou qualquer outro referido as coisas que são, (...) Assim, pois, o
Uno que não é, carece de determinação (164 a/b).
Oitava hipótese: A nebulosa, ou, uma pluralidade indeterminada
Se “Outros” é a ser lido como tudo aquilo que não é Uno, esses outros podem
participar do Uno, tal como enunciado na hipótese IV, ou não. A oitava hipótese, “Se o
Uno não é, que serão os Outros?”, examina as conseqüências da não participação do
16
Uno no Outro. “Se o Uno não é” significa que não existe nada que seja algo ‘Uno’,
então esses Outros só podem ser entre si, tornando-se massas ilimitadas em multidão,
com aparência de unidade e número. Assim, se o Uno não é, “cada massa (matéria
amorfa) dos Outros é, segundo parece, uma pluralidade ilimitada, inclusive se se toma o
que parece menor, como nos sonhos da noite, que em lugar de uno mostram-se,
subitamente, múltiplos, e em lugar de muito pequenos, enormes por seu ilimitado
fracionamento” (164d).
Se o Uno não é, teremos uma matéria amorfa, “carente de limites ou
indefinidamente fracionável. Tenta-se, inutilmente, uma descrição quantitativa desta
pura multiplicidade aparente, mas na ausência da unidade é impossível determiná-la
segundo o número e a magnitude” (ECHANDIA,1987, p. 141). Por conseguinte, a
inexistência do Um faz com que tenhamos uma espécie de ‘nebulosa’, de fragmentação
imaginária, de fenômenos de ilimitação. O imaginário não deixa de cumprir aí uma
função posto que, “aparentemente, há algo, embora indeterminado”. Logo, “se o Uno
não é”, os Outros são uma pluralidade indiferenciada. Impossível não evocar aqui a
heteronímia do poeta português, Fernando Pessoa, na sua multiplicidade infinita, tantas
vezes denominada exatamente de “nebulosa pessoana”.
Nona hipótese: Se o Uno não é, nada é
Examina-se com a nona hipótese, “Se o Uno não é em absoluto, que se segue
para os Outros?”, a conseqüência da inexistência do Uno para os Outros. Se o Uno não é
em absoluto “(...) os Outros não são nem parecerão uno nem múltiplos (...), pois se o
Uno não é, os Outros não são nem parecem nada. (...) Assim, pois, (...) se o Uno não é,
nada é (...)” (166 a/b/c).
Assim, se não existe em absoluto o Uno, destrói-se a ordem do ser e, portanto,
do real. Se, com a hipótese anterior, havíamos terminado “na ilimitação como resíduo
aparencial”, isto é, “aparentemente há algo, mas puramente indeterminado”, o que se
supõe agora é de tal alcance que “implica a destruição da ordem do real: se o Uno não é
em absoluto, nada pode ser ente, porque negar radicalmente a unidade significa negar
17
toda entidade possível” (ECHANDIA,1987, p. 37). Nesse sentido, a aporética sobre o
Uno termina por evidenciar o Uno como elemento fundador de toda realidade12.
4- O des-ser de Parmênides13
Nosso ponto de partida foi a tese do pré-socrático Parmênides, segundo a qual o
Uno é eterno, imóvel, finito, pleno, indivisível, etc.; tese que esbarrara no ‘movimento’
como algo impensável, uma vez que afirmá-lo levava à absurda existência do não-ser.
Posto isso, podemos dizer que no diálogo Parmênides Platão não apenas pensa contra
ele mesmo, mas também que ele faz com que Parmênides pense contra Parmênides.
Em um dos outros diálogos que compõe o grupo dos diálogos de maturidade, o
Sofista, Platão se disfarçará de Estrangeiro de Eléia, de eleata, e apresentará o
“parricídio de Parmênides”, no entanto fica evidente que tal “reviravolta radical no
monismo eleático” já está indicada desde o diálogo Parmênides. Ela se introduz com a
distinção entre os dois modos de ‘não-ser’ formulados nas hipóteses VI e VII. Para
Echandia (1987, p. 35-37), o assim denominado ‘parricídio’ concerne exatamente a uma
distinção entre os dois sentidos do não-ser. Diz ele:
(a) se entendemos o não-ser como contraditório do ser, isto é, como negação do
ser, ele não pode existir, porque não pode existir o que é negação do ser. “Se o Uno não
é, carece de determinação” (VII hipótese) e leva a uma negatividade absoluta, indistinta,
fora do tempo, incognoscível, indizível. Ao afirmar uma espécie de positividade
absoluta (“o que é, é – e não pode não-ser”), Parmênides parece evitar esse não-ser que
não é em absoluto;
12
Pode-se construir as seguintes antíteses:
VI: Se o Uno não é, que se segue? → Há um que não.
(Antitética com a II: Se o Uno é →Há um)
VII: Se o Uno não é, carece de determinação→ Negatividade absoluta.
(Antitética com a I: Se o Uno é Uno→Inteireza, positividade absoluta)
VIII: Se o Uno não é, que serão os Outros? → Há massa/pluralidade indeterminada)
(Antitética com a IV: Se o Uno é, que são os Outros? → Há outro/pluralidade indeterminada)
IX: Se o Uno não é em absoluto, que se segue para os Outros? → Outro se torna nada.
(Antitética com a V: Se o Uno é Uno, que se segue negativamente para os Outros? → Outro
incognoscível).
13
Com o “des-ser” estou me valendo de uma expressão usada por Alain Badiou (1991, p. 150) através da
qual, pelo que tudo indica, ele se refere a Lacan na “Proposição de 09 de outubro de 1967 sobre o
psicanalista da Escola” (LACAN, 2003. p. 259).
18
(b) se entendemos o ‘não-ser’ não como ‘contrário’ mas como ‘diverso’ do ser, o
não-ser pode existir porque possui sua natureza específica, aquela da alteridade. Nos
termos do Estrangeiro de Eléia, o não-ser é, se for entendido exatamente no sentido de
diverso. Logo, teríamos: ‘Há Um’ e ‘Há Um que não’, isto é, há um que é diverso. Ao
invés de se concluir por um não-ser inexistente (VII hipótese), conclui-se que ‘há um
que não’, chega-se a algo não existente, mas cognoscível, pensável (VI hipótese).
A propósito deste “Há um que não”, desse diverso, pode-se afirmar que “(...)
todo logos contém sempre um momento de alteridade, pelo que há uma verdade da
negação tanto como da afirmação, quer dizer, um ‘ser’ do ‘não-ser’” (ECHANDIA,
1987, p. 35). Tal afirmação se converterá em uma peça chave do platonismo. Porque o
pré-socrático Parmênides não consegue chegar a ela? Ao que parece, comenta Echandia,
ele não o consegue por não distinguir entre os dois sentidos do ‘não-ser’. Ao reduzir a
negação à total ausência de ser, à nada, ele a torna impensável, incognoscível e,
do puro vazio (oco, insubstancialidade), desse não-ser não se poderia, pois, pensar nem dizer
nada em absoluto. (...) É impossível predicar de ‘algo’ o absoluto não-ser, porque tal ‘não-ser’ é
um alocução que, embora articulável, em realidade não expressa nada, carece inteiramente de
sentido. Portanto, a negação pura e simples não exige um termo de referência, um sujeito, já que
tomada em si mesma não é em rigor um predicado: é um mero flatus vocis, a máscara gramatical
de um sem-sentido (ECHANDIA, 1987, p. 36).
Lacan nos leva a perceber que há no Parmênides de Platão um estilo cômico,
jocoso, que se manifestaria exatamente nesse pensar contra si mesmo. Só mesmo assim
torna-se possível construir a ficção de um eleata que suporta o seu próprio des-ser!
Referências Bibliográficas
BADIOU, A. (1991) “Lacan et Platon: le mathème est-il une idée? ”, in Lacan avec les
philosophes, Paris:Albin Michel, p.135-154.
ECHANDIA, G. R. De (1987) “Prólogo”, in PLATÃO Parmênides. Madrid: Alianza
Editorial.
FERRATER MORA, J. (1993) Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes.
FREUD, S. (1925/1976) “A negativa” in ESB., vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago.
LACAN, J (2003) “Proposição de 09 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da
Escola”, in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
19
_________. (1972) O Seminário, livro 19: ...ou pior. Inédito.
MILLER, J.-A. (1998) Los signos del goce. Barcelona: Paidós.
PESSANHA, J. A. M. (1983) “Platão, vida e obra”, in Platão. São Paulo: Abril Cultural
(Col. Os Pensadores).
PLATÃO (1987) Parmênides. Madrid: Alianza Editorial.
REALE, G. (1992) História da Filosofia Antiga, vols. II e V. São Paulo: Edições
Loyola.
Recebido em 15/06/08
Aprovado em 27/07/08
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Um Platão lacaniano