REVISTA ÂMBITO JURÍDICO ®
O horizonte imposs?l como mecanismo de pacifica? social.
A ilha está esperando por você. O que nós esperamos acontecer de diferente, de surpreendente para que suportemos um dia a dia controlado. A
promessa de ganhar na loteria, de mudar radicalmente de vida, de realizar o sonho impossível é fundamental para que continuemos vivendo? Uma
sociedade fundada no consumo e na competição, sem mobilidade social, só é possível porque existe a promessa de mobilidade social. Uma
sociedade fundada no consumo e na competição, no hedonismo e no materialismo, só é possível por meio do exemplo dos que realizam a promessa
da ascensão social e econômica. Estes irão dizer na televisão para todos ouvirem: olha como somos felizes! Olhem nossas casas, nossos carros,
nossos sorrisos. Vocês também podem ter isto. Vocês podem conquistar a ilha. E todos os jornais e revistas mostrarão seu sucesso. Os programas
de televisão irão entrevista-los e dirão: olha como somos livres. Você também pode conquistar esta felicidade.
A espera da mudança pode tornar suportável a exclusão. A espera pode ser pela loteria, pelo paraíso, pelo reconhecimento, pelo arrebatamento, ou
por qualquer outra coisa que signifique mudança. Mudar porque? Para que? Não é tanto a mudança o fundamental e sim a crença na possibilidade
de mudança, mesmo que esta não exista. O importante não é ser livre mas acreditar que se é livre.
O socialismo real foi capaz de socializar os bens materiais, o atendimento médico, o emprego, a moradia, o acesso à educação, mas não soube
socializar o sonho, a possibilidade de mudança ou a crença na possibilidade da mudança. O capitalismo por sua vez concentrou e concentra cada
vez mais a riqueza mas promete a mudança, cria desejos artificiais, inventa demandas, desperta o desejo pelo consumo e oferece o bem a ser
consumido realizando desejos. O capitalismo foi capaz de socializar o desejo, a crença na liberdade como possibilidade de mudança de status social
e econômico, a crença na liberdade como satisfação de desejos. O capitalismo aposta no desejo, não como liberdade mas como escravidão dos
sentidos. O socialismo apostou na razão, na ética e esqueceu o desejo.
O socialismo real do século XX pode ter falhado ao não saber lidar com os desejos. O capitalismo foi capaz de tornar a escravidão do desejo
permanente em uma crença generalizada na liberdade. O desejo passou a chamar-se liberdade.
O filosofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek menciona que na Tchecoslováquia, na década de 1970, as pessoas tinham tudo para ser felizes.
Todos moravam, comiam, estudavam, tinham saúde. Tinham um responsável externo por todo mau funcionamento do sistema. O partido comunista
era responsável por tudo que saía errado. Ainda tinham a promessa de um paraíso do outro lado: a Europa ocidental e os EUA com sua promessa de
consumo, paraíso que podiam visitar de vez em quando. A felicidade pode estar no princípio do prazer mas o que nos põem em marcha é ir além do
principio do prazer. O mesmo que nos põem em marcha nos traz infelicidade. A insatisfação de sempre querer ir além de onde se está.[1]
Uma multidão se pôs em marcha, em direção ao outro lado. Em direção ao capitalismo. Em direção à ilha[2]. A promessa de algo diferente. De novas
realizações. Ao chegar ao outro lado encontraram uma multidão esperando algo diferente. Uma multidão continuava esperando a ilha e esta nova
multidão continuou esperando, mas agora, diferente do que tinham no mundo do socialismo real, alguns testemunhavam, alguns na multidão
usufruíam a ilha. Se a ilha era proibida no mundo do socialismo real, a ilha é a grande promessa do capitalismo real. O capitalismo real vive por
causa da ilha. É a promessa da ilha que faz o sistema funcionar, e é a crença da multidão de que um dia chegarão à ilha que permite fazer esta
multidão suportar a pressão.
O filme “A Ilha”[3] não fala de socialismo real. O filme se passa em um futuro onde as pessoas se tornaram proprietárias de seus genes. Onde a vida
é uma mercadoria para manter outra vida. A vida de alguns sustenta a vida de outros. Uns vivem enquanto outros têm a promessa de vida na loteria.
Ganhar na loteria significa possibilidade de liberdade. De vida fora do controle. O filme fala de nosso mundo em um mundo que não existe.
A promessa de ter acesso a uma ilha paradisíaca onde é possível viver longe do controle diário e da monotonia repetitiva do dia a dia é o fator que
permite as pessoas suportarem. Interessante lembrar a musica: “a gente não quer só comida...” É obvio que a gente não quer só comida, mas na
impossibilidade de oferecer inclusão prometem muito mais do que comida mesmo que tenhamos que esperar, esperar e esperar, muitas vezes sem
comida.
O filme fala de pessoas que existem para que outros possam viver mais. A ilha é para estas pessoas que existem para os outros e para as quais só
existe uma promessa: ser sorteado para a ilha. Como no nosso mundo, uma multidão existe para que outros vivam mais, consumam mais, sonhem
mais e até se escravizem mais na promessa do consumo. Como no nosso mundo alguns se tornam desnecessários. Nem a exploração do seu
trabalho, do seu corpo é mais necessária. Estes são os excluídos. Uma nova categoria social do século XXI é a dos excluídos. Estes cuja presença
se tornou um estorvo. Desnecessários até para serem explorados, escravizados, usados para qualquer outra finalidade.
Uma ficção bem realizada que nos permite pensar no valor da vida. A vida de uns e a vida de outros. Uma vida que vale outra vida e uma vida que
não vale sua própria. Vidas são deixadas à sua própria falta de sorte enquanto todo um aparato é criado para manter outra vida que possui recursos
para pagar. A vida tem a dimensão do dinheiro que pode comprar respeito, segurança e bem estar. É uma ficção que revela por meio do
estranhamento a condição humana na sociedade capitalista.
O que é um clone senão uma vida. O clone vale menos do que o clonado. O mundo contemporâneo é formado por algumas pessoas e uma multidão
de clonados cujas vidas não têm o mesmo valor.
Ao final do filme uma aposta no ser humano: a mulher diz ao homem que a ilha somos nós. A possibilidade de felicidade está na humanidade e a
possibilidade de libertação está na curiosidade, na dúvida.
Notas:
[1] Nas palavras de Zizek: “Este frágil equilíbrio foi perturbado; por quê? Pelo desejo, exatamente. O desejo era uma força que levava as pessoas a
avançar – e chegar a um sistema em que a vasta maioria era definitivamente menos feliz. ... resumindo, felicidade pertence ao princípio do prazer, e
o que a solapa é a insistência em um além do principio do prazer.” Os EUA são o exemplo da promessa de felicidade no consumo. Cada vez que se
conquista um bem outro já se mostra disponível, A felicidade está sempre no próximo bem a ser consumido. E o apelo ao constante ir além do
principio do prazer. ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real, Estado de Sitio, Boitempo editorial, São Paulo, 2003, Pág 78.
[2] Referencia ao filme “A Ilha” do diretor Michael Bay (The Island - 2005), Dream Works Pictures.
[3] Filme “A Ilha” do diretor Michael Bay (The Island - 2005), Dream Works Pictures.
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