REPRODUÇÃO
Leitura
QUATRO SOLDADOS
Romance histórico
em reinvenção
1
1 BATALHAS
No imaginário
gaúcho está a luta
territorial, retratada
no filme Anahy de
las missiones e em
Quatro soldados
Escritor gaúcho Samir Machado apropria-se do gênero para
construir narrativa de aventura em que a ironia e o pastiche
sedimentam argumento em torno de disputas territoriais
TEXTO Priscilla Campos
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Leitura
Entre os séculos 18 e 19, Portugal,
para controlar seus súditos, administrava
a entrada de livros no Brasil, através de
censores. Na época, surgiram práticas
destinadas ao contrabando do produto,
que envolviam livreiros e comerciantes,
além de formas alternativas para a
distribuição das publicações. Diante de
um cenário intelectual limitado, três
jovens – Domingos José Gonçalves de
Magalhães, Manuel Araújo Porto Alegre
e João Manuel Pereira – canalizaram
a preocupação em formar leitores na
colônia fundando o periódico O Gabinete
de Leitura, Serões das Famílias Brazileiras,
Jornal Para Todas as Classes, Sexos e Idades,
publicado pela primeira vez na Corte
do Rio de Janeiro, em 1837. Com um
detalhe: quase todos os textos da gazeta
eram ficcionais.
A ligação entre história e literatura
parecia meio esquecida pelos escritores
contemporâneos brasileiros até o
lançamento de Quatro soldados, segundo
livro do gaúcho Samir Machado de
Machado. Não é possível sair incólume
do romance, após abri-lo: através de
ilustrações, diagramação e linguagem
textual que remetem ao final do século
18, o leitor é levado aos primeiros
parágrafos, que surpreendem pela
segurança do narrador. A sensação é
de empatia ao ler trechos como: “Uma
vez que cabe a mim, teu narrador, a
obrigação de narrar, e a ti, meu leitor,
a de ler – e assim te apraz –, faz-se
mister, por questões de cortesia, que nos
apresente. Porém, não sendo possível
que eu te conheça, não há sentido que
conheças a mim, posto que cá eu ficaria
em posição de desvantagem contigo”.
A partir daí, a disputa territorial
entre a Colônia do Sacramento (hoje,
pertencente ao Uruguai) e a Vila de
Laguna (Santa Catarina) se conecta com
as histórias de quatro homens das armas
que estão em constante movimento,
tanto emocional quanto geográfico.
Samir consegue unir ação, ficção
científica, terror e suspense, trazendo ao
leitor uma narrativa que não deixa espaço
para classificações engessadas. De acordo
com Samir, a vertente histórica é apenas
uma das que sustentam o romance,
cheio de inquietações e referências.
Entrevista
SAMIR MACHADO
“A LINGUAGEM DO
LIVRO É MAIS UM
PASTICHE QUE UMA
RECONSTRUÇÃO”
Samir Machado de Machado
nasceu em Porto Alegre, em 1981.
Além de escrever, trabalha como
designer editoral e editor da Não
Editora. No tempo livre, o gaúcho
organiza o Sobrecapas, espaço em
que analisa e armazena capas de
livros diversos. Entre as suas obras,
estão o romance O professor de botânica
e a série Ficção de polpa. No momento,
Samir trabalha em novo romance,
ambientado no mesmo período
histórico de Quatro soldados.
CONTINENTE A temática de aventura com
alusões ao heroísmo é pouco explorada hoje
na literatura brasileira e você a desenvolveu
com propriedade e segurança narrativa.
Como foi esse processo?
SAMIR MACHADO Os personagens
desse livro eu carrego comigo já
faz bastante tempo. A ideia de uma
história de “aventura”, do modo
como eu vejo, é de um enredo
sobre a relação do personagem
com o espaço que ele atravessa,
tanto geográfico quanto emocional.
Cheguei a pensar que escreveria
com eles um longo romance de
fantasia ou ficção científica, mas
depois me ocorreu que seria
mais prático ambientar essa
narrativa em um espaço de tempo
histórico, do que criar do zero
um mundo novo. E, para o tipo
de história que eu queria contar,
o período da metade do século
18 era o ideal: o Brasil Colônia,
que é explorado e mantido à
míngua por Portugal, mas vivendo
momentos definidores de algumas
identidades regionais e nacionais.
CONTINENTE Quanto tempo
você levou e como foi realizado o
estudo da época ambientada no
livro? O quanto essa pesquisa histórica
influenciou na criação das narrativas?
SAMIR MACHADO Eu trabalhei oito
anos no livro, o que não significa só
pesquisa histórica e literária, mas
oito anos para descobrir qual voz eu
queria dar aos personagens, qual seria
minha própria voz, como autor. Os
personagens tinham características
específicas que eu havia definido
antes mesmo de começar a pesquisar,
e para isso foi preciso encontrar uma
forma realista de adaptar seus perfis à
realidade daquela época. Um livrinho
obscuro, publicado pela Biblioteca
do Exército, em 1950, intitulado Os
dragões de Rio Pardo, me ajudou muito
na criação do cenário. Uma coisa que
me interessa é o quanto das “certezas”
daquela época são absolutamente
ridículas hoje em dia, mas eram dadas
como certas, e, portanto, definiam
a visão que se tinha da realidade.
CONTINENTE Quatro soldados apresenta
uma linguagem narrativa que mescla expressões
e linguajar do século 18 com uma prosa coloquial,
presente nas publicações contemporâneas. Além
disso, você utilizou uma grafia diferente em
alguns trechos, na qual a escrita do S chama
bastante atenção. Como se deu tal construção?
SAMIR MACHADO A linguagem
do livro é mais um pastiche do que
uma reconstrução da linguagem da
época. Minha inspiração maior foram,
especificamente, as traduções feitas
pelo Paulo Henriques Britto para o
Mason e Dixon, do Thomas Phynchon, e
para o Viagens de Gulliver, lançado pela
Companhia das Letras. Não é, de fato,
uma linguagem antiga, apenas utilizei
palavras que fossem contemporâneas aos
meus personagens, evitando aquelas que
só tivessem entrado na língua portuguesa
depois do século 18. Ou seja: trabalhei
com o Houaiss aberto de um lado e o site
Brasiliana da USP no outro, no qual se
mantêm scans do dicionário de Raphael
Bluteau, de 1728, e de Antonio de Moraes
Silva, de 1789. Esses dois últimos me
possibilitaram checar a data de origem
das palavras e a grafia. Já a escrita
diferente é uma imitação do português
setecentista, respeitando a ortografia, a
gramática e a tipografia da época (o que
inclui o uso do S longo, já em desuso
hoje em dia, que se parece demais com
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DIVULGAÇÃO
um F minúsculo). Gosto desse tipo de
minúcia, principalmente, porque serve
para lembrar que não somente o mundo
de então era muito diferente do nosso,
mas a própria forma de expressá-lo e
de se expressar era uma coisa que, vista
hoje em dia, parece algo alienígena.
CONTINENTE Ao final da leitura,
fica claro que Quatro soldados é,
também, uma ode à literatura. Quais
as suas referências pessoais (literárias,
cinematográficas) estão presentes na obra?
SAMIR MACHADO Até mais que a
literatura, o livro para mim é sobre
o modo como a ficção nos ajuda e
nos ensina a definir nossas próprias
identidades, bem como o modo
que vemos e nos relacionamos
com o mundo à nossa volta. Alguns
personagens leem muito, outros leem
pouco, alguns nem leem, mas essa
relação (ou não relação) com a leitura,
com o ficcional, é o que define,
amplia ou limita a percepção deles,
conforme a personalidade de cada
um. Tenho uma relação mais cerebral
do que emocional, com Pynchon;
minha experiência de leitura com
ele foi, sobretudo, um mindfuck em
termos de possibilidades de forma
e experimentação. Quando o li, já
estava na metade do processo de
escrever o livro. O ponto de partida
foi, na verdade, o Baudolino do
Umberto Eco, seguido de algumas
leituras de Borges, intercaladas com
Michael Chabon, o Reparação do
McEwan, Moby Dick; os quadrinhos
do Alan Moore, as peças do Peter
Shaffer, os livros de Harry Potter,
Cormac McCarthy, Bernard
Cornwell, Érico Veríssimo. Aliás,
uma das principais referências (e
um livro que ninguém mais lê hoje
em dia), que me serviu de modelo
tanto na estrutura quanto no tom
geral da terceira parte do livro, foi
o Bambi de Felix Salten, cruzando
também com alguns games. No que
diz respeito ao cinema, há pelo
menos duas passagens que piscam
o olho para Os pássaros do Hitckcock
e para Jurassic Park do Spielberg.
“Eu queria escrever um romance de
aventuras. Uma história que provocasse,
continuamente, o que os americanos
chamam de sense of wonder: aquela quebra
de paradigma e ‘maravilhamento’ que
se relaciona com a descoberta de algo,
e que me parece tão intrínseco à uma
história de aventura, mas também se
encaixava com o período retratado. O
século 18 é o do Iluminismo, de uma
quebra de pensamento radical, que
resultaria numa mudança profunda no
modo de vermos a sociedade”, explica.
De fato, a classificação de um
romance como histórico não está
necessariamente definida por restrições
ou limites. Segundo o escritor e professor
da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Luís Augusto Fischer, o romance
histórico não é uma especialidade
brasileira, em sentido estrito.
“Porém, em sentido amplo, há muita
matéria histórica no grande romance
brasileiro, como acontece em casos
estratégicos da obra de Machado de
Assis”, pontua. De acordo com Fischer,
existe uma dificuldade dos escritores
contemporâneos em lidar com as
características do pós-modernismo e, ao
mesmo tempo, estabelecer uma conexão
com a tradição do romance histórico,
mecanismo utilizado com mestria na
narrativa de Quatro soldados.
Outro ponto levantado pelo professor
é a constante referência, na literatura,
aos conflitos políticos nas fronteiras
geográficas do Sul do país. “Em certo
momento, o Rio Grande do Sul desejou
ser um país à parte, numa guerra que
durou 10 anos, na qual o Brasil venceu
a unidade do território. Essa perda
gerou um sentimento, uma consciência
e uma fantasia de diferença, de
singularidade, que até hoje é sentida,
às vezes de forma caricata, às vezes
de modo consistente. O romance
histórico gaúcho se liga diretamente
a esse complexo, essa relação difícil
entre o sul e o centro do Brasil.”
Com uma narrativa divida em quatro
capítulos, que poderiam ser facilmente
desenvolvidas separadamente, Quatro
soldados traz imagens carregadas de
eventos grandiosos. Um exemplo disso
é a cena em que dois personagens
lutam contra um monstro macabro em
um tipo de caverna subterrânea. Nesse
ponto, Samir consegue surpreender
novamente o leitor com suas habilidades
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FOTOS: REPRODUÇÃO
Leitura
Revista
LITERATURA CURITIBANA
2
2 GRAVURA
Destaca-se,
também, no livro, o
bom projeto gráfico
como roteirista de aventuras,
acrescentando ironia a
uma certa elegância textual
insolente: “E agora, leitor,
rufem tambores e trovões
e cantem os corais, que
se fosse dito que tal gana
percorreu o braço de Licurgo
até converter-se num tiro de
pistola perfeitamente preciso,
a atravessar a garganta do
animal e sair pela nuca,
fazendo a besta-fera tombar
morta no mesmo instante e
caindo a cabeça para um lado
e o Andaluz são e salvo para
o outro, há de se concordar
que tal resultado, ainda que
bastante realista, não condiz
nem com a tua expectativa
tampouco com a minha”.
No início, Quatro soldados
traz como epígrafe uma
citação de Mason e Dixon, de
Thomas Pynchon. Nela, o
escritor norte-americano
afirma que a literatura é uma
“excitação mental das mais
mesquinhas e ordinárias”. Ao
final das 317 páginas, o que
fica para o leitor é a vontade
de, com muito afinco,
continuar sua busca literária
por essa sedutora “excitação
mental”. A escrita de Samir
oferece uma possibilidade
de inquietude intelectual das
mais solidárias e honestas.
Barista (apontado como o melhor do Brasil!) e escritor, Otávio
Linhares está à frente desta empreitada. Trata-se de Jandique,
revista trimestral que pretende difundir a produção curitibana
entre os leitores de todo o país. A primeira edição (a da capa acima)
saiu em janeiro de 2013 e a quinta está em circulação agora (www.
encrencaliteratura.com.br/revista-jandique). O conteúdo da
publicação são ficções, artigos, resenhas e entrevistas, cada uma
ilustrada por um artista convidado. O seu escopo de atuação deve
atravessar, em breve, os limites do território paranaense. Além
da Jandique, o selo Encrenca, de literatura de invenção, publica
inéditos. Desde setembro, foram lançados três títulos, um deles do
próprio Linhares, Pancrário, de breves narrativas.
Comidas
GASTRONOMIA “DESCALÇA”
Quatro soldados
SAMIR MACHADO
Não Editora
Romance histórico tem narrativa
centrada nas desventuras de
personagens envolvidos com
guerra territorial.
Numa analogia à expressão “literatura de bermudas”, para designar
a crônica, utilizamos aqui “gastronomia descalça”, para definir o
conteúdo deste Guia da gastronomia popular alagoana, de Nide
Lins, que acaba de sair pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos, de
Alagoas. O que encontramos nele é uma listagem de bares, botecos
e localidades tradicionais da culinária popular do estado. Assim
como nos parecem os quitutes, o texto da autora é saboroso e
simples, despido de quaisquer ostentações a que a gastronomia
tem sucumbido neste tempo de afetação à mesa. Nide conta a
história dos lugares, conversa com seus proprietários - gente que
está há muito tempo no ramo - e ainda dá dicas de preparo de
algumas iguarias. Destaque para as quituteiras de Riacho Doce.
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Quatro soldados