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Negra Efigênia:
cultura e memória em uma narrativa negra e feminina
Cristiane Côrtes*
Qual a diferença que existe entre nós senão a cor?
As nossas vidas se originam da mesma forma,
e a morte do branco não difere da agonia do preto. O verme que
nos devora também rói o branco. Até nisso somos iguais.
Anajá Caetano
À margem da literatura canonizada está Anajá Caetano, uma autodidata que
nasceu no interior de Minas Gerais e publicou sua primeira obra: Negra Efigênia,
paixão do senhor branco em São Paulo. Pouco se conhece sobre essa autora, mas
a sensibilidade e lirismo que percorrem sua obra não permitiram que ela caísse no
total esquecimento.
O romance nos comunica, logo no título, os dois pontos de vista defendidos
na obra. O primeiro e o mais evidente, a afro-descendência, tem como foco o dia-adia dos escravos; suas lutas, sentimentos e pensamentos acerca da situação de
labuta e sofrimento que passaram desde o momento em que foram arrancados de
suas terras até as surras e humilhações vividas nas fazendas do território brasileiro.
O segundo, não menos importante, diz respeito ao gênero feminino, haja vista que a
protagonista da história é uma mulher e, ao lado dela, várias outras são
fundamentais para a engrenagem desse romance que aponta as mazelas da
sociedade escravista.
O romance, publicado em 1966, trata da formação da cidade de São
Sebastião do Paraíso, nas Minas Gerais, e do empenho de Padre Thomás de
Affonso e Silva, figura fundamental para o processo abolicionista da região. Próximo
do romance histórico, o livro se empenha em retratar a rotina dos escravos e de
seus senhores, de 1821 até os dias da abolição, sob uma visão que nasce na
senzala e deságua na casa grande.
A história se centraliza em Efigênia, uma negra que passa de escrava a sinhá
sem perder suas raízes africanas. Embora o romance tenha como chave para o
abolicionismo a figura de Padre Thomás, as festas pagãs africanas marcam
presença lembrando a origem do enunciador da narrativa. O sincretismo que
acompanha a história demonstra que a proposta do romance não é uma inversão de
valores, mas sim a valorização e o respeito pelas diferenças. Efigênia vivia com sua
mãe na Fazenda do Tronco em péssimas condições. Alimentava uma paixão por
Paulinho, filho do coronel e de dona Sinhá, que nunca confidenciara a ninguém,
embora sentisse que havia um sentimento mútuo. Era perseguida por dona Sinhá,
mulher dissimulada, promíscua e má. Esse sofrimento termina quando Efigênia é
“raptada” por Antônio Bento, proprietário da fazenda Sol Nascente e grande
admirador da protagonista. Ela se casa com o fazendeiro, mas esse vem a morrer
seis meses após a união. A negra se vê obrigada a abandonar o lar, mas refaz sua
vida e se encontra novamente com Paulinho. Ao lado de seu verdadeiro amor, ela
luta pela libertação dos negros e festeja a abolição.
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A obra possui pontos cruciais para a narrativa afro-descendente. As figuras de
Efigênia e de Mãe Benedita, surgem para quebrar o paradigma de que a mulher
negra se faz presente somente na alcova dos senhores. A narrativa coloca a negra
sob uma perspectiva maternal, solidária e bela; diferente de erótica. Ela desmistifica
o estereótipo da “negrinha assanhada” que leva os senhores brancos à loucura. O
envolvimento de Efigênia com o dono da fazenda do Paraíso ocorre por outro viés,
um processo, no que diz respeito à conquista, marcado por um tratamento distante
da excessiva erotização visível em tantos escritores da literatura brasileira.
A lealdade à África em função da preservação de sua memória é outro
aspecto significativo na narrativa. A trama apresenta os escravos como defensores
de suas tradições e, por isso, muitos são injustamente acusados, sacrificados no
tronco, vivem experiências amargas e deixam de confiar nos brancos, adquirindo
sentimentos de revolta e ressentimento. Por outro lado, o narrador ressalta que os
africanos eram absolutamente indispensáveis a seus senhores. O texto transita do
particular para o geral e insere o indivíduo negro, aí incluída a protagonista, como
parte de um complexo sistema de relações.
A religiosidade é um dos temas mais abordados na trama. Em maior ou
menor grau ela se faz sempre presente. A autora demonstra uma preocupação em
relatar a importância da religião como forma de preservar a cultura africana. O
batizado da filha de Efigênia com Antônio Bento ilustra essa afirmativa. A cerimônia
sincrética é descrita com detalhes em um longo parágrafo e a colocação de padre
Thomás fecha a cena demonstrando respeito e reconhecimento inexistente em
outras passagens:
Se considerarmos alguns aspectos da liturgia africana, somos obrigados a
reconhecer que em suas práticas os crentes recebem uma carga emocional
muito mais intensa do que entre nós, o que de certo modo é muito mais
propício à espiritualização e fortalecimento da fé. (CAETANO: 1966: 294)
Ao analisarmos os aspectos culturais do romance, percebemos que Anajá
Caetano se divide entre o cristianismo e os cultos africanos, mas isso resulta em
uma narrativa que trabalha o sincretismo como forma de reconhecimento da
afrodescendência. A figura de padre Thomás vai amadurecendo no decorrer da
narrativa. A princípio, ele considera os negros seres ignorantes religiosamente, se
alia aos fazendeiros na tentativa de libertar os escravos pensando apenas no lucro
que isto traria para os senhores. Essa postura tendenciosa vai se atenuando e, à
medida que vai convivendo com Efigênia e mãe Benedita, suas impressões acerca
dos africanos mudam significativamente.
A singularidade afro-brasileira negada por tantos escritores é abordada no
livro de Anajá sem o intuito de separar outras etnias e, muito menos, de pregar uma
falsa ideologia igualitária. No âmbito cultural, o enunciador do romance requer seu
espaço preservando suas raízes ao lado do diferente e, não, contra ele. O romance
inscreve várias configurações acerca da identidade negra brasileira.
Além da cultura, a autora destaca a importância que os escravos tinham para
seus senhores e para a formação da economia do país. Embora essa afirmação não
esteja declarada explicitamente, pouco a pouco a narrativa vai-nos mostrando que a
peça fundamental para a manutenção das fazendas e de seus senhores é o
escravo. Esse conceito transcende o de trabalho, chegando ao aspecto psicológico
da relação estabelecida entre os dois pólos do sistema. A autora coloca o trabalho
escravo com nobreza e o valoriza, apontando a força do negro como peça
fundamental para construção e enriquecimento do país. Essa visão é colocada de
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forma explícita em diversos pontos da narrativa, no capitulo V, por exemplo, com a
descrição do trabalho escravo nas fazendas de Minas Gerais:
Aí o negro trabalhava de sol a sol. Era dura a vida. Não havia repouso
naquela luta contra a natureza hostil. Para dominá-la, o negro foi o agente
decisivo por ser insubstituível pela argúcia instintiva no trato com a
rusticidade do ambiente. Nem por isso, os senhores reconheciam o seu valor
na expansão da economia da região. “Trabalha, negro! Trabalha!”
(CAETANO: 1966, 53)
A trama apresenta um recurso muito interessante no que tange à questão
abolicionista: naturalmente, faz o leitor ir percebendo que as fazendas com escravos
alforriados eram mais produtivas que as outras. Isso nos mostra o empenho da
autora em apontar o lugar verdadeiro do negro na história.
O romance se empenha em desconstruir certas verdades incutidas pela
sociedade senhorial temerosa da perda das vantagens que esse título carrega. A
visão do negro “feio” e “burro” não tem lugar no romance. O que nos é apresentado
são figuras sábias e solidárias, que trabalharam com primazia para a construção
desta terra. Ao abordar a relação dos senhores de terras com os seus escravos,
Anajá dá voz ao seu coletivo comum que grita por justiça e nos mostra, à moda
machadiana, como são dependentes do sistema escravocrata os covardes senhores
e as promíscuas senhoras que a historiografia oficial insiste em retratar sob o véu da
boa e tradicional família patriarcal brasileira.
O casamento de Efigênia e Paulo, realizado em 13 de maio, possui uma
simbologia muito especial. Ele representa a união harmoniosa de duas raças que
devem ser respeitadas. O ritual do batizado da filha de Efigênia se repete com o
casamento, o sincretismo reina na cidade que é invadida pelos congados e terços,
Ave-Marias e orikis numa festa que durou dias de alegria.
O processo de reconstrução da memória negra feita por um enunciador que
se afirma negro é fundamental para a literatura brasileira, uma vez que ela nos traz
informações sonegadas pela história pautada no mito da democracia racial.
A visão do ébano, da margem, do diferente não dá lugar ao negro que não
pensa e age instintivamente. Esse pontificou nos romances patriarcais de formação
da era oitocentista escritos para as senhoras e senhores que precisavam de algo
que os fizesse acreditar que eram dignos dos títulos e terras conquistadas por meios
que a historia insiste em não relembrar. A visão do outro lado conjuga o individual
com o comunitário para fazer ecoar a nobreza do sentimento negro no grito, no
canto e nas tradições africanas respeitosamente consideradas e destacadas por
Anajá Caetano. A escritora mostrou que é preciso conviver, se apaixonar e se
integrar a esse lado de lá, tão negado e subjugado, para que a vida seja como uma
festa conga, uma “Família Lugar” em que todos poderão festejar suas tradições e
serem respeitados por suas diferenças.
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Referências:
ALVES, Miriam. “Axé Ogum”. In Quilombhoje (org.) Reflexões sobre literatura afrobrasileira. São Paulo: Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade
Negra, 1985.
BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, s/d.
CAETANO, Anajá. Negra Efigênia, paixão do senhor branco. São Paulo:
Edicel,1966.
GOMES, Heloísa Toller. O discurso literário. In As marcas da escravidão: o negro e
o discurso oitocentista no Brasil e nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ; EDUERJ, 1994.
IANNI, Octávio. Literatura e Consciência. In Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros da USP, nº 28. São Paulo: USP 1988.
PEREIRA, Edimilson de Almeida, Ricardo Aleixo. A roda do mundo. Belo Horizonte:
Mazza, 1996.
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Cristiane Côrtes é Professora do Centro Federal Tecnológico de Minas Gerais – CEFET-MG,
campus IX. Especialista em Educação e Africanidades pela UnB, Mestre em Teoria da Literatura e
doutoranda em Literatura Comparada pela UFMG. Desenvolve pesquisas e publicações sobre escrita
de autoria feminina e negra. Trabalha com projetos voltados para Literatura, alteridade e áreas afins.
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