UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
LICENCIATURA PLENA EM LETRAS
HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
A CONCEPÇÃO DE MORTE EM TRÊS TEXTOS DE MANUEL BANDEIRA: UMA
LEITURA SEMIÓTICA
FLAVIANO BATISTA DO NASCIMENTO
JOÃO PESSOA
2013
FLAVIANO BATISTA DO NASCIMENTO
A CONCEPÇÃO DE MORTE EM TRÊS TEXTOS DE MANUEL BANDEIRA: UMA
LEITURA SEMIÓTICA
Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em
Letras da Universidade Federal da Paraíba como
requisito para obtenção do grau de Licenciado em
Letras, habilitação em Língua Portuguesa.
Orientador
Prof. ª Drª. Maria de Fátima Barbosa de M. Batista.,
JOÃO PESSOA
2013
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal da Paraíba.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Nascimento, Flaviano Batista do.
A concepção da morte em três textos de Manuel Bandeira: uma leitura
semiótica. / Flaviano Batista do Nascimento. - João Pessoa, 2013.
37f.
Monografia (Graduação em Letras) – Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista
1. Teoria Semiótica. 2. Conceito da Morte. 3. Bandeira, Manuel –
Textos. I. Título.
BSE-CCHLA
CDU 81’22
FLAVIANO BATISTA DO NASCIMENTO
A CONCEPÇÃO DE MORTE EM TRÊS TEXTOS DE MANUEL BANDEIRA: UMA
LEITURA SEMIÓTICA
Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura
em Letras da Universidade Federal da Paraíba
como requisito para obtenção do grau de
Licenciado em Letras, habilitação em Língua
Portuguesa.
Data de aprovação: 09 de março de 2013
Banca examinadora
Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista, DLCV, UFPB.
Orientadora
_________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Carmen Sevilha Gonçalves dos Santos, CE, UFPB
Examinador
Prof.º Dr.º Hermano de França Rodrigues, DLCV, UFPB
Examinador
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, Nosso Criador Supremo, que me deu o discernimento para poder
vencer na vida.
À minha querida mãe, Maria das Dores do Nascimento, por estar comigo nos
momentos mais difíceis da minha vida, quando fiquei cego em 1999.
A meu grande amigo Thiago da Silva Almeida, que sempre me ajudou em formações
de trabalhos, nas viagens para congressos, no período da iniciação científica.
AGRADECIMENTO ESPECIAL
À minha orientadora Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista, que me
deu a oportunidade de participar do projeto de iniciaçãocientífica, e ainda mais, confiou no
meu potencial, incluindo-me, verdadeiramente, no espaço acadêmico, procurando integrar
“sem passar a mãona cabeça”, como fazem muitas pessoas em nosso meio.
Cego é aquele que não consegue enxergar além do olhar.
“Ora, o último inimigo que há de ser aniquilado é a morte” (1ª Coríntios, XV, 26).
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO....................................................................................................... 08
2. TEORIA SEMIÓTICA............................................................................................ 10
3. A REPRESENTAÇAO DA MORTE NA
HUMANIDADE......................................................................................................14
3.1 A morte na Antiguidade.................................................................................... 14
3.2 Morte na Era Medieval...................................................................................... 16
3.3 A morte na Modernidade .................................................................................. 16
3.4 A morte na Contemporaneidade........................................................................ 18
4 ANÁLISE SEMIOTICA DA DISCURSIVIZAÇÂO DO TEXTO
O HOMEM E A MORTE......................................................................................... 21
5
ANÁLISE SEMIOTICA DA DISCURSIVIZAÇÃO DO TEXTO
OS QUEMARCAM RENDEZ-VOUS COM A MORTE................................................ 23
6 ANÁLISE SEMIÓTICA DA DISCURSIVIZAÇÃO
DO TEXTO PROFUNDAMENTE.......................................................................... 27
7 CONCLUSÕES....................................................................................................... 31
8 REFERÊNCIAS...................................................................................................... 32
9 ANEXOS................................................................................................................. 34
9.1 Anexo 1............................................................................................................. 34
9.2 Anexo 2............................................................................................................. 36
9.3 Anexo 3............................................................................................................. 38
8
1. INTRODUÇÃO
Neste trabalho monográfico, analisamos a temática da morte em três textos de Manuel
Bandeira, à luz da Semiótica Greimasiana, tendo a análise priorizado as estruturas discursivas.
Escolhemos como corpus, na extensa obra do autor, uma amostragem constituída dos textos:
Profundamente, extraído do livro Libertinagem (1930); Os que marcam rendez-vous com a
morte, do livro Crônicas da Província do Brasil (1937) e O homem e a morte, do livro Belo
Belo (1948).
A escolha do corpus se deu pelo fato de podermos aplicar a teoria semiótica à obra de
Bandeira que tem uma imensa fortuna crítica, porém não voltada para este tipo de abordagem.
Têm-se afirmado que muitas construções poéticas bandeirianas, especialmente
Profundamente, abordam o tema da morte, restringindo seu sentido macro, a uma ou outra
palavra exclusivamente que, para alguns, se sobressai, no desenrolar dos textos. Partimos,
então, dos seguintes questionamentos que, a nosso ver, direcionaram a pesquisa: seria
possível haver um texto extremamente polissêmico, que um único termo ou vocábulo especial
pudesse definir um todo discursivo? Ou, então, será que isto ocorre com os textos de Manuel
Bandeira que serão analisados neste trabalho?
Para a semiótica, verbal ou não verbal, as figuras são concretas e revestem os temas,
que por sua vez são abstratos. Portanto, no caso do poeta Bandeira, uma palavra solta apenas
não projeta um tema, porém este é projetado pelos encadeamentos figurativos que reiteram o
tema. Assim, a hipótese que levantamos é a de que o tema da morte, nos textos analisados, é
inferido através de várias figuras, que são muito relevantes nas construções bandeirianas.
O trabalho foi estruturado em três partes distintas. Na primeira, discutimos sobre a
teoria semiótica proposta por Greimas e os seus colaboradores da Escola Semiótica de Paris.
Consideramos questões como o conceito e os três níveis do percurso que a função semiótica
exerce ao partir do conteúdo até a expressão. Em seguida, fizemos um estudo sobre o conceito
de morte da Antiguidade até a Contemporaneidade. Por fim, elaboramos três capítulos sobre a
aplicação da semiótica à análise dos textos escolhidos com corpus.
Ao lado de uma bibliografia sobre a semiótica e sobre a temática da morte, utilizamos,
ainda, com auxílio crítico outras obras que nos ajudaram a desvendar os segredos do texto,
como: A bíblia, edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1995; BECKER, Dicionário de Símbolos.
9
São Paulo: Paulus, 1999 e CARR-GOMM, Dicionário de símbolos na arte: guia ilustrado da
pintura e da escultura ocidentais.Bauru: EDUSC, 2004.
10
2. TEORIA SEMIÓTICA
A semiótica é a ciência que estuda a significação. Esta consiste na relação de
dependência entre o conteúdo e a expressão no interior do signo. Possui também uma função
pragmática, isto é, o que o signo significa para o usuário e que ideologia sustenta. Greimas
pensou a significação como um percurso, constituído de três momentos, chamados: estruturas
fundamentais, estruturas narrativas e estruturas discursivas.
A estrutura fundamental, também chamada semântica profunda, constitui a primeira
etapa do percurso da significação e representa os conflitos no interior da narrativa. Ou como
define Diana Luz:
A estrutura elementar define- se, em primeiro lugar, corno a relação que se
estabelece entre dois termos- objetos -- um só termo não significa, devendo a relação
manifestar sua dupla natureza de conjunção e de disjunção. Tal estrutura necessita,
porém, ser precisada e interpretada por um modelo lógico que traduza bem suas
relações em oposições de contradição, contrariedade e complementaridade, e que a
torne operatória, no plano metodológico. (BARROS, 2002 p. 21)
A estrutura fundamental é representada, espacialmente, em forma de um octógono
semiótico, onde a partir de um termo chave, colocam-se as oposições, as implicações e os
contraditórios da forma seguinte:
11
As estruturas narrativas, também chamadas pelo nome singular de narrativização,
consistem na busca de um sujeito por seu objeto de valor. Compreendem dois momentos: a
actância e a modalização.
A actância é a sintaxe narrativa que consiste na relação do sujeito e um predicado do
ser (que representa a competência do sujeito para realizar algo) e do fazer (que é a ação do
sujeito em busca do seu valor). Os actantes são: o destinador e o antidestinador, o sujeito e o
antissujeito, o objeto de valor, o adjuvante e o oponente.
O Sujeito semiótico (S) é o actante central da narrativa. É aquele que possui um
Objeto de Valor (OV), isto é, o valor almejado pelo sujeito. Toda narrativa gira em torno do
par: sujeito e objeto de valor. O Oponente (OP) prejudica o sujeito, impedindo-o de alcançar o
objeto de valor e o Adjuvante (AJ) ajuda o sujeito a obter o valor. O Destinador (DOR)
destina o sujeito na obtenção do objeto de valor, que é, em vista disso, o Destinatário
(DÁRIO) da ação. O Antissujeito (AS) ou apresenta o mesmo valor do sujeito, ou um valor
contrário ao do sujeito. Antidestinador (ADOR) é o destinador do antissujeito
Costuma-se representar a estrutura actancial através de diagramas. O diagrama
seguinte representa o sintagma elementar da sintaxe narrativa, ou esquema narrativo básico.
O sujeito instaura-se na narrativa através dos objetos modais. A modalização, que
constitui a semântica da narrativa, acontece quando os predicados do ser e do fazer são
regidos por outro predicado, chamado modal. Este representa o querer ou o dever do sujeito,
que o instaura como tal, o fazer do sujeito, ou a sua performance em busca do valor, o saber
que o sujeito possui para agir, ou então, o poder atingido com a obtenção do valor. Eis as
modalidades:
Querer ser.
Saber ser.
Querer-fazer.
Saber fazer.
Dever-ser.
Poder-ser.
Dever-fazer.
Poder-fazer.
A discursivização, também chamada estruturas discursivas, transforma em discurso as
estruturas narrativas mediante a projeção dos dois sujeitos da enunciação, o enunciador e o
enunciatário. O primeiro realiza um fazer persuasivo, enquanto o segundo realiza um fazer
12
interpretativo. Sendo assim, das relações dialógicas ocorridas entre esses dois sujeitos, surgem
os enunciados - produto concreto da enunciação.
A sintaxe discursiva compreende as relações que o enunciador e o enunciatário
estabelecem entre si ou com o tempo e o espaço e os atores envolvidos no enunciado.
Portanto, existem três procedimentos de discursivização que passam pela percepção
dos sujeitos enunciador/enunciatário: a actorialização (atores e papéis temáticos envolvidos
no discurso), a temporalização (a constituição do tempo) e a espacialização (a constituição do
espaço).
Podem ser: de embreagem ou de aproximação no tempo ou no espaço com o
enunciatário; e de debreagem, ou de distanciamento com o enunciatário, no tempo e no
espaço.
Discutindo o papel temático do ator, Courtés (1979: 121), explica:
O papel é uma entidade figurativa animada, mas anónima e social; em
compensação, o ator, que é um indivíduo integrado que assume um ou vários
papéis.Isto significa dizer que umm único ator pode exercervários papéis temáticos.
Por exemplo: Pedro é o ator e exerce o papel de pescador, açougueiro, etc.
Na Semântica discursiva, aparecem os procedimentos de figurativização e
tematização. Neste nível do discurso, os elementos do nível narrativo ganham concretude. Os
temas são abstratos e nem sempre estão presentes no texto, mas são inferidos através das
figuras, que são de natureza concreta. Neste caso se poderia dizer que as figuras dão
materialidade aos temas. Sobre os procedimentos de figurativização e tematização. Conforme
aponta Courtés:
Como já notámos, os semas nucleares, constitutivos das figuras nucleares, reenviam
para
a
apreensão
exterior
do
mundo
(designada
sob
a
categoria
da
“exteroceptividade”) estes semas nucleares organizam-se então em figuras, dando
assim lugar a unidades de conteúdo estáveis, definidas pelo seu núcleo permanente,
cujas virtualidades se realizam diversamente segundo os contextos. (CORTÉS,
1979: 15)
13
Assim posto, figuras como: bola, campo, trave, torcedor, gritos, assobios, bombas,
jogador, gol, poder-se-iam definir os seguintes temas: futebol, comemoração, alegria, vitória,
etc.
14
3. A REPRESENTAÇÃO DA MORTE NA HUMANIDADE
3.1.
A morte na Antiguidade
A morte sempre serviu de elemento poético para escritores de todas as gerações.
Pessoas em todas as épocas, independentemente da classe social, procuraram desvendar seu
mistério. Este fato foi tão importante que surgiu um tipo de estudo científico sobre o assunto,
cujo nome é tanatologia. O enigma da morte, entretanto, prevalece intocado e impenetrável.
Sem dúvida, o que ficou de mais relevante foram às definições que nos legaram no decorrer
da história, através de poemas, romances, peças, gravuras, textos orais, mitos, etc.
As culturas antigas sempre se preocuparam com a figura da morte. Os hebreus, no
velho testamento, usavam-na como punição: “quem amaldiçoar seu pai ou sua mãe será
punido de morte” (Êx 24, 17), e, nisso, definiam a morada dos mortos como um lugar
subterrâneo onde todos os defuntos de todas as nações eram reunidos depois de sua morte”
(Ez 32, 19-30; Jó 3, 3-19; 30, 23). Entre os gregos, nos tempos homéricos, como afirma o
historiador Edwards McNall Burns: “eram quase completamente indiferentes ao que lhes
aconteceria depois da morte. Não só não consagravam nenhum cuidado ao corpo dos mortos,
mas até, frequentemente, os cremavam”. Supunham, no entanto, que as sombras ou os
fantasmas dos homens sobreviviam por certo tempo após a morte do corpo. Com raras
exceções, iam todos para a mesma morada - o reino escuro de Hades, situado debaixo da terra.
Não era nem um paraíso nem um inferno: ninguém era recompensado por suas boas ações ou
punido pelos seus pecados. Cada uma das sombras parecia levar o mesmo tipo de vida que sua
corporificação humana tivera na terra.
É importante destacar ainda, que na era clássica, século V, a. C., período de ouro da
Grécia antiga, que ficou conhecido também como o século da filosofia, os gregos darão outro
sentido ao tema da morte. Para os helenos desta época, influenciados pelos ideais filosóficos
vigentes, nascer equivale necessariamente morrer, ou seja, o homem ao ser concebido, já está
predestinado para morte.
Os egípcios acreditavam na ressurreição, na reencarnação, para isso desenvolveram a
técnica da mumificação que servia para preservar cadáveres, ou seja, um corpo para abrigar o
espírito que porventura retornasse. É preciso destacar que a dessecação de cadáveres era
privilégio dos faraós, teocratas que se consideravam como um deus supremo entre os
15
egípcios, ou uma reencarnação do deus Amonrá. Talvez, a Epopéia de Gilgamesh oriunda da
Civilização mesopotâmica, em alguns excertos, defina basicamente o medo desse poço de
infinitude que assola a humanidade:
“– Oh, meu senhor, podes prosseguir em tua incursão por este território se quiseres,
mas eu retornarei à cidade. Contarei teus feitos gloriosos a tua mãe até que ela grite
de júbilo: falarei então da morte que se seguiu até que ela chore de amargura.” Mas
Gilgamesh disse: “Ainda não estou preparado para a imolação e para o sacrifício, a
barca dos mortos não descerá o rio comigo, nem tampouco será necessário que se
prepare para mim a mortalha de três pregas. Meu povo também será poupado da
tristeza; a pira não será acesa em minha casa; minha morada não será consumida
pelo fogo. Dá-me tua ajuda hoje e te ajudarei amanhã: o que poderá então dar errado
com nós dois juntos? Todas as criaturas nascidas da carne terão um dia que tomar
um lugar na barca do Oeste,...”. (DISPONÍVEL EM: http://portugues.freeebooks.net/ebook/A-Epopeia-de-Gilgamesh/html/77)
Na Roma antiga, era comum registrar nos túmulos ou nas cruzes inscrições, como a
oposição mors vs vita, uma epígrafe que ficou muito conhecida e perpetuou-se por séculos:
“Fui o que sois e sereis o que sou”. (Carr-Gomm, 2004: 158)
Esta máxima é tida como ensinamento, e pode ser interpretada como um conselho
concedido ao homem.
No Novo Testamento, na epístola do apóstolo S. Paulo aos Romanos, há duas
concepções cristãs sobre a morte:
“Conforme está escrito: – por tua causa somos levados à morte o dia inteiro, fomos
considerados como animais de corte.” (Rm 8, 36)
“Mas se estamos mortos com Cristo, cremos que também viveremos com ele”. (Rm
6,8)
Na primeira concepção, percebe-se uma semelhança entre o pensamento de Paulo e o
filosófico grego, que afirmava, em sua essência nascer significa morrer; só que a morte cristã
subentende uma eternidade, diferentemente da morte grega. Na segunda, nota-se que a vida
eterna só é possível ser alcançada se o homem aceitar as palavras e os mandamentos do
Salvador, Jesus.
Esta mesma ideia, que existe uma vida após a morte, é encontrada no livro do
Apocalipse:
16
“Eu sou o Primeiro e o Último, o Que Vive; estive morto, eis que estou vivo pelos
séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e do Hades.” (Ap 1, 17-18)
A concepção do Cristianismo sobre a morte, ou vida eterna, já fora bastante discutida
pelos povos antigos, como os egípcios, sumérios, caldeus, etc.
3.2.
Morte na Era Medieval
Na era medieval, a figura da morte ganha outras nuanças e/ou representações, a partir
do imaginário popular que a define como um esqueleto com uma foice nas costas ou às vezes
com os outros instrumentos como ampulheta, espada ou segadeira.
Becker assim define a morte:
“A simbologia ocidental cristã da morte desenvolveu-se em época relativamente
tardia, na alta Idade Média. Antes geralmente eram representados ressuscitados, não
mortos. Em mausoléus, além disso, é preciso distinguir se se trata da “morte” ou do
morto, que se pretende eternizar no mausoléu”. (BECKER, 1999: 196)
A morte representava muitas vezes danças macabras, rituais religiosos, festividades
que arrastavam o homem medieval, para o mesmo fim, independentemente da sua posição
social no Regime Feudal.
A morte pintada como esqueleto, perpassou séculos através da oralidade e de
manifestações artísticas como pinturas, gravuras, contos orais, cânticos religiosos e romarias,
poesias medievalistas, etc. e alcançou eficazmente a modernidade.
3.3.
A morte na Modernidade
Na modernidade, a partir de 1953, queda do império turco, o comércio mercantil e as
grandes navegações vão nortear a vida do homem europeu. A temática da morte vai adquirir
novas classificações, influenciada pela cultura Clássica, que há de vigorar em toda a
Renascença.
Na modernidade, o tema da morte permanece bastante arraigado na memória do povo,
como se percebe na definição de uma senhora nordestina (origem Alagoa Grande, PB) quando
perguntada de que maneira ela classificaria a morte, eis o que ela falou:
17
“A morte é uma véia alta, chega é torta como um camelo, e anda cuma foice nas
costas”.
Esta definição da morte é proveniente da era medieval, que se perpetuou pela
oralidade, atravessando gerações e fixando-se no imaginário coletivo.
No século XVI, eclode o Renascimento, movimento que irá valorizar a cultura grecoromana, dissuadindo-se do teocentrismo, em detrimento do antropocentrismo.
Neste contexto, surgem escritores que se preocuparam com a temática da morte como,
por exemplo, o inglês William Shakespeare que, na tragédia de Hamlet, em um dos seus
solilóquios, no ATO III CENA I, afirma que a morte é responsável por aniquilar os
sofrimentos humanos e põe em dúvida o post mortem, vida após a morte:
“Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais
fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a
implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse
em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada,
a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte - terra desconhecida de cujo
âmbito jamais ninguém voltou - que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os
males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De todos faz
covardes a consciência.”
Neste excerto é perceptível que o pensamento hamletiano renascentista dialoga tanto com o
pensamento filosófico grego, quanto com a primeira definição do apóstolo Paulo sobre a morte.
No mesmo período, o padre José de Anchieta (1534-1597), dramaturgo e poeta das Ilhas
Canárias, que viveu no Brasil no século XVI, tem um sugestivo poema sobre a Morte,
chamado Como vem guerreira que é vista como guerreira que vem armada com doença,
enviada por Deus ao homem, o qual não consegue resistir a seus poderes. A morte vem sem
avisar, ligeira, entrando na sua casa furtivamente como um ladrão:
“Como vem guerreira
a morte espantosa,
como vem guerreira
e temerosa!
Suas armas são doença,
18
com que a todos acomete;
por qualquer lugar se mete,
sem nunca pedir licença
(...)
Observa-se que Anchieta não incorpora os ideais vigentes na Europa. Talvez, pelo fato
do mesmo ter passado sua infância na Península Ibérica, onde o Catolicismo já estava
consolidado. Ou ainda pelo fato do padre estar preocupado apenas em catequizar os índios
brasileiros.
3.4.
A morte na Contemporaneidade
A partir de agora, priorizaram-se definições de escritores brasileiros, que também se
debruçaram sobre o tema morte, abrangendo o século XIX e o século XX.
O poema Mocidade e morte, do poeta baiano Castro Alves (1847-1871), a morte
significa a perda no leito macio, dos beijos ardentes, dos seios da mulher amada, do paraíso,
etc. E nisso o sujeito lamenta a sua morte vindoura e iminente.
(...)
Eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
um mal terrível me devora a vida:
(...)
E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,
Quando a sede e o desejo em nós palpita...
Levei aos lábios o dourado pomo,
Mordi no fruto podre do Asfaltita . (p: 72-74)
19
O poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914), no célebre poema Os doentes,
parte V, a morte traz compensações e reconhecimento, pois, para o sujeito, o seu verso só será
notabilizado após sua morte.
“Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planêtas!” (p:105)
O poeta carioca Vinicius de Moraes (1913-1980), escreveu um poema cujo título é “A
morte”. Ele retrata que a morte vem dos céus, sem que o homem a pressinta. E, mesmo sendo
esperada por todos, o homem sempre vive preocupado com a morte. Neste caso, o poeta
ressalta que é melhor esquecê-la e viver feliz.
(...)
Ela que é na vida
a grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida!
O poeta amazonense Tiago de Melo 1926, em Poema perto do fim, diz que a morte é
indolor, ressaltando que a dor se manifesta pelo fato de o homem viver sem amor, com o
coração duro, permeado pela maldade.
A morte é indolor.
O que dói nela é o nada que a vida faz do amor.
Sopro a flauta encantada e não dá nenhum som.
Levo uma pena leve de não ter sido bom.
20
E no coração, neve.
Percebe-se que muitos escritores e poetas tentaram classificar a morte, todavia
chegaram apenas a formulações desprovidas de cientificidade e marcada profundamente pelo
anseio, vontade, desejo, receio, criando-se em torno dela, quase que um apanágio de
atribuições e honrarias, sem explicar os motivos pelos quais se pode evitar tal fado.
Indubitavelmente, há diversos conceitos, variadas as posições frente à temática.
Todavia, é perceptível que de fato, a morte é, existe e representa, como sabiamente já
disseram, a única e definitiva certeza da vida.
21
4. ANÁLISE SEMIOTICA DA DISCURSIVIZAÇÂO DO TEXTO O HOMEM E A
MORTE
A relação intersubjetiva denota a existência de um sujeito enunciador que é narrador e,
certamente, conta uma história, a um enunciatário narratário, ausente do texto. Ele põe em
discurso uma relação dialógica entre dois atores que são um homem à beira da morte e a
própria morte.
O homem encontra-se em relação conjuntiva com os valores negativos: humilhação,
doença, debilidade, tristeza, solidão, noite; como são perceptíveis nos objetos casa, leito,
deitado na noite sem cor, viver humilhante, magras mãos, membros gelados, hirto de pavor e
toque na fronte. Ele estabelece relações disjuntivas com os valores positivos: luz, vida,
carinho, ternura, amor de mãe e da amada, saúde, sorriso, doçura e felicidade. Ele pressente a
presença da morte através de um golpe que esta lhe dá na porta, levemente, porém assustador.
Ele se recolhe com medo, mas a morte penetra no seu quarto e ele questiona sobre quem seria
aquela pessoa. Isto o faz entrar num conflito interior. Dois são os fatores que levam a esta
perturbação: primeiro, pelo fato de não ter certeza de que aquilo era a morte, posto que, em
sua infância, descreveram-na como um “Esqueleto ou velha com uma foice nas costas”. Era a
idéia medieval de morte, esqueleto ou caveira, que atravessou séculos através da oralidade e
de manifestações artísticas como pinturas, gravura, narrativas, etc: imaginava-te feia/pensava
em ti com horror. Portanto, o medo dele era justificado, não só pelas apresentações horrendas
que lhe tinham feito da morte, como pelo fato de vir buscá-lo para um lugar desconhecido. O
segundo fator da perturbação é que o vulto que se lhe afigura é de luz, doce, brando, inefável
e se lhe apresenta como: Mestra que jamais engana/ a sua amiga melhor. Tais características
levam-no a confundi-la com a amada e a própria mãe. Ele encontra nela uma possibilidade de
saída para sua vida triste, melancólica e solitária. E ele sofre com a ausência desses entes
queridos e a presença dessa figura vai abrandar-lhe a dureza da vida porque ela apresenta-se
como doce, leve, carinhosa, mansa e banhada de suave luz. Além disso, é misericordiosa
como o olhar de mãe. Eis o exemplo:
Figura toda banhada
De suave luz interior.
A luz de quem nesta vida
22
Tudo viu, tudo perdoou.
Olhar inefável como
De quem ao peito o criou.
Sorriso igual ao da amada
Que amara com mais amor
O fazer da morte tocou o homem com infinita doçura, compôs-lhes as mãos magras e
lhe cerrou os olhos. Ele é sancionado positivamente por ela, pois consolida seu desejo, que é
de estar conjunto com seus amores. Como a função da sanção é de atribuir castigos prêmios
aos sujeitos envolvidos, o homem recebeu carinho, doçura, ternura, amor materno,
sentimentos que lhe tinham sido roubados há muito tempo. A morte veio, então, presenteá-lo
com um descanso.
23
5. ANÁLISE SEMIOTICA DA DISCURSIVIZAÇÃO DO TEXTO OS QUE MARCAM
RENDEZ-VOUS COM A MORTE
Na crônica “Os que marcam rendez-vous com a morte” o enunciador projeta um
narrador que relata sua experiência vivenciada no dia-a-dia, de maneira banal, a fim de
persuadir o narratário de que o encontro das pessoas com a morte não é marcado com
antecipação, mas acontece involuntária e inesperadamente, sem que haja determinação
humana. Na descrição que o narrador faz dos quatro atores: Alan Seeger predestinado, Alice
Monteiro alegre, saudável, bom sangue e de uma “Seiva de Mocidade”, Tobias Moscoso.
Render-vos ajustado com a morte e um boêmio rapaz forte, valente e brigador, percebe-se que
o próprio enunciador – narrador está amedrontado, apreensivo com a figura da morte. A
percepção que o narrador tem no mundo é que os atores retratados no texto foram
despercebidamente ao encontro da morte, como estão descritos nos fragmentos:
Aquela bala de metralhadora que o abateu na flor da idade”, “parecia uma dessas
criaturas predestinadas a sobreviver aos companheiros de geração,” “guardei uma
impressão estranha desse encontro” e “o rapaz passou e eu olhei-o pelas costas. No
entanto naquele instante senti nele qualquer coisa de para lá da vida.
Por causa disso, ele sente quão breve e incerta é a vida. A única certeza é a de que a
morte chegará. O narrador, no início da crônica afirma que é desprovido de predição, isto é,
não possui o dom da mediunidade, não compreendendo o porquê de as pessoas marcarem
encontro com a morte. Este fato deixa-o aturdido e surpreso.
Nas relações intersubjetivas, o sujeito enunciador encontra-se embreado, ora no
tempo, ora no espaço com seu enunciatário (um tu pressuposto no texto) e debreado dos
atores envolvidos no enunciado, como estão delineados nas seguintes passagens: “Sou o
sujeito”, “Tenho esquecido”, “Ainda hoje evoca para mim”, “lembro-me,” “hoje é que
recordando”. Estas passagens presentificam o eu narrativo, deixando-o próximo do tempo da
enunciação. Aqueles mesmos sujeitos também estão debreados no tempo, quando contam
fatos que ocorreram, por exemplo: nunca soube, quando eu era menino, conheci de vista, eu
não podia, morreu um mês depois. Os espaços no texto estão assim dispostos: Paris, espaço
infantil, Galeria Cruzeiro, Rio, Heamas que estão diretamente ligados aos atores referidos
pelo narrador.
24
Urge relatar que, neste texto narrativo, há uma causa implícita da morte dos atores. O
primeiro ator, Seeger, foi assassinado por alguém, o segundo Alice Monteiro foi vítima de
enfermidade, o terceiro, Tobias Moscoso, infere-se que teve morte natural e o quarto, o
Boêmio, morte simbólica, já que foi denegado por Ribeiro Couto.
É necessário salientar o estabelecimento da data 1913, que delimita o tempo
cronológico e é muito relevante para o narrador, lembrando-lhe a brevidade da vida. Ele fala
de pessoas que encontram a morte, mesmo involuntariamente, porém, ele pode estar
referindo-se a seu próprio encontro com a mesma.
Tomando por base os dados biográficos, temos que em 1913, Manoel Bandeira foi à
Europa a fim de tratar-se de uma tuberculose, mal irremediável na época. Tendo adquirido a
doença aos quartoze anos e percorrido diversas cidades brasileiras em busca de ares amenos, o
poeta aos vinte sete anos, encontra-se no auge da doença, estando, também, próximo de fazer
um rendez-vos marcado com a morte. Talvez por isso, a predição do futuro, que lhe era
incerta, não lhe aprouvesse tanto. Num sanatório Suíço, na cidade de Clavadel, indaga ao
médico Bodmer se havia cura para sua doença e quantos anos lhe restariam, ao que o médico
respondeu:
O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida; no entanto está sem
bacilos, come bem, dorme bem, não apresenta, em suma, nenhum sintomas
alarmante. Pode viver cinco, dez, quinze anos... Quem poderá dizer?...” (itinerário
de Pasargada,1957: 121)
E ele continuou “esperando a morte para qualquer momento, vivendo sempre como
que provisoriamente”, segundo afirmação do próprio autor (id. ib.). As pessoas retratadas pelo
narrador, na crônica, não apresentam debilidade física alguma, no entanto sucumbem diante
da morte. Há diante de tudo isso uma contradição criada pelo próprio eu-narrativo, que não
sabe como compreender como estivesse vivo quando lhe tinham dito que iria morrer e outros
que era sadios tinham sucumbido inesperadamente
O texto apresenta momentos em três línguas. Encontram-se nele palavras em Francês,
Inglês e Português. Isto significa dizer que o rendez-vous com a morte é universal e
independe de nacionalidade, status social. O que importa na verdade para o narrador é que o
homem, querendo ou não, está predestinado para a morte. Portanto, mesmo eventualmente ele
traçando seu caminho, marcando ou pactuando um encontro com a morte, ela vem
tenazmente.
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Na crônica os que marcam rendez-vous com a morte, o tempo real ou histórico é
diferente do tempo do discurso, mesmo havendo entre ambos coincidência no que diz respeito
ao tempo da história enunciada e ao tempo discursivo. O narrador encontra-se num meio
urbanizado, talvez no Rio de Janeiro, como é discernível da narrativa, principalmente quando
fala sobre o quarto ator. Outo fator importante que deve ser considerado, pegando os dados
biográficos do autor é que, nesta época, provavelmente década de trinta, residia na cidade
fluminense, podendo-se constatar esta afirmação pelos fatores socioculturais encontrados no
texto.
O tempo discursivo oscila com as flexões verbais empregadas pelo cronista. O eu ora
está embreado com os fatos narrados, ora está debreado deles. Quando narra o que ocorreu
com Seeger e com Alice Monteiro encontra-se distante tanto no tempo, quanto no espaço. Já
quando narra a história de Tobias Moscoso e do Boêmio, apreciador da obra de Ribeiro
Couto, está em concomitância com ambos, tanto no tempo, quanto no espaço. A alternância
espácio-temporal no texto permite entender que os sujeitos estão em movimento, pois mudam
o lugar o tempo todo, porém o encontro com a morte permanece inalterado.
Muitos escritores utilizaram e utilizam o tempo cronológico em seus textos. No século
XIX, sobre tudo no Romantismo, prosadores como José de Alencar, Manuel Antônio de
Almeida, Franklin Távora, adotaram este recurso. Em O Guarani,1957, por exemplo, a
narrativa é passada em 1603 e 1604, no interior do Rio de Janeiro e, coincidentemente tais
datas giram em torno da estruturação do Romance.
Em se tratando da crônica em questão, a única data delimitada é 1913, todavia a
historia acontece posteriormente. Sendo relevante neste caso não o tempo do calendário, mas
as percepções que o sujeito tem do tempo, daí ser chamado tempo psicológico. Levando em
consideração estas asserções, o tempo para o narrador representa seu próprio encontro com a
morte.
Nesta crônica, são elencadas algumas figuras que são responsáveis pela consolidação
de temas marcantes, que podem ser atribuídos tanto ao narrador, quanto aos atores por ele
descritos. As figuras 1913, rendez-vous, Paris, Alan Seeger, bala, metralhadora, flor da idade
e três anos revestem os temas guerra, violência, juventude, contemporaneidade, morte, etc.
As figuras febre amarela, gripe, pneumonias revestem os temas debilidade, doença,
predestinação, morte, etc. Já beleza, vida, vigor, magnanimidade estão presente em visão
radiante de juventude, cheia de vida, etc. As figuras Galeria Cruzeiro, exposição de Segall,
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Ribeiro Couto, livro, autógrafo, Rio de Janeiro, Lamas, revestem os temas modernidade, arte
e urbanidade.
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6. ANÁLISE SEMIÓTICA DA DISCURSIVIZAÇÃO DO TEXTO
PROFUNDAMENTE
No poema “profundamente”, logo na primeira parte, percebe-se que o enunciador
encontra-se embreado com o enunciatário, tanto no tempo, como no espaço. A expressão
dêitica “quando ontem adormecei” marca o tempo da enunciação, colocando o fato enunciado
num patamar de posterioridade à festividade vivenciada pelo eu discursivo.
Outras marcas relevantes que também dizem respeito à dêixis temporal estão dispostas
nas expressões adormeci, na noite de São João, despertei no meio da noite, etc., que mostram
a não participação direta desse eu no sarau junino, que teve pouca duração. A temporalização,
neste caso, confirma a denegação do eu em detrimento desse São João improfíquo, efêmero
vazio, solitário, ermo, mesmo havendo estrondos de bombas, vozes, risos, cantigas, fogueiras,
luzes, Enfim, elementos que caracterizam a alegria dos integrantes da festa por ele
presenciada.
Os conflitos estabelecidos entre adormeci vs despertei, bem como, ontem e hoje,
permitem antever o isolamento em que vivia o eu, isto é, debreado das pessoas que e de cuja
presença não pode usufruir. No primeiro caso, a debreagem ocorre porque ele dorme,
enquanto as pessoas se divertem e, no segundo caso, porque ele está vivo e os outros estão
mortos. Nos dois momentos, ele não pode usufruir da presença dos seus que dormem ou que
estão mortos.
A espacialização está demarcada nas expressões locativas: ao pé das fogueiras acesas,
onde estavam os que a pouco dançavam... e na resposta relativa ao rumo dos pândegos, que
diferentemente do eu, que é despertado pelos ruídos, estão todos deitados, dormindo
profundamente; adormecer, despertar e ouvir delimitam a privação espacial desse eu, visto
que não compartilha com as festas juninas que lhe são contemporâneas. Ele é apenas um
contemplador anacoreta que espreita a felicidade alheia.
No poema, os tempos verbais deixam antever uma anterioridade acabada, concluída
que não tem mais retorno, é atribuída aos parentes que já se foram e uma presentificação do
eu que não acabou ainda, fazendo-o sentir saudades. Este não se relaciona com as pessoas
pelo fato de estarem dormindo, de modo continuo sem interrupções abruptas, como sugere o
silencio da noite.
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As expressões dêiticas temporais quando eu tinha seis anos, hoje não ouço mais as
vozes daquele tempo, minha vó e meu avô, fazem com que o eu discursivo evada-se num
tempo pretérito, que se contrasta de certa forma com o presente.
O acordar do adulto da primeira parte, confunde-se com o adormecer do menino. Este
não participa da vida dos adultos, porque ela acontece enquanto ele dorme. Não existe o
encontro entre as duas gerações que apresentam um fazer adulto que se diferencia de um fazer
infantil. Coisas de adulto não são coisas para serem feitas por crianças. Estas não deveriam se
intrometer no mundo dos adultos e nem conseguiriam se lhes fosse permitido porque também
o tempo do adulto é outro, diverso do tempo da criança.
O espaço do menino é familiar, afetuoso, agradável, felicíssimo, infinito, eterno e
repleto de parentes que o amaram. A pergunta onde estão todos eles assim como na primeira
parte é respondida pelo eu discursivo que utiliza um presente que reforça a ideia de morte que
atingiu seus antepassados.
Poder-se-ia inferir assim que o espaço físico ou lugar sugerido no primeiro bloco diz
respeito a casa das pessoas onde o eu dormia, afastado dos demais. A continuidade do sono
também é perceptível pela ausência do ponto final no verso profundamente.
No segundo bloco o espaço é sugerido pela polissemia da passagem hoje não ouço... e
das palavras dormindo, deitados e profundamente; e a presença do ponto final, que dão a ideia
de lar antigo, casa onde o eu vivera feliz, e até mesmo, numa perspectiva um tanto ousada, de
cemitério, moradia de seus descendentes. O eu tem a vida transpassada pela morte e pelo fim
de sua genealogia ancestrálica.
É necessário ressaltar que, no poema, não existe um tempo cronológico, como o
apresentado nos calendários, nem muito menos um espaço físico demarcado, explícito. Como
por exemplo, casa, chácara, sertão, floresta, fazenda, cayana dos criolos, às margens do Reno,
etc. que são lexemas genéricos que podem remeter a qualquer lugar ou a qualquer tempo.
Observa-se então que o limite espacio-temporal no poema, encontra-se no presente e
ao passado, é inferido pelos dêiticos circunstanciais de tempo e de lugar e também pelos
encadeamentos operados devido as formas verbais, que reforçam as oposições tanto
estruturais, quanto estilísticas do texto.
O eu diz hoje: “Quando ontem adormeci...”, ou seja, relata o que presenciou na
véspera. Assim, o passado não é tão distante do presente. Em face disso, alguém poderia
afirmar que existe um tempo cronológico subentendido, pelo fato de que a festa de São João
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é realizada no dia vinte e três de junho, entretanto não se sabe o tempo da História (época,
ano), visto que o poema não o discursiviza. Mesmo assim, é evidente que os fatores tempo
espaciais estão delimitados no discurso pelas circunstancias socioculturais dispostas no
poema.
Vale ressaltar que o ontem e o hoje estão marcados pela solidão do eu. Ontem o eu
estava só embora visse seus parentes que era como se estivessem mortos porque não falavam,
mas ele os via e isso lhe bastava. Não só ele os via, como sabia onde estavam, conhecia o
lugar deles. Hoje, ele não os vê e não sabe onde estão, mas o eu preferiria vê-los. Pois se
tirasse o primeiro, o fato relatado pelo eu discursivo seria banal, casual, fortuito, uma história
qualquer; o segundo, o tempo ao invés de remeter a um passado próximo do eu que enuncia,
remeter-se-ia a um passado distante, remoto que aconteceu em algum lugar período da vida.
Não haveria ainda um presente subentendido, a não ser no tempo da enunciação que são
projetados os sujeitos discursivos.
Na segunda parte do poema, na passagem “Quando eu tinha seis anos”, a forma verbal
imperfeita “tinha seis anos” projeta o eu para um passado infindo que começou na infância e
perpetuou-se pela sua memória. Tal fato contrapõe-se ao passado engendrado pelo adjunto
adverbial de tempo “ontem”, pois há uma delimitação temporal em “seis anos”, que corrobora
a evasão e a projeção do eu-discursivo para os tempos áureos da infância.
O espaço em que este eu vive é urbanizado como se pode perceber nas expressões
“Ruídos de um bonde”, “Cortavam o silêncio como um túnel”, “luzes de Bengala” (fábrica de
fogos de artifícios), etc. enquanto que o espaço cognoscente era familiar repleto de amigos
íntimos e recheado de personagens célebres como o avô, Rosa, Tomásia, Totonho Rodrigues
figuras que constituíram seu círculo íntimo e que agora estão “grelhadas na parede!” da
memória do eu. Outros elementos que confirmam a construção antitética estão verificados nos
adjuntos circunstanciais hoje vs ontem, que se confrontam, tanto no tempo como no espaço.
O eu não ouve mais o soar das vozes, pois estas estão caladas para sempre no tempo,
porém elas ainda ressoam na mente dele. O adormecer do eu na primeira parte do poema
diligencia um afastamento da festa e o silêncio que a ausência das vozes proporciona. O fato
de as pessoas terem ido dormir é encarado com naturalidade por ele. No segundo adormecer,
o eu não ouve mais as vozes daquele tempo, pois se encontra distanciado espáciotemporalmente e os responsáveis por aquele regozijo sublime estão mortos.
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Adentrar nesse mundo simbólico, reminiscente é evadir-se no tempo, não no tempo
cronológico, mas no tempo da memória coletiva. Bandeira, neste poema, apresenta um
sujeito melancólico, saudosista, puerilizado, memorialista, que lamenta a perda de familiares,
a efemeridade da vida, a transitoriedade do tempo, que passa e traz a “iniludível”, a
“indesejada das gentes, isto é, a morte, que vem certa e inopinadamente .
Segundo Davi Arrigucci Júnior (1990: 128), a humildade é uma constante na obra
bandeiriana. O poeta pega elementos do cotidiano, como: beco, balão, bares, pipas, fogueiras,
porco-da-índia, etc. e retira a grande poesia.
O poema “Profundamente” aborda o passado, a infância vivida entre família, num
cenário singular. Nele, a presença do avô, da avó, Totônio Rodrigues, Tomásia, Rosa, enfim,
figuras que conviveram com esse eu-lírico redimensionam ou redirecionam uma
singularização.
Porém, é perceptível, que o desejo que este sujeito possui, diz respeito àqueles que
partiram, feneceram, àqueles que ficaram no passado solidificado, sem possibilidade de
retornar.
O poema retrata os tempos mágicos passados pelo eu entre familiares, todavia o fim
dessas pessoas reflete amargamente em sua vida. Assim posto, percebe-se que ele apenas dura
num meio urbanizado, solitário, assistindo a um São João diferente daquele vivenciado no
interior e revigora, revive a mais tenra infância em que era feliz. E isso, obviamente, afeta o
semblante do deste sujeito, causa-lhe desfalecimento, solidão, saudade, lembranças vividas
intensamente, e percucientemente acometimento de morte.
No poema, as figuras dispostas diversificam muitos temas como os que estão
correlacionados a seguir: as figuras, São João, estrondos, bombas, vozes, risos, cantigas,
fogueiras, luzes, balões, ruídos, bonde revestem os temas festas, felicidade, comemoração,
agitação, perturbação, incomodo, denegação, claridade, solidão.
As figuras seis anos, avó, avô, Totônio Rodrigues, Tomásia, Rosa, vozes, revestem os
temas infância, ausência, morte, perda, passado, extemporaneidade, genealogia, afetividade,
silencio, tristeza e infelicidade. Sendo a semiótica greimasiana a ciência que estuda a
significação, poder-se-ia dizer que a presença de pontuação no final do poema é significativa.
O ponto final reveste os seguintes temas: descontinuidade, fim, acaso, morte, partida,
passagem.
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7. CONCLUSÕES
Ao fim dessas análises, verificaram-se que os três textos só ganham sentido se forem
considerados como um todo. Senão, poder-se-ia dizer, como fazem alguns críticos,
especialmente Emanuel de Morais que, ao analisar o poema Profundamente, afirma que o
tema da morte resume-se à palavra profundamente:
A palavra traz em si o próprio significado da morte. Numa visão de sua vida, em que
o tempo matemático não importa, pois o ontem do primeiro verso tanto serve à
véspera do seu despertar, na infância, para o quadro perdido pelo seu adormecer,
quanto para o seu despertar, depois de adulto, para o mundo, ambos já vazios de
vozes, o poeta associa, numa só sensação de vácuo, aqueles momentos em que
pressentiu encontrar-se sozinho em face da noite silenciosa, porquanto da mesma
forma que na noite de sua lembrança (MORAES, 1962 p. 185)
Restringir o texto a uma palavra é de certa forma abolir sua gramática, pôr de lado seu
caráter polissêmico e, ainda, como afirma Fiorin (2011: 49): “na análise do texto poético, não
pode o analista cingir-se ao plano do conteúdo, pois senão deixará de perceber a
especificidade desse tipo de texto e não apreenderá a “totalidade” do sentido nele inscrito”.
Outro problema a ser enfatizado, diz respeito à associação que se faz, no texto, entre
ontem e hoje. Dizer que o ontem é a infância e o hoje, a velhice, é ferir o poema, pois, se levar
em conta o texto por si só, percebe-se que o hoje está mais ligado à infância que o ontem.
Portanto os encadeamentos produzidos e/ou construídos pelo texto direcionam a temática, que
é tudo que o poema está proporcionando ao leitor.
Esclarecido o empasse, é mister, a fim de que se possa comprovar as afirmações
discutidas anteriormente, observar atentamente as análises 1, 2 e especialmente 3, para
perceber quão desastroso seria isolar palavras, frases em qualquer texto literário, sem apoiarse no todo. Portanto os três textos analisados abordam a temática da morte, porém são
discursivamente distintos.
As figuras dispostas neles são bastante diferentes, embora, em alguns momentos, os
temas se assemelhem. O tema morte existe em todos, todavia as figuras que o revestem são
diversificadas e incompatíveis.
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8. REFERÊNCIAS
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Nova edição revista e corrigida; direção de Gabriel C. Galache; edições Loyola, São Paulo,
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A EPOPÉIA de Gilgamesh,. Tradução de Carlos Daudt de Oliveira. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
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ANCHIETA, José de, 1534-1597. Poesia. Por Eduardo Portella - Rio de Janeiro : Editora Agir
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fev. 2013.
ANJOS, Augusto. Eu: poesias completas. 29ª ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963.
ARRIGUCCI, Davi. Humildade, paixão e morte na poesia de Manoel Bandeira. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
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Holanda e Francisco de Assis Barbosa. vol. II. Prosa Editora José AGUILAR, Ltda. Rio de
Janeiro, D.F., 1958
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do Discurso: Fundamentos Semióticos. São Paulo:
Atual, 1988.
_____. Teoria Semiótica do Texto. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1999.
BATISTA, M.F.B.M. Semiótica e Cultura: valores em circulação na Literatura Popular. Anais
da 61ª Reunião Anual da SBPC, 2009.
33
BECKER, Udo: Dicionário de Símbolos. São Paulo: Paulus, 1999. Pg.196
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental: Do Homem das Cavernas até a
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CARR-GOMM, Sara: Dicionário de símbolos na arte: guia ilustrado da pintura e da escultura
ocidentais; tradução Marta de Senna. Bauru, SP: EDUSC, 2004. p. 158
COURTÉS, Joseph. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Livraria
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FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2011.
IVO, Lêdo. O preto no branco. Rio de Janeiro: São José, 1958.
LIMA, Robeto Sarmento. Manuel Bandeira, o mito revisitado: uma leitura intelectual da
poética da modernidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasficiro/MinC/Pró-Meinória/INL, 1987.
MELLO,
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fim.
Disponível
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MORAES, Emanuel de. Bandeira, análise e interpretação literária. Rio de Janeiro: José
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MORAES,
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A
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Disponível
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2013.
SHAKESPEARE, William. A trágica historia de Hamlet, Príncipe de Dinamarca (1603).
Edição Ridendo Castigat Mores. Fonte digital: www.jahr.org.
STEFAN, Baciu. Manuel Bandeira de corpo inteiro. Rio de janeiro: José Olympio, 1966.
34
9. ANEXOS
9.1.
Anexo 1
OS QUE MARCAM RENDEZ-VOUS COM A MORTE
DECIDIDAMENTE SOU o sujeito mais desprovido daquilo que os espiritistas
chamam o senso da mediunidade. Nunca soube distinguir aquêle não-sei-quê que assinala os
que têm marcado um rendez-vous com a morte.
Se por ventura em 1913 tivesse encontrado em Paris o americano Alan Seeger, não
teria nem por sombra notado nêle a menor advertência de predestinação a aquela bala de
metralhadora que o abateu na flor da idade três anos depois. Mesmo que êle me houvesse lido
o poema a que a sua morte veio juntar uma segunda profundidade, é provável que lhe tivesse
sorrido aos versos como a uma pura imagem de beleza: I have a rendez-vous with Death
When Spring brings back blue days and fair.
Quando eu era menino, conheci de vista uma môça cuja beleza a fazia muito falada.
Nem era propriamente beleza o que cativava nela, mas uma seiva de mocidade, de bom
sangue, de alegria de côres saudáveis. Tenho esquecido muito nome na vida. mas o “dela” não
esqueci nunca: Alice Monteiro.
Ainda hoje e passados tantos anos que é morta, esse nome evoca para mim a mesma
visão de radiante juventude. Parecia uma dessas criaturas predestinadas a sobreviver aos
companheiros de geração. A febre amarela, a gripe, as pneumonias são para os outros, não
para elas. Alice Monteiro morreu no ano mesmo em que a conheci. Foi a primeira vez que a
morte me perturbou profundamente. Antes disso ela andava em meu espírito associada sempre
à idéia de decadência física. Eu não podia conceber que uma môça bonita e cheia de vida
pudesse morrer assim tão depressa!
Algumas vêzes, raras, duas ou três, recordei après coup em dadas criaturas um certo
sinal que produziu em mim não sei que estranheza. Não tive porém a lucidez de distinguir
nêle a advertência...
Lembro-me que uma tarde, na exposição de Segall, Tobias Moscoso, apareceu de
repente, abraçou-me e disse-me algumas palavras. Guardei uma impressão estranha dêsse
encontro. Mas nem um segundo me passou pela idéia que estava com o amigo pela última
35
vez. Hoje é que, recordando aquêles momentos e a minha sensação de estranheza, noto que
havia no ar e nas palavras de Tobias Moscoso a marca do rendez-vous ajustado com a morte.
Conheci nos bars da Galeria Cruzeiro um boêmio que tinha muita admiração pelos livros de
Ribeiro Couto. Quando um dia lhe revelei que era amigo íntimo do poeta, ficou contente
como uma criança. E pediu-me que lhe arranjasse um livro com dedicatória do Couto. Couto
mandou o livro com a dedicatória, mas na distribuição de outros exemplares houve uma troca
e o meu boêmio ficou com o volume sem o autógrafo. Tempos depois Couto veio ao Rio.
Uma noite estávamos no Lamas quando vi ao fundo o rapaz. Ele se dirigia para o nosso lado.
Quis apresentá-lo ao Couto. Porém êste não se sentia disposto para o encontro naquela
ocasião. O boêmio passou por nós sem nos ver. Não há nisso nada de extraordinário. Mas
quando o rapaz passou e eu olhei-o pelas costas, que foi que me fêz ficar longo tempo a seguilo com os olhos? Era um rapaz forte, brigador valente. No entanto naquele instante senti nêle
qualquer coisa de para lá da vida. De fato morreu um mês depois.
36
9.2.
Anexo 2
O HOMEM E A MORTE
Romance desentranhado de “Um retrato da morte” de Fidelino de Figueiredo.
O homem já estava deitado
Dentro da noite sem côr.
Ia adormecendo, e nisto
A porta um golpe soou.
Não era pancada forte.
Contudo, ele se assustou,
Pois nela uma qualquer coisa
De pressago adivinhou.
Levantou-se e junto à porta
– Quem bate? êle perguntou.
– Sou eu, alguém lhe responde.
– Eu quem? torna. - A Morte sou.
Um vulto que bem sabia
Pela mente lhe passou:
Esqueleto armado de foice
Que a mãe lhe um dia levou.
Guardou-se de abrir a porta,
Antes ao leito voltou,
E nêle os membros gelados
Cobriu, hirto de pavor.
Mas a porta, manso, manso,
Se foi abrindo e deixou
Ver - uma mulher ou anjo?
Figura toda banhada
De suave luz interior.
A luz de quem nesta vida
Tudo viu, tudo perdoou.
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Olhar inefável como
De quem ao peito o criou.
Sorriso igual ao da amada
Que amara com mais amor.
– Tu és a Morte? pergunta.
E o Anjo torna: - A Morte sou!
Venho trazer-te descanso
Do viver que te humilhou.
– Imaginava-te feia,
Pensava em ti com terror...
És mesmo a Morte? ele insiste.
– Sim, torna o Anjo, a Morte sou,
Mestra que jamais engana,
A tua amiga melhor.
E o Anjo foi-se aproximando,
A fronte do homem tocou,
Com infinita doçura
As magras mãos lhe compôs.
Depois com o maior carinho
Os dois olhos lhe cerrou...
Era o carinho inefável
De quem ao peito o criou.
Era a doçura da amada
Que amara com mais amor.
7 de dezembro de 1945.
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9.3.
Anexo 3
PROFUNDAMENTE
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um
Bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente
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Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
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A concepção da morte em t~es textos de Manuel Bandeira