3
desa
fio
A Adolescência como desafio
1. Desafio diante de uma sociedade violenta
A pesquisa A Voz dos Adolescentes revelou que 85% dos adolescentes
consideram o Brasil um país violento.
Essa violência é percebida desde as relações familiares até os
acontecimentos mais explícitos do cotidiano, como os seqüestros,
assaltos, mortes violentas e as suas causas estruturais e sociais.
Não existem números nacionais sobre o quanto dessa violência é
praticada no contexto familiar, assim como não existem indicadores
de outras formas de violência doméstica praticadas contra adolescentes.
Entretanto, é possível observar que as disparidades econômicas,
étnicas, de gênero e regionais influenciam diretamente as condições
familiares, produzindo situações de graves violações de direitos nas
quais, muitas vezes, o espaço familiar – que deveria ser um espaço
de proteção – constitui-se num lugar perigoso e inseguro.
A pesquisa A Voz dos Adolescentes (UNICEF/Fator OM/2002) identificou
6% dos adolescentes entrevistados que informaram sofrer agressão dos
pais que batem com objetos e 18% que já foram agredidos com gritos
e xingamentos.
// Tabela 1 - Adolescentes, por classe social, segundo correção em que os pais batem com objetos (nacional),
2001/2002 (%)
Classe social
Classe A
Classe B
Classe C
Classe D
Sem resposta
Pais que corrigem filhos batendo com objetos
Sim
Não
Sem resposta
2,2
97
0,8
4,5
94,2
1,3
6,1
92
1,9
9,3
88,6
2,1
11,3
85,5
3,2
Total
100 (134)
100 (963)
100 (3.278)
100 (843)
100 (62)
Fonte: Pesquisa “A Voz dos Adolescentes”, UNICEF/Fator OM/2002.
Essa violência que ocorre no ambiente familiar é ao mesmo tempo uma
reprodução da violência social e um fator que corrobora para a
Situação da
Adolescência Brasileira
continuidade de uma cultura de violência.
A violência presente na sociedade atinge de forma contundente o
adolescente. Somente no ano 2000 foram 9.302 mortes de adolescentes
18
nacional de 52 mortes por grupos de 100 mil. A Fundação SEADE
(Sistema Estadual de Análise de Dados de São Paulo) identificou
por causas externas (MS/DATASUS/2000-Dados preliminares). Entre essas
causas, destaca-se a mortalidade por homicídio. Os cálculos usados
para a constituição de médias nacionais são polêmicos e não se
referem sempre às mesmas faixas de idade. A UNESCO (Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) usa como referência
de cálculo a população de 15 a 24 anos e obteve no ano de 2000 a média
bairros na cidade de São Paulo onde a taxa de mortalidade de
adolescentes de 15 a 19 anos chega a 532 por 100 mil. O Índice de
Vulnerabilidade Juvenil (IVJ) – uma combinação da taxa de crescimento
populacional de 1999 e 2000; percentual da população de 15 a 19 anos;
taxa de mortalidade por homicídios; mães com idade entre 14 e 17 anos;
valor do rendimento do chefe de família; e percentual de adolescentes
que não freqüentam a escola – classificou as regiões da cidade de São
Paulo para identificar os locais que demandam uma ação prioritária.
As causas externas são divididas em mortes por homicídio (40,5%),
acidentes em meios de transportes (23,5%), afogamento acidental
(13,4%), suicídios (3,7%), exposição ao fogo (0,7%), intoxicações
acidentais (0,1%) e outras causas (16,7%). Fonte: Fundação
Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, 2000.
Comunidade, espaços de lazer, família, escola e diferentes espaços
de convivência não ficam imunes ao problema da violência. Uma
combinação de fatores complexos vem gerando na sociedade brasileira
situações nas quais toda a população, mas especialmente as crianças
e os adolescentes, é submetida a circunstâncias de vulnerabilidade,
transformando-se em vítima de processos cada vez mais visíveis de
violência, acobertados pela impunidade dos agressores, por falta de
políticas de proteção e especialmente pela ausência de um sistema de
garantia de direitos e proteção.
“É certo que os meios de comunicação não estão dando a ênfase que
vinham dando na década de 80 e sobretudo nos anos 90, tornando
bastante visível a atuação dos grupos de extermínio que vitimavam
milhares de jovens brasileiros. Contudo, é certo também que o
problema persiste ou até esteja agravado pelo novo modus operandi
do crime organizado.
Os grupos de extermínio operam às escuras, em locais ermos, com
desovas de difícil investigação e com singular participação de
agentes do Estado.
O que verificamos hoje são delinqüentes do crime organizado,
operando de forma mais aberta, com maior audácia, com indiscutível
poder de confronto com o Estado, praticando execuções quase em
massa. É o que constatamos na ocorrência de chacinas que têm como
vítimas maiores os adolescentes.”
Dr. Augustino Veit - Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados
2. Desafio diante das novas formas de organizações familiares
nas diferentes classes sociais brasileiras, o padrão de família
idealizada (pai, mãe e filhos) confronta-se no cotidiano das pessoas
com o perfil da família real e vivida, que é bastante diferente.
As reorganizações familiares, a partir do divórcio ou da reconstrução
de vínculos conjugais e de outras tantas mudanças nesse padrão,
resultam em situações diversas a ser administradas pelas famílias,
intermediadas por instâncias reguladoras, responsáveis, no fim, por
garantir a convivência familiar e comunitária, conforme estabelecido
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Outro aspecto importante é o número de filhos de cada família, que
vem apresentando uma nova configuração como pode ser visto abaixo:
Situação da
Adolescência Brasileira
Embora ainda ocupe espaço importante no imaginário sobre a família
19
(1) IBGE, Censo 2000, dados
preliminares para
divulgação, 2002, mimeo
“As informações preliminares do Censo Demográfico de 2000 não só
confirmam a tendência, já observada nos censos anteriores, de
queda da taxa de fecundidade, como também mostram a redução dos
diferenciais regionais. Os níveis estimados da fecundidade para
as Grandes Regiões encontram-se bastante próximos ao da média
nacional (2,3 filhos por mulher, em 2000). A menor taxa de
fecundidade foi verificada na Região Sudeste (2,1 filhos por
mulher) e a mais alta na Região Norte (3,2).”1
// Tabela 2 - Taxas de Fecundidade Total Brasil e Grandes Regiões: 1940-2000
Brasil e Grandes Regiões
Brasil
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Anos Censitários
1940
1950
6,2
6,2
7,2
8,0
7,2
7,5
5,7
5,5
5,7
5,7
6,4
6,9
1960
6,3
8,6
7,4
6,3
5,9
6,7
1970
5,8
8,2
7,5
4,6
5,4
6,4
1980
4,4
6,4
6,2
3,5
3,6
4,5
1991
2,9
4,2
3,7
2,4
2,5
2,7
2000
2,3
3,2
2,6
2,1
2,2
2,2
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991 e
Resultados Preliminares do Censo Demográfico 2000.
Chama a atenção, nessas novas composições familiares, o crescimento
da participação das adolescentes. Embora haja um decréscimo nas
taxas de fecundidade das diferentes faixas etárias, na faixa que
inclui as adolescentes essa mesma taxa cresceu, o que revela um
aumento no número de crianças filhas de adolescentes.
// Tabela 3 - Taxas específicas de fecundidade segundo grupos de idade das
mulheres
Grandes Regiões e grupos de idade da mulher
Situação da
Adolescência Brasileira
15 a 19 anos
20 a 24 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
Taxas específicas de fecundidade
1980
1991
2000
Brasil
0,0797
0,0874
0,0910
0,2130
0,1618
0,1335
0,2260
0,1429
0,1138
0,1730
0,0941
0,0751
0,1170
0,0545
0,0408
0,0526
0,0243
0,0133
0,0108
0,0056
0,0020
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1980-2000.
20
(2)IBGE, Censo 2000.
Mantivemos a representação
%0, que designa por mil.
Então 80%0 = 80 por 1.000.
“Em 2000, no Brasil, para cada grupo de 1.000 mulheres de 15 a
19 anos de idade, mais de 90 tinham pelo menos 1 filho. Em 1980,
essa taxa era de 80 %0. Na Região Norte, em 1980, para cada
grupo de 1.000 mulheres de 15 a 19 anos, quase 130 delas já
haviam tido pelo menos 1 filho. Em 2000, a respectiva taxa
ultrapassa os 140%0. Com isso, a idade média da fecundidade
sofre um processo de rejuvenescimento e cai de 1980 para 2000,
no Brasil e em todas as Regiões. Nesse período, a idade média da
fecundidade no Brasil declinou de 28,9 anos para 26,3 anos.”2
O adolescente desempenha uma função importante de protagonista no
interior de sua própria família.
Com sua voz crítica, assume o lugar daquele que denuncia necessidades
de mudança. Muitas vezes, essa denúncia é feita por palavras e
outras, por sua conduta. Nessa perspectiva, o adolescente sempre se
comunica por seus atos contestatórios. Precisa, portanto, de canais
de comunicação com sua famílias para processar suas angústias e
amadurecer em direção a uma postura adulta na família e na sociedade.
Entretanto, por vezes, esse protagonismo reveste-se de uma
obrigatoriedade e de uma responsabilização precoce como chefe do
lar. Os dados abaixo expressam que mais de 83 mil adolescentes são
chefes de família. Essa situação acrescenta complicadores ao processo
de desenvolvimento do adolescente, uma vez que lhe exige o desempenho
de tarefas e papéis para os quais, na maioria das vezes, não está
preparado nem dispõe dos recursos e das oportunidades para cumprilos.
Políticas específicas no apoio sociofamiliar podem representar uma
forma de resgatar a oportunidade da vivência da adolescência e
contribuir para que a família constitua-se em retaguarda de apoio e
não em peso a ser sustentado.
Urbana
Homens
10 a 14 anos
15 anos
16 e 17 anos
18 e 19 anos
20 a 24 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
50 a 54 anos
55 a 59 anos
60 a 64 anos
65 a 69 anos
70 a 74 anos
75 a 79 anos
80 anos ou mais
Total
Mulheres
Rural
Homens
Mulheres
6.578
3.136
31.197
148.734
1.545.511
2.944.979
3.669.091
3.818.443
3.488.203
2.959.791
2.399.226
1.784.073
1.471.792
1.121.685
832.207
505.355
398.954
3.082
2.895
19.454
60.218
389.454
648.292
877.792
1.089.443
1.174.989
1.109.335
1.007.541
861.296
830.814
728.941
612.718
410.194
379.453
2.409
1.179
10.362
43.315
398.469
676.217
804.791
822.543
735.504
656.636
586.321
503.411
434.142
321.223
235.137
146.967
126.885
520
391
2.098
4.751
26.004
40.449
56.165
68.192
77.542
82.288
89.977
97.964
101.317
93.569
82.859
61.459
69.179
27.128.955
10.205.911
6.505.511
954.724
Fonte: IBGE - Censo Demográfico 2000
Situação da
Adolescência Brasileira
// Tabela 4 - Pessoas responsáveis pelos domicílios particulares permanentes
21
Teatro transforma vidas
Em escolas e espaços comunitários de Salvador, Bahia,
adolescentes do Centro de Referência Integral para
Adolescentes, CRIA, apresentam peças de teatro que
falam da escola, da família e de suas paixões. As
encenações mudam a vida de quem está no palco e de
quem está na platéia.
“Seu” José Ferreira é vigilante noturno em Salvador. Vira as noites
trabalhando. Mal o dia amanhece, ele coloca a mochila com o figurino
nas costas, sobe no palco e entra em cena na peça “Diálogos”, montada
no pátio de escolas públicas da capital baiana. Um de seus companheiros
no tablado é seu filho caçula. O tema da peça é a importância da
conversa entre pais e filhos sobre a sexualidade e o autocuidado.
“Seu” José é um ator e um pai cheio de orgulho. “Minha vida mudou
100%, eu fiquei mais consciente e o meu filho se tornou meu grande
amigo”, conta.
Desde 1994, o CRIA aposta nas artes cênicas para informar, mobilizar
e melhorar a vida de milhares de adolescentes em Salvador. Atualmente,
o Centro trabalha diretamente com 80 jovens, chamados de
multiplicadores. Eles formam as trupes de teatro e percorrem escolas
de Salvador, apresentando peças com temas de interesse dos
adolescentes. Há textos sobre prevenção de doenças sexualmente
Situação da
Adolescência Brasileira
transmissíveis e gravidez precoce, a escola e a melhoria no sistema
de ensino, o diálogo com os pais, a participação comunitária, o
22
vestibular, violência e drogas. “O grande diferencial das peças é que
falamos sobre coisas muito sérias, mas de uma forma leve e de fácil
compreensão”, explica o ator Cássio Vinicius da Silva, 18 anos. Por
sua capacidade de falar diretamente com milhares de adolescentes, o
CRIA, embora seja uma organização não-governamental de pequeno porte,
consegue impactar as políticas públicas que garantem os direitos à
saúde, educação, cultura e participação dos adolescentes. “Nosso
objetivo é abrir um espaço de escuta para as questões da juventude e,
a partir dessa escuta e da construção coletiva, elaborar propostas de
intervenção na sociedade”, esclarece a coordenadora pedagógica do
projeto, Eleonora Rabelo.
As apresentações do CRIA são sempre seguidas de debates com a
platéia. Nas escolas, alunos e professores trocam idéias e opiniões,
esclarecem dúvidas e sugerem estratégias e soluções. “Trabalhamos
muito com o conceito de mobilização social e nossa intenção é fazer
de nossos meninos cidadãos conscientes e exigentes”, diz Rabelo.
Arte & Cidadania
Além do trabalho de educação pelo teatro, o CRIA é responsável
200 instituições sociais para debater e formular propostas de
políticas públicas de saúde e educação para adolescentes. Os
adolescentes participam ativamente propondo estratégias para a
melhoria de suas escolas, de seus bairros, de atendimento em
postos de saúde, entre outras.
O MIAC surgiu em 1997 depois que um dos adolescentes do grupo
de teatro do CRIA foi preso e torturado pela polícia.
Atualmente, em seus festivais anuais, o MIAC reúne mais de 3
mil pessoas, entre crianças, adolescentes e adultos, em torno
de temas como a arte e os direitos humanos.
Situação da
Adolescência Brasileira
também pela coordenação do Movimento de Intercâmbio Artístico
Cultural pela Cidadania (MIAC), uma rede que agrega mais de
23
3. Desafio na promoção do conhecimento, da educação e da
inserção no mundo do trabalho
Como fase da vida de rápida aprendizagem, de curiosidade e busca, de
desprendimento para viver novas descobertas, a adolescência constituise também em um desafio para a integração de políticas que possibilitem
o seu desenvolvimento integral.
Associar a questão do conhecimento às demais experiências da vida é
um importante desafio a ser enfrentado. Nessa perspectiva as políticas
de educação não podem continuar centradas na escolarização pura e
simples. A educação dos mais de 21 milhões de adolescentes brasileiros
é, sem dúvida, o maior desafio das políticas sociais do País neste
início de milênio. Entretanto, esse desafio precisa ser enfrentado
por um trabalho conjunto entre a escola, a família, comunidade, ONGs
e demais instituições responsáveis pela proteção à infância e à
adolescência.
Nesse processo, a escola
é obviamente uma
instituição de vanguarda.
Juntamente com a família,
desempenha papel decisivo
na formação dos
adolescentes como
sujeitos plenos, capazes
de exercitar seus
direitos e corresponder
com seus deveres na
sociedade que integram
como cidadãos.
Entretanto, isoladamente,
a escola não consegue
responder à sua principal
tarefa de dar as
condições necessárias
para o exercício da
cidadania.
Além dessa necessidade de
integração de políticas
em torno de um processo
Situação da
Adolescência Brasileira
de educação integral, há
desafios específicos a serem enfrentados.
24
Como mostram as análises dos dados disponíveis, há graves
distorções na oferta de ensino de qualidade aos adolescentes
brasileiros. Enquanto no País 91,7% dos adolescentes estão
matriculados na escola, apenas 33% com idade entre 15 e 17 anos
estão matriculados no Ensino Médio. Regionalmente, as
disparidades são ainda mais impressionantes. No Estado de São
Paulo, 54,7% dos adolescentes de 15 a 17 anos estão matriculados
no Ensino Médio. Em Alagoas, esse índice é de 11,8%.
Em todo o País, existem mais de 1,3 milhão de adolescentes analfabetos.
Ou seja, de cada 100 adolescentes, mais de 5 (5,2%) não sabem ler nem
escrever. Em Alagoas, esse índice chega a 18% – a maior taxa de
analfabetismo de adolescentes no País – e, em Santa Catarina – a menor
–, 1,3%.
No ano 2000, apenas 11,2% dos adolescentes com idade entre 14 e 15
anos concluíram o Ensino Fundamental. Oito estados brasileiros (vide
tabelas ao final) obtiveram desempenho superior à média nacional e 19
obtiveram uma média inferior à média nacional.
Houve um crescimento importante na taxa de conclusão do Ensino
Fundamental e no acesso ao Ensino Médio. Entre 1991 e 1999, o índice
de matrícula de adolescentes de 15 e 17 anos no Ensino Médio passou
de 17,6% para 32,6%, um crescimento anual médio de 11,5% ou mais de
4 milhões de novos estudantes na terceira fase da educação básica.
A educação básica: um direito do adolescente como
cidadão
O processo educativo básico contribui não apenas com uma melhor
qualificação profissional e melhores salários, como assegura o acesso
dos indivíduos a um conjunto de conhecimentos necessários para participar
da vida pública e enfrentar as dificuldades impostas pelos processos
das diferentes formas de globalização.
Dentro desses desafios, a adolescência é um período de vida precioso
para o desenvolvimento de habilidades intelectuais necessárias a
essas novas realidades. Isso inclui fundamentalmente o desenvolvimento
da inteligência, que na adolescência atinge a fase do pensamento
formal, condição essencial para todo o trabalho de raciocínio mental
e abstrato.
Nessa fase importante da formação da personalidade, a escola constitui
referencial estruturante. Em seu projeto pedagógico, a escola deve
promover atividades que estimulem o amadurecimento do adolescente.
Portanto, cabe à escola, além das ações específicas da escolarização,
assumir um papel de instância formadora para exercício da cidadania
em todas as suas dimensões.
O estímulo ao pensamento crítico, ao debate, às descobertas, aos
desafios intelectuais são muito importantes. Nesse momento, as
A escola: espaço para o exercício da participação
Assim como na família, o adolescente precisa encontrar, na escola,
espaços para exercer sua participação, enfrentando os limites impostos
pela sociedade e pelas leis de convivência social e aprendendo a
negociar em vez de apenas submeter-se ou se impor.
Para garantir o direito à participação, a escola deve oferecer
espaços para que os adolescentes se expressem. Nesse sentido, são
fundamentais atividades artísticas e de expressão de todo o gênero:
literárias, cênicas, musicais, esportivas. Esses canais de expressão
podem representar recursos preciosos e funcionar como oficinas de
Situação da
Adolescência Brasileira
experiências vividas na escola pelos adolescentes são muito valiosas
em seu processo de socialização e de desenvolvimento.
25
discussão sobre temas de interesse, nas quais exercitem a habilidade
de expressão verbal de seus sentimentos e de seus posicionamentos e
aprendam a construir propostas, em processos participativos e coletivos
de resolução dos problemas. Além disso, adolescentes podem – e devem
– participar na elaboração dos planos e projetos pedagógicos da
escola, bem como ser estimulados para o associacionismo, seja em
grêmios estudantis ou em outras formas organizativas.
Essas atividades, a serem realizadas no contexto de outras atividades
educativas na escola, estimulam o desenvolvimento emocional e cognitivo
dos adolescentes e lhes dão oportunidades de exercitar, na escola,
seu desenvolvimento social do ponto de vista de sua participação
coletiva, como cidadãos de direitos e de deveres.
A garantia do direito à participação é mais que um exercício
complementar na escola. Na verdade, os processos participativos da
gestão escolar, do processo pedagógico e das relações entre educador
e educando têm muito a ver com o desafio de melhoria da qualidade do
ensino, baseada no aprimoramento dos processos de ensino e
aprendizagem.
Estudos recentes apontam que um dos mitos mais importantes derrubados
por terra no final dos anos 80 foi o da evasão precoce. O estudante
brasileiro permanece, em média, oito anos e meio na escola fundamental.
Porém, avança somente até a 4ª série. Assim, a maioria dos alunos com
enorme defasagem entre idade e série cursada não entrou tardiamente
no sistema escolar por falta de escola ou por necessidade de trabalho,
como em alguns momentos se pensou. A defasagem é gerada internamente,
no próprio sistema educativo.
É importante lembrar que os quatro primeiros anos do Ensino Fundamental
são decisivos para o desenvolvimento cognitivo rumo ao estágio das
operações formais e das habilidades intelectuais subjacentes para
acompanhar o programa de ensino. Pesquisas recentes sobre as
dificuldades do adolescente em prosseguir os estudos a partir da 5ª
série do Ensino Fundamental apontam para a importância da qualidade
da alfabetização como fator de fixação e continuidade na escola.
Em seu processo classificatório, é importante que a escola se
preocupe em não perpetuar desigualdades e injustiças sociais próprias
do sistema ao desconsiderar, por exemplo, as disparidades produzidas
pela próprio modelo econômico, social e cultural predominante no
Situação da
Adolescência Brasileira
País.
Na adolescência, assim como na infância, as dificuldades escolares
26
por defasagens ou diversidades culturais não podem ser confundidas
com déficits intelectuais, sob o risco de legitimar um discurso há
muito combatido, denominado “a cultura da pobreza”. O adolescente,
por características próprias de sua idade, torna-se especialmente
sensível aos olhares discriminatórios e de injustiça.
Esses aspectos permitem-nos perceber dois tipos de excluídos da
escola. Os excluídos que estão dentro da escola e os que estão fora
da escola.
27
Situação da
Adolescência Brasileira
Todos mais bonitos
Duas meninas encontram-se em um projeto chamado
Arte de Viver e decidem transformar sua vida e a vida
dos adolescentes de seu bairro em Belém. Com outras
oito amigas, conquistam o apoio de outros
adolescentes e de adultos e abrem os portões de uma
escola para a alegria, a arte e o respeito pelo outro.
Há três anos, a Escola de Ensino Fundamental Comandante Katau, no
bairro do Barreiro, em Belém, é um lugar mais bonito. Os adolescentes
que brincam, conversam e dançam no pátio da escola também são mais
bonitos. Há rodas de capoeira, aulas de dança, reforço escolar. A
música enche o ar, traz da rua para a escola crianças e adolescentes
e transforma histórias de exploração em relatos de alegria. As
atividades são parte do projeto “Fazer o Outro Bonito”.
O projeto foi idealizado e criado por dez meninas do bairro, um dos
mais pobres de Belém, onde não há saneamento básico e as famílias
contam com o trabalho de seus filhos para complementar a renda.
Gisele Tenório da Costa, 21 anos, e Glaciene Rodrigues, 17 anos, são
duas das criadoras do projeto. Depois de experiências de exploração
sexual e de vender balas nas ruas durante todo o dia para conseguir
algum dinheiro, elas quiseram fazer mais bonitas a vida delas e a
vida de seus amigos. “As meninas que protagonizaram o Fazer o Outro
Bonito encontravam-se em situação de extremo risco. Estavam
constantemente sujeitas às drogas, à prostituição e à miséria. Hoje
elas se tornaram referência para outras meninas”, conta o padre
Bruno Sechi, coordenador do Movimento de Emaús, onde as meninas
Situação da
Adolescência Brasileira
encontraram-se pela primeira vez. Atualmente, todas elas estudam em
28
programas de aceleração escolar, são monitoras do projeto Fazer o
Outro e recebem bolsa-auxílio.
A Escola Comandante Katau é a sede do projeto e todos ali estão
envolvidos de alguma forma nas atividades. Fora dos horários de aulas
regulares e principalmente nos finais de semana, o colégio abre suas
portas para 300 adolescentes que freqüentam as oficinas de capoeira,
teatro, dança e artes plásticas. Também são organizados debates
sobre temas que interessam a comunidade, como participação comunitária,
segurança, abuso de drogas e sexualidade.
A essência do projeto Fazer o Outro Bonito é resgatar a auto-estima
desses adolescentes e despertar neles a dignidade e a noção de
direito e cidadania. O nome do projeto foi escolhido pelas próprias
meninas que o criaram. “A partir do momento em que saímos da rua e
notamos a nossa capacidade de ajudar os outros, começamos a nos
sentir mais bonitas, mais autoconfiantes. E é isso que estamos
tentando fazer outras pessoas sentirem”, explica Glaciene Rodrigues.
O projeto tem apoio do UNICEF e da Secretaria Municipal de Educação
Situação da
Adolescência Brasileira
de Belém.
29
Adolescência, escola e mundo do trabalho
Além de vencer os processos de exclusão que ainda caracterizam
grande parte do sistema de ensino, há ainda o desafio de vinculá-lo
às expectativas dos adolescentes em relação ao mundo do trabalho.
A educação profissional realizada de forma segmentada e apartada do
sistema de ensino, por meio de cursos de curta duração e sistemas
distintos e desarticulados, faz com que não se tenha no País uma rede
de programas de educação que concilie os conteúdos do ensino formal
com as necessidades do mundo do trabalho.
A contribuição das organizações não-governamentais e do setor privado
tem sido relevantes para o desenvolvimento de metodologias e abordagens
da profissionalização que necessitam ser incorporadas a um sistema
público e universal.
A legislação brasileira proíbe qualquer forma de trabalho antes dos
14 anos de idade e dos 14 aos 16 só admite na condição de aprendiz.
Entretanto, essa aprendizagem não pode substituir a escolarização,
nem se dar descolada dela, sob o risco de tornar precária a formação
integral do adolescente, promover sua inserção precoce e limitada no
mercado de trabalho e diminuir suas chances de realização pessoal e
profissional nesse universo, em função da
obrigatoriedade de
satisfação das necessidades imediatas.
A inexistência de dados sobre a educação profissional em relação aos
adolescentes e a informação de que apenas 11,2% dos adolescentes de
14 e 15 anos de idade concluíram o Ensino Fundamental, demonstra a
fragilidade dos processo formativos neste campo e a urgente necessidade
Situação da
Adolescência Brasileira
do País em estruturar uma rede de educação profissional fundada em
uma reestruturação e melhoria do sistema público de ensino.
30
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Situação da
Adolescência Brasileira
Profissionalização & arte no
Projeto Axé
No candomblé, Axé significa a força ou a energia criativa
que permite que todas as coisas do Universo existam e
dá a elas um sentido para sua existência. Axé é o nome
do projeto, com 12 anos de atuação, para a garantia dos
direitos de meninos e meninas em situação de pobreza
em Salvador, Bahia.
No Projeto Axé, arte e educação não são complementos, nem sequer
palavras com sentidos diversos. Arte e educação têm o mesmo significado
para os mais de 1,5 mil crianças e adolescentes que participam do
projeto e para seus educadores. “Quando colocamos os meninos em
contato com a obra de arte, seja qual for a origem, isso desperta
neles noções de cidadania. A arte incita nos jovens o desejo e
proporciona a construção de um projeto de vida”, ressalta o educador
e coordenador do projeto, Cesare La Rocca.
Robson de Souza é um desses meninos “desejantes” do projeto. Aos 17
anos, orgulha-se em ter o Axé como sua segunda casa. Antes de
encontrar o projeto, Robson dormia nas ruas de Salvador e pedia
dinheiro nos sinais de trânsito da cidade para jogar fliperama. Nos
primeiros contatos com os educadores do Axé, desconfiou. “Pensei que
fosse gente do juizado de menores* e saí correndo”, lembra, sorrindo.
Para Robson, o projeto mudou sua vida e de seus cinco irmãos, que
também estão envolvidos em atividades do Axé. O adolescente voltou
a morar com a família e cursa a 1ª série do Ensino Médio. “Quero ser
um cidadão e sei que vou conseguir ser” diz, cheio de confiança e de
boas expectativas para o futuro.
Situação da
Adolescência Brasileira
Como Robson, Nívea Rita Franco, 17 anos, também tem no Axé sua
segunda casa. Seus colegas e monitores são seus grandes amigos.
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“Aqui eu me abro, conto minhas alegrias e problemas para os educadores
e para os meus amigos”.
* Embora ainda seja parte do discurso de muitas pessoas, os
Juizados de Menores deixaram de existir desde a criação do
Estatuto da Criança e do Adolescente. O atendimento a crianças é
feito em diferentes instâncias dentro do chamado Sistema de
Garantia de Direitos, que inclui conselhos tutelares, conselhos
de direitos, centros de defesa, delegacias especializadas no
atendimento a crianças e adolescentes, promotores e juízes nas
Varas da Infância e da Juventude.
A mistura de arte e educação inclui ainda a profissionalização. Os
amigos Nívea e Robson, por exemplo, participam das atividades do
Modaxé, um dos braços do Axé voltado à formação profissional dos
adolescentes em moda com destaque para o senso estético, para a
beleza. “No curso, aprendemos muito mais que costurar”, conta Nívea.
As aulas incluem noções de história da arte e de literatura. Assim, os
adolescentes criam suas próprias coleções. O trabalho inclui também
debates sobre a realidade dos adolescentes, temas como drogas, violência,
a situação do bairro onde vivem, entre outros. “Procuramos desenvolver
a percepção crítica dos educandos e fazê-los inventar a partir da
realidade que os cerca”, explica Licínia Lírio, educadora do Axé.
Para participar do trabalho no Axé, os adolescentes precisam freqüentar
a escola formal. Um dos desafios do Projeto é estimulá-los a freqüentar
as aulas e ter bons resultados. Por isso, há quase três anos, o Axé
gerencia a Escola Municipal Barbosa Romeu, da rede municipal de
ensino. Na escola, os professores são da prefeitura, a proposta
pedagógica é elaborada em parceria com os educadores do Axé e conta
com a participação dos próprios alunos. Todo o processo é aprovado e
acompanhado pelo Conselho Municipal de Educação. Atualmente, a escola
atende cerca de 1,1 mil alunos – 600 são crianças e adolescentes
atendidos pelo Axé, as outras crianças vivem na comunidade do Bairro
Desde sua criação, o Axé conta com o apoio do UNICEF e de outras
instituições.
Situação da
Adolescência Brasileira
de São Cristóvão, próxima à escola.
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4. Desafio para a valorização da vida, para o desenvolvimento
da saúde e da sexualidade
Informações epidemiológicas sobre adolescentes são escassas e estão
quase sempre influenciadas pelo referencial das doenças e de
comportamentos de risco. Além disso, em geral, as estatísticas de
saúde não estão organizadas por faixas etárias específicas, o que
dificulta as comparações entre comunidades ou regiões.
Na adolescência, os cuidados com a saúde extrapolam a atenção médica
e pedem atendimento multidisciplinar, com um enfoque de promoção de
saúde num sentido mais amplo, com equipes especializadas e competentes,
capazes de acolher os adolescentes na complexidade de suas demandas,
incluindo políticas de promoção de saúde mental, com serviços
especializados para adolescentes.
Essa abordagem da saúde integral entende o adolescente em seus
aspectos físicos, afetivos, cognitivos, numa interação dinâmica com
o seu contexto sociocultural. Nessa fase da vida, as políticas de
saúde do adolescente devem fortalecer programas preparados para a
abordagem de questões próprias da adolescência como o desenvolvimento
da sexualidade, as relações amorosas, o lazer, o consumo de drogas,
a iniciação sexual e a prevenção das DST/AIDS, as relações familiares,
os grupos de pares, a escolha profissional.
Nesse sentido, desempenham papel importante os espaços próprios e
adequados ao adolescente nos serviços da rede pública, serviços que
lhes permitam cuidar de sua saúde tanto física como mental. Fundamental
também é o caráter preventivo de todo o investimento na promoção de
saúde do adolescente, afinal trata-se de uma idade de consolidação
e de aquisição de hábitos de vida que irão marcar todos os comportamentos
adultos relativos aos cuidados com a saúde: hábitos alimentares, uso
e abuso de drogas, relações sociais e afetivas, práticas de violência,
práticas sexuais e comportamentos de risco.
Uma política de estímulo ao autocuidado e autoproteção configurase em um desafio de múltiplas políticas nas quais educação,
saúde, cultura, esporte, lazer, assistência social desempenham
tarefas específicas mas profundamente articuladas em um processo
no qual o acesso à informação tem ligação direta com o acesso aos
serviços, condição básica para a mudança de atitude.
Situação da
Adolescência Brasileira
A sexualidade é uma das dimensões essenciais no desenvolvimento
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humano e, portanto, no desenvolvimento dos adolescentes. A iniciação
sexual na adolescência é uma experiência marcante que terá repercussões
também no decorrer da vida sexual adulta.
Os adolescentes podem ser apoiados para que dêem início à vivência
da sexualidade com a devida maturidade e responsabilidade. Ou seja,
com condições de assumir a vida amorosa e afetiva com o parceiro em
todas as suas conseqüências. Para isso, é fundamental que sejam
considerados como pessoas e não apenas em seus impulsos, sejam eles
sexuais ou de qualquer outra natureza. Acompanhamento e diálogo com
os adolescentes precisam ser oferecidos tanto pela escola como pela
família. Os programas de educação e de saúde sexual para adolescentes
devem prever também espaços de discussão para os pais, educadores e
outros profissionais que lidam com adolescentes.
Sendo a adolescência uma fase privilegiada na aquisição de muitos dos
hábitos de vida que poderão ser ou não saudáveis, esse é um momento
fundamental para a promoção da saúde em um caráter preventivo. Porém,
isso nem sempre é possível. Além das dificuldades da própria família
e de profissionais envolvidos com os adolescentes e de questões
culturais, os adolescentes têm forte tendência a viver basicamente o
presente.
Exemplo disso é a relação dos adolescentes com o consumo
de bebida alcoólica. Sabe-se que o alcoolismo é uma
dependência química que se instala lentamente e se
revela em geral na vida adulta. No entanto, é na
adolescência que o hábito de beber tem início e que
a prevenção deve ocorrer.
A ingestão abusiva de bebida alcoólica por
adolescentes, ainda que não caracterize estado de
dependência, tem sido responsável por
considerável índice de mortes entre os
jovens, tanto por práticas de violência
como por acidentes de trânsito. Além disso,
o consumo de bebidas alcoólicas pode gerar
desadaptação escolar, desentendimentos
familiares ou outros problemas na condição
física e psíquica do adolescente.
A pesquisa Avaliação das Ações e Prevenção
de DST/AIDS e Uso Indevido de Drogas nas
Escolas de Ensino Fundamental e Médio em
Capitais Brasileiras, produzida pela
Organização das Nações Unidas para a
Educação, Cultura e Ciência (Unesco/2001)
revela que, em 14 capitais brasileiras, a
porcentagem do uso de drogas ilícitas
pelos alunos variou de 2%, no Ceará, a
15%, no Rio de Janeiro e Rio Grande do
Sul. Segundo a pesquisa A Voz dos
Adolescentes (UNICEF/Fator OM/2002),
que trabalhou com público semelhante,
15% dos adolescentes entrevistados
disseram que usam ou já utilizaram algum
tipo de droga.
adolescência a pesquisa A Voz dos
Adolescentes (UNICEF/Fator OM/2002)
constatou que 32,8% dos adolescentes
mantém ou já tiveram relação sexual.
Desses, 16,6% já engravidaram, e, dos
que engravidaram, 28,8% declararam que
não tiveram o bebê.
A mesma pesquisa indicou que, pelo
menos, 48,5 % dos adolescentes que mantém
ou já tiveram relação sexual não usam
preservativo ou não usam sempre.
Situação da
Adolescência Brasileira
Em relação ao tema da sexualidade na
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Acolhimento e equilíbrio em
situação de risco
Para enfrentar o desafio da inclusão social de cerca de 100
mil crianças e adolescentes vivendo em estado de
indigência e exclusão – segundo o IPEA –, um projeto em
Porto Alegre dá prioridade ao atendimento a meninas e
meninos expostos à exploração do trabalho infantil, à
exploração sexual, à violência física e psicológica, ao uso
abusivo de drogas e à situação de rua.
Mãos sujas de argila e papel marchê, sorriso no rosto, cuidados e
atenção. Nesse cenário acolhedor, estão as meninas e os meninos que
participam do Programa Municipal de Atenção Integral a Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua – PAICA-Rua, coordenado pela Prefeitura
de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
O programa, criado em 1997, tem o desafio de lidar com um dos mais
complexos problemas enfrentados por adolescentes, o uso abusivo de
drogas. Por isso, é ampla a rede de atendimento do projeto, desde o
atendimento de saúde na chamada Casa Harmonia até a Casa de Acolhimento
Noturno e a Escola Porto Alegre. Como o próprio nome diz, o projeto
dá assistência integral aos meninos, diminuindo ao máximo os fatores
de risco e ajudando-os a mudar de condição.
Criada há dois anos com apoio do UNICEF, a Casa Harmonia é parte do
Programa. Ali, adolescentes em situação de rua e com histórico de
abuso de drogas encontram apoio e atividades educativas durante o
dia. A casa funciona das 8h às 18h, e os adolescentes podem participar
de oficinas de teatro, artes plásticas, capoeira e rap, além de
receber acompanhamento médico e psicológico.
Ao lado da Casa Harmonia, está a Escola Porto Alegre (EPA). A Escola
tem uma missão bem maior do que alfabetizar e trabalhar o conhecimento
com os meninos em situação de rua que vivem na cidade. “O objetivo
é ser uma instituição de travessia e reintegração social”, explica
a diretora da escola, Maria Lúcia dos Reis. O trabalho da escola é
apoiar os adolescentes em um período de transição, oferecendo ensino
formal especializado até sua matrícula em uma escola da rede pública
de ensino. Segundo Maria Lúcia, apesar da EPA ser exclusiva para
meninos em situação de rua, ela não tem o objetivo de isolá-los da
sociedade. A equipe da Escola Porto Alegre ajuda o adolescente a
resgatar sua história pessoal e, quando seus laços familiares rompemse, estimula-os a reatar a relação com a família.
Durante a manhã, os meninos freqüentam as aulas de aceleração escolar
do Ensino Fundamental. À tarde, participam de atividades complementares,
como oficinas de informática, de artes e de temas educativos. “O mais
interessante é que foram os próprios adolescentes que pediram essas
atividades. Foi uma maneira que encontraram de ficarem mais tempo
longe das drogas”, esclarece a diretora.
O Programa de Atenção Integral também apóia as famílias dos
adolescentes, oferecendo acompanhamento psicológico e assistência
social. Na maioria das vezes, são famílias com baixíssima renda e
acesso restrito a bens e serviços de necessidade básica. Esse
trabalho com as famílias é feito a partir do Núcleo de Apoio SócioFamiliar (NASF) e inclui, em alguns casos, complementação de renda
e atividades comunitárias entre famílias de um mesmo bairro. Além
de apoiar os adolescentes já em situação de rua, o núcleo tem um
trabalho preventivo importante.
Programa de Atenção Integral e hoje é um exemplo para todos os outros
meninos do programa. Ele foi aluno da Escola Porto Alegre, freqüentou
a Casa Harmonia, os abrigos noturnos e, recentemente, o curso
profissionalizante Papel Social. Rafael conseguiu juntar dinheiro
para comprar a própria casa, onde mora com a esposa – que conheceu na
rua – e com a filhinha, que tem menos de um ano. “Só penso em
trabalhar e criar minha menina. Não quero nem mais ouvir falar em
droga. Para mim, isso é passado”, conta.
Situação da
Adolescência Brasileira
Marcus Rafael, 20 anos, foi um dos adolescentes atendidos pelo
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A prevenção da gravidez e das DST/AIDS na adolescência
// Número de adolescentes que declararam ter relação sexual segundo o uso
de preservativo
Fonte: A Voz dos Adolescentes, UNICEF/FatorOM/2002 – Pesquisa Nacional com 5.280 adolescentes.
Assumir uma vida sexual ativa na adolescência implica prevenir os
possíveis problemas dela decorrentes, como as doenças sexualmente
transmissíveis (DST) – com destaque para o HIV/AIDS – e a gravidez
na adolescência.
Uma política de prevenção nessa área deve ter como enfoque a educação
sexual como um todo. Embora seja possível presenciar versões
romantizadas sobre a experiência de ser mãe ou pai adolescente, é
preciso considerar que, na área específica da saúde física, problemas
decorrentes da gravidez, parto, pós-parto e de abortos constituem
Situação da
Adolescência Brasileira
uma das causas de maior incidência de hospitalizações e mesmo de
óbitos de adolescentes do sexo feminino.
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Isso sem levar em conta as implicações em outras esferas da vida dos
adolescentes (escolaridade, profissionalização, relação com sua
família e amigos).
Essas dificuldades, além de outros aspectos subjetivos, levam muitas
adolescentes que engravidam a optar pela interrupção da gravidez em
clínicas clandestinas ou usando práticas caseiras, correndo sérios
riscos para sua saúde e, por vezes, riscos de morte.
A pesquisa A Voz dos Adolescentes (UNICEF/Fator OM/2002) informa que
28,8% dos adolescentes que engravidaram (meninas) ou engravidaram
alguém (meninos) não tiveram o filho.
Por outro lado, adolescentes que decidem ter o bebê, quase sempre sem
condições psicológicas e financeiras para isso, acabam prolongando,
ainda mais, seu período de dependência da família, em diferentes
níveis. Além disso, a possibilidade de um adolescente assegurar a seu
filho todos os seus direitos é condicionada por fatores que vão desde
sua condição financeira, escolaridade e maturidade até seu grau de
dependência em relação à sua própria família e às condições desta.
// Número de adolescentes com relação sexual em relação à gravidez e a ter o
filho
Fonte: A Voz dos Adolescentes, UNICEF/FatorOM/2002 – Pesquisa Nacional com 5.280 adolescentes.
Esses indicadores revelam que a adolescência brasileira enfrenta
situações de vulnerabilidade que devem ser enfrentadas de forma
ampla e imediata.
Os desafios colocados demandam políticas com princípios baseados na
preservação da vida, da integridade psíquica e física e da liberdade,
respeito e dignidade como seus valores fundamentais.
íntimo e pessoal são garantias que devem ser asseguradas a todos os
adolescentes. Sua participação em todos os processos será valorizada
como forma de dar coerência à política com as reais necessidades e
direitos dos adolescentes.
A integração de políticas, programas e serviços das diferentes áreas
das políticas públicas será o princípio básico para a otimização de
recursos e garantia de efetividade, bem como o envolvimento da
família como núcleo básico de vivências, apoio e aprendizagens.
Além disso, o grande desafio a ser enfrentado para a redução da
vulnerabilidade na adolescência é a garantia do direito à informação
associado ao acesso a serviços básicos.
Situação da
Adolescência Brasileira
O respeito à subjetividade, a privacidade e às decisões de caráter
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Meninas & mães
Em São Luís, no Maranhão, num dos bairros mais
populosos da cidade, garotas recebem orientação sobre
planejamento familiar em divertidas oficinas de teatro
para gestantes, com atendimento pré-natal e apoio para
cuidar de seus bebês.
Do outro lado do muro da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) está
o bairro de Vila Embratel, uma das regiões mais populosas de São
Luís. Ali, é comum ver o esgoto correndo a céu aberto, poucas são as
ruas asfaltadas e praticamente não existem áreas de lazer para as
crianças e os adolescentes. E os problemas de infra-estrutura estão
longe de serem os únicos. Na comunidade da Vila, há um grande número
de adolescentes grávidas. Para dar uma resposta positiva a essa
situação, professores e alunos da Universidade romperam as barreiras
do campus e foram atuar na comunidade vizinha.
O projeto “O Jovem de Bem com a Vida”, desenvolvido pela Universidade,
com apoio do UNICEF, tem como objetivos prevenir e reduzir os riscos
de gravidez entre meninas de 10 a 19 anos, além de apoiá-las na busca
de novas perspectivas para sua vida. O projeto, criado em 1999,
transformou a vida de mais de 500 adolescentes da capital maranhense
e oferece programas de saúde e também atividades educativas, culturais
e profissionalizantes. “O Jovem de Bem com a Vida é um projeto
interdisciplinar. Nosso foco de trabalho é a questão do sentido da
vida e a valorização da pessoa”, completa o professor de medicina da
Universidade e coordenador do projeto, Fernando Ramos.
O Centro de Saúde Dom Oscar Romero, uma entidade filantrópica ligada
à Igreja Católica localizada na Vila Embratel, é umas das principais
unidades do projeto. Nele, as adolescentes grávidas têm acompanhamento
pré-natal, pós-natal e ginecológico, além de tratamento pediátrico
para seus filhos. Todas as semanas, são atendidas mais de 60 jovens
mães e crianças.
Situação da
Adolescência Brasileira
Aos 17 anos e no quinto mês de gestação, Gláucia de Holanda Silva
foi pela primeira vez ao centro de saúde para dar início aos exames
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pré-natais. Mãos dadas com a mãe, ela conta que soube do projeto por
outras amigas que também fizeram acompanhamento da gestação no
centro de saúde. Segundo a mãe, dona Raimunda, a filha demorou a
procurar acompanhamento médico, porque mantinha a gravidez em
segredo. “Fiquei desesperada, parecia que o mundo ia acabar”,
lembra a jovem.
Ansiosa, Danielle Viera Marinho também espera a consulta no centro.
Grávida aos 15 anos, ela abandonou os estudos na 8ª série do Ensino
Fundamental. O ex-namorado, pai da criança, não quer assumir o bebê.
Sentada no banco de espera, Danielle a todo instante ajeita-se na
cadeira. É a sua primeira consulta com um ginecologista. “Estou um
pouco nervosa, não sei como é. Sei que vou sentir muita vergonha de
falar as coisas com ele.”
Além do atendimento das meninas grávidas, o projeto desenvolve um
trabalho preventivo na Oficina de Planejamento Familiar. “Nós trabalhamos
muito para adequar a gravidez a um momento propício e planejado”,
explica Maria de Jesus Pacheco, pediatra e professora da Universidade.
O projeto também ajuda a quebrar a resistência das adolescentes a
visitar o posto de saúde. “No Brasil, as pessoas procuram o hospital
em caso de doença, não há o costume de se prevenir”, diz Maria de
Jesus. E completa: “É também um desafio conseguir atrair os adolescentes
homens para a oficina”.
A maior parte dos freqüentadores são meninas. A cada oficina são mais
de 20 adolescentes e, em sua maioria, mães. Lucilia, 17 anos, é uma
das exceções. Depois que a irmã de 15 anos ficou grávida, ela
resolveu precaver-se. “É difícil ser mãe adolescente, você perde
muitas oportunidades. Eu vi que não queria isso para mim agora, por
isso, resolvi participar da Oficina de Planejamento Familiar”, explica.
monitoras da Oficina de Planejamento Familiar. Ela entusiasma-se em
poder sair da sala de aula da universidade. “É muito bom ter a
oportunidade de poder apoiar alguém com o que se aprende na faculdade”,
explica.
Situação da
Adolescência Brasileira
O projeto reúne também jovens de diferentes classes sociais. Estudante
do curso de Pedagogia da UFMA, Mariana Rocha, 21 anos, é umas das
41
5. Desafio para o desenvolvimento integral por meio do
esporte, da cultura e do lazer
O adolescente é um desbravador do mundo, curioso por natureza e
sedento de novas experiências que ampliem seu mundo familiar e
escolar. A adolescência implica exatamente sair do círculo restrito
familiar para participar da sociedade que lhe acolhe como cidadão de
direitos e deveres, a partir da transmissão dos valores de sua
cultura. Em muitas sociedades, essa passagem é comemorada por rituais
de reconhecimento do jovem em sua nova condição.
Adolescentes precisam ser acolhidos e valorizados pela sociedade que
se enriquece com a sua participação na construção de uma cultura de
solidariedade, de participação e de maior justiça social. Para isso,
o adolescente precisa encontrar na sociedade os canais que necessita
para a expressão de seus sentimentos, de suas inquietudes, de sua
reflexão crítica e, sobretudo, de sua criatividade e sensibilidade
face às desigualdades sociais.
Atividades de arte, cultura, esporte e lazer representam espaços
privilegiados de evasão das energias positivas, mas também para
canalizar impulsos
destrutivos, angústias,
depressão, insegurança e
mesmo o desespero que por
vezes assaltam seus
corações e mentes. A carga
impulsiva, o turbilhão de
sentimentos e idéias que
afloram nesse momento da
vida do ser humano
representam ao mesmo tempo
sua potencialidade e seu
risco. Mesmo determinadas
experiências de
transgressão podem trazer
crescimento e
amadurecimento, desde que
reconhecidas em seu
significado e assumidas
como aspectos de um
processo de busca de
Situação da
Adolescência Brasileira
referências de autoridade e
de limites em uma fase em
42
que seu desejo é transpor a
tudo e a todos.
Nesse cenário de demandas de expressão e, também, de desejo de
participar de sua cultura e de descobrir os seus valores e sua
história, é fundamental a garantia dos direitos dos adolescentes à
participação em atividades de cultura, arte, esporte e lazer.
Existem pesquisas recentes que estabelecem importantes relações
entre ser sujeito produtor e consumidor de cultura e sentir-se uma
pessoa com responsabilidades sociais e mais gratificada consigo
mesma. Entretanto, os adolescentes brasileiros não têm um acesso
facilitado a esse tipo de serviços.
A pesquisa A Voz dos Adolescentes (UNICEF/Fator OM/2002) ouviu 5.280
adolescentes em todo o País e revelou que “ ir à casa dos amigos é o
principal entretenimento dos adolescentes, citado por 53% dos
entrevistados. A TV vem logo a seguir, como a segunda principal fonte
de diversão e lazer. Entre 20 opções possíveis (e não excludentes)
apresentadas no questionário, 51% dos adolescentes entrevistados
citaram a televisão. A porcentagem de adolescentes entrevistados que
respondeu “televisão” é maior que a dos que citaram atividades mais
dinâmicas, realizadas no espaço público, como passear pela rua e
praticar esportes (ambos com 47%)”
Ainda com dados da referida pesquisa, observa-se que o tempo médio
dedicado diariamente pelos adolescentes à TV é de 3h55min, índice que
mais do que revelar uma preferência pela TV pode ser explicado pela
falta de outras opções. Apenas 24% dos adolescentes entrevistados
informaram ter a possibilidade de participar de alguma atividade
artístico-cultural fora da escola; 83% não têm acesso a clubes de
lazer; 74,5% não podem freqüentar um cinema; 60% não têm onde
praticar esportes; e mais de 80% não dispõem de equipamentos públicos
ou comunitários que assegurem o direito ao esporte, cultura e lazer
Essas informações são parte da explicação para o quadro de violência
que envolve adolescentes especialmente no meio urbano e mais
precisamente nos cinturões de pobreza onde a inexistência dessas
atividades socializadoras abre espaço para outro tipo de socialização
entre pares resultando em atos anti-sociais como as chamadas “gangues”
ou “galeras”.
Situação da
Adolescência Brasileira
gratuitamente.
43
Estudos em andamento nos Espaços Criança Esperança demonstram que a
criação de espaços para o desenvolvimento de atividades artísticas,
culturais e esportivas tem forte impacto na redução da violência
nessas comunidades.
A auto-imagem positiva e a confiança em suas próprias qualidades são
ingredientes fundamentais para que o adolescente possa projetar-se
positivamente no futuro. O fato de vislumbrar um projeto de vida no
qual se situe familiar, profissional e socialmente parece ser a
melhor garantia para que o jovem não se envolva na prática de atos
violentos. Alguns estudos sobre adolescentes em conflito com a lei
revelam que esses meninos e meninas sofrem por perceber uma imagem
social negativa a seu respeito, vêem-se sem condições de pensar no
seu futuro e, portanto, sem perspectivas de mudança de atitude.
A grande via de transformações aberta pela participação em atividades
culturais e artísticas, em suas diferentes formas e natureza, é o
desenvolvimento da sensibilidade que faz o ser humano voltar-se para
o belo, para o estético e também para o outro e para o ético. Essa
dimensão da alteridade é ingrediente fundamental para a construção
de redes afetivas e sociais.
Portanto, têm grande valor os projetos que visam, por meio da arte
e da cultura, mobilizar adolescentes para ações de solidariedade e
para a formação de multiplicadores atuantes na promoção de cidadania
entre seus pares. No Brasil, existem muitos exemplos de projetos
dessa natureza, com bons resultados tanto do ponto de vista da
prevenção à violência e ao abuso de drogas, como de canais de
reinserção de jovens já envolvidos com drogas ou em conflitos com a
lei.
O alcance educativo e preventivo da participação juvenil em atividades
de cultura, esporte e lazer dependerá, antes de tudo, da qualidade
das propostas pedagógicas e de socialização desses projetos. Nessa
perspectiva, atividades de artes, esporte ou cultura não devem ter
um fim em si mesmas, mas constituem canais de expressão e vias de
acesso ao mundo das emoções, do belo e do sensível a ser valorizado
e resgatado nos adolescentes.
Essas atividades podem fazer parte de programas alternativos extraclasse
ou, melhor ainda, como atividades complementares à escola regular e
parte da própria proposta pedagógica da instituição, assim como
fonte de renovação das relações dos adolescentes com essas instituições.
A criação de clubes de cultura, de grupos de artistas, equipes de
esporte, organizações ecológicas podem ser embriões preciosos de
estímulo para a participação coletiva dos adolescentes. As vivências
Situação da
Adolescência Brasileira
grupais são muito importantes na motivação e no aprendizado das
habilidades necessárias aos adolescentes para uma participação efetiva
44
no coletivo, ainda na adolescência ou na vida adulta.
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Situação da
Adolescência Brasileira
Educação, esporte e proteção
Não é fácil lidar com o estigma. Adolescentes do Jardim
Ângela, em São Paulo, sempre se vêem referidos como
habitantes de um dos mais violentos bairros do mundo.
Porém, em um lugar chamado Espaço Criança Esperança,
eles fazem o bairro transformar-se em um espaço de
aprendizagem, esporte e solidariedade.
De segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, crianças e adolescentes ocupam
o complexo esportivo do bairro, um lugar com piscina, quadras
poliesportivas, salas de aula e espaços verdes. Ali, 2 mil meninas e
meninos praticam esportes sob a orientação de monitores capacitados,
têm reforço escolar e alimentação balanceada.
O lugar é alegre, como as crianças e adolescentes reunidos nas atividades.
Aos 17 anos, Michele Sofia Lima é uma das freqüentadoras do Espaço
Criança Esperança. Para ela, a tranqüilidade é o maior atrativo do
lugar. “Aqui não tem encrenca, é só calma”, explica. É verdade, a
violência do Jardim Ângela fica do lado de fora e, no Espaço, procurase construir um presente diferente para esses meninos e meninas.
“Pretendemos bem mais do que formar atletas ou artistas. Queremos
preparar cidadãos. Nós nos empenhamos em mostrar para os adolescentes
os direitos que eles possuem”, diz o diretor do Espaço, Geraldo
Salvador de Souza.
O Espaço Criança Esperança é um projeto mantido com recursos da
campanha Criança Esperança. O Espaço é resultado de uma parceria entre
a Rede Globo, o Instituto Sou da Paz, o Governo do Estado de São Paulo
e o UNICEF*. A Polícia Militar também participa da iniciativa, ajudando
a proteger o Espaço e encaminhando para a coordenação pedagógica
crianças e adolescentes em situação de risco.
* Há ainda um Espaço Criança Esperança no Rio
de Janeiro, na comunidade do Cantagalo, Pavão,
Pavãozinho. Ali também são oferecidas
atividades educacionais, culturais e
esportivas, complementares à escola regular.
No Rio, o Espaço é resultado de uma parceria
da Rede Globo, UNICEF, Viva Rio e Governo do
Estado do Rio de Janeiro.
Além das atividades esportivas e do parquinho para as crianças menores,
o projeto oferece também a crianças e adolescentes um núcleo multimídia,
com sala de informática, um estúdio de som e uma rádio comunitária.
“Isso permite aos adolescentes o uso da tecnologia para produzir
documentários, fazer páginas na Internet, criar o jornal do Espaço
Criança Esperança”, explica Sergio Sampaio, coordenador pedagógico do
Instituto Sou da Paz.
Uma das principais preocupações dos parceiros do projeto é o alto nível
de capacitação dos monitores e educadores, identificados principalmente
na própria comunidade do Jardim Ângela.
Outro parceiro fundamental do projeto são as famílias das crianças e
dos adolescentes. Elas são estimuladas a também freqüentar o Espaço e
acompanhar o desenvolvimento de seus filhos nas atividades. Os pais
reconhecem a importância do projeto e se sentem mais tranqüilos. “Nosso
maior objetivo é tirar os adolescentes do convívio com a violência e a
droga e colocá-los em uma atividade física e cultural”, explica o
professor de educação física Sílvio José de Almeida. Morador do Jardim
Ângela, ele entende com profundidade a realidade dos seus alunos. “Tudo
o que um menino de periferia precisa é a chance de estudar e se divertir
com saúde e segurança. O bairro não é violento por causa das pessoas que
Situação da
Adolescência Brasileira
moram aqui e sim pela falta de oportunidades para elas”.
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6. Desafio em função da prática de atos infracionais e do conflito com
a lei
A prática de atos infracionais por adolescentes gera polêmica, temores e
propostas de soluções desmedidas na sociedade brasileira. O entendimento
sobre a prática de infrações por adolescentes oscila entre a atribuição
exclusiva de responsabilidade ao próprio adolescente ou a responsabilização
das condições sociais nas quais o adolescente está inserido.
Essas percepções extremistas dificultam a compreensão de que o delito é uma
produção social e que o infrator age sempre num contexto de condições
objetivas que podem ora estimular ora inibir sua atuação, mas que não servem
como explicações únicas ao fenômeno do conflito com a lei por parte de
adolescentes.
Entre aqueles que atribuem exclusiva responsabilidade ao adolescente pela
prática de atos infracionais, costumam prosperar mitos sobre a periculosidade
do jovem, sua participação no aumento da violência e a necessidade do
agravamento de penas a eles aplicadas. A idéia de reduzir a idade de
inimputabilidade penal para 16 ou 14 anos origina-se dessa percepção equivocada
da infração e poderá ter graves conseqüências no aumento da criminalidade,
uma vez que inserido no sistema penal de adultos suas oportunidades de
recuperação e mudança de vida restringem-se significativamente.
Ainda não existe no País um sistema de registro de informações que permita
dimensionar com precisão o problema do cometimento de atos infracionais por
adolescentes. Essa ausência constitui a base para interpretações distorcidas,
baseadas em dados localizados e que geram na sociedade um sentimento de temor
em relação à violência dos adolescentes.
Pesquisas desenvolvidas com o apoio do UNICEF procuraram traçar um quadro
geral que permite apenas identificar alguns aspectos importantes desse
contexto:
A incidência de atos infracionais praticados por adolescentes é menor do que
8% da soma de delitos praticados por adolescentes e adultos.
A prática de delitos por adolescentes concentra-se nos delitos contra o
patrimônio, constituindo-se em 75% do total de delitos.
Aproximadamente 30 mil adolescentes são privados de liberdade a cada ano.
Situação da
Adolescência Brasileira
O desenvolvimento de uma política de controle do conflito com a lei por parte
dos adolescentes, a partir da consideração dos fatores pessoais e sociais que
o envolvem, implica a aplicação das medidas socioeducativas previstas no
Estatuto da Criança e do Adolescente e concebidas no marco da Convenção sobre
48
Nesses casos, o Estado deve investir em processos socioeducativos, a fim de
que os comportamentos transgressivos que os adolescentes expressaram em
os Direitos da Criança. Tanto o Estatuto quanto a Convenção determinam os 18
anos como idade mínima para a responsabilização penal. Portanto, antes dos 18
anos completos, a legislação prevê atenção prioritária, diferenciada e
específica por parte da família, da sociedade e do Estado aos adolescentes em
conflito com a lei.
infrações não venham a se tornar, por força da negação de seus direitos e
pela falta de oportunidades, em traços constitutivos de sua própria
personalidade.
49
Situação da
Adolescência Brasileira
Há três importantes desafios a serem enfrentados para assegurar um
atendimento digno aos adolescentes em conflito com a lei:
- Ampliar o atendimento aos adolescentes nas medidas em meio aberto,
especialmente pelos programas de Liberdade Assistida e Prestação de
Serviços à Comunidade. Esses programas de base municipal devem ser
apoiados tanto pelo governo federal quanto estadual, pois se constituem
na melhor alternativa para superar a concentração do atendimento em
regime de privação de liberdade.
- Elaborar políticas estaduais e municipais que integrem serviços de
diferentes áreas para o atendimento aos adolescentes em conflito com
a lei, permitindo-lhes construir uma trajetória de inclusão social,
garantia de direitos e participação positiva na sociedade.
- Extinguir as instituições que não se reordenaram conforme as
diretrizes da legislação brasileira, substituindo-as por uma política
descentralizada de atendimento a adolescentes em pequenos grupos e
próximos da sua comunidade origem.
Os estados mais ricos do País convivem, paradoxalmente, com os
piores sistemas de encarceramento de adolescentes, preservando
estruturas físicas totalmente obsoletas onde relações pedagógicas
são inibidas em função da violência e repressão a qual são submetidos
os adolescentes.
Oferecer aos adolescentes em conflito com a lei um projeto de
inclusão social é tarefa de toda a sociedade. Seus resultados serão
a ampliação da visão de mundo e das relações sociais não só dos
adolescentes autores de atos infracionais, mas de todos os atores
sociais envolvidos nesse processo. O maior desafio nessa área é o de
Situação da
Adolescência Brasileira
construir um sistema educativo no qual o projeto pedagógico possa
ser desenvolvido a partir dos diversos recursos de uma rede articulada
50
para o oferecimento de atenção integral e especializada aos
adolescentes.
51
Situação da
Adolescência Brasileira
Medidas fora do papel
Em Macapá, no Amapá, o Estatuto da Criança e do
Adolescente sai do papel. As medidas socioeducativas são
aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei, com
educação formal, participação da família e atividades
esportivas.
Dona Leuza Moraes não esconde a emoção quando fala de seu caçula. Com
os olhos cheios de lágrimas e a voz embargada, não consegue dissimular
a preocupação e a tristeza de ter de abrir mão da convivência diária
com o garoto. “O lugar é muito bom, ele está estudando e sei que os
direitos dele são respeitados, mas está longe da gente”, diz com um
nó na garganta.
O lugar a que Dona Leuza refere-se é o Centro Educacional Aninga, uma
unidade de internação da Fundação da Criança e do Adolescente
(FCRIA), responsável pela aplicação de medidas socioeducativas a
jovens em conflito com a lei. Essa experiência em Macapá (AP),
promovida pelo governo estadual, é um exemplo para todo o Brasil.
“Procuramos atender os adolescentes em todos os aspectos, desde as
atividades lúdicas até a assistência a suas famílias”, explica
Sandra Regina Smith Neves, diretora-presidente da FCRIA. Dentro do
centro funciona uma escola estadual onde são desenvolvidas oficinas
de teatro, dança, capoeira, judô e futebol.
Há mais de um ano, Cléber* cumpria sua primeira medida socioeducativa.
Nunca tinha freqüentado a escola em Jari, município próximo a Macapá
onde moram sua mãe e cinco irmãos. “Só ficava na rua, usando drogas,
nunca pensei em estudar”, explica. No Centro, ele freqüenta o
programa de aceleração escolar, faz aulas de teatro, capoeira e joga
bola. Cléber não esconde a saudade da família, mas garante: “Não
tenho vontade de fugir”.
Um dos grandes diferenciais do Centro Aninga é o sistema de gestão
Situação da
Adolescência Brasileira
compartilhada. Os adolescentes internados participam das decisões
que dizem respeito ao uso do espaço e dividem responsabilidades com
52
a equipe de educadores. Nas Oficinas de Integração, pedagogos e
adolescentes internos elaboram as normas e regras do Centro, escolhem
o cardápio e discutem o planejamento bimestral das atividades de
recreação. Segundo Sandra, “os adolescentes empenham-se muito para
cumprir as decisões e chegam a sugerir sanções para quem desobedecer
ao que foi acertado”.
Aos 14 anos, Vitor* foi obrigado a cumprir medida socioeducativa de
três meses de internação por envolvimento com drogas. Para ele,
participar da escolha das atividades do Centro é uma grande ajuda na
reintegração social dos meninos do Aninga. “Ficamos mais responsáveis
e nos recuperamos mais rápido”, diz, em tom sério.
Como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, os jovens do
Aninga têm acesso a cursos de profissionalização, embora o ensino
regular e a recreação tenham prioridade. Nos primeiros seis meses de
internação, os adolescentes experimentam atividades como a capoeira,
artes plásticas, teatro, judô, futebol. Há também trabalhos de
orientação sexual com os adolescentes. Os internos têm acesso a
preservativos e participam de palestras sobre prevenção de DST/AIDS
e saúde sexual. “A gente não nega a existência de relações entre
meninos. Isso não quer dizer que eles sejam homossexuais, mas essa é
a única forma encontrada para exercer a sexualidade”, esclarece a
coordenadora.
Outro grande diferencial é o trabalho com a família dos jovens
internados. A Oficina da Palavra funciona como um canal de diálogo
para os pais e também um espaço de reflexão. “As mães têm extrema
dificuldade de entender o que está acontecendo com o seu filho. Elas
sofrem muito e sentem-se culpadas”, explica Maria Goreth Souza,
diretora técnica do Centro. Durante as oficinas, os pais dos internos
trocam experiências e tiram dúvidas com o apoio de uma psicóloga.
Em média, ficam sob a responsabilidade do Aninga aproximadamente 40
internos. Cerca de 10% do total são meninas. Elas convivem no mesmo
espaço que os garotos, mas dormem em alojamentos diferentes. Sandra
garante que a interação entre ambos os sexos é uma experiência
inovadora e saudável. “Ajuda a criar um ambiente descontraído, as
meninas até recebem cartas”. O namoro entre os adolescentes privados
de liberdade não é incentivado, mas também não é proibido.
registro de rebeliões no Centro. Os problemas enfrentados pelos
educadores, garante a diretora, são os mesmos de anos atrás. O que
mudou foi a forma de encará-los. “Tumultos acontecem, mas sempre são
resolvidos com reuniões e conversa com os próprios meninos. Quase
sempre, são uma forma de pedir socorro”, explica a diretora.
Por causa do sucesso do trabalho no Centro Educacional Aninga, o
Amapá possui um dos menores índices de reincidência de jovens
infratores, uma taxa que oscila entre 8 e 10%.
* Nomes fictícios usados para proteger a identidade dos adolescentes
em conflito com a lei.
Situação da
Adolescência Brasileira
Desde a implementação do modelo de atendimento do Aninga, não há
53
7. Desafio diante da mídia
Um complexo universo de possibilidades e riscos, a mídia brasileira
representa um espaço contraditório de aprendizagem. Embora tenha
evoluído na abordagem da questão da adolescência, segundo dados da
Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI/2001), ainda
persistem nos meios de comunicação social abordagens equivocadas,
informações distorcidas e uma tendência a tratá-la simplesmente
como público consumidor.
Falando sobre adolescentes
Numa análise das matérias publicadas nos 50 maiores jornais do País
e nas oito maiores revistas semanais, observou-se que nos últimos
anos vem crescendo a presença do adolescente como um tema abordado
por esses meios, conforme indica o seguinte gráfico.
Fonte: ANDI/2001
Este crescimento quantitativo – de 10.700 inserções do tema em 1996
para 64.396 em 2000 –, embora represente uma atenção maior para com
o tema, nem sempre foi acompanhado de uma melhoria na abordagem. Os
principais problemas encontram-se especialmente na dificuldade em
Situação da
Adolescência Brasileira
contextualizar as questões abordadas; a imprecisão na terminologia;
a confusão no uso de dados estatísticos e uma ausência da opinião do
próprio adolescente. Esse último aspecto bem evidenciado na pesquisa
da ANDI na qual 72,6% das matérias não ouviram nenhum adolescente.
O pior desempenho ocorre na cobertura sobre a questão da prática de
atos infracionais por adolescentes. É o segundo tema em número de
inserções e aquele no qual aparecem os maiores equívocos, revelando
uma imprensa predisposta a condenar o adolescente assumindo a visão
única dos boletins de ocorrência da polícia e reproduzindo visões
repressivas e sensacionalistas.
54
O melhor desempenho está no fato de que quase 48% da matérias do ano
2000, ainda segundo pesquisa da ANDI, inserem-se na perspectiva da
busca de solução para os problemas apresentados, destacando iniciativas
e mostrando bons exemplos.
Falando para adolescentes
Os programas de rádio e televisão, cadernos especiais, revistas e
outras mídias produzidas para o público adolescente não obtiveram
ainda por parte de pesquisadores, especialistas em comunicação social
e instituições ligadas à defesa dos direitos dos adolescentes, uma
análise ampla e profunda que permitisse fazer uma análise geral da
questão. Entretanto, estudos específicos vêm apontando preocupações
cada vez maiores com o poder que esses meios tem em impor valores e
atitudes.
A boa notícia vem de alguns dos chamados cadernos teens, encartados
nos jornais em todo o País. Com aparência, linguagem e temáticas
especialmente produzidas para comunicar-se com os adolescentes,
representam o melhor esforço na tentativa de deixar de tratá-los como
consumidores e tratá-los como cidadãos. Centrando a pauta no temas de
interesse do adolescente, abordam desde questões do meio ambiente e
da sociedade em que o adolescente está inserido até questões mais
íntimas da sua sexualidade, seus sonhos e seus desejos, apresentando
informações mais precisas e conteúdos mais realistas.
O rádio e a televisão, meios que mais atingem os adolescentes, são
marcados pela ambigüidade. Convivem num mesmo universo iniciativas
de debate crítico dos problemas sociais, informações consistentes
sobre abuso de drogas, prevenção da gravidez e das doenças sexualmente
transmissíveis e da AIDS, orientação para educação e a escolha
profissional com programas de banalização da violência, erotização
exacerbada da adolescente com respectiva valorização de comportamentos
machistas dos adolescentes, como pode ser verificado nas análises de
mídia dos jovens produzida pela ANDI anualmente.
Há ainda as revistas especialmente dirigidas a esse público, criadas
para alavancar o mercado dos produtos para adolescentes. Constituíramse elas mesmas em produtos descartáveis com informação e abordagens
superficiais e por vezes prejudiciais ao desenvolvimento sadio e
harmonioso dos adolescentes. Provocadas pelo debate público e por
alguns estudos críticos, algumas delas começam a descobrir sua
função social mais relevante, incluindo em suas pautas uma preocupação
em contribuir para a informação de qualidade e a divulgação de
experiências nas quais adolescentes são protagonistas de iniciativas
para enfrentar problemas sociais e contribuir para um mundo melhor.
de todos os setores preocupados com a promoção e a garantia dos
direitos dos adolescentes, no sentido de estabelecer critérios éticos
que lhes assegurem uma atenção adequada, seja como sujeitos da
programação ou como público leitor, ouvinte ou telespectador.
Situação da
Adolescência Brasileira
Com o objetivo de situar o debate sobre mídia e adolescência, essas
rápidas observações apontam para a necessidade de uma maior atenção
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Capa, apresentação, introdução e capítulos 1 e 2 SAB 2 – Capítulo 3