O CÉU NO ANDAR DE BAIXO
Desde os 12 anos FRANCISCO faz registros fotográficos dos “Quandos” de sua vida. Os
“Quandos” de algo bom ou importante. Para ele, o céu é uma opção e um significado. Há um céu
para cada acontecimento, assim como há uma expressão nos rostos das pessoas para diferentes
ânimos. Bom, pelo o menos, é o que FRANCISCO pensa.
Esta é de quando FRANCISCO foi ao dentista se livrar do aparelho ortodôntico.
Esta de quando FRANCISCO ganhou seu primeiro dinheiro, sem ajuda dos pais. Foram 5 reais
pra lavar o cão da DONA COTINHA, a vizinha.
Ah, esta foi quando FRANCISCO trocou seus soldados de plástico por uma Playboy bem velhinha.
Bom, esta foi no mesmo dia... FRANCISCO descobriu que tomar banho sozinho de porta fechada
podia ser a melhor hora do dia.
Esta foi quando os pais de FRANCISCO o deixaram ficar com o “PEREBA”, um vira-lata que
apareceu do nada. Um dia FRANCISCO estava parado, sentado na porta de casa, quando o cão
sentou ao seu lado. Naquele momento, parecia que eles se falaram em silêncio, e entre tantos
outros seres mais possíveis, eles se escolheram. PEREBA era um cão fiel, e não saía de perto de
FRANCISCO. Acho que não abandonaria FRANCISCO nem se lhe cortassem as quatro patas.
Bom, este foi o “Quando” da primeira fotografia de FRANCISCO. Ele tinha 12 anos, era seu a
aniversário, e seu pai o presenteou com uma câmera fotográfica. Para FRANCISCO, foi o melhor
presente de toda a sua vida.
A cabeça de FRANCISCO parece um pingente. Ele nasceu com uma rara doença que
descalcifica os ossos do pescoço e impede o crescimento de pêlos pelo corpo.
A vida inteira ele teve duas opções: Ver o mundo acima, o que lhe parecia melhor, mais bonito e
menos hostil. Contudo, logo aprendeu que não faria nada direito na vida se nem sabia onde
pisava.
A outra opção era ver o mundo abaixo, o que lhe propiciava melhor controle de suas ações, pois
podia, ao menos, ver o chão em que caminhava. Por outro lado, via também as coisas sujas do
mundo, coisas que quase ninguém nota: restos, objetos esquecidos ou perdidos, lixo, coisas que
escorrem para os bueiros e as marcas que as pessoas deixam pelos caminhos...
Aos 22 anos FRANCISCO saiu da casa de seus pais para morar em um apartamento alugado.
Para ele, uma grande conquista. Talvez o dia mais importante da sua vida até então...
Como de costume, FRANCISCO sai para fazer mais uma fotografia de céu.
Em suas fotografias de céu, FRANCISCO já havia visto todo tipo de coisas que voam, caem ou
planam: pássaros, aviões, balões de ar quente, papel picado, sacolas plásticas, pára-quedas e
algumas borboletas...
Mas pares de pernas de ponta-cabeça?
Será que estavam caindo ou voando? E vindo de onde, para onde e para quê?
1
FRANCISCO passeia com PEREBA todos os dias. O cão gosta de comer ovo colorido no bar do
SEU TIÃO ao final de cada passeio.
Um dia, ao chegar de um desses passeios, FRANCISCO tem um reencontro surpreendente.
FRANCISCO é sempre convidado a participar das reuniões de confraternização dos condôminos
aos sábados na casa do Seu JEVÁSIO.
Mas FRANCISCO é um excluído por opção própria. Com o tempo, as pessoas do condomínio
aprenderam que ele não é uma figura amistosa.
FRANCISCO não entendia o por que, eles insistiam em contar com sua presença naquela
agremiação estúpida, já que ele não fazia o menor esforço para cair no agrado daquela gente.
Mas um dia resolveu aceitar o convite, para saber por que era bem vindo, apesar de não querer
ser bem vindo. Descobriu que as pessoas, que freqüentam esta reunião semanal, querem apenas
falar. Não confundir com conversar ou confraternizar. A confraternização anda muito distraída por
aqui. Elas querem apenas falar. E como falam!
Devido ao seu comportamento incomum de poucas palavras, melhor dizendo, de nenhuma
palavra, os vizinhos acham que FRANCISCO é mudo. Mas FRANCISCO apenas gosta demais do
seu silêncio para quebrá-lo com qualquer um. Aqui, FRANCISCO é valor agregado, está presente
estritamente como ouvinte passivo. Silencioso, mas presente.
FRANCISCO acabou conhecendo figuras bem interessantes nestas reuniões. Não, aí em cima
não... lá em baixo. Aí!
Não faço por mim não, faço por vocês! Para ver todo mundo com a cara feliz...
É isso que importa, sabe?
Aquela felicidade no rosto das crianças, né?! Aquele... Aquele sorriso na cara do seu filho... né?!
É... é muito bonito isso, eu fico até emocionado quando falo!
...Porque tem coisas que homem que é homem não aceita, é desaforo certo?! E todo mundo aqui
sabe que eu não sou de levar desaforo pra casa.
Olhei pra ele e falei: Quê que tu ta olhando, ô Mané? Tu me conhece? Tu vai querer encarar, ô
pôrra?!
Sete horas eu chego ao trabalho... se não houver trânsito... e nenhum... imprevisto.
7 horas! Não é seis e quarenta e cinco.
Eu chego às sete! Meu horário é sete horas... compreende?
Dores na coluna, reumatismo, crises de bronquite, alergia a pelos de qualquer animal peludo,
inclusive aí do cão do Seu FRANCISCO, né?! E meus pés... ai como doem, meus pés... meus pés
estão me matando, é horrível!
Olha, eu já fui Miss em minha cidade... fui aeromoça, hoje tenho minha rede de salões de beleza,
sabe... me sinto realizada.
Agora faltam filhos! Acho que esse é o caminho natural de uma mulher segura e realizada!
2
Um dia, em uma dessas reuniões, algo lá em cima chamou a atenção de FRANCISCO.
Ah, vocês ficaram sabendo da moça que caiu da varanda do 1304?
Mas olha! Eu fiquei sabendo que ela não caiu... ela pulou!
Ué! Então ela tentou suicídio?
O que ouvi foi que ela estava tentando pegar o gato na beira da varanda... escorregou, aí caiu!
Isso é conversa!
Fofoca desse povo!
Blá, blá, blá, blá, blá.
O negócio é o seguinte: ela está de volta porque teve alta no hospital, mas a infeliz está numa
cadeira de rodas e parece que isso é irreversível.
Nossa, que terrível!
Tão bonitinha ela...
RHUUUM... Frescura!
Eu vi a mocinha hoje saindo do elevador...
Tadinha... eu sei como é. Uma vez eu precisei usar uma cadeira dessas por causa de uma
inflamação no...
FRANCISCO se levanta de repente e abandona a reunião. Os vizinhos, surpresos por terem
ouvido pela primeira vez FRANCISCO falar, permanecem imóveis em silêncio.
“1304 é o apartamento logo abaixo do meu”, pensou FRANCISCO.
Então lhe deu uma vontade incontrolável de bater na porta da GAROTA, mas não tinha motivos
claros para isso, nem saberia o que dizer a ela. Acabou voltando para o seu apartamento.
FRANCISCO sentou-se no banco ao lado de seu amigo, o PÉ DE MANGA-ESPADA, mas não
disse uma palavra.
A árvore então falou:
É mal de amor que você tem!
O que você sabe do amor, além das marcas que os vândalos e os bêbados gravaram no seu
corpo? Perguntou FRANCISCO.
Sei que é como eu, um pé de manga espada, e também, é igual a qualquer árvore que conheço.
O amor nasce de sementes distraídas que brotam ao acaso.
E, então, se a morte precoce não as alcança, crescem e ganham força.
Em baixo, expandem-se fugindo do sol, enraizando-se no profundo e no escuro húmus
subterrâneo. Lá onde está o que não se deve mostrar, nossas fraquezas e medos disformes,
nossos defeitos e manias, nossas vergonhas. Lá em baixo está a fonte das horas difíceis e
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medrosas do amor. Aquelas que ninguém quer ter ou lembrar.
Os momentos de deleite do amor são como os galhos que buscam a luz do sol. Acima de tudo, do
perigo e da desventura, para o alto crescem diariamente, buscando o calor das boas horas do dia.
Lá em cima onde se revela o melhor de nós, folhas verdes em forma de sorrisos e afagos. A copa
da frondosa árvore é a boa ventura do amor.
FRANCISCO pergunta ao PÉ DE MANGA-ESPADA se foi ele que inventou essa história de árvore
e amor.
O PÉ DE MANGA-ESPADA disse que foi obra de um poeta que passou por ali recentemente.
Aproveitou-se da sombra de suas folhas, sentou-se no banco, e escreveu algo mais ou menos
assim.
Ao chegar a casa, FRANCISCO preparou um envelope e foi à casa da GAROTA DAS MEIAS
LISTRADAS para entregá-lo. Não teve coragem, resolveu então empurrá-lo por debaixo da porta e
esperar que ela o encontrasse.
No envelope, havia três coisas:
Um: um bilhete convidando a moça para um encontro, que seria no banco da praça, debaixo de
um Pé de Manga-Espada. O bilhete foi escrito sobre uma cópia da fotografia do dia que
FRANCISCO se mudou para o apartamento.
Dois: um mapa de localização do ponto de encontro, com instruções e pontos de referência para
que ela não se perdesse e para que fizesse um caminho mais confortável com a sua cadeira de
rodas.
Três: um exemplar da folha do pé de Manga-Espada para que ela não se engane de árvore.
FRANCISCO chega ao local combinado, mas encontra seu amigo, o pé de manga espada,
cortado. Era uma árvore velha, já com poucas folhas, mas talvez não precisassem tê-la matado.
Seja como for, FRANCISCO agora só pensava numa coisa: como a moça iria encontrar um banco
debaixo de um Pé de Manga-Espada, se já não havia um Pé de Manga-Espada naquele local?
FRANCISCO então pensou no que a velha árvore havia dito sobre o amor. Pensou sobre as
raízes, a zona obscura do amor. Pensou que talvez todo o amor seria, um dia, cortado, e só
restariam as raízes, lá em baixo, sepultadas em algum buraco de quem amou. E que o melhor
seria sair dali rápido, pois, talvez, daria tempo de chegar ao bar do SEU TIÃO para dar de comer
ao PEREBA.
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