Os movimentos dos sem-teto da cidade de São Paulo:
semelhanças e diferenças
Nathalia C. Oliveira *
Resumo: Nosso objetivo é entender quais as semelhanças e diferenças entre três dos principais
movimentos dos sem-teto da cidade de São Paulo: MMC (Movimento de Moradia do Centro),
MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) e MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto).
Centrar-nos-emos, inicialmente e de maneira mais profunda, na semelhança entre eles. Estamos
falando aqui das suas bases sociais e da classe social a qual pertencem os sem-teto. No que se
refere às diferenças entre os três movimentos, abordaremos de maneira bem provisória (já que a
pesquisa se encontra em andamento) suas respectivas orientações político-ideológicas,
principalmente no que se refere à resistência ao neoliberalismo.
Palavras-chave: Movimentos dos sem-teto; classes sociais; capitalismo neoliberal.
Abstract: Our matter is to understand what are the similarities and differences among three of
the main homeless movements from São Paulo city: MMC (Movimento de Moradia do Centro),
MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) and MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto).
Firstly, we will focus on the similarities, this mean, social basis and understanding about what
social class the homeless belongs to. Secondly, we will start a brief discussion (since our
research is still in process) about the different political-ideological orientations, mainly about
the neoliberalism resistance.
Keywords: Homeless social movements; social class; neoliberalism
O texto a seguir é fruto de uma pesquisa ainda em desenvolvimento e nosso
objetivo é iniciar uma comparação entre três dos principais movimentos dos sem-teto da
cidade de São Paulo, no que se refere à base social, organização, reivindicações e
orientações político-ideológicas. Para isso, escolhemos três movimentos, a saber, MMC
(Movimento de Moradia do Centro), MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) e MTST
(Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto).
Centrar-nos-emos na semelhança entre os movimentos dos sem-teto, nos
referindo aqui às suas bases sociais e à classe social a qual pertencem os sem-teto.
Defendemos a importância de se analisar a base social dos movimentos sociais e assim
identificar o seu caráter classista.
No que se refere às diferenças entre os três movimentos, faremos apenas
algumas constatações provisórias e indicaremos nossa hipótese principal a respeito da
heterogeneidade das orientações polítco-ideológicas dos diferentes movimentos.
*
Mestranda em Ciência Política pela Unicamp, integrante do grupo Neoliberalismo e Relações de
Classes, alocado ao Cemarx. End. eletrônico: [email protected]
Semelhanças
Classes sociais e movimentos sociais:
Uma importante temática trazida pelos novos movimentos sociais é a idéia de se
falar de igualdade e diferença ao mesmo tempo. Aliás, a igualdade está na base da
reivindicação de ser e poder ser diferente.
É interessante atentar que igualdade e diferença não devem ser considerados
como coisas opostas, contraditórias e incompatíveis. Com isso, se tem a possibilidade
de compreender melhor a diversidade e a heterogeneidade desses movimentos. E ainda
temos a idéia de diferença dentro da diferença. Por exemplo, o grupo das feministas:
dentro dele há diferenças entre as lésbicas, as negras, ou ainda, as pobres.
Distintamente do sentido comum dado pelos autores, creio que essa noção da
“diferença dentro da diferença” possibilita que compreendamos melhor a relação entre
duas feministas: uma da classe trabalhadora e outra da classe burguesa, por exemplo.
Elas são iguais e diferentes, sem que isso possa representar uma noção de
contraditoriedade.
Assim, percebe-se que os novos movimentos sociais exigem que sejam
interpretados em suas diversas dimensões. Sendo que as principais pareceram ser:
classes sociais e identidade; economia e cultura.
No nosso entender, os autores que sabem da importância deste estudo em
diversas dimensões, se diferenciam pela questão de “ênfase”: referencial teórico e
ideologia do pesquisador. De um lado, e certamente este é o lado da maioria, se assume
que é possível haver uma influência do econômico nas reivindicações e interesses dos
movimentos, no entanto, isso não basta e é fundamental que se analise a cultura, os
valores, identidades. De outro lado, tem-se que para uma análise da realidade é
necessário que se leve em conta vários fatores: ideológicos, políticos e econômicos,
sujeito e estrutura. No entanto, em última instância, é a estrutura que pauta grande parte
das reivindicações e interesses, e as classes sociais são um dos elementos mais
importantes para compreender os movimentos sociais e a luta política atual.
É bem verdade que existem autores extremistas, tanto de um lado, como de
outro. No entanto, creio que a maioria dos pesquisadores pensa na articulação das
múltiplas determinantes. É pensando nesta articulação, porém com a ênfase maior no
que se refere às classes sociais, que realizamos nossa pesquisa sobre os sem-teto.
Igualdade e diferenças
É necessário entender que os movimentos dos sem-teto são constituídos por
famílias, ou seja, participam deles pai, mãe, filhos, avós, jovens e crianças1. Há, assim,
uma grande diversidade entre os comportamentos, necessidades e ações desses
membros. Podemos dizer que apesar de a base social ser semelhante nos três
movimentos aqui pesquisados, certamente esta não é uma base homogênea no que se
refere ao gênero, etnia, idade e identidades. Os sem-teto são homens, mas a maioria são
mulheres, existem brancos e negros. Ao lado dos idosos estão as crianças, inclusive os
recém-nascidos e os jovens sem preparo para o mundo do trabalho.
Os sem-teto da cidade de São Paulo abrangem migrantes, pessoas advindas de
outros estados brasileiros (em sua maioria nordestinos); paulistas, pessoas que deixam a
zona rural para se lançarem no solo urbano; e também paulistanos, filhos de São Paulo
que se encontram a margem da sociedade capitalista.
Para além da luta dos sem-teto, há setores dos movimentos que ainda têm a luta
contra a opressão feminina ou a luta contra a homofobia. O preconceito racial e o
preconceito em relação aos migrantes nordestinos também devem ser mencionados.
A renda média familiar dos sem-teto é muito baixa de modo que mesmo aqueles
que ainda conseguem vender a sua força de trabalho (muitos se encontram
desempregados) não têm condições de pagar um aluguel e, ao mesmo tempo, comprar
alimento para a família. E isso é um dos principais fatores que une estas pessoas em
movimentos reivindicatórios de moradia. Dessa maneira, se um homem ou mulher faz
parte dos movimentos dos sem-teto é porque sua reivindicação imediata é a moradia,
sua situação sócio-econômica não é nada favorável. E, apesar dos sem-teto terem
trajetórias, gêneros, opções sexuais e identidades diferentes, estão todos na mesma luta,
conseqüência de estarem na mesma situação socioeconômica, apesar de toda
diversidade, de todas as diferenças, são iguais, são sem-teto. Pertencem à classe
trabalhadora: explorada pelos capitalistas que no intuito de aumentar a sua riqueza,
aumentam também a miséria da classe trabalhadora.
Mulher, mãe e sem-Teto
É notória a forte presença das mulheres nos movimentos dos sem-teto e não seria
justo deixar de discutir isto, já que, durante muito tempo, a mulher não esteve presente
1
Gonçalves (2005) fala que para o MST, a luta pela terra é considerada uma luta da família. Acreditamos
assim que os movimentos os sem-teto também apresenta esta luta da família.
no mercado de trabalho e muito menos organizadas socialmente e politicamente. As
relações sociais devem ser pensadas sim do ponto de vista do gênero, sem esquecer, no
entanto, da grande importância das classes sociais.
Souza-Lobo, em A classe operária tem dois sexos, demonstra que apesar de
haver todo um universo da classe trabalhadora, esta possuía dois sexos e isso deveria ser
aprofundado para que se pudesse fazer uma boa análise sociológica da realidade. Assim,
Souza-Lobo introduz na análise elementos como a divisão sexual do trabalho, relações
de gênero, dominação masculina, segregação ocupacional, etc. Lobo defende que há
trabalhos próprios e qualificados para homens e mulheres, ou seja, há uma forte relação
entre sexo e mercado de trabalho, há uma segregação ocupacional. Vide exemplo de
atividades como empregada doméstica, babá e manicure.
A divisão sexual do trabalho encontra reflexos na divisão de tarefas nas
ocupações de prédios e terrenos realizadas pelos sem-teto. Por exemplo, no MMC
(Movimento de Moradia do Centro) a portaria e segurança das ocupações ficam por
conta dos homens, enquanto a parte da limpeza fica para as mulheres. Uma das
lideranças ainda justifica que a segurança fica com os homens, principalmente no inicio
da ocupação, porque “os homens agüentam mais o impacto”, embora as mulheres
tivessem condições já que existem hoje muitas policiais femininas e seguranças
mulheres. Nos acampamentos do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) as
famosas cozinhas comunitárias, coletivas, são coordenadas principalmente por
mulheres, copiando assim a lógica da divisão sexual do trabalho. Foi no MSTC
(Movimento Sem-Teto do Centro) que encontramos mulheres na portaria, no entanto,
não temos elementos suficientes para afirmar que neste movimento, nos momentos das
ocupações, há um status de igualdade entre homens e mulheres e que a divisão sexual
do trabalho é rompida. Mesmo porque ao mesmo tempo em que as mulheres estão na
portaria, os homens são naturalmente considerados como “retraídos para a cozinha”.
Nun (2000) se refere às profundas modificações que vêm ocorrendo por toda
parte na estrutura ocupacional. O trabalhador típico, o operário industrial chefe de
família, dá lugar para as mulheres sem cônjuge que sustenta a família com um emprego
temporário e mal-remunerado no setor de serviços.
A categoria de trabalho não qualificado se feminiza cada vez mais. O setor
terciário é gueto ocupacional feminino e a concentração esta principalmente no emprego
doméstico (Gonçalves, 2003). Quando a mulher entra no mercado de trabalho não há
uma redefinição da esfera da família entre papéis de homens e mulheres, de modo que a
mulher fica aprisionada duplamente: casa e trabalho, tendo assim uma intensificação da
carga de trabalho.
Geralmente as mulheres participam de movimentos que são voltados para a
reprodução social: creche, saúde, habitação, melhores condições de vida. Os
movimentos sociais são, em grande parte, resultados de uma relação causal entre
miséria e demanda. E é isso que pode explicar a grande participação das mulheres nos
movimentos dos sem-teto.
Ademais, existe a questão da maternidade. Não é raro encontrarmos muitas
mulheres, chefes de famílias, que vão com seus filhos lutar por uma moradia, unindo-se
aos movimentos dos sem-teto. Em algumas entrevistas com a base dos movimentos,
muitas mulheres diziam estar naquela luta, nas situações precárias das ocupações, por
causa de seus filhos, como tentativa de dar uma vida mais digna para eles. É mais que
comum encontrarmos a presença de inúmeras mulheres grávidas ou com bebês, que
participam das ocupações, inclusive, algumas delas entram em trabalho de parto durante
os momentos críticos das ações de reintegrações de posse.
O poder das mulheres nas ocupações passa a ser mais notório, há casos de
ocupações em que o número de mulheres chega a 70% do total dos ocupantes. É comum
serem as mulheres as coordenadoras dos movimentos dos sem-teto, são elas também as
grandes lideranças das ocupações e acampamentos.
Os movimentos dos sem-teto como um movimento classista
O conceito de classe social utilizado aqui vem da tradição marxista que o
relaciona com a posição que os agentes ocupam na estrutura produtiva. No entanto, uma
classe social não é um dado exclusivamente econômico, como também não é apenas
uma construção social, fundada nas relações concretas estabelecidas entre os agentes
sociais. Assim, uma classe se define a partir da posição dos agentes na estrutura
econômica, porém só se constitui enquanto classe nos conflitos, nas lutas, no processo
de mobilização política que passa pela capacidade de agregar interesses e construir
solidariedades. Deve-se pensar a classe social como um fenômeno, ao mesmo tempo,
econômico, político, objetivo e subjetivo:
(...) é no terreno das formações sociais em conjunturas especificas que se decide
a formação do operariado como classe. Não há, no plano das relações de
produção e das forças produtivas capitalistas, que representa o nível econômico
do modo capitalista de produção, nada que torne inevitável, ao contrario do que
sugere o economicismo, a formação da classe operaria como classe ativa. (...)
Mas não há, tampouco, uma formação de classe operária apenas no nível das
práticas sociais (BOITO JR., 2003, p. 246).
De acordo com Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, o conceito de classe
social pode ser utilizado não somente nos momentos em que os agentes da produção
estão mobilizados num embate em torno da preservação ou da revolucionarização da
ordem vigente, mas sim no momento em que os agentes atuam no processo político
visando manter ou conquistar posições na distribuição da riqueza ou na balança do
poder. O conflito de classes aparece assim como um fenômeno político permanente e
das maneiras mais distintas possíveis.
Pensando nesta definição de classe, para dizermos que os movimentos dos semteto possuem um caráter classista, devemos verificar qual é a posição dos sem-teto na
estrutura produtiva e de que maneira eles agregam interesses e constroem uma
solidariedade.
A posição dos agentes na estrutura produtiva:
Os sem-teto necessitam vender a força de trabalho para conseguirem sobreviver,
são, portanto, trabalhadores destituídos dos meios de produção.
Numa formação social concreta, a configuração de classes sociais é mais
completa de modo que tanto a classe trabalhadora, quanto a classe dominante devem ser
pensadas no plural já que cada qual contém suas frações de classes com interesses
econômicos diversificados (POULANTZAS, 1977).
Com o processo de reestruturação produtiva, a bipolarização das classes sociais
não se encontra tão bem definida (capitalista e operário de indústria) e, por isso, o
conceito de frações de classes se tornam um bom recurso analítico. Sendo assim,
acreditamos que os sem-teto, no que se refere ao nível da produção, pertencem à classe
trabalhadora, ou melhor, a uma fração da classe trabalhadora que podemos denominar
de massa marginal.
Este conceito de massa marginal, dentro da concepção marxista, trata a
marginalidade no nível das relações produtivas, e não de consumo. O debate a este
respeito tem suas bases na teoria da população, elaborada por Marx no capitulo XXIII,
A Lei Geral da Acumulação Capitalista, de O Capital e em Grundrisse.
Tal debate se deu de maneira intensa na década de 1970, dentro do contexto
latino americano e acreditamos ser válido até os dias atuais. Destacaremos dois
principais autores: José Nun e Lúcio Kowarick.
Nun propõe uma nova categoria para designar as manifestações não funcionais
do excedente da população: a massa marginal. Se por um lado o sistema gera este
excedente, por outro, não precisa dele para continuar funcionando. Gera-se uma massa
marginal não absorvível pelo setor hegemônico da economia e que não possui uma
relação de funcionalidade com a acumulação, mas de afuncionalidade ou
desfuncionalidade.
Nun fala que a massa marginal se refere tanto aqueles que não têm emprego
quanto aos que têm de forma precária, aos que não se encontram no setor das grandes
corporações monopolistas (fora do tipo dominante de organização produtiva) e dá mais
detalhes a respeito dos tipos básicos de implicação marginal no processo produtivo:
1) diferentes modos de fixação de mão-de-obra: a) rural “por conta própria”:
comunidades indígenas, minifundiários de subsistência, pequenos mineiros; b) rural
“sob
proteção’:
colonos
sem-servis
de
fazendas
tradicionais,
comunidades
“dependentes” ou “cativas”, trabalhadores “vinculados” por métodos coercitivos mais
ou menos manifestos; c) urbano “por conta própria”: pequenos artesões pré-capitalistas,
d) urbano “sob patrão”: trabalhadores, especialmente em serviços domésticos, adstritos
a um fundo de consumo e que não recebem salário em dinheiro.
2) mão-de-obra “livre” de qualquer forma de enraizamento pré-capitalista, que
fracassa, total ou parcialmente em seu intento de incorporar-se de maneira estável ao
mercado de trabalho. A distinção que importa aqui é entre urbano e rural e as formas
compreendidas são: desemprego aberto, a ocupação “refúgio” em serviços puros, o
trabalho ocasional, o trabalho intermitente e o trabalho por temporada.
3) abrangem os assalariados dos setores menos modernos, onde as condições de
trabalho são mais rigorosas, as leis sociais têm escassa aplicação e as remunerações
oscilam em torno do nível de subsistência.
Nun (1978, p. 125) conclui: “Até aqui me referi, sobretudo à instancia
econômica porque constitui ela o nível básico de emergência do problema da
superpopulação relativa, cujas relações com o sistema – nos marcos do capitalismo –
permitem distinguir uma marginalidade funcional, a do exercito industrial de reserva, e
outra não funcional, a da massa marginal”.
Kowarick não distingue a massa marginal do exército industrial de reserva e por
isso a população marginal não é disfuncional ao capitalismo. A massa marginal garante
sua funcionalidade ao capitalismo porque funciona como exército industrial de reserva,
servindo assim para que os salários sejam fixados a preços muito baixos devido à
concorrência entre os trabalhadores (barateamento do custo da reprodução da força de
trabalho). E a segunda função está no que se refere ao momento da expansão do capital,
momento em que os trabalhadores são lançados em diferentes e novos pontos da
produção, participando de “testes” sem que isso prejudique os outros ramos.
A marginalidade é inerente ao sistema capitalista, embora se apresente de
maneira diferente entre os países: nos desenvolvidos apresenta-se como um fenômeno
transitório, não permanente; já na América Latina, é algo constante e cada vez maior.
Kowarick afirma que o capitalismo monopolista não é um “novo capitalismo”, a
essência da acumulação é a mesma: exploração do trabalhador através do qual efetiva a
criação de mais valia. Se a população sobrante aumenta, isso não implica dizer que ela
deixa de ter funções para o capital. No entanto, Kowarick não nega que tenha havido
algumas mudanças entre o capitalismo competitivo e o monopolista, porém isso não é o
suficiente para negar a existência de uma grande identidade entre os conceitos: exército
industrial de reserva e massa marginal (mão de obra marginalizada).
Segundo a definição de Kowarick, um grupo deve ser caracterizado como
marginal, na medida em que encarna as “novas” relações de produção não tipicamente
capitalistas (terceiro setor) e/ou as velhas formas tradicionais (artesanato e indústria
domiciliar). A parcela marginal da sociedade é um segmento da classe trabalhadora que
se distingue do assalariado a partir de um modo peculiar de inserção nas estruturas
produtivas, não tipicamente capitalistas, mas também não destituída de importância no
processo de acumulação. Como forma de diferenciar o trabalhador assalariado do
trabalhador marginal, Kowarick diz que enquanto o primeiro sofre uma exploração
intensiva, o segundo sofre uma exploração extensiva – aqui se faz referência à baixa
remuneração, insegurança no emprego, divisão rudimentar das tarefas e baixa
tecnologia.
Kowarick nos apresenta os diferentes tipos de empregos que indicam
modalidades de inserção marginal nas estruturas produtivas: artesanato, trabalhador
autônomo, comercio de mercadorias (ambulantes), prestação de serviços (alojamento,
alimentação, reparação e instalação de máquinas e atividades domésticas remuneradas.
Assim, temos de um lado a funcionalidade da massa marginal, que ela faz parte
do exército industrial de reserva e, de outro lado, temos a afuncionalidade ou até mesmo
a desfuncionalidade desta massa. No entanto, estamos falando aqui de funcionalidade
estritamente econômica, se ampliarmos para as esferas políticas e ideológicas fica muito
difícil de negar a idéia de funcionalidade da massa marginal.
De acordo com Oliveira (1997), mesmo um menino de rua que vive de pequenos
roubos, teria sua utilidade indireta ao capital no sentido de que serve como contraexemplo para os bons filhos dos trabalhadores que precisam ser disciplinados. Temos
então uma funcionalidade ideológica da massa marginal.
Apesar da discordância no que se refere à funcionalidade, parece haver um
consenso entre os autores no que se refere a quem são os trabalhadores marginais. Esses
seriam aqueles que estão à margem do tipo de organização produtiva dominante:
indústria monopolista. Eles seriam, portanto: subempregados, desempregados, com
trabalho temporário (os chamados “bicos”), ou ainda, deixam de ser trabalhadores
assalariados e passam a ser autônomos (como por exemplo, os camelôs). E como
sabemos, os sem-teto possuem uma absorção pelo mercado de trabalho capitalista
semelhante a dos trabalhadores marginais. Daí afirmamos que a maioria dos sem-teto
são trabalhadores marginalizados.
Fizemos uma listagem das principais ocupações dos sem-teto2. Muitos deles se
encontravam desempregados e as principais profissões mencionadas foram: pedreiro,
ajudante/servente de pedreiro, auxiliar de entregas, metroviário, cobrador de lotação,
caminhoneiro, garçom, lavador de carros, camelô, ambulante, comerciante, ajudante
geral, auxiliar de serviços gerais, mecânico, pintor de paredes, soldador, doméstica,
diarista, cozinheira, garçonete, auxiliar de enfermagem, aposentada, costureira, exlavradora e dona de casa. Estamos falando aqui, portanto, de trabalhadores
marginalizados.
A construção social da classe: a reunião dos agentes em coletivos
A construção de uma classe passa pela idéia de ser e de se reconhecer como
igual socialmente e portadores de interesses comuns. E é isso que acontece com os semteto ao perceberem que se encontram na mesma situação socioeconômica, partilham as
mesmas necessidade e têm, portanto, os mesmo interesses, no caso aqui: uma moradia
2
Esta listagem foi fruto da análise de reportagens sobre os sem-teto na grande imprensa e da nossa
observação durante a realização da pesquisa de campo.
digna para suas respectivas famílias. Agregando estes interesses vem a necessidade de
organização do coletivo, de organização do movimento que reivindica a moradia.
Trava-se assim uma luta política, uma luta de classes, ou melhor, uma luta entre frações
de classes: os trabalhadores marginalizados versus os capitalistas imobiliários, além é
claro, da presença do Estado.
Com o que temos até aqui já é o suficiente para afirmarmos que os movimentos
dos sem-teto são movimentos classistas, são compostos pela classe trabalhadora, mais
especificamente, pelo setor mais pobre desta classe, a massa marginal. A principal
reivindicação deste movimento é característica da classe trabalhadora: uma moradia
digna já que os sem-teto não têm condições de se alimentarem e pagar um aluguel. No
que se refere ao posicionamento político dos movimentos parecem haver diferenças, e
será sobre essas que trataremos a seguir.
Diferenças
Reivindicações e orientações político-ideológicas:
A reivindicação imediata dos movimentos dos sem-teto é uma moradia, é essa
carência que os fazem se organizar em movimentos sociais. Essas pessoas vivem no
constante (di) lema: “Se pagar o aluguel, não come. Se comer, não paga o aluguel”.
Temos, portanto, como principais reivindicações o aperfeiçoamento dos
programas habitacionais existentes e suas aplicações efetivas para a parcela mais pobre
da população. Apesar da reivindicação de urgência dos diferentes movimentos dos semteto ser a mesma, os movimentos que atuam na periferia reivindicam moradia neste
local, enquanto os movimentos que atuam no centro, objetivam conquistar um espaço
na região central.
O espaço de atuação não é a única diferença entre esses movimentos, eles
também se diferem por suas orientações político-ideológicas e formas de organização.
Poderíamos dizer que existem gradações de politização nos distintos movimentos.
Um primeiro nível de politização poderia ser representado por um grupo de
pessoas com habitação precária que se organiza para pressionar o governo para que
consiga casa para elas; representaria uma luta localizada para resolver interesses
localizados – legítimos, mas localizados. Geralmente os ditos “movimentos
instantâneos” (aqueles que se organizam e se desmobilizam rapidamente) são os que se
encontram nesse primeiro nível de politização, eles são destituídos de qualquer sigla e
não possuem relações com partidos políticos, nem têm uma ideologia definida. Tais
movimentos são constituídos de famílias que se encontram em uma mesma situação, por
exemplo, são ex-moradores de uma favela que teve os barracos queimados em um
incêndio. Então, essas famílias se unem, momentaneamente, para conquistarem uma
moradia somente para aquele grupo, sem pretensões maiores.
Saindo da luta local para a luta ampla, dirigida a todos que têm habitações
precárias, estaremos saindo também do corporativismo para a política, ou seja, o
problema habitacional é posto em outro nível, no nível da política de Estado, onde se
pressiona um governo para que ele tenha uma política habitacional que resolva o
problema da habitação no país.
Os sem-teto (a base propriamente dita) do Movimento Sem-Teto do Centro
(MSTC) falam claramente que suas lutas são estritamente por moradias, alguns falam de
moradias para quem participa do movimento, outros, falam de moradia para todos
aqueles que não as têm. Já as lideranças do MSTC possuem abertamente uma luta
política, estão em busca de políticas habitacionais efetivas que atinjam a todos,
principalmente os sujeitos que se encontram nas classes de mais baixa renda da
sociedade. Talvez o Movimento de Moradia do Centro (MMC) se diferencie um pouco
do outro movimento citado porque, apesar de grande parte da base deste movimento
lutar por políticas habitacionais, percebemos que o coordenador geral do movimento,
possui uma consciência e politização mais ampla, que consiste na crença de que a
questão habitacional não será resolvida separadamente das outras áreas sociais, sendo
necessário uma transformação social.
Há ainda, um terceiro nível, e esse é o mais elevado. Trata-se daquele em que os
movimentos dos sem-teto percebem que para mudar a política habitacional é preciso
mudar toda a política econômica e social e concluem que com o bloco no poder vigente,
tal política não mudará. Aí eles passariam da luta para influenciar o poder à luta pelo
poder. Essa luta pelo poder, obviamente, possui limitações, e se refere aqui mais a uma
forte resistência e contestação dos governos e do bloco no poder atual, podendo também
aparecer a idéia de uma outra sociedade, socialista, talvez. As posições e resistências
dos sem-teto parecem ser diferentes frente as “Era FCH e a “Era Lula”, por isso, faz-se
necessário discutir questões relacionadas às rupturas e continuidades entre essas duas
“Eras”.
A partir das idéias das lideranças do MTST, talvez pudéssemos dizer que neste
terceiro nível estaria o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), já que este é
um movimento que afirma surgir justamente porque tem princípios diferentes dos
movimentos urbanos já existentes. Además, na sua agenda aparece a necessidade da
reforma urbana, juntamente com o questionamento do caráter mercantil da produção do
solo urbano. Porém, nos questionamos se de fato há uma politização ampla, que
transcenda a cúpula do movimento.
Diante disso, aparece uma segunda hipótese em relação às orientações políticoideológica dos sem-teto. Enquanto o Movimento Sem-Teto do Centro e o Movimento Moradia
do Centro estariam mais próximos do Partido dos Trabalhadores (PT), o Movimento dos
Trabalhadores Sem-Teto se encontraria muito ligado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra (MST). Isso poderia dar algumas pistas da diversidade de orientações políticoideológicas dos sem-teto. Obviamente que tudo isto deve ser melhor analisado e aprofundado,
na fase posterior da pesquisa.
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