Memórias de um
prisioneiro de guerra
Max Rothe
Edição do Autor – Teófilo Otoni – 1979
Título do texto, originalmente escrito em língua alemã: Ein Schicksal wie Millionen.
Autor: Max Rothe
Tradução: Otto Wirtz e Marga Rothe
Revisão e reorganização do texto: Emmanuel Simões Rodrigues Filho
Capa: Hélio Veríssimo
©1979 - Max Rothe
Edição do Autor (com a colaboração de Antonio Francisco das Neves)
39.800 - Teófilo Otoni - MG.
ÍNDICE
UMA EXPLICAÇÃO
1. Soldado alemão
V
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2. A caminho do cativeiro
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3. No campo de concentração de Segeja
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4. No campo de concentração de Letnaja
I) - Comando Florestal
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II) – Na construção da fábrica de cimento "Vitória"
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III) - Colheita de cogumelos e frutos do mato
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IV) - Captura de quatro fugitivos
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V) - Pai e filho novamente juntos
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VI) - Melhorias no acampamento
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5. Petrozavodsk
97
6. Rumo ao desconhecido
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7. De volta à liberdade
120
8. O reencontro
128
9. Epílogo
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UMA EXPLICAÇÃO
O autor deste livro nunca foi, rigorosamente, um militar profissional. Ficou, no
entanto, cinco anos prisioneiro de guerra em campos de concentração russos,
depois de andar fardado e com uma arma na mão durante cinco meses em frentes
de batalha na Polônia, por causa da crise do café ocorrida no Brasil em 1931/32.
Seus dados biográficos delineiam o perfil de uma dessas inúmeras pessoas a quem o
acaso parece escolher – como numa loteria às avessas – para cometer-Ihes
dificuldades extras, não atribuíveis ao comum dos mortais. Que a crise do café o
atirou na guerra, é um fato estranho, mas verdadeiro, como se verá adiante.
Com passagem paga pela própria família – embora houvessem incentivos por parte
do Governo Brasileiro, a quem muito interessava a mão-de-obra estrangeira para
desenvolver a agricultura - veio Max Rothe em 1924 da Alemanha, sua terra natal,
para o Brasil como colono, instalando-se numa área rural de Minas Gerais próxima a
Teófilo Otoni, onde desmatou, roçou, plantou, arrostou todo tipo de problemas
inerentes a mudanças de cultura, de clima, de país e de padrão de vida. Não veio
porque quisesse, mas por imposição dos pais, tardiamente despertados para
aventuras em outras plagas. Casou enquanto plantava, roçava e colhia,
principalmente o café, o grande negócio da época.
Tanto lucro dava a rubiácea, que muita gente dedicou-se exclusivamente a seu
plantio e comércio, inclusive ele, que enterrou suas economias na compra e venda
desse produto, até que súbita queda de preço levasse os cafeicultores à falência.
Desiludido, mudou-se para o Rio de Janeiro, transmudando-se ali de colono em
empregado de escritório, formado que era em contabilidade em escolas da
Alemanha. Enquanto isso, amigos naquele país escreviam-lhe cartas e cartas,
contando maravilhas sobre novas oportunidades de bem viver surgidas por lá após a
ascensão ao poder de um certo político chamado Adolf Hitler.
Os constantes dissabores decorrentes do emprego mal remunerado e as boas
notícias vindas daquele paraíso redescoberto incutiram-lhe o desejo de regressar,
mas não havia dinheiro para as passagens dele, da mulher e da filha de uns poucos
meses. A morte de uma parenta alemã, que lhe deixou alguns marcos de herança,
propiciou-lhe a exata soma de recursos para esse fim.
Não era a Alemanha de 1934 exatamente um paraíso, porém Max Rothe não
desanimou. Se no Brasil fora colono, apesar de enfronhado nos meandros da
contabilidade, lá pôde também fazer diversas coisas em busca da sobrevivência.
Mais tarde, transformando-se em membro do Partido Nazista, conseguiu razoável
emprego nos escritórios de uma estratégica – para os planos de Hitler – indústria
de extração de lignita, carvão fóssil do qual era possível obter-se gasolina.
Desnecessário dizer que ser membro do partido era, para o povo em geral, mais uma
questão
V
de sobrevivência do que de ideologia. Várias vezes livrou-o de ser chamado às
batalhas seu trabalho na empresa, que não podia parar. Quase no fim da guerra, já
com 41 anos, foi chamado, juntamente com tantos velhos e crianças, a
desempenhar seu papel naquela estúpida farsa.
O autor deste livro nunca foi, rigorosamente, jornalista ou escritor. Acostumado a
elaborar relatórios na fábrica, usou desta sua experiência no escrever para contar o
que viveu na guerra. O texto é, sobretudo, o relato de alguém que teve a enorme
sorte de continuar vivo, após ter convivido tanto tempo com a morte e tão próximo
dela. A narrativa é despretensiosa. No entanto, os fatos expostos, como seu autor os
viu, mostram a insanidade das guerras e recordam-nos que, nas ofensivas, nos
combates, nas retiradas, morrem seres humanos dos dois lados em luta. E se ela
tiver êxito em sensibilizar o leitor, de modo é fazê-lo compreender em toda a sua
extensão o que representam para a Humanidade os horrores, a brutalidade e a
irracionalidade intrínsecas das guerras, e em contribuir para satisfazer a necessidade
da eliminação dessas tragédias da face da Terra, este livro terá alcançado seu
objetivo.
EMMANUEL SIMÕES RODRIGUES FILHO
VI
SOLDADO ALEMÃO
Convocaram-me para a guerra em agosto de 1944, quando foram chamadas as
últimas pessoas ainda julgadas aptas para o serviço militar na Alemanha. Chegara a
minha vez. Deixei a mulher grávida, duas filhas pequenas, o emprego, e parti.
Na cidade de Posen, para onde fui enviado em 4 de setembro, encontrei muitos dos
meus colegas de trabalho convocados como eu, mas obrigados a seguir dois dias
antes visto não terem prestado ainda o serviço militar. Havia além deles um
amontoado de gente que parecia ter sido agrupada sem nenhum critério, a maior
parte da qual jamais manuseara armas, não tendo qualquer noção de adestramento
militar. Muitos eram doentes ou aleijados, ultimamente obrigados também aos
serviços de guerra.
A divisão a o agrupamento dos recrutas levou dias, aproveitados pelos antigos
sargentos dentre nós, escolhidos para ministrar os primeiros exercícios aos novatos,
que foram separados logo no segundo dia dos que alguma vez tinham feito o serviço
militar. Eu tinha a formação básica devido a diversos exercícios militares de curta
duração feitos entre 1935 e 1939, mas fui considerado apenas soldado raso, pois
para o posto seguinte seriam necessários nove meses de serviço. Não obstante,
fazia jus ao soldo de cabo por ter feito o serviço militar antes de 1939, embora por
pouco tempo. Essa era a regra. Até então nossas roupas eram ainda civis e somente
depois de 10 dias chegaram as primeiras fardas, que foram logo distribuídas.
A cidade de Posen era apenas um centro de treinamento e de triagem do pessoal,
que foi dividido e agrupado para ser mandado às frentes de batalha, em trens e
outros meios de transporte. Os primeiros trens partiram levando gente para Elbing e
Koenigsberg.
Após quinze dias, também fui incluído num pequeno grupo, que seguiu de trem para
o aeroporto alternativo de Hohensalza, onde deveríamos preencher as lacunas da
companhia de guarda, grande parte da qual se encontrava num hospital militar em
Thorn, atacada por uma epidemia de paratifo. Lá chegados, ficamos de quarentena
numa área isolada, sem contato com o pessoal técnico e de vôo, por medida de
precaução contra a epidemia. Nossa comida era trazida em panelas
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térmicas diretamente para as barracas, em cujas proximidades era ministrado o
treinamento aos novatos.
Logo no segundo dia designaram-me para o setor de intendência, que supria a tropa
de materiais, já que na vida civil exercera atividades comerciais e dominava a
estenografia e datilografia. Além do mais, possuía instrução militar anterior.
Nesse setor a epidemia tinha feito das suas: no hospital se encontravam o ajudante
de contador, o primeiro escrevente, o almoxarife e o sargento de armas. Fui
agregado ao Major Meiss, chefe da companhia, e fazia ainda os trabalhos de
escrevente do suboficial, enquanto o segundo escrevente assumia o cargo de
almoxarife e do sargento de armas. Após poucos dias o resto do pessoal também foi
atacado pela doença e ficamos somente com o contador e o segundo escrevente. A
falta do suboficial passou a ser suprida por um capitão do Estado Maior
que vinha, por algumas horas diárias, distribuir as tarefas.
A rigor, o serviço de intendência era mais estafante que o serviço externo,
porquanto o trabalho precisava ser feito mesmo fora do horário, havendo ainda a
obrigação adicional de participar como metralhador em caso de alarma e de
exercícios militares de maior envergadura.
Afora os alarmas diários e suas sequelas, era até agradável trabalhar ali em
ambiente fechado, sem o grande frio e a neve que chegaram com o inverno e seu
forte vento de leste. O pessoal da intendência ia aos poucos se restabelecendo e
voltando do hospital.
As notícias oficiais da frente oriental eram, dia a dia, cada vez mais desagradáveis.
Não se concediam mais licenças, sob qualquer pretexto. Familiares estavam
proibidos de permanecer na cidade onde estavam nossos alojamentos, mas era
possível conseguir acomodações para eles em casa de algumas famílias alemãs, nos
lugarejos circunvizinhos, cujos moradores tinham sido, em sua maioria, repatriados
da região de Wollin, na Polônia e do Volga, na Rússia. O chefe da companhia
consentia na vinda pelo espaço de quatro dias de estada, para cada dois dos nossos,
de uma pessoa da família.
Em novembro de 1944 eu e um colega, cuja família morava em lugarejo vizinho ao
de onde vim, conseguimos licença para nossas esposas virem juntas. Mesmo contra
o regulamento, a companhia cedeu o furgão de víveres que foi buscá-las na estação
ferroviária para evitar-lhes os rigorosos controles da cidade, trazendo-as ao nosso
acampamento no aeroporto e levando-as conosco em seguida para os locais
arranjados, onde ficamos os quatro dias de praxe. Foi o último reencontro durante
longos anos.
Começaram nessa época os distúrbios em Varsóvia, a Frente Oriental recuando
sempre mais. Nem por isso nossas unidades deixaram
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de promover pequenas festas de Natal e de Ano Novo, ninguém acreditando serem
as últimas que realizavam juntos. Estavam enganados.
No início de janeiro de 1945, começaram a passar por nós os primeiros soldados que
recuavam da frente de Varsóvia sem se deterem, apesar da ordem de parar para
reagrupamento. Seu número cresceu rapidamente, irrompendo em verdadeira
multidão diretamente para Posen, de volta à Alemanha, cansados e sem motivação
alguma para mais luta, o moral abatido pelos longos anos de campanha na Rússia,
com suas privações e intenso frio.
Poucos dentre eles, principalmente soldados desgarrados de suas unidades,
puderam ser retidos. Deram-se, por isso mesmo, ordens de matar qualquer soldado
que se presumisse fugindo, o que resultou no fuzilamento e morte pele forca de
muitos que, mesmo sem culpa, se encontravam distantes de suas unidades.
Apareceram as primeiras levas de refugiados e suas famílias, tentando por-se a salvo
dos russos com os poucos haveres que ainda lhes restavam. Não levou muito tempo
e as estradas, cobertas de neve espessa,ficaram totalmente congestionadas pelas
viaturas militares e as carroças e veículos - dos mais variados tipos - dos fugitivos,
que ofereciam um espetáculo terrível, conduzidos quase que somente por velhos ou
mulheres, enquanto as crianças tentavam se proteger do frio em seus interiores.
Montes de neve nas estradas impediam a locomoção, exigindo das pessoas horas de
trabalho estafante para os carros poderem andar.
Recebemos ordem de preparar tudo para nos retirarmos para Posen, na madrugada
de um desses dias em que muitos carros de tropas e fugitivos fluíam
ininterruptamente para oeste. Mais tarde, soubemos que tropas russas cercaram
Posen, sendo alterado nosso recuo para o entroncamento de Schneidemuehl.
Os poucos aviões levantavam voo continuamente, transportando o pessoal feminino
da Luftwaffe e as operárias do aeroporto para Breslau, fora da região de combate.
Do meio-dia em diante, porém, nenhum voltou, e as mulheres esperaram em vão.
Para elas pediram-se ônibus da Luftwaffe, da cidade de Bromberg, que também não
chegaram devido à neve e ao congestionamento das estradas. Resolveram então ir
até Bromberg a pé e, pelo que soubemos, encontraram-se com os ônibus no meio
do caminho. Contudo, ninguém soube se conseguiram se por a salvo.
Chegou a noite e nossa unidade não recebera ainda a ordem de retirada. O pessoal
da cozinha se fora com seus utensílios, deixando-nos apenas pão, margarina e
salame. Às nove horas conseguiu-se chá quente
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e, de súbito, os tanques russos começaram a atirar em nós.
Nossas instalações deveriam ser destruídas, para não cair em mãos dos russos.
Imediatamente ocupamos todas as posições em volta do aeroporto para dar
cobertura ao grupo de peritos dinamitadores e, mal o fizemos, já vinham em nossa
direção os pesados blindados pela estrada a nossa frente. Deram alguns poucos tiros
em direção ao aeroporto, aparentemente porque pretendiam primeiro ocupar a
cidade e aniquilar as forças defensoras, principalmente da SS, deixando as
instalações do aeroporto para os tanques seguintes.
Nem bem estávamos nas trincheiras, e já os dinamitadores conseguiram fazer saltar
pelos ares os depósitos de gasolina, hangares e bombas estocadas, transformando
num mar de chamas toda a nossa área, com as barracas e tudo. Com fuzis, uma
metralhadora e algumas bazucas, que poderíamos fazer contra os tanques russos?
Nada, evidentemente. Nossas fardas escuras contrastavam com a neve, na qual nos
deitamos, bem iluminados pelas chamas, constituindo assim excelentes alvos.
Estávamos algo longe do posto de comando, localizado mais próximo da pista de
pouso. O chefe do nosso pelotão - um tenente com experiência de batalha atravessou uma brecha na fila de tanques russos e foi até lá saber o que deveríamos
fazer, mas encontrou apenas restos do incêndio e mais ninguém. Oficiais e soldados
de outros pelotões tinham se esquecido de nós e ido embora. Urgia encontrá-los.
Sob o comando do tenente e aproveitando ao máximo as possibilidades de nos
abrigarmos, tentamos estabelecer contato com os nossos, contornando o aeroporto.
Marchando meia hora em estradas secundárias em direção a Bromberg, alcançamos
a retaguarda que se esforçava, com trenós puxados por cavalos conseguidos não se
sabe como, em levar munição, armas e bazucas para a tropa. Uma hora mais tarde
conseguimos alcançar o grosso da unidade. Ajudou-nos, para isso, um enorme
engarrafamento provocado por um grupo de veículos com mais fugitivos, que,
praticamente, entupiu a estrada.
Inesperadamente, tiros de tanques russos começaram a cair sobre nós, vindos do
leste, provocando as primeiras mortes. Proibiu-se então aos soldados, sob pena de
morte, de subir nos veículos dos fugitivos, a fim de evitar a sua fuga.
Os episódios desenrolados naqueles momentos são impossíveis de se descrever:
rodas partidas, cavalos caídos ou mortos, gente ferida e morta pelas granadas dos
tanques, famílias inteiras correndo a pé e deixando seus transportes para trás à
procura de lugar em outros mais adiante, sem o conseguirem, dados o cansaço dos
cavalos por causa da longa caminhada, a neve alta e o frio de vinte e cinco graus.
Abarrotados se encontravam, também, todos os carros.
Gravou-se indelevelmente em minha memória o quadro de miséria e devastação
destes momentos. Jamais conseguirei esquecer-me daquela mãe com seus quatro
filhos menores à beira da estrada, a implorar que levássemos ao menos as crianças,
já que ela nem mais andar poderia,
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com sua carroça quebrada no acostamento e o cavalo morto. Levar conosco as
crianças era impossível, pois nos deslocávamos pelo flanco do inimigo, que poderia,
a qualquer momento, nos obrigar à luta. Isso era apenas o começo da desgraça e o
pior ainda estava por vir.
Longe ainda de Bromberg, passamos de manhã por uma barricada antitanque da
frente alemã, sendo barrados pela Polícia Militar e membros da Escola Militar
daquela cidade, que nos colocaram a todos nas margens da estrada, enquanto
vasculhavam severamente os veículos que passavam, em busca de soldados
escondidos. Formados em grupos depois que todos os veículos dos fugitivos
passaram, descobriu-se que, apesar da severa revista, cinco ou seis conseguiram
escapar, inclusive um cabo e um sargento do meu grupo.
Em formação, fomos para a vizinha aldeia de Gross-Neudorf, onde nos abrigaram no
galpão da estação ferroviária, que era pequena a ponto de não podermos nos sentar
no chão e muito menos nos deitar. Pouco depois tivemos de formar na praça em
frente para agrupamento e distribuição dos grupos nos alojamentos, exceto eu, que
fui incumbido de ficar de guarda sobre os trilhos em frente à estação, com uma
metralhadora, e o Cabo Breitenbach com a munição. Este foi procurado para a
missão, mas, viu-se logo, era o cabo que tinha fugido. Designaram um substituto,
que me renderia duas horas depois.
Cumpridas as minhas horas de guarda comi alguma coisa, preparando-me para um
descanso, quando veio nova ordem de ocupar uma posição na floresta onde nos
tinham feito parar na noite anterior. Havia trincheiras prontas lá, mas forte fogo
russo de lança-minas e de peritos atiradores forçaram-nos a procurar lugar seguro.
Era o batismo de fogo para a maioria de nós. Houve baixas logo nos primeiros
minutos, com mortos e feridos.
Diminuindo o fogo, ocupamos a trincheira e cada um foi para seu lugar, alertados
pelo aviso de tomar cuidado com os atiradores que estavam nas árvores. Poucos
minutos depois, um tiro na cabeça matou um dos nossos.
Ao escurecer, tiraram-nos dali para uma posição mais afastada e ficamos aliviados
pelo descanso que poderíamos ter depois de dias. Alegria prematura: uma casamata
na terra, a menos de cem metros da trincheira, deveria ser terminada antes de mais
nada. Terminamo-la sob contínuo fogo de metralhadora, granadas e minas, usando
troncos, ramos e terra e ocupando-a para repousar, ao amanhecer. O descanso nem
começara e nos mandaram para trás em dois grupos, na aldeia, em busca de
munição e provisões.
À noite, fomos outra vez buscar munição. Não nos tinham dado a senha, mas
mesmo assim seguimos em frente, porque o comando necessitava
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urgentemente de munição de sinalização. Na aldeia o sargento percebeu que a
munição pedida não poderia ser levada de uma só vez com as mãos. Arranjaram um
trenó rebocável por cavalo, mas cavalo não havia. Enfiaram-me nos braços a
munição mais urgente e lá fui eu em direção ao posto de comando, situado diante
de nossa casamata na frente principal da luta.
Nesse ínterim, designaram novos guardas a quem deram a senha, por nós
desconhecida. Caminhando pela floresta em direção ao posto de comando fui
tropeçando nos arames esticados para dificultar o avanço de tropas. Não encontrei
postos de guarda, mas consegui localizar o comando, onde entreguei a munição. No
caminho de volta entrei na área de outra unidade e, de repente, fizeram-me parar,
exigindo a senha. Sem tê-la, esperei o pior, argumentando o quanto pude. Por sorte,
tinham ouvido falar que alguém fora buscar munição e deixaram-me seguir.
A pressão das forças russas tornava-se cada vez mais forte, com seus tanques T-34
avançando até a barricada antitanque à nossa esquerda. Atiravam na aldeia e nas
posições à direita e à esquerda. Um desses tanques foi posto fora de combate por
um pequeno grupo que lhe arrebentou as esteiras e aproveitou-se para recolher
nossas minas e bazucas existentes na estrada. Mais tarde outro tanque russo
conseguiu rebocar seu companheiro.
Nossa frente de luta apresentava grandes claros. Não havia comunicação à esquerda
da estrada e à direita somente foi possível restabelecer o contato utilizando-se
membros do Grupo de Sapadores. Deter o avanço russo, tendo apenas bazucas
como a arma mais eficiente era impraticável, mesmo porque seu manejo era
conhecido apenas por poucos. Ordenaram-nos a retirada, dada a inutilidade da luta.
Abandonamos nossas posições sob violento fogo, com muitos mortos e feridos que
foram levados conosco. Dos mortos tirou-se a plaqueta de identificação e objetos de
valor, como retratos, para devolução aos familiares. Sepultá-los era impossível.
Concentramo-nos na aldeia de Gross-Neudorf e os feridos receberam tratamento de
emergência. Duas ambulâncias que tinham conseguido vir de Bromberg os levaram
para o hospital militar próximo, enquanto que nós ficamos, aguardando novas
ordens. O frio e a neve aumentaram, e há dias não comíamos alimentos quentes.
Pão, margarina, pasta de fígado, queijo e outras conservas consumidas, em nada
protegiam o organismo da baixa temperatura ambiente, se não se fizesse
movimento para aquecer-se. Felizmente recebemos, por fim, roupa de camuflagem,
botas de feltro e boinas de pele conseguidas dum depósito encontrado à beira da
estrada, ficando o frio mais suportável.
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Pouco tempo ficamos ali, pois recebemos ordem de libertar , em Thorn, uma
unidade anti-aérea composta de voluntários iugoslavos que estava cercada, e
recuperar alguns canhões de que dispunham. O primeiro pelotão enviado para ver
como estavam as coisas, não voltou, porque mortífero bombardeio de obuses de
artilharia e foguetes começou logo após sua partida, isolando-o de nós e da ponte
sobre o Vístula, perto da qual estava a bateria anti-aérea de iugoslavos.
Rapidamente os russos passaram peia bateria e vieram em nossa direção
atravessando a ponte, bloqueando-nos a possibilidade de recuar.
Tratou-se então de organizar pequenos grupos para romper o cerco. O grupo em
que eu estava tinha cento e sessenta homens, mas aos poucos, foram-no redividindo
até que finalmente éramos apenas sete. Neste caos e no constante marchar de noite
pela floresta, ficaram em meu grupo apenas soldados de outras unidades,
desconhecidos de mim, e entre si, exceto dois pertencentes à mesma unidade, a
"Feldhernnhalle", um dos quais, primeiro sargento, tinha consigo uma pistola
automática e bússola. O outro era soldado, com menos de dezoito anos.
Tiramos as braçadeiras e inscrições dos dois, que estiveram marcados com elas, a
fim de evitarmos problemas em caso de aprisionamento, mas esquecemo-nos de
tirar as divisas de prata dos sargentos, o que mais tarde quase nos foi fatal.
Durante toda a noite tentamos furar o cerco, verificando, afinal que era impossível.
Ouvíamos muito fracamente o troar da artilharia, do nosso lado do "front". Um ou
outro avião alemão surgiu ainda em vôo baixo, tentando alvejar os carros russos na
estrada.
Dividimo-nos, de novo, ficando comigo dois soldados com dezoito anos. Os três
ficamos de dia num bosque de abetos, dormindo alternadamente na neve, graças ao
aquecimento proporcionado por nossa roupa de camuflagem, isolando-nos do frio
de vinte e cinco graus. O que ficava de guarda observava a estrada que passava
acima de nós, na qual se moviam colunas russas com veículos de toda espécie,
motorizados e de tração por cavalo.
Tentamos continuar a viagem quando escureceu. Arrastamo-nos cuidadosamente
pelo bosque de abetos para alcançar a parte mais baixa do terreno onde um riacho
cortava a relva, estando tudo coberto de neve e gelo. Precisávamos tomar todo
cuidado para não sermos descobertos, pois o luar era bastante forte e nos iluminava
bem, não obstante nossas camuflagens.
Quando cheguei à orla da floresta, vi diante de mim algo escuro na neve e fiz sinal
para meus companheiros tomarem cuidado e ficarem quietos. De início, pensei
tratar-se de um soldado russo morto, mas depois vi que sua farda era mais escura
que a dos russos e percebi, ademais, fracos movimentos indicadores de vida.
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Falei-lhe, então, em voz baixa e sua alegria foi imensa: era um soldado alemão do
Grupo de Sapadores que se desviara de sua unidade e se arriscara a arrastar-se
através da estrada, aproveitando um intervalo de passagem das tropas russas. Tinha
dezessete anos e alegrou-se por não mais se encontrar sozinho.
Éramos quatro, agora, e decidimos atravessar a vegetação rasteira para continuar
caminhando em direção oeste. Um por um, e com grandes intervalos chegamos sem
dificuldade a uma floresta que havia após, arrastando-nos até uma estrada em cuja
margem nos abrigamos nos arbustos para observar as adjacências. Mas, vimos fortes
contingentes russos dentro e fora de casas, e percebemos que nessa direção não
haveria possibilidade de furar o cerco.
Recuando novamente pare a mata, deliberávamos para que lado seguir, quando
ouvimos passos e vozes abafadas próximo de nós. Quatro homens vinham com todo
o cuidado, parecendo também indecisos sobre a direção a seguir. Passando por
nosso esconderijo, percebemos que falavam alemão e os chamamos, o que fez com
que deitassem de pronto. Eram companheiros nossos, aqueles que, em grupos de
dois, tentaram romper o cerco sem encontrar a mínima chance para isso durante o
dia. Novamente estávamos juntos, o grupo original de sete homens e mais o do
Grupo dos Sapadores.
Havia uma casa situada um pouco distante, na qual não víramos nenhum
movimento russo durante o dia. Deliberamos, em comum, visitá-Ia, e já que não
esperávamos mesmo romper o cerco, decidimos desmontar nossas armas e espalhar
as peças por toda parte, pois encontrando-nos sem armas talvez nossa chance de
viver fosse maior. Apenas um sargento, por segurança, não desmontou sua pistola
automática, deixando-a escondida nos galhos de uma árvore forte e espessa. A
caminho da casa, marcamos a rota com as baionetas enfiadas na neve, para achá-Ia
na volta ao esconderijo.
Nosso desejo era encontrar algo para comer e aquecer-nos. Dias a fio estivéramos
na neve sem comer coisa alguma, e dois dos nossos não possuíam roupa especial
que os protegesse do frio, que aumentava.
Demos a volta a casa e vimos luz num quarto. Batemos à porta, apesar do perigo de
haver russos por ali. Encontrávamo-nos em território alemão, na Prússia Ocidental,
perto da fronteira polonesa e, assim, grandes chances havia de encontrarmos
alemães na casa. A porta abriu-se, surgindo um velho que ficou assustado ao ver
soldados alemães em sua porta. Pôde apenas balbuciar: - "De onde vêm vocês?"
Pedimos que nos deixasse entrar para aquecer-nos um pouco e que nos desse
alguma coisa para comer, se pudesse. Tremendo, o homem nos disse nada ter para
nos saciar a fome, senão batatas, uma vez que os russos ali estiveram até dois dias
atrás e tudo comeram, indo em seguida para suas unidades na aldeia. Preocupava-se
porque, se os russos aparecessem de repente matar-nos-iam por sermos soldados
alemães,
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e a ele, por nos ter deixado entrar.
Nossa fome era, naquele instante, maior do que qualquer outra coisa, por isso
pedimos que cozinhasse ao menos algumas batatas para comermos, que iríamos
embora em seguida. Sua mulher ouviu isso e assentiu. Um de nós a acompanhou até
a adega, cujo acesso se dava por meio de um alçapão na cozinha, em busca das
batatas, que foram levadas ao fogo logo em seguida. Enquanto elas coziam,
soubemos pelo amedrontado velho que o Estado Maior dos russos estava
aquartelado nas vizinhanças, a não mais de meia hora a pé.
Deliberamos e decidimos pedir ao homem que fosse até os russos e Ihes avisasse da
existência de nós oito em sua casa, prontos para nos entregarmos. Ele saiu, então, e
pensávamos que demoraria o bastante para comermos as batatas até que voltasse.
Tudo aconteceu fora do previsto.
Antegozávamos a sensação de ter algo no estômago e mal podíamos esperar,
quando chegou o velho acompanhado de dois soldados russos. Eram veteranos
naquela guerra e nos cumprimentaram - nunca esperaríamos por isso - com um
aperto de mão a cada um de nós. Falando em polonês com o velho, que entendia o
idioma, ordenaram-nos que os acompanhássemos. Ao pedir-Ihes que nos deixassem
comer antes de ir, disseram não ser preciso, porquanto receberíamos boa refeição
do Estado Maior.
Com um soldado à frente e outro à retaguarda marchamos em fila indiana, pela neve
alta e fofa. Uns dez minutos depois, um gesto e a palavra stoi nos indicaram que
deveríamos parar. Estávamos em frente a um monumento de honra aos mortos da
Primeira Guerra Mundial, numa pequena elevação. Novos gestos fizeram-nos
entender que ficássemos de costas para o monumento, distantes três passos um do
outro, com nossas boinas no chão, a nossa frente. Frustramo-nos enormemente com
os russos, pois julgávamos ter chegado o momento de morrer. Felizmente não foi
assim. Disseram-nos para colocar nas boinas todos os nossos pertences e nós assim
o fizemos, despojando-nos de relógios, canetas, canivetes e outras pequenas coisas,
ficando apenas com a carteira, porta-níqueis e a ficha de identificação. Revistaramnos ainda, rigorosamente, procurando coisas não entregues e se alegraram depois
com os objetos ganhos, mormente com os relógios que foram dez, pois dois de nós
tinham, além dos seus próprios, os relógios de tropa dados a quase todos os chefes
de grupo ou pelotão.
Colocamos de novo as boinas na cabeça e continuamos a marchar sob o comando
dos russos. Estes, próximo ao quartel, ficaram eufóricos e, para anunciar sua
chegada com prisioneiros, esvaziaram suas pistolas automáticas dando tiros para o
ar.
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Em pouco tempo estávamos no quartel do Estado Maior, sentindo-nos como gado
exposto à venda. Todo o pessoal deste quartel - que se instalara numa granja - fora
nos ver e não se cansavam de perguntar de onde viéramos, visto que nossas
unidades há dias se encontravam bem recuadas, distantes dali. Uma mulher fardada
de major, disse-nos, em alemão: "Entregar-se voluntariamente é de grande
vantagem para vocês. Por enquanto irão todos para a Rússia, a fim de ajudarem na
reconstrução do que seus camaradas destruíram, mas três meses depois do fim da
guerra, voltarão para casa".
Esta promessa de forma alguma foi cumprida: os três meses transformaram-se em
quase cinco anos.
Instalaram-nos na lavanderia da granja, onde encontramos lenha, batata e um
sucedâneo de café, deixados por uma unidade alemã que usara o local como
cozinha, dias antes. Ao guarda da porta, pedimos que nos deixasse lavar uma panela
de batatas no poço e ele, além de consentir, até nos deu fósforos e gravetos para
acender o fogo.
Breve estávamos com os corpos aquecidos e até pudemos beber uma xícara de café,
enquanto as batatas cozinhavam; é verdade que, sendo café de cevada, não se
comparava com o verdadeiro, mas não nos importamos com isso.
Descascávamos nossas batatas, preparando-nos para comê-las, quando dois de nós
foram designados para acompanhar o guarda e logo voltaram com um balde cheio
de sopa de cevadinha com bons pedaços de toucinho. Evidentemente desprezamos,
naquele instante, as batatas, atacando primeiro a sopa. Mas depois voltamos a elas
até saciar a terrível fome dos últimos dias.
Assim aquecidos e satisfeitos logo sentimos sono, e o problema agora era encontrar
um lugar onde dormir. Estávamos exaustos. Havia dois bancos e uma mesa, nos
quais dava para quatro pessoas dormirem. O chão era frio, de cimento. Decidimos
então que quatro dormiriam durante duas horas, cedendo depois lugar para os
outros quatro. Estes acocoraram-se à beira do fogão, no monte de lenha e num
canto, até que fosse chegada sua vez de deitar-se.
Isto aconteceu em 25 de janeiro de 1945, entre as nove e as dez horas da noite.
Deste momento em diante fomos de encontro a um destino incerto como
prisioneiros nas mãos dos russos, nós que pertencêramos ao outrora tão orgulhoso
exército alemão.
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A CAMINHO DO CATIVEIRO
A noite transcorreu entre o sono e a vigília. De manhã o guarda nos autorizou a
utilizar a água do poço para lavarmo-nos. Pudemos também satisfazer nossas
necessidades fisiológicas num canto qualquer, sempre sob suas vistas.
Chamou em seguida dois de nós para acompanhá-lo, os quais voltaram pouco depois
trazendo café e um pouco de pão. Não tínhamos terminado de tomar o café e comer
o pão quando o guarda voltou, chamando dois para segui-lo. Os primeiros não
tinham retornado, quando apareceu de novo o russo, depois de muito tempo,
levando mais dois. Não retornando estes, e voltando o homem para levar mais dois,
ficamos apreensivos.
Nós últimos fomos levados em seguida para a casa onde anteriormente
residiam os donos da granja. Lá estavam nossos camaradas e mais dois compatriotas
nossos desconhecidos, também aprisionados. Estavam todos sem o cinturão e sem a
roupa de camuflagem.
Um por um entrávamos no quarto onde estavam um oficial e um soldado russo.
Interrogatório seria impossível, pois eles não falavam o alemão, nem nós seu idioma.
Nós dois, que fôramos os últimos a chegar, também fomos obrigados a tirar a
camuflagem e o cinturão ficando com a farda simples. Tivemos de colocar sobre a
mesa tudo o que ainda restava nos bolsos e fomos bem revistados, à procura, quem
sabe, de alguma arma escondida. O próprio oficial meteu no bolso um lenço meio
sujo que um de nós colocara na mesa.
Na carteira eu tinha fotos da família e o oficial olhou-as preparando-se para
rasgá-Ias. Argumentei que eram minha família, sem saber que Familie era a mesma
palavra em russo e alemão. Ele reteve a carteira mas devolveu as fotos, com as quais
pude ficar durante todo o tempo meu cativeiro.
O quarto não tinha aquecimento e eu, privado da camuflagem e do colete
forrado com algodão, tremia de frio. Apontei para um monte de capas militares
alemãs, a um canto e o oficial, vendo meu gesto, mandou um soldado entregar-me
uma delas. Senti-me bem pela coragem de ter pedido a capa, visto que os outros, na
mesma situação que eu, não tinham sido capazes do mesmo ato. Pouco durou este
bem-estar, pois,
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logo em seguida, eles tomaram-na de mim.
Depois da rigorosa revista, mandaram-nos ficar em fila fora da casa e nos
entregaram a um civil polonês que tinha uma braçadeira nas cores branca e
vermelha, de sua bandeira. Era a marca da milícia polonesa e tivemos sorte, porque
o homem falava a nossa língua. Fora soldado alemão na Primeira Guerra Mundial e
lutara na França até o fim da guerra. Estranho, este destino de habitantes da
fronteira: pertencer ora a uma, ora a outra nação.
A caminho, disse-nos ele ter severas ordens de atirar para matar no caso de
tentativa de fuga. Pediu que colaborássemos, não lhe dando motivos para atirar. Sua
tarefa era levar-nos a um lugar onde todos os prisioneiros estavam sendo reunidos,
mas não quis ou não soube informar que lugar era esse.
Diversos prisioneiros já tinham sido mortos sem nenhum motivo pelos russos
na retaguarda e das reservas, que eram imprevisíveis - informou-nos ainda o
polonês. Para proteger-nos, guiava nosso grupo sempre que possível por caminhos
por onde eles não transitavam.
Andávamos um dia numa estrada, quando apareceu um grande comboio russo.
Rapidamente nosso guia retirou-nos dali levando-nos para trás dum grande celeiro.
Alguns soldados russos passaram perto de nós procurando gado, que era levado
para um curral central. Um deles, soldado bem jovem ainda, veio em nossa direção.
Trazia pendurado ao ombro seu fuzil e, numa das mãos, uma vara com
chouriços defumados encontrados no defumador de alguma casa. Na outra mão
portava um despertador, cujo alarme ele acionava constantemente com grande
alegria. Os chouriços estavam todos mordiscados e ele os estendeu para que nós
também o provássemos. Nosso guarda avisou-nos que poderíamos ter
aborrecimentos se o fizéssemos, e assim não demos nenhuma atenção a ele, que
terminou por continuar seu caminho.
Caminhávamos na estrada dois a dois, no estreito acostamento ao lado do
asfalto, para não perturbar eventual passagem de tropas russas. Em uma ocasião
não tivemos possibilidade de sair da estrada antes que nos vissem. Na frente do
comboio rolavam os pesados tanques T-34, através de cujas vigias nos espreitavam
barbudos mongóis de aspecto medonho, que nos apontavam as metralhadoras para
nos fazer entender que merecíamos ser liquidados.
Após os tanques vinham carroças puxadas por cavalos chamados panje. Quando
estava rente a nós a coluna parou, seus componentes nos olhando para ver se havia
conosco alguma coisa aproveitável que ainda pudessem tomar. De um ou outro
tiraram os sapatos. O maior interesse deles era, sem dúvida, nossas meias de lã, pois
possuíam apenas panos como proteção para os pés. Até calças e blusas eles
trocaram, se eram mais ou menos do mesmo tamanho.
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No acostamento nos despíamos, com eles fazendo o mesmo a fim de
experimentar nossas roupas. Se as nossas lhes serviam, permitiam-nos então vestir
suas vestes sujas, piolhentas e meio gastas. Isto fez com que alguns ficassem
vestidos em parte como soldados alemães, em parte como russos. Ficamos todos
sem as meias, portando trapos fedorentos, sujos e rasgados, e os sapatos com que
ficamos estavam rotos e alguns sem sola. Em nada estaríamos protegidos nos pés,
visto que a neve se amontoava em blocos congelados no acostamento, expulsa da
estrada pelo constante movimento. Nosso avanço seria agora muito mais difícil.
Estávamos despojados de quase tudo que pudesse ser útil, de alguma forma,
quando apareceram mais russos. Um sargento dirigiu-se a nós com a intenção de
nos submeter a outra revista. Vendo as divisas de prata em nossos dois sargentos,
irritou-se e mandou-os afastar-se dos outros, mais à margem da estrada, e puxou
seu revólver. Um dos dois quis saber dele se deviam ficar de frente ou de costas para
a estrada, pois tinham-nos informado que os russos adotavam, para execuções, o
tiro na nuca. Recebeu, como resposta, uma coronhada na cabeça. Antes o sargento
russo ordenara a dois de seus soldados que nos levassem para dentro da floresta,
pouco distante dali.
Ele praguejava e gesticulava constantemente com o revólver na frente dos dois,
mas antes que os matasse ou que fôssemos levados à floresta, e sem que ninguém
percebesse, tinha-se aproximado uma carroça da qual desceu um tenente russo.
Inteirado da situação, chegou perto do sargento, tirou uma faca do bolso, cortou-lhe
os distintivos do ombro, arrancou-lhe o revólver e deu-lhe umas bofetadas.
Pudemos, então, continuar a marcha. Nosso guarda, que de tudo se apercebera,
disse-nos que a intenção do sargento era de matar os dois, enquanto que nós
seríamos executados na floresta pelos soldados, se o tenente não surgisse,
prendendo o sargento e degradando-o. Aí nós todos compreendemos bem o que
significava ser prisioneiro, desarmados, sem direitos, desonrados e entregues ao
arbítrio de cada um dos inimigos.
Esta constatação fez nascer em mim a idéia de jogar-me diante de um tanque
russo que passasse, a fim de evitar mais humilhação. Fui impedido de concretizá-la
por um vienense, que, com um outro, fora juntado a nós pouco antes. Católico
convicto, disse-me quando soube de minha intenção: "Tu não te deste a vida, por
isso não tens também o direito de tirá-Ia". Este vienense recebera um tiro na coxa
que fora medicada apenas precariamente. Seu colega usava óculos de fortes lentes,
nada enxergando sem eles. No entanto um russo arrancara-os do nariz com tal força
que rasgara a pele acima das orelhas. Jogou-os ao chão, em seguida, pisando neles
até transformá-los em pedaços.
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Horas e horas durara nossa marcha e ninguém sabia ainda para onde íamos.
Finalmente chegamos a Gross-Neudorf, que fora o último lugar onde estive como
soldado alemão. Depois de muito andar para um lado e para o outro, fomos de novo
a um Estado Maior russo onde nos mandaram esperar.
Nosso guarda despediu-se de nós com discrição, depois de nos ter entregado.
Da mesma forme discreta agradecemos a ele sua proteção.
Após horas a fio na neve, sem que ninguém ligasse para nós, fomos levados
para uma sala que também fora outrora uma lavanderia de granja. Permitiram-nos
buscar lenha para o fogo e palha para dormir. O guarda da porta era um soldado um
pouco idoso que falava algumas palavras em alemão. Disse-nos para chamarmos se
sentíssemos necessidades fisiológicas, que ele nos levaria lá fora. Contou-nos
também que sofrera nossa sorte na Primeira Guerra Mundial, tendo sido bem
tratado como prisioneiro de guerra dos alemães.
À noitinha, trouxe-nos um balde de sopa. Cansados, já nos tínhamos deitado
para dormir quando a porta se abriu e nos mandaram sair. Levaram-nos para um
capitão nos interrogar, ajudado por um rapaz de cerca de doze anos de idade,
fardado de major russo. Este funcionava como intérprete, falando muito bem nossa
língua.
Perguntou-nos inicialmente o oficial se havia dentre nós algum membro do
Partido, ou da SA ou SS.
Respondemos que éramos todos soldados alemães e isto era verdade, porque
quem fosse chamado ao serviço militar não mais pertencia ao Partido. Perguntaramnos depois, quais eram nossas unidades, seu potencial e outros detalhes. No
decorrer do interrogatório verificamos que eles estavam mais bem informados
sobre nossas unidades do que nós mesmos.
Depois dessas perguntas sem resultado, permitiram-nos voltar ao
acampamento e dormir. Chegaram caminhões russos durante a noite para reparos e
para os mecânicos trabalharem era preciso limpar o local retirando a neve. Assim,
logo pela manhã recebemos pás e passamos a limpar o pátio. Quiseram saber nossas
profissões, principalmente se alguém era mecânico: como não éramos, continuamos
nosso trabalho de limpeza.
Nessa manhã o oficial intendente russo veio ao pátio e perguntou-me se sabia
matar porcos. Disse-lhe que sim, pois tendo sido colono no Brasil já o fizera várias
vezes. Mandou-me então escolher um dentre os nossos para o acompanharmos,
uma vez que havia alguns desses animais para o abate. Escolhi como ajudante um
ex-agricultor da Baviera, bastante experiente no assunto.
Andamos um bom pedaço na estrada da aldeia, acompanhando o oficial, até
chegarmos a uma grande granja onde estavam instalados os oficiais russos e sua
cozinha. Fomos até um celeiro que o oficial nos mostrou dizendo-nos que havia ali
quatro porcos escondidos na palha que deveriam ser encontrados e mortos.
Entregou-nos uma grande faca indo embora em seguida.
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No celeiro encontramos um machado bastante apropriado para aturdir os animais,
facilitando, assim, a matança; então metemos mãos à obra. Encontráramos dois
porcos e os matamos, quando reapareceu o oficial e passou a nos observar. Não
havia água quente para retirar o
pêlo dos animais, porém, cobrindo-os com palha e acendendo fogo conseguimos o
mesmo efeito, conforme eu havia aprendido no Brasil.
O oficial mostrou-se satisfeito com nosso trabalho e demonstrou isto mandandonos à cozinha receber uma boa refeição, antes mesmo de terminarmos a tarefa. Até
alguns cigarros e uma xícara de café nos deu a cada um.
Pedimos e obtivemos uma segunda faca, para que ambos pudéssemos
trabalhar. Eu chamara a atenção do oficial para o fato de um dos animais a serem
mortos estar doente, com erisipela dos porcos. Ele me disse que ninguém o notaria
se estivesse misturado com os outros e congelado. Matamos o porco doente
também. Nós provavelmente não comeríamos dele, porquanto suas carnes estavam
destinadas às tropas em luta.
Fora do celeiro se encontravam empilhadas inúmeras bandas de suínos e
bovinos, às quais juntamos os preparados por nós, cobrindo-os com lona. O frio
natural substituía perfeitamente o melhor congelador, no conservar aquelas carnes.
Feito este trabalho tivemos ainda de retirar alguns sacos de batata de um
porão e despejá-las fora, no pátio, visto que, estando totalmente congeladas, eram
impróprias para o consumo. Ao caírem no chão elas faziam barulho como se fossem
cocos. Recebemos outra vez uma boa refeição.
O oficial mandou-nos jogar fora também fígados, pulmões e corações dos
porcos, num monte de esterco que os antigos moradores da granja utilizavam para
adubar a terra. Perguntamos ao homem se aquelas carnes não poderiam ser lavadas
para darmos de comer aos nossos companheiros e ele concordou imediatamente.
Encontrando um balde no pátio, entupimo- Io de fígados e corações, jogando fora os
pulmões, e tudo o que fora tirado do porco doente. Meu companheiro levou
também uma parte do conteúdo de algumas leiteiras grandes com xarope de
beterraba doce que fôramos incumbidos de despejar fora.
O próprio oficial nos levou de volta ao alojamento, onde fomos recebidos com
grande júbilo pelos companheiros, a vista das coisas que trouxéramos. Trataram
logo de preparar a comida assando ou fritando, que para isso trouxemos escondido
no balde algum pedaços de gordura. Entretiveram-se neste assar, fritar e comer até
muito além da meia-noite, enquanto eu e meu companheiro dormíamos satisfeitos
na nossa palha.
Pela manhã, muita coisa ainda tinha sobrado.
Logo cedo recebemos ordem de ficar em formação no pátio para,
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logo após, iniciamos outra vez nova marcha rumo ao incerto. Nosso guarda era
novamente um miliciano polonês, só que, desta vez nem entendia nem falava o
alemão.
Fomos ora para uma direção, ora para outra - ninguém nos queria. À noitinha
chegamos a Argenau, onde outrora tinha ficado uma unidade da Luftwaffe. A escola
da cidade fora adaptada para o alojamento dos soldados. Neste lugar andamos do
princípio ao fim e sempre nos mandavam seguir em frente. Não havia lugar para nós.
O que se nos deparou nessa caminhada foi medonho. Tudo fizeram com os
soldados alemães mortos e principalmente com os refugiados. Na guarita diante da
escola postaram um soldado alemão morto, vestido de fraque, e colocaram-lhe um
violino debaixo do queixo e nos braços rígidos. O cadáver ficou de pé por causa do
intenso frio.
Finalmente depois de termos andado praticamente descalços pela neve, já que
os sapatos se desfaziam, estando totalmente gelados, levaram-nos a uma estrebaria
de onde pouco antes tinham sido retirados os cavalos. Deixamo-nos cair
imediatamente na palha e, para conseguir algum calor para os pés, enfiamo-Ios no
esterco ainda quente. Pouco tempo ficamos ali, pois logo determinaram que
continuássemos a caminhada até a praça do mercado, onde ficamos diante de uma
cadeia, esperando ou alojamento ou novas caminhadas.
Na praça tinham-se juntado voluntários do povo para o Exército Polonês de
Libertação, ainda mal fardados e aguardando ordens. Este exército formara-se logo
após a saída dos alemães da Polônia, estando os voluntários cheios de ódio contra
soldados alemães mesmo sendo estes prisioneiros dos russos.
Bonés de pele possuídos por alguns de nós constituíam-se numa boa presa para
esses poloneses. Com alegria arrancaram-nos de nossas cabeças colocando em
troca, às vezes. bonés de civis. Quem tirou meu boné emborcou em minha cabeça
um outro, de militar polonês, e me vi impossibilitado de tirá-Io para jogar fora, dado
que os circunstantes poderiam tomar aquela atitude como ofensa ao seu exército.
Por isso fiquei com o boné.
Outro guarda observara tudo e por fim veio substituir o nosso. Falando em
alemão, levou-nos para a cadeia em cuja porta um major polonês, parado, olhava
um por um de nós. Quando me viu com o boné polonês ficou enraivecido. Arrancoume o boné da cabeça batendo-me com ele no rosto e berrando alguma coisa que eu
não podia entender.
Tiraram-me da fila e eu pensei ter chegado minha hora de morrer. Esperava
com resignação minha sorte, quando vi próximo de mim nosso último guarda. Pedilhe que explicasse tudo ao major a respeito da troca de bonés. Ele assim fez e o
major parou então com a gritaria, e, com um pontapé na bunda, jogou-me dentro da
cadeia.
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Nós dez fomos colocados numa cela de dois metros por dois, na qual havia dois
estrados de madeira onde poderiam deitar-se, no máximo, quatro pessoas. Além
disso, ocupando um metro quadrado do espaço havia um fogão de alvenaria para
aquecimento, acionável pelo lado de fora.
Estaríamos desta forma à mercê dos guardas que poderiam acender o fogo ou
deixar-nos passar frio. Primeiramente sentamo-nos em volta dos estrados,
deliberando em como utilizá - los para dormir. Quando chegamos a um acordo sobre
seu uso levando em conta nossa quantidade, abriu-se a porta e empurraram mais
dois para dentro.
Um era um velho de sessenta e cinco anos que nunca fora soldado. Os russos o
tinham apanhado na estrada e metido entre prisioneiros, certa feita, pelo fato de
alguns prisioneiros terem-se aproveitado de uma oportunidade para fugir e o guarda
incumbido deles precisar entregá-los adiante na quantidade exata recebida. Mais
tarde deixaram-no ir-se junto com um rapaz de dezesseis anos. Estando, no entanto,
ambos em território ocupado pelos poloneses, foram por estes apanhados de novo e
empurrados para junto de nós.
O rapaz chorava de fazer dó, com o velho ao seu lado tentando constantemente
acalmá-lo. Fizemos também bastante esforço para acalmar o rapaz, torcendo
intimamente para que não fosse levada para a Rússia gente tão jovem. Esta seria
uma das muitas esperanças que não iriam se concretizar.
Parecia um milagre que o velho tivesse ainda um cobertor enrolado nos
ombros. Seu cobertor mais tarde viria a prestar um último serviço, transportando
um doente.
Éramos agora doze pessoas na pequena cela tentando nos arranjar tão bem
quanto podíamos. Pela manhã, jogaram mais quatro para dentro. Eram soldados da
divisão iugoslava que nós deveríamos ter libertado perto de Thorn. Contaram-nos
seu drama e ficamos sabendo que somente poucos foram salvos. Eles também
muito andaram aqui e ali até que fossem apanhados.
Lá pelas dez da noite trouxeram-nos alguma coisa de comer. A comida daria
normalmente para quatro, nunca para tantas pessoas. Vindo mais tarde buscar os
vasilhames, os poloneses perguntaram se estávamos satisfeitos e riam-se a valer.
Mais tarde ainda, trouxeram-nos mais alguma comida que deveria ter sobrado da
mesa dos oficiais, uma vez que até sopa de galinha havia.
Num lado do cubículo havia uma janela gradeada que dava para um beco.
Populares batiam baixinho nesta janela e nos davam tabaco, cigarros e pão pelas
grades, mas, quando alguém se aproximava, fugiam.
Continuamos nossa caminhada na outra manhã. O tempo mudara e o sol
mostrava-se um pouco. Com a mudança de tempo veio o degelo e a neve
transformou-se em água suja. Isto não era nada bom para os pés, agora molhados e
frios durante toda a marcha.
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O guarda que nos acompanhava falava um pouco nossa língua, tendo trazido,
para todos comermos na viagem, um único pão.
Muito tempo andamos, e quando chegamos a uma ponte o guarda deixou-nos
parar um pouco, a fim de descansarmos sentados no parapeito enquanto se dividiu
o pão, cabendo a cada um dos dezesseis uma nesga, como uma gota d'água em
pedra quente.
À tarde, passamos na estrada por nosso antigo aeroporto que era agora
somente ruínas. Andando mais uma hora chegamos a Hohensalza sendo levados
para o primeiro acampamento que os russos encarregaram os poloneses de
administrar.
Na época da ocupação alemã este acampamento servira para prender os
poloneses que transgrediam as ordens. Ali trabalhavam, trancafiados pelo exército
alemão. Era, agora, a nossa vez.
A bandeira polonesa estava hasteada no portão junto ao guarda e quando
passamos formados, ele nos mandou virar os olhos para ela.
Na praça existente no meio do campo ficamos formados um longo tempo,
até que decidissem meter-nos numa sala onde já havia um bocado de prisioneiros,
todos antigos soldados alemães.
A sala servia de alojamento a cinquenta e dois soldados. Havia camas em
armações de três níveis com sacos de palha e um balde a ser utilizado para a
satisfação das necessidades fisiológicas, colocado no guarda-vento. Havia também
um fogão de ferro dentro de uma caixa com areia, no meio da sala.
Como o carvão e a lenha de que dispúnhamos eram poucos para aquecer o
ambiente, tivemos nos dias imediatos de consegui-los sem que os guardas vissem.
Embora isso fosse uma autêntica façanha, pudemos obtê-los, de forma que a sala
passou a ficar bastante aquecida.
Dormir esticado sobre um saco de palha foi possível ali, mesmo não tendo
cobertores. Há muito não se conseguia nada igual.
A nossa direita havia uma grande sala onde se encontravam apenas civis,
todos homens, cujos veículos tinham-se quebrado, o que não Ihes permitira ir longe.
À esquerda se encontravam membros do Grupo de Sapadores, alemães.
Do outro lado da praça ficavam as salas da administração e duas outras,
grandes, destinadas às refugiadas (sexo feminino) de todas as idades. Crianças havia
muito poucas, em sua maioria encontradas sem os pais.
Em comparação com os civis de ambos os sexos, podíamos nos julgar felizes
quanto ao tratamento dispensado no campo.
Todas as manhãs todo o pessoal tinha de formar no pátio para a chamada, cada
grupo com seu lugar próprio; de um lado, soldados e membros do Grupo de
Sapadores, na parte de trás da formação em "U" os refugiados homens, e em frente
a nós as mulheres, moças e crianças.
Era lida a ordem do dia, primeiro em polonês e então, resumidamente traduzida
pelo intérprete. Exigiam, ao fim da revista, que se
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cantasse o hino nacional polonês, estando os soldados e sapadores dispensados
dessa obrigação, cometida apenas aos civis.
Se poucos prisioneiros chegavam a entender o polonês, pouquíssimos o
falavam. No entanto, guardas passavam atrás das filas dos civis para ouvir se todos
cantavam. Iam de um lado para outro, com cassetetes de borracha grandes e fortes,
feitos em parte com mangueiras cheias de areia e, às vezes, com parafuso na ponta.
Quem não conseguia cantar recebia uma pancada na cabeça, sendo após,
retirado da fila e agrupado no meio da praça. Ali, eram obrigados a cantar o hino
mais uma vez. Como não sabiam mesmo a língua, não tinham como cantar, e os
poloneses batiam neles por isso, sem dó nem piedade. Era raro o dia em que um ou
outro desses infelizes não se transformava em cadáver, sendo assim retirado da
praça.
À noite, vinha à cabeça dos guardas procurar passatempo. Alguns penetravam
nos alojamentos das mulheres, moças e crianças, procurando suas vítimas, enquanto
que outros iam para a barraca dos homens buscando a satisfação de seu prazer com
as maiores brutalidades.
Separados dos civis apenas por uma fina parede de madeira, ouvíamos e
entendíamos tudo. Normalmente, no momento em que o guarda entrasse no
alojamento, alguém deveria gritar: "ATENÇÃO" e todos deveriam se enfileirar em
posição de sentido ao pé das camas.
Quando os guardas procuravam divertimentos, entravam no alojamento de
mansinho para não serem percebidos, uma vez que os homens dormiam. Os vigias
poloneses dos alojamentos também participavam daquilo, providenciando
anteriormente para que os mais velhos fossem dormir na parte de cima das
armações triplas de camas, Com isso, não desceriam com a pressa requerida, para
formar em frente à cama.
Não ouvindo o grito, "ATENÇÃO'', ninguém se levantava, senão depois que os
guardas começavam a encrenca. Os atrasados eram forçados a vir para a frente,
sendo colocados sobre uma mesa pelos próprios companheiros, dois dos quais eram
escolhidos e municiados com cassetetes. Ordenava-se, então, que batessem nos
infelizes tantas vezes quantas estabeleciam.
Os poloneses ficavam apenas de lado, fiscalizando a quantidade e a força das
pancadas. Se alguém tinha pena e não batia direito, era também colocado na mesa
para apanhar, ou, se preferiam os guardas, era levado pelos camaradas até a um
canto do campo, onde os sentinelas das torres de vigia os fuzilavam em seguida.
Dessa maneira, em pouco tempo não mais havia nenhum excesso de lotação no
campo.
Nós militares, nada sofríamos dos poloneses, provavelmente em razão de
ordens que os russos tivessem dado.
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Pelas oito da manhã, muito depois dos horrores da noite e da chamada
matinal, os russos vinham ao campo escolher, dentre nós militares, comandos de
trabalho que levavam consigo e devolviam à noite.
Ofereciam-se para trabalhar, muitas vezes, mais pessoas do que os russos
precisavam, por isso eles mesmos escolhiam a gente. Trabalhar fora significava a
possibilidade de ter alguma coisa para comer, melhorando assim a magra sopa.
Muitas vezes tínhamos sorte e apanhávamos alguma coisa que levávamos
escondida para o campo. Não raro, tiravam-nos o que trazíamos, por ocasião da
revista, mas se algo passava, era distribuído igualmente entre todos os
companheiros.
Quando os russos vinham nos buscar, paravam diante do guarda e davam
recibo dos homens levados e à noite, de volta, paravam novamente para receber
quitação pelos homens trazidos.
O vienense com o tiro na coxa era alfaiate de profissão, mas não podia, por
causa do seu ferimento, sair nos comandos de trabalho. À noite, quando voltávamos
cansados do trabalho com rasgões nas roupas, ele as remendava para nós. Durante
o dia ele costurava na alfaiataria, arranjando de vez em quando alguns pedaços de
pano para nossos remendos.
Infelizmente, alguns dentre nós nada queriam com trabalho, mas esperavam
nossa volta para compartilhar daquilo que se trazia. Tão logo fossem reconhecidos
como tais, eram excluídos da distribuição para educá-los na vida em comunidade.
Muitos desses, viu-se logo, mesmo excluídos da partilha ficaram infensos a
qualquer educação. Aprendemos que há sempre criaturas que não querem se
enquadrar em comunidade alguma.
Certa manhã um russo veio ao campo, necessitando de doze homens para um
serviço, e me escolheu também. Fomos levados a uma grande granja onde devíamos
limpar um celeiro para servir de depósito de mantimentos.
Estava intensamente frio e, para nos aquecer, trabalhamos com vigor
redobrado de forma que, ao meio-dia, metade do celeiro estava limpa.
Enquanto nos ocupávamos na limpeza do celeiro, apareceu um soldado russo,
bêbado, querendo conversar conosco, o que foi impossível, uma vez que não
falávamos a mesma língua.
Tinha no bolso uma garrafa de aguardente da qual tomava de vez em quando
um bom gole. Disse-nos, por gestos e algumas palavras de nosso idioma, que os
alemães ficavam logo bêbados porque bebiam a aguardente somente em pequenos
copos. Já com os russos não havia nada disso; não se embebedavam porque bebiam
direto da garrafa.
Antes de ir, deu-nos dez tubos de dropes, observando atentamente se a
distribuição estava sendo equitativa. Não o desiludimos e, com uma palavra de
aprovação (karoscho), ele se foi.
Nosso guarda inspecionou o trabalho e deu a entender que, com
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ele, nosso dever do dia já estava cumprido. Levou-nos, a seguir, para uma grande
sala onde recebemos refeição bastante forte como recompensa. Além da comida
colocaram na mesa um grande saco, parecido com os de embalar cimento, cheio de
pão.
O pão seco russo é como a torrada, feito, porém, de grão integral. Cortam-no em
fatias e torram-no no forno até ficar duro como osso. Pode ser conservado
eternamente, se armazenado em lugar seco.
Depois do almoço, cada um recebeu ainda um grande copo de café com leite e
disseram-nos que poderíamos levar o pão seco. Nem precisaram falar duas vezes:
logo cada um apanhou uma porção e ficamos com os bolsos cheios.
Nesse dia, depois de tanto tempo, ficamos realmente saciados, renunciando
com prazer à sopa do campo em favor dos que tinham ficado. Para evitar briga,
porém, cada um apanhava a sua ração. Que dava em seguida a um companheiro.
Distribuído entre eles o pão seco, sentiu-se que a maioria também estava satisfeita.
Para trabalhar num moinho situado bem longe da cidade, foi nos buscar, em
outra feita, um russo que viera de caminhão para mais depressa nos levar até lá.
Formados, deixamos o campo com os olhos voltados para a bandeira e assim
passamos pelo guarda do portão, observados pelo russo, que estranhou nosso
procedimento.
Perguntou-nos porque olhávamos para a bandeira ao passar, e respondemosIhe que tínhamos ordem para isso, sob pena de severo castigo para quem não
obedecesse. Ele, que falava alemão, disse-nos que não dava atenção nem à mulher
polonesa e muito menos à bandeira polonesa. Concluímos, então, que a amizade
entre eles e os poloneses não era lá das maiores, e muitas vezes tivemos prova
disso.
Nossa tarefa naquele dia consistiu em arrumar as coisas existentes no moinho e
finalmente carregar de farinha um grande caminhão, que a transportou para a
cidade.
No local, nada recebemos para comer durante o dia todo e a fome apertou. Na
viagem de volta ao campo, havia sacos de trigo no caminhão e, abrindo um deles,
engolimos farinha seca.
Foi um dia cheio de desilusões para todos, porquanto os outros grupos também
nada conseguiram.
Fomos de novo levados ao moinho, dias mais tarde, mas o vigia polonês não foi
tão duro. Ganhamos comida e também cevadinha e aveia mondada, inclusive com
sacos para podermos levá-la.
Na volta, à noite, não havendo caminhão, tivemos de ir a pé escoltados por dois
guardas. Alternadamente, carregamos pelo longo caminho os cereais, para nós tão
preciosos.
Assim que chegamos ao campo os guardas exigiram que Ihes entregássemos os
sacos, e ficamos sem nada.
Em outra ocasião, levaram-nos a um antigo depósito alemão de
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mantimentos que estava cheio de coisas boas até o teto. Nós o arrumamos, sob a
direção de um russo, empilhando as coisas segundo ele indicava.
Aproximada a hora de deixar o trabalho, minha atenção foi despertada para
uma caixa aberta num canto, e vi que continha legítimos salames alemães. Os
companheiros postaram-se diante de mim para empanar a visão do russo e eu
escondi salames entre as roupas de modo a dificultar que fosse encontrado na hora
da revista.
Estava entre nós um novato que ainda não estivera a par deste modo de a
gente ir conseguindo as coisas. Ele me disse que me denunciaria se eu não colocasse
o salame na caixa.
Ficamos todos praticamente sem fala diante de tal burrice, e a mim não restou
outra alternativa senão fazer conforme disse. Os outros, que também tinham
escondido alguma coisa, desfizeram-se imediatamente delas.
No campo contamos aos outros porque desta vez nada tínhamos trazido.
Nem precisamos fazer coisa alguma para ensinar ao fulano sua obrigação para com o
grupo: os que ficaram no alojamento encarregaram-se disso, de modo eficiente, por
meio de castigo corporal.
Caía muita neve ainda. Para retirá-la das ruas, fomos levados à cidade um dia.
Pela primeira vez foram junto conosco mulheres do acampamento.
Havia entre elas uma mulher com duas filhas de quatorze a quinze anos, cujo
marido fora arrancado de seu lado, sem que ninguém soubesse agora por onde
andava. Esta mãe estava apavorada com o que pudesse acontecer com suas filhas, e
disse-nos que até aquele momento conseguira guardá-Ias da sorte de tantas outras
sacrificando-se no lugar delas.
Anteriormente, quando passávamos pela cidade em direção a algum local de
trabalho, íamos sempre pelo meio da rua para nos proteger dos poloneses que nos
cuspiam, jogavam pedras e nos xingavam com os mais ordinários palavrões.
Nesse dia, no entanto, seu comportamento mudara por completo. Não fomos
absolutamente molestados.
Incumbiram-nos, a mim e a um companheiro, de limpar o passeio, enquanto os
demais desobstruíam as ruas, Nosso guarda era um polonês de boa índole que
virava as costas, fingindo nada ver, quando passava alguém oferecendo-nos alguma
coisa. Ganhamos cigarros, pão e diversas outras coisas dos moradores do lugar, o
que até então nunca ocorrera. Repartíamos do que ganhávamos com os que
limpavam a rua, sem possibilidade de receber algo. Passou por nós um grupo de
moças entre doze e quatorze anos, saindo da escola. Quando estavam perto,
algumas abriam suas pastas e nos faziam sinais chamando nossa atenção, e rente a
nós, deixavam cair em nossas mãos sua merenda de pão com margarina, comida que
há muito tempo não víamos.
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Limpando a calçada chegamos, com o tempo, a uma mansão onde os russos
estavam aquartelados. Uma moça da Ucrânia fora encarregada de limpar os degraus
da escada, mas o guarda viu que ela não dava conta do serviço e nos encarregou
dele.
Quando a limpeza estava quase pronta, chegou um russo com um pão em
baixo de cada braço, procurando entrar. Ele nos olhou e, vendo que eu apontava
para um pão, percebeu que estávamos com muita fome e me deu o pão, dizendo,
por sinais, que deveria ser dividido com todos. Parado na escada ele ficou, até se
certificar de que fora feita uma justa partilha.
As mulheres, que nunca haviam recebido comida extra antes, choravam de
alegria por receber aquele pedaço de pão. Em diversas ocasiões, como aquela, me
lembrava que em outros lugares a fome mata seres humanos, mesmo em tempos de
paz. Isso me entristecia ainda mais.
Depois daquela vez em que fôramos ao moinho e os guardas nos subtraíram os
cereais que tínhamos conseguido, depois do trabalho de carregá-Ios, sempre íamos
de má vontade ao serviço quando eram poloneses que nos convocavam. Em geral
essas idas nada rendiam, em termos de comida.
Para melhorar o aquecimento de nossa barraca aproveitávamos os momentos
de ir ao banheiro - de manhã e à noite - para trazer dali pedaços de carvão de pedra
no bolso. Podíamos assim cozinhar, à noitinha, em latas de conserva, qualquer das
coisas que conseguíamos.
Se tínhamos batatas, cortávamos algumas em fatias e as colávamos nos lados do
fogão. Quando elas caíam por si era sinal de que estavam tostadas e podíamos
comê-Ias. A tarefa era agradável, embora um pouco entediante, pois os lados do
fogão não davam para tantas pessoas. Além disso, às nove o fogo deveria ser
apagado.
Haviam feito uma grande fossa num canto do campo, onde os baldes com os
dejetos dos alojamentos deveriam ser despejados. Mesmo ali na fossa havia uma
marca feita com cinzas, delimitando até onde um prisioneiro poderia ir.
Muitas vezes, com a constante queda da neve, as marcas ficavam invisíveis e,
se alguém a ultrapassava, os guardas da torre de vigia aproveitavam-se da
oportunidade para mostrar sua perícia no tiro.
Uma noite, um jovem prisioneiro ultrapassou a linha e o guarda imediatamente
atirou nele. Infelizmente acertou, na coxa, arrebentando- Ihe uma artéria, Antes que
tivéssemos licença para levá-Io ao hospital, perdera tanto sangue que morreu pouco
depois.
Embora não pudéssemos nos queixar do tratamento que os russos nos
dispensavam - pois, nos tratavam sempre bem, dadas as circunstâncias,
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Evitávamos, sempre que possível, qualquer encontro com um soldado russo ferido,
uma vez que estes eram imprevisíveis.
Um dia, tivemos de colocar camas de ferro numa sala, pois a escola estava sendo
transformada em hospital militar. Havia ali um bocado de feridos, mas os andares de
cima estavam desocupados. As camas deveriam ser levadas ao terceiro andar.
Por causa da alimentação deficiente, de muitas semanas, estávamos bastante
enfraquecidos, e mal podíamos subir as escadas. Para um guarda russo postado no
andar de cima, marchando de lá para cá com uma baioneta calada, nosso andar
estava muito vagaroso.
Eu subira a escada por último e, consequentemente, também desceria por
fim. Estava no penúltimo degrau superior, quando notei o guarda no último degrau e
este, repentinamente, deu-me uma estocada com a baioneta. Pulei rapidamente
para o lado e a ponta da baioneta passou entre meu corpo e o braço. Fugi
rapidamente do alcance dele pela escada abaixo.
Contamos ao guarda polonês o acontecido e este retirou-nos então de lá,
dando-nos outras tarefas.
À hora do almoço, mandaram que alguns, membros do Grupo dos Sapadores,
fossem buscar comida para os internos do hospital. Em baldes grandes e abertos
trouxeram a comida. Passaram perto de nós e sentimos grande tentação de subtrair
alguma coisa, visto que pedaços de carne boiavam sobre a sopa nos baldes.
Um russo a tudo observava. Um dos prisioneiros não resistiu e acabou
retirando um pedaço de carne. Por causa disso, todos apanharam pancadas com
varas de ferro, garrafas vazias, e outros objetos. Como resultado, houve dezesseis
mortos; outros, deformados pelas pancadas, tiveram de ser recolhidos ao hospital.
Guardas poloneses compreenderam que a situação não estava nada boa e
mandaram-nos formar, levando-nos para lugar mais seguro, a fim de evitar maior
desgraça. Em virtude do acontecido, durante muitos dias, não saíram grupos nossos
para trabalhar.
Seis semanas tinham transcorrido e começara a primavera. Alguns dentre nós
estavam tão fracos que mal podiam andar. Os pés e rostos de muitos estavam
inchados, sinal certo de subnutrição. Um jovem ficara totalmente apático,
recusando-se sempre a comer.
Certa manhã, ordenaram que saíssemos todos do alojamento e levássemos
tudo. Lá fora, em maior número do que nós, guardas poloneses nos receberam e
fomos levados sob forte escolta para a estação.
Chegados à praça da estação, ficamos horas formados, de pé. Um ou outro
polonês vinha de vez em quando perguntar uma coisa ou outra. Um deles perguntou
se alguém dentre nós era polonês. Um dos nossos, que era da região da fronteira,
agora ocupada pelos poloneses, imaginou ter encontrado um meio de escapar da
prisão e disse que era. Separaram- no
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do grupo e deram-lhe uma surra, perguntando-lhe, de vez em quando, porque
estava usando farda alemã.
Finalmente, ao escurecer, levaram-nos a um trem de carga, onde sessenta
pessoas foram enfiadas em cada vagão de gado. Éramos cento e oitenta, tendo sido
enchidos três vagões pequenos, de quinze toneladas.
A distribuição fora feita de forma a que alguns ficassem nas paredes, de pé, em
frente dos quais alguns se sentaram e os demais puderam deitar-se, no espaço
restante. Constantemente fazia-se um rodízio, de forma que os que se tinham
deitado ficavam de pé, estes se sentavam e os que estiveram sentados se deitavam.
Passaram-se, assim, três dias, muito embora o trecho tivesse sido pequeno,
como se verificou mais tarde. Os vagões ficaram a maior parte do tempo parados
nos desvios das estações.
Nossa alimentação consistia de três baldes de marmelada guardados no vagão
especial dos guardas, que não a distribuíram para nós. Assim, nada comemos,
durante todo o dia do nosso embarque, nem durante os três de viagem.
Chegamos a Lodz, conhecida em alemão como Litzmannstadt. Sentimos, nessa
cidade, todo o ódio que nos votava a população, com as pessoas agindo de forma
bastante diferente das de Hohensalza. Recebemos disso uma prova, logo na estação,
quando duas enfermeiras da Cruz Vermelha só tinham palavras de ódio para nós.
O jovem que, no acampamento, desistira de se alimentar, não tinha mais força
para ficar de pé. O cobertor do velho foi, então, de utilidade. O doente foi colocado
nele e quatro o carregavam, segurando o cobertor pelas pontas de tal modo que,
durante a caminhada em fila dupla, as mãos se revezavam, com ele indo para a
frente e para trás. Era um revezamento constante, pois também mal ficávamos de
pé.
Os três baldes de marmelada que tinham ficado trancados durante nossa
viagem reapareceram para que os carregássemos. Além do doente, as filas
dianteiras passaram também a transportá-Ios, mas para esses baldes não houve
revezamento, ficando eles sempre nas filas da frente.
Na caminhada pela cidade, ao pararmos para um pequeno descanso, pedimos à
população um pouco de água, pois estávamos com terrível sede. Apontavam para a
água que o degelo da neve tinha deixado na rua, significando que esta, para nós,
seria boa o bastante.
Chegados ao campo de prisioneiros, percebemos que tínhamos levado um
morto conosco. Tivemos de deixá-Io, enrolado no cobertor, sem que ninguém
pudesse anotar seu nome e dados pessoais. Até ali, éramos apenas números.
Pediram-nos de volta os baldes de marmelada e aí os poloneses viram que eles
estavam vazios. Aqueles que os transportavam, saciaram sua fome com o conteúdo.
Fomos levados quase imediatamente ao comando, onde o comandante russo
perguntou-nos, através do chefe antifascista alemão, se
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tínhamos alguma queixa a fazer dos guardas poloneses que nos acompanharam na
viagem. Respondemos que durante todo o tempo não nos deram comida, ao que o
homem retrucou que isto não o interessava, e sim se tínhamos sido maltratados.
Todos então ficaram calados, pois percebeu-se que continuávamos sem direitos.
Nos dias subsequentes passamos a ter reuniões diárias, promovidas pelos
russos, para nos atrair à doutrina comunista, com palestras, dentre outros, de
elementos da seção antifascista do campo, composta de prisioneiros alemães. Esta
seção originou-se do exército de libertação “Alemanha Livre", fundado por alemães
aprisionados, que não chegaram a entrar em luta.
Coisas boas aconteceram neste campo, sob direção russa, pois não
somente os feridos foram enviados a tratamento no hospital, como recebíamos,
também, comida normal de prisioneiros, depois de tanto tempo.
Ficamos ali somente três dias, para depois continuar nosso caminho rumo ao
desconhecido.
Nossa viagem, desta vez, durou apenas pouco mais de um dia. Um grande campo
de concentração de prisioneiros de guerra estava a nossa espera.
Nesse campo, nas imediações de Varsóvia, havia cerca de vinte mil prisioneiros.
Estava organizado em divisões, com altas cercas de arame farpado, e estas em
subdivisões, e cada qual não tinha mais de mil homens.
Por ordem de um major russo, os prisioneiros menores de dezoito anos ficavam
numa divisão especial, recebendo melhor comida e suportando todos os dias aulas
de doutrinação política. Sua educação era moldada segundo o ideal estabelecido
para os jovens russos.
Nos exercícios diários de marcha, esses jovens tinham de cantar, o que sempre
agradava aos russos. Como todos tinham sido membros da Juventude Hitlerista,
(Hitlerjugend) conhecendo principalmente suas canções, aconteceu que um dia
entoaram uma canção com o nome de Hitler citado num verso. Nem se tinham dado
conta do que fizeram, e ficaram pasmos quando, imediatamente, ordenaram-lhes
que se calassem. Daí por diante não mais marcharam, recebendo apenas a
doutrinação política, o que deve ter sido algo penoso para o major, que sempre
assistia suas marchas diárias e gostava da disciplina dos rapazes.
Março chegara e a primavera se fez notar. No campo apareceram os primeiros
sinais da temida disenteria, que também me atingiu. Óleo de rícino era a medicação
ministrada aos atacados pelo mal.
Uma noite, chamaram ao comando todos os provindos de Lodz, para registro
dos dados pessoais em fichas destinadas ao uso dos guardas que nos
acompanhariam na viagem para a Rússia. Não se fez registro
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exato de dados pessoais, pois a impressão era a de que apenas se cumpriam
formalidades. Quem morreu nos trens ou nalgum campo continuou sem nome.
Fez-se também a lista de distribuição dos prisioneiros para os vagões que
viriam, não se levando em conta se alguém estava doente ou não, sendo todos
incluídos, mesmo os atacados pela disenteria.
No dia seguinte veio a notícia de que o trem chegaria em poucas horas. Os
preparativos foram feitos então, com grande pressa, embora tempo e hora de
chegada fossem desconhecidos.
Todos os que estavam nas listas tiveram de sair do acampamento e os pequenos
grupos das divisões formaram na estrada principal do campo. Era uma massa
respeitável, formada em linhas de cinco, cerca de dois mil homens aguardando o
que haveria de vir.
O almoço, uma rala sopa de água, foi ainda distribuído e rapidamente engolido,
pois sendo tão ralo nem de colher se precisava.
O grande portão do campo abriu-se, entregaram-nos aos guardas e iniciamos a
marcha. Esses guardas eram todos jovens soldados que não tinham conhecido ainda
a frente de luta. Mais de um dos nossos levou coronhadas de suas armas quando
eles eram de opinião que andávamos vagarosos demais.
Nossa marcha para o trem, postado em campo aberto, foi curta, mas bastante
triste. Cada um começou a refletir no que seria de nós, todos pensando na família,
seja na mulher, nos filhos, na noiva, nos pais ou irmãos.
Nesse exato momento veio a ordem dos russos: cantar. Como não se começou
imediatamente, ficaram irritados, batendo com as coronhas das armas em nós. Por
fim, alguém na frente da fila começou uma canção que correu até a parte de trás,
quando na frente não se cantava mais. Foi, em todo caso, somente a primeira
estrofe de uma canção que teve um começo e um fim lamentável. Nem as
coronhadas conseguiram alterar isso e nenhuma canção passou do início.
No trem fomos distribuídos nos vagões de gado, cinquenta e duas pessoas em
cada vagão fechado. De um lado a porta movediça estava pregada e, em frente dela,
havia uma caixa com areia e um fogãozinho e um pequeno monte de lenha.
Num buraco da porta pregada enfiaram um grande funil de madeira com saída
para fora, destinado às necessidades fisiológicas. A parte do meio do vagão, de porta
a porta, servia ao mesmo tempo como privada, aquecedor e para o movimento das
pernas de quatro pessoas. A parte restante se destinava à nossa permanência,
dividida por vigas de madeiras fortes. Cada separação deveria conter treze pessoas,
mas com o maior esforço conseguiram alojar doze, seis frente a frente, num espaço
de dois metros.
Os pés precisavam ficar em paz com os dos companheiros deitados
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adiante. Sapatos, ou melhor, os restos deles, tiveram de ser retirados para não ferir
ou bater nos outros.
Como gado, fomos rapidamente embarcados e a porta fechada. Agora era
esperar que a locomotiva fosse acoplada para iniciar a viagem. Junto com a noite a
máquina chegou, mas ainda assim só muito mais tarde começou a viagem. Enquanto
o trem estava parado, os guardas corriam constantemente sobre o teto dos vagões,
verificando, também, por baixo e dos lados, se havia tábuas soltas ou retiradas.
Nos quatro cantos dos vagões havia pequenos suspiros de ar protegidos por
fortes barras de ferro cravadas do lado de fora. Aberturas anteriormente existentes
do lado esquerdo foram fechadas com tábuas, para que não olhássemos para fora.
A viagem durou dez dias, sem água e sem comida. Quando o trem parava era
possível - quando nos deixavam sair e andar - apanhar um pouco de água
condensada dos vapores da caldeira para mitigar, ainda que por momentos, a sede
atroz.
Pelo que podíamos averiguar olhando através das pequenas frestas nas
paredes de madeira, a viagem se fazia rumo ao Norte. Isto foi confirmado, quando
por acaso soubemos que havíamos passado por Riga. Nosso destino seria, portanto,
Leningrado ou algum lugar mais ao Norte.
Escoados os dez infinitamente longos dias, abriram-se as portas e ficamos muito
admirados de ver mais de um metro de neve ali acumulada, visto que
embarcáramos na primavera. Um bom serviço nos prestou essa neve, ao abrandar
nossa queda do vagão, porque de tanta fraqueza ninguém seria capaz de sair de
outra maneira.
Dois mil já não éramos, ao chegar. Vinte e sete homens morreram durante a
viagem, tendo sido totalmente despidos e simplesmente jogados para fora do trem.
Estes mortos não tinham nome, foram apenas números nos registros russos de
prisioneiros de guerra. Registros mais completos somente viriam a ocorrer muito
tempo depois: enquanto isso, os mortos engrossavam as quantidades de
"desaparecidos", visto que nem sempre seus companheiros sabiam seu nome
completo e origem.
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NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
DE SEGEJA
Piolhos foram a primeira preocupação dos que nos receberam no dia 5 de abril
de 1945, no campo de concentração em Segeja, na Carélia, ao norte do lago Onega.
Ao chegarmos ao campo, fomos imediatamente levados ao local de
despiolhação, livrando-nos das roupas que, penduradas num anel de arame, foram
levadas a um forno cuja temperatura seria suficiente para liquidar esses incômodos
animais. Tratava-se de piolhos de roupa, e foi a primeira e última vez que apanhei
esta praga, transmissora perigosa de febre exantemática.
Enquanto as roupas ficaram no forno - cerca de uma hora - cada um recebeu um
balde de madeira com dois litros de água quente na qual poderia ser acrescentada
água fria, aumentando a quantidade. Pudemos então nos lavar da cabeça aos pés, o
que há muito não fazíamos.
Após essa limpeza, fomos nus em fila indiana para o exame médico. À porta da
sala de exame uma enfermeira russa nos aplicava injeção nos músculos das costas. O
médico russo mostrava sentimentos de humanidade para com os prisioneiros e ao
ver nossas figuras de peles sobre ossos sacudia a cabeça com ar triste, perguntando
em alemão, a cada um: "tu doente? "
Os atacados de disenteria foram logo levados ao andar térreo do barracão de
isolamento, não sendo poucos os que, como eu, ali entraram como candidatos
certos à morte. O andar de cima foi destinado aos atacados de sarna, que também
se alastrara fortemente na última viagem devido à total falta de limpeza.
Não poucos fecharam os olhos para sempre naqueles difíceis dias passados no
barracão de isolamento. A comida, para doentes e não doentes, era a mesma. Dieta,
não havia. Nossa alimentação consistia de chucrute, acelga salgada, sopa de
cevadinha e de batata - esta última geralmente preparada com batatas estragadas
pelo congelamento - e pão seco. De manhã, ao meio-dia, e à noitinha, recebíamos
cada vez uns seiscentos gramas de sopa e trezentos de pão, por dia.
A comida era absolutamente intragável, mas quem possuía a firme vontade de
continuar com vida não tinha alternativa senão engolir a gororoba. Um médico
alemão, que tinha passado pelos horrores de
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Stalingrado e sobrevivido, fora-nos destinado e nos repetia sempre: "Só posso Ihes
dar um conselho: comam o que lhes dão, pois mesmo sendo intragável, o corpo
precisa disso como o mínimo para sobreviver. Quem não se vence e come, tem
morte certa." Enfatizava, ao mesmo tempo, que bem sabia que porcos
provavelmente não tocariam nessa comida. Devíamos nos vencer e, mesmo com
desprezo da morte, engolir aquela coisa a que davam o nome de comida.
Fazendo o maior esforço eu engolia o pouco que nos davam, deixando apenas
o pão que, por estar sempre azedo, não tinha jeito de passar na garganta. Cortava-o,
porém, em fatias e colocava-as com o cabo da colher no fogão de aquecimento, para
secar e depois guardar. Ao ficar seco, o pão caía por si mesmo, ficando a secagem do
outro lado então mais rápida. Guardava-o por precaução, a fim de ter alimento
adicional para quando saísse da barraca de isolamento, adquirindo assim, quem
sabe, mais forças para o corpo extenuado.
Nesta época morreram meus companheiros das camas à direita e à esquerda,
porque, perdendo o instinto de autoconservação, não puderam ser levados a comer
nada.
O primeiro registro dos dados pessoais de cada um ocorreu por aquele tempo,
havendo mais de cinquenta perguntas no questionário, inclusive quanto à filiação ao
Partido Nacional Socialista de Hitler, partido único na Alemanha, durante certa
época, de filiação praticamente obrigatória.
Um professor de escola primária de Stettin, no catre ao meu lado, perguntoume o que fazer, quanto à resposta a dar sobre a filiação ao Partido. Respondi-lhe que
não esconderia minha filiação a ele, porque, praticamente, todo o povo se filiara
também.
Verificou-se, apuradas as respostas, que nós dois fomos os únicos dentre trinta e
oito da sala a admitir ter-nos filiado ao Partido. Um dos russos que coletaram as
perguntas preenchendo o questionário, disse, ao ir-se embora: "Certamente vocês
mesmos não crêem que somente dois dentre trinta e oito tenham pertencido ao
Partido, mas estes dois ao menos foram honestos e mostraram coragem de dizer a
verdade. Os outros não devem pensar que os russos não vão saber da verdade. As
desvantagens resultantes certamente serão dos insinceros.”
Cerca de dezesseis dias após meu internamento, recebi alta, com a
recomendação de ficar mais dez dias dispensado do trabalho. Voltando ao barracão
onde se alojavam os companheiros do trem, estes ficaram boquiabertos vendo-me
reaparecer, pois todos julgavam que eu não mais estivesse vivo. A alegria do
reencontro foi muito grande, pois muitos dentre nossos companheiros já tinham ido
para o lugar de onde não se retorna.
Nos primeiros tempos de permanência naquele campo, morriam, em média,
vinte a vinte e cinco prisioneiros por dia. Os corpos
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dos mortos eram despidos e empilhados, uns sobre os outros, num antigo abrigo de
transformadores, até que conviesse aos médicos russos fazer a autópsia.
Os médicos alemães eram obrigados a estar presentes à autópsia, pois era sua
obrigação abrir os cadáveres para que os médicos russos pudessem constatar a
causa da morte. Segundo estes, a fome ou total enfraquecimento corporal nunca
mataram ninguém. Sempre encontravam, para cada morto, uma causa, nunca,
porém, aquela que correspondia à verdade. Para nossos médicos deve ter sido
penoso ter de aceitar, sem protestos, as decisões russas a respeito.
Terminada a autópsia, os camaradas - transformados em enfermeiros fechavam os cortes dos cadáveres com fios comuns de amarrar, e agulhas de
costurar sacos. Aguardava-se, então, que viesse o carro para transportar os mortos
até o cemitério.
Este veículo era uma carroça puxada por cavalo e guiada por prisioneiros
alemães. Sua tarefa principal não era aquela e sim a de trazer mantimentos e outras
coisas para o campo. De manhã cedo, levavam-se primeiro os cadáveres ao
cemitério e, em seguida, trazia-se o pão da padaria. Mesmo com lonas velhas como
proteção para os pães, este não era, absolutamente, um processo adequado para
abrir o apetite.
Para os doentes destinavam-se dez gramas de tabaco por dia - havendo
estoque - e cinco gramas para os demais. Eu não fumara durante a doença, e como a
distribuição fora regular, possuía uma pequena riqueza dessa mercadoria escassa.
Cada um dos camaradas de minha sala puderam também enrolar seu cigarro, pois se
conversava melhor com um cigarro aceso. Significavam muito, para cada um,
aqueles cinco gramas de tabaco para suprimir a sensação de fome, que nos
acompanhava da manhã à noite. Desde nossa prisão, foi naquele acampamento a
primeira vez que recebemos tabaco.
Com o tempo a comida ficou um pouco melhor, a gente recebendo três vezes
por dia sopa de peixe com batata, ou com cevadinha ou com chucrute. O peixe os
prisioneiros pescavam no lago Onega, guardados por soldados russos. Com os
peixes a alimentação ficou mais forte, embora a quantidade não tivesse aumentado.
Eu sentia uma constante fome e tentei suprimir esta sensação com o pão seco
economizado, mas o estoque acabou rapidamente e ela ficou minha companheira
constante durante todo o tempo na Rússia.
Veio o 1º de maio de 1945 e com ele o maior dia de festa dos russos, depois da
data da Revolução de Outubro. Nesse feriado todos os trabalhadores prisioneiros
descansaram, porque nenhum soldado russo sairia do campo acompanhando-os,
ficando de serviço apenas as sentinelas.
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Às dez da noite fomos todos mandados para fora dos barracões, em forma, no
pátio. Os grupos de trabalho foram separados para a direita, ficando todos os outros
onde estavam. Quem não tinha atestado médico de doente ou convalescente
deveria ir para a esquerda. Eu possuía um desses atestados, que tinha validade para
três dias ainda, mas o russo que o controlava rasgou-o simplesmente, terminando
assim minha convalescença. Como precisavam de um número certo de
trabalhadores, rasgaram atestados até obter essa quantidade.
À meia-noite saímos do campo com a incumbência de descarregar um trem
que chegaria da Finlândia com madeira para uma fábrica de papel existente nos
arredores. Disseram-nos que voltaríamos ao campo assim que terminássemos o
descarregamento, e tanto nos esforçamos que, às cinco horas da manhã, todo o
trabalho estava feito.
Nossos guardas não eram soldados, mas civis, que nos deram permissão para
descansar. Julgávamos que agora viria a guarda militar para nos levar de volta ao
campo. Puro engano. Deslocaram o trem descarregado, novo trem carregado foi
manobrado até o lugar dele e recebemos ordem de descarregar também este.
Desiludidos, uma vez que não cumpriram a promessa, e bastante enfraquecidos,
levamos um tempo considerável para retirar a madeira desse segundo trem.
Os civis foram substituídos, dali em diante, por capatazes, mulheres russas.
Uma delas exigia sempre mais produção de nós, segundo o sistema das divisões
femininas durante a guerra. Nem mais éramos capazes, no entanto, de jogar os paus
de um metro de comprimento para fora do vagão, tendo de ter ainda o cuidado de
que não caíssem na linha férrea, que tinha de ficar desimpedida.
A mulher dançava sobre o monte de toros descarregados ao lado dos
vagões, berrando sempre: dawai, dawai, pistrej isto é, "embora, embora, rápido".
Estávamos já fartos daquele berreiro e, parecendo termos previamente combinado,
todos passamos a jogar a madeira diante de seus pés. Ela realmente chegou a cair e,
notando nossa intenção, desapareceu.
Somente às onze horas terminamos o descarregamento deste segundo trem,
até então sem nada comer. Uma hora mais tarde estávamos de volta, onde
providenciaram almoço, com ração dupla, por ordem do comandante alemão do
campo.
A administração russa do campo estava desejosa de saber quais eram as
opiniões e o ânimo dos prisioneiros. Anunciou, então, que cada um poderia escrever
uma carta para casa. Todos trataram de conseguir papel de embrulho marrom para
confeccionar carta e envelope, pois outra espécie de papel não havia. Utilizou-se
sopa de cevadinha para colar envelopes, menos o fecho, que deveria permanecer
aberto.
Todos aproveitaram a ocasião única, fazendo a carta tão rápido quanto
possível. Essas cartas nunca saíram dali. Serviram, ao que presumimos,
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como orientação a respeito do pensamento dos prisioneiros sobre a vida no campo.
Ainda em maio, os prisioneiros nascidos na Alsácia-Lorena, agora novamente
franceses, foram reunidos para serem levados de volta à casa e realmente saíram do
campo. Soubemos, mais tarde, no entanto, que sua volta fora ilusória. Parece que
foram encontrados em outros campos, três anos depois. Assim fizeram também com
os austríacos, que encontramos mais tarde no campo de Petrozavodsk..
Na noite daquele dia em que completamos o descarregamento da madeira,
comandaram-nos para o pátio e, em seguida, para o outro lado da cidade, onde nos
mandaram preparar alojamento para prisioneiros húngaros, que estavam sendo
aguardados. No terreno de um antigo quartel deveria ser levantado um edifício
grande, de dois andares, para recebê-Ios.
Prisioneiros estonianos estavam incumbidos da cozinha, instalada no canteiro
de obras, e para ali levamos os víveres para nossa alimentação, que nos foram
entregues in natura.
Éramos cerca de quarenta homens, para os quais se reservou uma grande sala
do quartel, a qual, durante todo o inverno, ficou sem aquecimento. O frio ali era
horrível, parecia uma câmara frigorífica.
Havia lenha a nossa disposição e uma brasa para fazer fogo, mas antes que o
fogão tivesse aquecido o ambiente a noite já havia terminado. Não era possível
dormir um minuto sequer, embora a gente tentasse se aquecer um ao outro,
amontoados como sardinhas em lata. Nos abrigos esse amontoamento sempre
ocorria, com três homens em uma tarimba de um metro de largura.
Não sabíamos ainda que, por aquelas bandas, o verão durava somente os
meses de junho, julho e agosto. Mesmo nesses meses poucos dias permitiam andar
sem sobretudo, porquanto o vento era sempre frio.
Era início de maio de 1945 e estávamos ansiosos por saber em que pé estava a
guerra, pois nenhuma notícia tínhamos a respeito da situação. Logo o saberíamos.
Certa noite, acordamos com violento fogo de artilharia e tivemos a esperança, no
primeiro momento, de que tropas alemãs do norte da Noruega tivessem conseguido
romper a frente. Nada disso ocorrera, e, ao acordarmos às seis da manhã, avisaramnos que não haveria trabalho, mas às sete deveríamos formar no pátio para a
chamada.
Naquele pequeno campo havia, além dos poucos estonianos, alguns oficiais
alemães que nunca dantes tinham sido agrupados em campo com soldados e
sargentos, pois oficiais recebiam melhor comida e não precisavam trabalhar.
Para a chamada formamos em retângulo aberto diante do palanque
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preparado para o orador. À direita dele os soldados alemães, à esquerda os oficiais e
no meio os estonianos. Havia dois intérpretes ao lado do palanque, esperando sua
vez para atuar.
Finalmente, quando pés e mãos já estavam insensíveis devido ao frio, chegou
rapidamente um oficial político russo, chamado de Comissário, envolto numa capa
de couro de primeira qualidade e com um séquito de acompanhantes.
Após as formalidades militares de praxe, subiu ao palanque e soltou um
discurso inflamado, completado por movimentos de braços e pernas. Infelizmente
não compreendemos uma só palavra e, no fim, os intérpretes traduziram apenas os
pontos principais da peça oratória.
Para nós somente uma coisa importava: a notícia do término da guerra infeliz,
na noite passada. Os intérpretes frisaram que este evento se devera exclusivamente
ao avanço vitorioso do exército russo, nada falando a respeito dos aliados
americanos, ingleses, franceses e outros.
No fim mandaram-nos homenagear a vitória russa, gritando três vezes
"Hurra!" que se diz da mesma forma em russo e alemão, com a diferença de que em
russo é mais prolongado, com um som ruim para nossos ouvidos. Não sei como se
pôde exigir que homenageássemos a Vitória, nós que éramos vítimas da guerra
perdida. Ouviram-se hurras bem miseráveis, o que parece não ter satisfeito os
russos; de qualquer modo, eles deixaram rapidamente o campo para dar início à
festa da vitória.
A preparação do grande edifício consistiu, principalmente, em colocar paredes
divisórias. Os estonianos faziam os serviços de pedreiro, enquanto que nós fomos
seus ajudantes. Os tijolos necessários para a obra tinham de ser trazidos do quartel,
situado numa colina, por um grupo de trinta pessoas, cabendo a cada um trazer
quatro tijolos por vez.
A construção era rodeada por uma alta cerca de arame farpado, com um
guarda no portão, que nos contava a cada ida ou volta. Se o guarda não estivesse no
momento, tínhamos de esperar por ele até que voltasse para nos contar.
Cada um procurara no terreno pedaços de arame ou corda para amarrar os
tijolos, transportando-os nos ombros, de forma a deixar as mãos livres para aquecêlas nos bolsos. Já há muito tempo muitos de nós sofriam de distrofia, o rosto, pés e
corpo todo inchados de água, sinal evidente de subnutrição. Estes fenômenos eram
acompanhados de fraqueza geral no organismo. Movimentar os pés custava esforço
e doía muito. Remédio para isso nitchewo, não havia. A única coisa que os médicos e
enfermeiros podiam fazer era liberar-nos do trabalho por três dias, no máximo, nos
dando um atestado.
Com o tempo, meus pés estavam tão inchados que não conseguia mais amarrar
os sapatos. Cada passada causava dores intensas. De certa feita, transcorrida a
metade
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de um dia, não pude mais andar, e um enfermeiro estoniano - por não termos
médico – liberou-me do trabalho por três dias. Deste modo, pude ficar na sala
enquanto o resto do grupo foi de volta ao trabalho depois do intervalo do almoço. O
guarda, no entanto, barrou-os no portão, porque eu faltara e, para sair, tiveram de
arranjar quem me substituísse, e só assim puderam ir transportar seus tijolos.
Os trinta homens conseguiam carregar, durante todo o dia, setecentos e
vinte tijolos, que normalmente não dariam para manter ocupado um pedreiro. Lá,
porém, havia pelo menos quatro.
Quatro homens dispensados do trabalho se encontravam na sala e nossa
tarefa era conservá-Ia limpa e aquecida, para um melhor descanso e aquecimento
dos demais, quando voltassem. Um companheiro e eu varríamos a sala, enquanto
dois se encarregavam da lenha, quando veio um russo, de repente, e mandou-nos
segui-lo.
Mostramos-lhe nossas licenças, mas ele sacudia a cabeça negativamente,
dizendo dawai, dawai, vamos, vamos. Passou-nos pelo guarda do portão, levandonos à cozinha russa, que ficava voltada diretamente para o lago Onega, onde o vento
soprava mais forte ainda, cortando-nos de frio.
Mostrou-nos uma certa quantidade de madeira trazida pela água, que
deveríamos levar a um lugar em frente à cozinha e cortar com serrote, - que nos
entregou - num tamanho certo. Por sorte não precisamos trabalhar ajoelhados, pois
havia um bloco adequado para a tarefa, em cima do qual a madeira pôde ser
colocada.
Chegava da cozinha um cheiro tão agradável que passamos a alimentar
secreta esperança de que um pouco daquela comida também viesse para nós.
Enganamo-nos. Soada a hora do almoço no campo o soldado nos levou, voltando a
buscar-nos uma hora depois.
Os outros dois, licenciados, que tinham ido buscar a lenha para aquecer nosso
alojamento, nos olharam com raiva por não termos feito a limpeza, pois não sabiam
do caso e, depois das explicações, ficaram pasmados com o acontecido. Resolvemos
que sempre um dos doentes passaria a ficar de espreita, para avisar aos demais
quando alguém nos viesse buscar. Posteriormente ninguém se encontrava por ali,
quando aparecia algum soldado russo.
Esforçamo-nos para serrar logo a lenha, para ao menos aquecer o corpo, já que
os pés continuavam sempre frios, dado o miserável estado dos sapatos.
Verificando que toda a lenha estava serrada, o homem trouxe dois machados
para que as rachássemos em achas. Com grande parte desse trabalho já feita, meu
companheiro - um homem da cidade de Colônia, que tinha somente um olho - disse:
"Agora botaremos primeiro alguma lenha na cozinha, pois quem sabe com isso não
nos darão alguma coisa para comer?" Não conseguimos a comida e tivemos de
continuar partindo o resto da lenha.
O colega era tão esperto quanto dez homens juntos e disse de novo: "Vamos
mostrar a eles, como se faz". Pegou o machado,
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meteu-o de um golpe num cepo, quebrando depois o cabo com uma acha. Com um
só machado, passamos a trabalhar alternadamente, até que ele quebrou o cabo
deste também. Isto feito, levou ambos os machados quebrados até a cozinha, para
mostrar o acidente. Que de nada nos valeu, porquanto tivemos de carregar mais
toros do lago até que soasse a hora de parar e o russo nos levasse de volta ao
campo.
O trabalho na grande casa aproximou-se do fim e nosso grupo pôde voltar ao
campo principal, ficando o término da obra a cargo dos estonianos. Ali
permaneceram também os oficiais alemães. Fui imediatamente ao médico alemão
para tratamento, tão logo chegamos ao campo principal, mostrando-lhe os pés e
pernas inchados. Ele podia atestar a doença, mas tinha de mostrar os pacientes ao
médico russo, à noitinha, para que este desse seu parecer.
Disse-nos logo o médico alemão que não dispunha de remédios e que levaria
muito tempo até que estivéssemos curados. Em nenhum caso deveríamos comer
coisas salgadas. Aliás, a proibição do uso de sal era geral, sendo detido quem fosse
apanhado com ele. Para o preparo da comida utilizavam-se sete gramas por dia,
para cada pessoa, segundo as prescrições.
A água do corpo aumentava diariamente e nem mais podia tirar as calças da
perna, tão apertadas estavam. Correr era um tormento, pois dores pontiagudas
percorriam o corpo inteiro, desde a ponta dos pés. Para completar a desgraça, nosso
alojamento ficava no primeiro andar sendo a escada bastante íngreme.
Precisávamos ir ao pátio, para a satisfação das necessidades fisiológicas e até lá
havia uma boa distância.
Todos nós, acometidos desta doença, sentíamos constante vontade de urinar,
sem poder fazê-lo. Após cerca de quinze dias, com a água chegando até a barriga,
comunicou-me o médico com alegria, na hora da consulta, que naquele dia poderia
nos dar um bom remédio, recebido de um hospital alemão capturado pelos russos.
Cada um de nós recebeu oito pequenas pílulas para tomar duas, em cada duas
horas e o resultado foi espetacular. Não tivemos sossego dia e noite, pois
constantemente tínhamos de sair para urinar. Em pouco tempo desaparecera a água
do corpo e nos fortalecemos com comprimidos de vitaminas Fleischmann.
Muitos, infelizmente, já tinham morrido por causa da doença, principalmente
aqueles que tinham água no rosto. Com quatro meses de prisão, era a segunda
doença grave da qual sobrevivi. Em pouco tempo estava de novo apto a trabalhar.
Em agosto deste ano juntaram - era a primeira vez que tal acontecia - todos os
doentes, colocando-os num trem para levá-Ios de volta à Alemanha, já que, para os
russos, eram apenas bocas inúteis e incapazes para o trabalho. Entre eles se
encontrava um meu companheiro de viagem para este acampamento, durante a
qual
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memorizáramos mutuamente os endereços de nossos familiares. Anotações escritas
não podíamos fazer, nem ter coisa alguma escrita. Ele partiu.
Soube muito tempo depois que a memorização do endereço produzira
resultados. Três meses após sua partida do campo, meu companheiro chegou
realmente a sua casa e comunicou-se imediatamente com minha mulher,
informando-a que eu estava vivo, na Rússia. Ela o visitou e, desta forma, pôde saber
mais sobre a vida dos prisioneiros.
Depois de ter sarado da água no corpo, passei a trabalhar diariamente na
fábrica de papel. Esta fábrica de papel era a maior da Europa, tendo sido construída
pelos finlandeses. Na guerra da Rússia com a Finlândia, em 1939, esta perdeu para
os russos a região onde nos encontrávamos, e com ela, a fábrica.
A Carélia possui muitos lagos, ligados entre si por canais, surgindo daí o Canal
Stalin, que permitia transportar madeira por água, quando não se utilizavam
estradas de ferro. Por água a madeira era transportada de forma bastante simples,
utilizando, sempre que necessário,
os prisioneiros como mão-de-obra,
supervisionados por russos.
Jogados na água, os toros de até seis metros de comprimento eram agrupados
em número de cem e atados com correntes. Grande número desses agrupamentos
eram puxados por rebocadores, em conjunto, por meio de um anel de toros ligados
entre si por pequenas correntes, anel este que circundava todo o conjunto, sendo
suas pontas conectadas ao rebocador.
Chegando próximo à fábrica, o rebocador soltava uma das pontas do anel de
toros liberando a madeira, que era em seguida empurrada para a baía, ficando o
rebocador livre para buscar mais madeira no lago, o que fazia puxando atrás de si o
longo anel.
Da baía os agrupamentos de toros eram puxados para a margem através da
utilização de botes, cabos em roldanas e de um grupo de homens. Esses toros,
libertados das correntes que os prendiam eram, então, colocados em ordem, um
atrás do outro. Nessa ordem, entravam no canal que os levaria para o
processamento dentro da fábrica.
Em todas as fases do trabalho havia riscos, porém o mais perigoso era, sem
dúvida, o de fazer sair a madeira da baía, encaminhando-a ao canal de acesso à
fábrica. Quedas na água e arranhões na pele eram ali bastante frequentes.
Os toros, levados pela água para dentro da fábrica, caíam ali sobre correias
transportadoras que os levavam até o segundo andar, sempre um atrás do outro e
em posição horizontal. Em diferentes posições postavam-se prisioneiros para, com
longos ganchos, posicionarem os toros da maneira adequada, garantindo assim um
fluxo contínuo.
De cima, caíam os toros num declive revestido de fortes folhas de flandres,
dentro do qual duas grandes serras circulares em posição oposta
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cortavam-nos em pedaços de um metro, que por sua vez caíam num canal, cuja água
transportava-os para o processamento final.
A tarefa do meu grupo consistia em buscar as madeiras agrupadas no lago,
trazendo-as para a margem. Trazíamos, no entanto, apenas o número de toros
suficientes para o processamento durante o dia e, feito isto, voltávamos para a baia,
lá aguardando a hora de largar o serviço e somente então voltávamos trazendo mais
madeira. Para não nos flagrarem nesse descanso adicional que arranjávamos,
fingíamos que alguma coisa não funcionara bem, o que era sempre possível.
A combinação da utilização da água, como transporte, conjugada com guinchos
e esteiras transportadoras era, sem dúvida, interessante. Um grande espaço
existente no pátio da fábrica era utilizado para estocar a madeira para o futuro
processamento. Um enorme guincho a empilhava, formando cones de até cinquenta
e cinco metros de altura, pois no inverno os toros não desciam pelo lago.
Esses enormes cones eram utilizados durante o inverno, mas era um trabalho
perigosíssimo retirar os toros dali, pois a madeira era armazenada molhada,
transformando-se, então, todo o cone em um bloco de gelo. Num único dia, dezoito
encontraram a morte em virtude do deslizamento dos toros.
O congelamento nos canais era evitado durante o inverno através do uso de
substâncias químicas, mesmo com temperaturas muito baixas e, dessa forma, o
trabalho não sofria interrupção.
A cada quatro dias mudavam nosso horário de trabalho e não semanalmente,
como costuma ser. O primeiro turno ia das oito da manhã às quatro da tarde, o
segundo das quatro até à meia-noite e o terceiro da meia-noite às oito horas da
manhã e tendo de voltar as quatro da tarde.
Não havia descanso nos domingos ou feriados e, quando chegava o nosso
turno de repouso, precisávamos estar atentos para não sermos escalados para
outros trabalhos no próprio campo.
A fábrica produzia papel para embalar cimento, existindo ali instalações para
costurar esses sacos. Mais tarde meu trabalho passou a ser feito ali. Dez máquinas
de costura elétricas se alinhavam em fila diante de uma correia transportadora, que
trazia os sacos, já colados, para serem costurados por costureiras. Cada uma delas
tinha ao lado um prisioneiro, incumbido de receber os sacos já costurados, contá-Ios
e marcar com números cada pacote de vinte e cinco sacos e enviá-Ios em diante, por
meio também de fita transportadora.
Diariamente cada costureira tinha de coser seis mil e quinhentos sacos de
papel, pelo menos. Nos dois primeiros dias fui agregado a uma moça que fazia no
tempo normal nove mil sacos, tirando-me o fôlego, dada a sua rapidez. Se a gente
não trabalhasse no ritmo das máquinas e não colocasse os sacos em igual posição na
correia, era impossível endireitá-los,
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a não ser que alguém ajudasse ou houvesse defeito na máquina. Quando esta
parava era possível respirar mais calmamente ou ajudar algum companheiro. Essas
pausas inesperadas tinham de ser atestadas pelo capataz, para que a costureira não
sofresse redução no seu salário.
A moça faltou no terceiro dia, vindo uma senhora para seu lugar. Ao final do
turno, contada a produção, viu-se que ela não conseguira fazer nem quatro mil e
quinhentos sacos. A mulher fez-me compreender que fatalmente perderia o lugar,
por causa da baixa produção e que o ganho não daria para seu sustento e de seus
quatro filhos. Eu soubera, por outros companheiros, que o controle da contagem
não era rigoroso e assim ajudei-a, aumentando o número ficticiamente no papel de
controle que o capataz vinha buscar a cada noite. Aumentei a produção
gradualmente: primeiro, para cinco mil e novecentos sacos, depois, para seis mil e
trezentos, e assim sucessivamente, até que em oito dias ela já alcançava a marca dos
oito mil, embora sua produção nunca chegasse a tanto.
Em agradecimento pelo favor que lhe prestara, ela me trouxe, dias mais tarde,
algumas batatas cozidas com sal, que aceitei de bom grado, como complemento de
minha alimentação. Posteriormente trouxe-me também uma boa porção de
machorca (tabaco russo), e papel jornal, que era comumente utilizado para fumá-lo.
Os sacos de papel já costurados seguiam por correia transportadora para uma
prensa hidráulica que preparava, de cada vez, quatro pacotes de vinte e cinco sacos,
transformando-os em pacotes de cem e amarrando-os.
Um dia, mais da metade das máquinas estavam enguiçadas; os prisioneiros, no
entanto, fizeram o registro de quarenta e oito mil sacos produzidos, o que,
evidentemente, não correspondia à realidade; mas a prensa foi ainda além,
registrando sessenta mil. Sabendo a maneira de fazer a coisa poderíamos, pelo visto,
descumprir as normas em nosso próprio benefício, sem maiores problemas. Não
somente aqui, mas em todos os lugares o procedimento era semelhante. Em todo o
caso, muito aprendíamos para o futuro sobre o sistema russo.
Nos alojamentos dormíamos sempre na tarimba nua, sem sacos com palha,
cobertor ou qualquer outra coisa. Tínhamos somente as roupas do corpo para nos
proteger do frio. Este começara já no inicio de setembro e, logo, a neve estava alta.
Para nos proteger do frio da noite, começamos a tentar desviar sacos de papel da
fábrica. Todas as maneiras eram tentadas, mas a rigorosa revista nos porões, feita
pela polícia da fábrica, os descobria e, tirando-os de nós, simplesmente os jogava no
chão em frente, onde a lama os desfazia. Frequentes tentativas, no entanto,
acabaram por surtir efeito e, com algum tempo, mesmo os que não trabalhavam na
fábrica tinham seus sacos de papel. Com eles protegíamos nosso corpo do frio,
metendo nossos pés em um e usando
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outro, descosturado, como cobertor. Como também não possuíamos nem meias,
nem panos para os pés, usávamos também sacos para este fim.
Quase chegando o verão de 1945, de repente circulou a notícia de que
prisioneiros do exército alemão da Curlândia - invictos até o fim da guerra, não
obstante ficarem totalmente sem comunicação com o resto do exército - viriam para
o nosso campo. Todo o pessoal que não estava fora, de serviço, juntou-se na rua
principal para ver os novatos.
Aberto o portão principal, ficamos embasbacados ao ver o destacamento
entrar. Eram mais de cem homens, desfilando em boa formação militar, sob o
comando do primeiro sargento, frente aos oficiais russos de guarda. Todos estavam
com uniforme completo, com cinturão, ombreiras, saco de pão e cantil. Tinham-Ihes
deixado até a bagagem de ataque, que, na infantaria, consistia de uma mochila
plana contendo o necessário em roupas e um cobertor.
Parecíamos mendigos nus diante destes novatos, e assim nos trataram, nos
primeiros tempos. Até para pegar sua comida, vinham em formação sob comando
militar. Seu lugar na grande sala de refeições era separado de nós e evitavam o
quanto possível contato conosco.
Os russos prometeram-Ihes, quando os aprisionaram, que seriam tratados não
como prisioneiros, mas como iguais devido a sua grande bravura. Promessas,
apenas. Pouco tempo depois, os coitados se viram sem seus apetrechos de couro,
sacos de pão e cantil, ficando com seus pratos, mas perdendo garfos e facas. Logo
mais, perdiam seus bons sapatos e as bem conservadas partes da farda, e mal se
distinguiam de nós.
Breve, pudemos verificar que também eles tinham de trabalhar, como nós.
Durante algum tempo ainda o fizeram num só grupo, como uma unidade fechada,
mas os russos terminaram por distribuí-los entre nós, não apenas para o trabalho
como também para os alojamentos.
Em breve quebrara-se seu orgulho e eles certamente ficaram contentes de
não Ihes fazerem sentir o desprezo que antes sentiram por nós. Quem ainda possuía
sua velha farda, tratou de tirar a braçadeira com as inscrições: "Exército da
Curlândia", para não se recordar das desilusões.
No início de novembro de 1945, quando voltávamos do trabalho, escolheram
alguns para trabalhar em outro campo, e entre os escolhidos estava eu. Uma vez
selecionados, separaram-nos dos demais, mudando-nos para uma barraca
desocupada para que ali aguardássemos o que viesse. Havia boatos de que nosso
destino seria uma floresta, mais para o norte. De manhã fomos ao depósito de
roupas, onde, como que por milagre, deram-nos sobretudos de pele.
Novamente veio a noite e com ela a ordem de sairmos ao pátio e formar.
Receberam-nos rostos de guardas desconhecidos e, depois de umas dez contagens e
recontagens, para concluírem se éramos de fato cento e trinta e cinco homens,
fomos levados portão afora e distribuídos
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por quatro vagões parados num desvio em frente.
Nos vagões, nenhuma luz, nenhum fogão, pois todos estavam totalmente
fechados, e só nos restou aguardar no escuro, tiritando de frio. Tarde da noite uma
locomotiva acoplou-se aos vagões, levando-nos até a cidade, onde, depois de horas,
ligaram-nos ao trem de carga da linha para o Norte, em direção ao Mar BrancoMurmansk.
Como de costume, ficamos a imaginar para onde seria a viagem. Para as minas
de chumbo do norte, ou realmente para um comando florestal? Nem de longe
conhecêramos ainda as grandes estepes e florestas virgens da Rússia, pois até agora
viajáramos somente em vagões fechados.
Desta vez a incerteza não duraria muito, pois já no outro dia às quatro da tarde
o trem parou e descemos.
Florestas cheias de neve em volta e uma solitária casinha servindo de estação,
foi tudo o que avistamos naquele momento. Não nos afastáramos muito dali,
marchando, e já víamos as conhecidas torres de guarda do campo de concentração.
Mais meia hora de andar e chegamos ao portão de entrada, onde ficamos
aguardando que conferissem nosso número e a respectiva entrega e recepção. O frio
fazia com que nossos corpos, principalmente pés e pernas, ficassem insensíveis, mas
tivemos de esperar, parados, até que finalmente se cumprissem as formalidades
entre os guardas acompanhantes e o comando do campo. Meia hora demorou isso
e, somente depois foi que o portão se abriu.
Todas as construções do local eram de toros e estavam ligadas entre si por
estivas e pranchas, sinal certo de que estávamos em terreno pantanoso, no qual,
com as chuvas do verão, havia alagamento.
Apesar do frio, alguns prisioneiros anteriormente ali chegados estavam
acordados, como que a nos aguardar, e procuravam satisfazer sua curiosidade.
Também desta vez, nossa primeira tarefa foi limpeza e despiolhamento.
Embora ninguém portasse esses bichinhos, submetemo-nos ao processo e nos
banhamos, e já lá pelas dez da noite pudemos tomar nossa primeira refeição em
vinte e quatro horas. Os ingredientes para nossa comida tinham vindo conosco e o
pessoal da cozinha tivera tempo para preparar-nos uma sopa.
Formalidades e distribuição do pessoal nos alojamentos gastaram as vinte e
quatro horas seguintes. O médico russo do campo anterior atestara estarmos todos
capazes para trabalhar, e por isso, finalmente, nos avisaram que todos os cento e
trinta e cinco iriam trabalhar na floresta. Um de nossas próprias fileiras foi nomeado
capataz e tivemos descanso até a outra manhã.
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NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
DE LETNAJA
I) - COMANDO FLORESTAL
O campo estava situado na estreita faixa de terra entre a ferrovia LeningradoMurmansk e o Canal de Stalin. Somente um pequeno rio o separava de uma grande
serraria, uma olaria moderna com forno redondo, uma pequena aldeia e uma fábrica
de cimento em construção.
A hora de acordar, como em todos os campos anteriores, era seis da manhã. Às
seis e meia recebíamos sopa, como primeira refeição, sobrando-nos, portanto, meia
hora para lavar e aprontar-nos. Nosso grupo, denominado de Comando Florestal,
tinha de deixar o campo primeiro, às sete horas, enquanto que os demais saíam às
sete e meia para chegar ao trabalho às oito horas.
Somente no primeiro dia fomos acompanhados de um guarda russo, uma
vez que desconhecíamos a região e nosso local de trabalho. Daí em diante ninguém
deles nos acompanhava. O chefe do nosso grupo, um antigo primeiro sargento,
tinha de receber os prisioneiros por protocolo, de manhã, exigindo do guarda, à
noite, após a conferência dos mesmos, a contra-assinatura no livro, certificando a
entrega de todos.
Na volta, antes de cruzar os portões, passávamos pela casa de um oficial
russo que morava fora do campo e a ele o chefe devia prestar conta do trabalho do
dia e comunicar eventuais acontecimentos. Antes de sairmos ao trabalho pela
primeira vez, leram-nos, primeiro em russo, depois em alemão, as normas vigentes
para o Comando Florestal, que todos assinaram depois. Diziam, entre outras coisas:
- Antes de clarear o dia não abater árvore alguma.
- Com tempestade, parar imediatamente o trabalho.
- Durante o trabalho, cada um é obrigado a prestar atenção, para não causar
danos aos colegas.
- Ao escurecer, parar de trabalhar.
O dia clareava entre as dez e as dez e meia, e entre as três e as três e meia já
estava escuro. Nós nos perguntávamos como seria possível satisfazer o programa de
trabalho, calculado para oito horas, em tempo tão reduzido.
Determinava nosso programa que cada pessoa deveria abater três metros
cúbicos de pinheiro bravo e dois metros cúbicos de abetos, em cada dia. Não
somente derrubar, mas desgalhar e cortar em comprimentos previamente fixados.
Assim, a madeira para lavrar tinha de ser cortada em comprimentos de quatro
metros e meio e seis metros e meio, com um mínimo de oito centímetros na ponta.
O resto devia ser cortado para lenha ou fabrico de papel em pedaços de dois e
quatro metros.
Os toros tinham de ser empilhados, separados por comprimento e
destinação, e os galhos juntados e queimados. As árvores tinham de ser serradas
quatorze centímetros acima do solo e derrubadas. A machado nenhuma árvore
podia se cortada.
Para serrar as árvores, tínhamos primeiro de retirar de um metro e meio a dois
metros de neve com as mãos, uma vez que não tínhamos
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ferramentas para isso. Um pequeno entalhe com o machado podia-se fazer, para
facilitar a derrubada da árvore.
Tínhamos de trabalhar ajoelhados e, além do mais, nem dez dos nossos tinham
jamais segurado machado e serra, quanto mais trabalhado com eles. Nos primeiros
dias era uma tortura o serviço e todos apresentavam bolhas nas mãos.
Concediam-nos dez minutos de intervalo por hora, para aquecer·nos ao fogo, o
que pouco adiantava, pois mal começávamos novamente, estávamos com mãos e
pés insensíveis e gelados.
Agrupávamo-nos em seis a oito homens e dividíamos o trabalho de tal forma
entre os componentes de cada grupo que os dois primeiros trabalhavam com a
serra, cortavam cinco árvores e logo corriam para o fogo, enquanto os próximos dois
desgalhavam as árvores, mais dois juntavam os galhos e os queimavam, e os dois
restantes cortavam os toros nos tamanhos certos. Quando se empilhavam os toros,
já as próximas árvores estavam sendo serradas.
Nenhum grupo jamais tinha conseguido atingir a meta programada, por isso
constantemente matutávamos em busca de uma melhoria na produção, já que
diariamente o oficial russo enchia-nos os ouvidos chamando-nos de trabalhadores
relapsos. É bem verdade que sua arenga não nos causava impressão, até porque
estávamos simplesmente sem forças para produzir mais.
Depois de muito pensar, encontramos finalmente a chave do problema,
para produzir mais sem maior esforço.
Usualmente, um homem acendia o fogo de manhã, quando chegávamos à
floresta. Precavidamente cobríamos, todos os dias, antes da volta, o fogo com
ramos verdes de bétula e depois com neve, sendo raro o dia em que não
encontrávamos uma brasa pela manhã. Cortar árvores não podíamos, pois ainda era
escuro. Ao invés de nos sentarmos junto ao fogo, começávamos a serrar as pontas
dos toros do dia anterior, pontas estas que eram marcadas com números pelos
russos ao final de cada dia. Lançávamos ao fogo estes pequenos pedaços de madeira
com a numeração, retirando os toros desmarcados e empilhando-os como se fosse
produção nova. Quando os russos vinham retirar a madeira marcada não a
reconferiam e assim podíamos juntar um pouco da produção de ontem com a de
hoje, melhorando o nosso desempenho.
Com o tempo, outros grupos imitaram nosso exemplo. Fôramos sempre
muito cuidadosos, colocando os discos cortados bem fundo no fogo, para que
nenhuma revista os descobrisse.
Num grupo vizinho, porém, não tinham cuidado, jogando-os simplesmente no
fogo. Um inspetor civil russo encontrou-os, ainda com os números marcados.
Retirou então do fogo dois desses discos para usá-los como prova diante de seus
superiores, mas não chegou a mostrá-los, pois, quando passou por nós à noite, de
volta ao campo com os discos debaixo do braço, com seus sapatos de neve, alguém
gritou: "ATENÇÃO!" Antes que ele pudesse entender o significado da palavra
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derrubaram-no, fingindo acidente, e os discos voaram para o mato, desaparecendo
na neve alta. Sua denúncia ficou sem provas e nós sem consequências.
Daí em diante redobramos a atenção, pois as revistas eram constantes. A
chegada dos encarregados da inspeção era avisada por gritos, de grupo a grupo, de
tal forma que mais ninguém foi apanhado tentando melhorar sua marca.
Grande esforço representava para nós, logo de manhã cedo, a marcha para a
floresta. Íamos do campo à aldeia próxima, a meia hora de distância, buscar as
ferramentas. Ali nunca demorávamos menos de meia hora, uma vez que a
distribuição abrangia cento e trinta e cinco homens. Depois rumávamos para a
floresta, a uma hora e meia de marcha.
Para ficar com as mãos livres e aquecê-Ias nos bolsos do sobretudo, todos
tentavam inovar no modo de carregar as ferramentas. Dobravam-se as serras, em
volta do corpo, como um cinturão de aço, amarrando-se as pontas com arame.
Serrotes eram pendurados nos ombros, e machados metidos nos cintos, ainda que
estes não passassem de arame ou corda. O importante era liberar as mãos e
protegê-las nos bolsos. Fazia um grande frio e não possuíamos - além do sobretudo
e do boné de pele - nenhuma roupa de inverno, ao passo que a neve atingia mais de
um metro de altura.
Calças e sapatos rotos, papel envolvendo os pés em lugar de meias ou
panos, inexistentes. Quem possuísse luvas, mesmo de peliça, podia se considerar
feliz. Eu possuía um par, feito de panos velhos, que absolutamente não me protegia
do frio. Minhas calças eram finas e rasgadas.
Meus esforços para conseguir calças melhores foram em vão, muito embora,
por ordem do comandante alemão do campo, toda a noite devesse perguntar, na
intendência, se poderiam me conseguir uma. Uma noite disseram-me que eu tivera
sorte e poderia receber outras calças, pois, morrera um prisioneiro na noite anterior.
Faltam-me palavras para descrever o que senti ao ouvir aquilo, mas depois fiquei
contente por estar com um agasalho melhor, embora este também rasgado e com
remendos, os quais, tornando-o mais espesso, protegiam melhor contra o frio.
Na marcha para a floresta os sapatos congelavam nos pés, ficando tão duros
que não se podiam mover os dedos dentro deles, enquanto o corpo, protegido pelo
sobretudo de peliça, começava a suar.
Na floresta distribuíam-se os grupos pelas glebas demarcadas, tendo cada
uma vinte metros de largura. Entre cada grupo ficava uma gleba vazia, como
proteção para os homens contra a queda das árvores e para não se atrapalharem
mutuamente no serviço.
Aceso o fogo, cada um tentava aquecer mãos e pés para ficarem sensíveis.
Começar o trabalho, só quando fosse dia, se bem que a neve
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dava bastante luminosidade para que se pudesse trabalhar.
Aproveitava-se o intervalo para cortar os discos dos toros, pois em geral, os russos
não apareciam a essa hora.
O trabalho começava formalmente apenas quando o chefe do grupo dava a
ordem. A partir das três da tarde, quase todos os homens já se encontravam em
volta do fogo, visto que começava a escurecer e aguardava-se a ordem de reunir.
Soado o sinal, todos os grupos se movimentavam para o ponto de reunião e tão logo
todos estivessem juntos iniciava-se a marcha de volta.
Depois da entrega das ferramentas na aldeia continuávamos rumo ao campo, onde
não devíamos chegar antes das dezoito horas para não ficar comprovado que
tínhamos abandonado o local de trabalho antes da hora fixada.
A administração do campo não punha lenha a nossa disposição para
aquecimento das barracas, visto que seu consumo era apenas programado em
função da cozinha, da lavanderia e do hospital. Se quiséssemos alojamentos
aquecidos tínhamos de providenciar combustível.
Para o banho e o despiolhamento, prescritos para cada dez dias, obrigava-se
que todos os prisioneiros aptos para o trabalho saíssem do campo no domingo
antecedente para arranjar lenha. Aproveitava-se então para consegui-Ia de qualquer
jeito em quantidade cinco vezes maior, para uso nos alojamentos. Como fazê-lo,
ficava a critério de cada um. Das oito da manhã, às quatro da tarde, era uma correria
ininterrupta trazendo lenha. Quem não fizesse a quantidade de corridas
determinadas nesse espaço de tempo, deveria ir uma vez mais, controlando-se
assim os eventuais preguiçosos.
Nós, do Comando Florestal, juntávamos lenha seca no correr do dia, dividindoa em montes tais que pudessem ser carregados com corda ou arame pendurados
nos ombros. Tínhamos, por isso mesmo, sempre um considerável estoque debaixo
das tarimbas para enfrentar situações imprevistas. Essa previdência nos foi
singularmente providencial no Natal de 1945, quando a neve impediu o tráfego dos
trens que traziam nossa comida, com o frio atingindo cinquenta e cinco graus
negativos. Ficamos sem comida, é verdade, mas pelo menos não passamos frio. Em
compensação, nós que até aquele momento trabalháramos até nos domingos e
feriados, tivemos o dia livre no Natal por força daquelas circunstâncias.
Durante o trabalho na floresta não recebíamos comida, tendo de nos contentar
com a sopa e o pedaço de pão recebidos pela manhã, que deveriam garantir o
sustento do dia. Voltando ao campo às seis horas recebíamos, ao mesmo tempo, a
sopa do meio-dia e da noite. Tínhamos de aguentar doze horas sem comida,
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fazendo trabalho pesado e vencendo o longo caminho de ida e volta. Como
resultado, um ou outro desfalecia na floresta, depois de algum tempo, tendo de ser
levado ao campo à noite pelos companheiros, embora cada um já tivesse que vencer
a própria fadiga. Numa situação dessas, colocava-se o fatigado companheiro entre
dois na frente da coluna. O primeiro da fila estendia a mão para trás segurando-o no
sobretudo ou em qualquer parte desde que o mantivesse de pé, enquanto o de trás
o empurrava. Depois de curto tempo outros dois assumiam a tarefa e assim se fazia
até o fim da coluna, quando se invertia o processo, passando o doente de trás para
diante. Nunca se deixou alguém na floresta, pois a morte por congelamento teria
sido o fim dele.
Em janeiro de 1946, ao abater uma árvore, caí com a cabeça na neve,
perdendo os sentidos. Aos gritos de meu colega, outros acudiram levando-me para
perto do fogo. Esfregaram-me neve nas mãos e no rosto, mas mesmo assim demorei
bastante tempo para recuperar os sentidos. Pude ficar o resto do dia junto ao fogo,
o que de pouco adiantou, porquanto a volta, levado pelos companheiros, foi
horrível. Como num sonho, caminhei entre as altas paredes de neve à direita e à
esquerda, sempre com o desejo de me sentar e dormir.
Nosso caminho para a floresta ficara tão fundo, com o passar do tempo, pelas
constantes caminhadas, que mal conseguíamos ter uma visão do panorama por
onde passávamos. Quando a neve caía, obstruindo o caminho, era bastante ruim, já
que ele tinha de ser repisado. Em tais dias, chegávamos somente depois de três
horas à floresta, inteiramente exaustos. Com o tempo, estávamos todos totalmente
estupidificados e sem interesse.
Estávamos nessas condições quando chegou o Natal de 1945, antes recordado.
Nesse Natal, os demais companheiros do campo pediram-nos que
trouxéssemos uma pequena árvore para a comemoração da data. Com tempo e
esforço, conseguimos árvores para todos os alojamentos, com exceção da sala
grande onde estava instalado o Comando Florestal, e não quisemos uma lá, para não
recordar nossa triste sorte. Na antevéspera de Natal, porém, mudamos de idéia,
escolhendo uma arvorezinha especialmente bonita. Na mesma noite aspergimo-la
com água e borrifamos suas folhas e tronco com gesso para dar a impressão de
neve. O gesso, cada sala o obteve dos pedreiros e estucadores prisioneiros. De
algum modo apareceu também parafina e entre os doentes encontraram-se cabeças
engenhosas que fabricaram velas para todo o acampamento.
Alguns que, estando sob licença médica se incumbiam da limpeza das salas,
receberam o encargo de preparar as árvores e colocar as velas, na véspera de Natal.
Nesse dia, indo ao lavatório, verificamos que o frio estava rigoroso. Esperávamos
não ser obrigados a ir trabalhar, uma vez
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que havia ordens escritas de não se trabalhar com mais de trinta e seis graus
negativos, ao ar livre. Na hora de costume, no entanto, soou para nós o sinal de ir.
Para, completar, um forte vento fazia o frio mais intenso ainda.
Chegando à aldeia para receber ferramentas, dois de nós correram logo à praça
da aldeia, onde diante da casa do russo, existia um termômetro numa caixa de
proteção, para que cada um se certificasse do frio. O termômetro marcava trinta e
nove negativos. Tendo o nosso encarregado de turma reclamado ao soviete a
respeito, recebeu dele a resposta: nitschewo, dawai, raboti, "nada, vamos,
trabalhem!"
Na floresta, verificamos que o frio aumentava sempre, não sendo possível
segurar ferramentas por mais de dez minutos. Constantemente íamos ao fogo para
aquecer-nos e, logo, paramos, pois era impossível resguardar-nos do frio com nossas
roupas. Pelas duas da tarde um estafeta do campo veio inesperadamente num trenó
puxado a cavalo, com ordens do oficial de que o trabalho devia parar por causa do
frio.
Um grito de alegria foi a reação de todos à notícia e assim que soou o sinal de
nos reunirmos para a volta, todos o fizemos, sem trazer lenha, dessa vez. Mesmo
saindo logo, somente as cinco da tarde chegamos ao campo, atrasados pela
tempestade que aumentara tanto a ponto de não conseguirmos andar para a frente.
Na floresta não sentíramos tanto a força da tempestade, mas chegados em área
aberta ela atingiu-nos em cheio e só com esforço ficávamos de pé.
Com a sala agradavelmente aquecida pelos companheiros doentes, e após
termos tomado a sopa novamente, nossa temperatura voltou ao normal. Todos se
deitaram, em seguida, nas tarimbas com os pensamentos voltados para os
familiares, notícias dos quais ninguém sabia.
Ao final, alguns sacudiram de si tais recordações tristes e começaram uma
canção de Natal. Foi um começo miserável, mas com o tempo mais vozes se
juntaram e a tristeza foi vencida por alguns momentos.
No dia do Natal, às seis horas, o comandante do campo mandou avisar que,
devido ao grande frio, não haveria trabalho. Comunicou-se também - e este
certamente não foi um bom presente natalino - que os alimentos estavam
terminando e novos víveres não poderiam chegar em face da total obstrução da
linha férrea pela neve. Até segunda ordem haveria, em vez das três, apenas uma
refeição por dia. Pão, apenas duzentos gramas, ao invés dos seiscentos habituais.
Está visto que perdêramos tempo na noite anterior em buscar as três fichas de
comida, atribuídas a cada um. Essas fichas foram criadas para possibilitar que
pequenos grupos de três ou quatro pessoas apanhassem a comida de todos nós, lá
na cozinha, que ficava algo distante, e assim nem todos precisavam expor-se ao frio.
Depois da sopa da manhã resolvemos rachar a lenha. Há muito cada barraca
possuía serrotes e machados obtidos por meios ilegais,
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além de suportes para apoiar os toros e serrá-los. O mais velho de cada barraca
distribuiu os serviços, de sorte que dois ficavam lá fora durante cinco minutos para
serrar a lenha no comprimento de quarenta centímetros, depois de sua volta dois
partiam a lenha e a seguir dois a estocavam na antecâmara.
Tudo foi feito em tempo rápido e quando os cinco minutos passavam,
esfregávamos bastante o rosto e as mãos com neve para evitar congelamento.
A obstrução da linha férrea durou apenas três dias e mantimentos novos
chegaram da central, normalizando-se nossa comida. Isto acarretou o recomeço do
trabalho. O Comando Florestal servia, em geral, como uma espécie de introdução
dos recém-chegados ao Campo, bem como castigo para os veteranos. Esse tipo de
trabalho, como já foi dito, terminou para mim em janeiro de 1946, por causa de
minha total debilitação.
Além do comandante russo havia no campo um alemão, responsável por todas
as ocorrências ali e pelos delitos nos locais de trabalho. As tarefas administrativas
estavam em suas mãos e o auxiliavam dois ajudantes e um estafeta. Todos falavam
russo e serviam de intérpretes, sendo prisioneiros como os demais.
Punições disciplinares dos prisioneiros estiveram, no princípio, também a cargo
desse comandante alemão, menos as de maior severidade ou aquelas que o
comandante russo se reservara aplicar. Eis algumas das principais infrações, cuja
punição ficava a cargo do comandante alemão:
- produção insuficiente;
- não cumprimentar militarmente os oficiais russos;
- obtenção de ração alimentar adicional por meios fraudulentos - não
entregando a ficha de comida sob a alegação de já o haver feito, por exemplo;
- desleixo no tratamento da roupa e sapatos, e outros pequenos delitos.
O comandante alemão era magnânimo quando ocorriam pequenos delitos,
mandando os delinquentes, enquanto os outros descansavam, trabalhar duas horas
adicionais no campo, (partindo lenha, limpando privadas em época de verão,
carregando água) e o assunto ficava liquidado, para ele. Se, porém, a sentença fosse
russa, era sua obrigação executá-la e vigiar seu cumprimento. Mais tarde o comando
russo confiou ao chefe antifascista a decretação e execução das punições, estando
também a seu cargo a doutrinação e a educação políticas. Este homem, que se
intitulava um velho comunista, isto é, tornara-se membro do Partido Comunista
antes de 1933, era um algoz da pior espécie, que desejando se fazer querido pelos
russos, atormentava outros prisioneiros de modo desumano.
Sempre havia os que cometiam delitos, pequenos ou grandes, ficando passíveis
de penas disciplinares. O chefe antifascista, que não precisava trabalhar, recebia-os
no portão do campo, quando voltavam de seus serviços. Reunidos, marchava em
formação com eles para a sala
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de refeições, onde faziam exercícios com cabos de vassouras imitando fuzis. Só que
exercícios tão vigorosos como aqueles não se viram, nem nos piores tempos, nos
quartéis prussianos. Os coitados, cansados do trabalho, fracos e com fome, nem
sempre podiam cumprir ordens. Quando alguém fraquejava, o chefe antifascista,
que costumava fumar em frente às vítimas, apagava o cigarro no rosto dele dizendo:
"Vou ajudar-te, porco!"
Grande era a revolta no campo em razão de tais acontecimentos, mas não
havia possibilidade de fazer o antifascista pagar por suas ações desumanas. Ele , que
não precisava trabalhar, recebia comida melhor e mais farta por ordem russa, à
custa dos outros prisioneiros. Estava, por isso, forte e vigoroso.
Durante o tempo em que o comandante alemão fora o encarregado das
punições ninguém se rebelava, mas agora revoltas eram comuns. Enquanto aquele
jamais denunciara alguém aos russos, o antifascista assim procedia quase
diariamente. A seu bel prazer denunciava ora um, ora outro, para punição com
detenção de um ou dois dias, conforme sugestão sua.
O local de detenção era uma primitiva barraca, sem aquecimento interno, de
tábuas de um metro de largura e dois de comprimento. Por não estarem
aparelhadas as tábuas, as paredes e o assoalho apresentavam grandes frestas. No
verão ou no inverno cada detento era obrigado a tirar toda a roupa na porta,
passando a noite ali dentro, nu. Às seis da manhã recebia a roupa, pois tinha de
trabalhar com os outros, recebendo, porém, no dia, apenas uma ração de sopa e
duzentos gramas de pão. Voltando do trabalho davam-lhe a continuação do castigo.
Impossível dar alguma coisa aos infelizes, pois a cadeia não tinha janelas e a
porta estava sempre trancada. Muitos desses condenados contraíram pneumonia no
inverno, mas só tiveram permissão de ir ao médico depois de cumprida a pena.
Muitas mortes no campo e a grande incidência posterior de doenças
pulmonares foram causadas por esse tratamento desumano. Nunca se admitiu,
porém, que a causa dessas doenças fossem os maus tratos. O motivo único, para os
russos, era o mau estado geral de saúde dos alemães, uma evidente inverdade, pois
não fosse boa a saúde e nunca teríamos aguentado e sobrevivido.
Ao chefe antifascista alemão aplicava-se, com toda razão, o ditado russo:
"Metam os alemães atrás de cercas de arame farpado, que eles mesmos se
aniquilam".
Por ordem do oficial político, o chefe antifascista possuía em cada sala um
homem de confiança, responsável pela ideologia política dos componentes de seu
setor. Poucos queriam aceitar a incumbência, já que seus companheiros os tinham
na conta de espiões e delatores. Embora poucos se prontificassem para a missão,
sempre havia em cada barraca tal homem que, com o tempo, sempre era
descoberto por nós, visto que se encontrava uma ou duas vezes por semana com o
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chefe antifascista, fato difícil de encobrir.
Um dia, por causa das constantes revoltas surgidas com as atitudes do
antifascista, tiveram os russos o bom senso de reconhecer que seria melhor
transferi-lo para um outro campo, precavendo-se assim contra situações piores.
Muitos desses homens, ao voltarem para a Zona Ocidental da Alemanha,
sofreram justa penalidade.
Sempre houve, nas barracas, viciados em furtos. Se os companheiros os
descobriam nunca eram denunciados, mas os componentes da barraca incumbiamse de punir o culpado. Os roubos eram de pão, tabaco, sabão ou coisas de comer e
roupas, que tinham muito valor para cada um.
Reincidências eram comunicadas ao comandante alemão e o castigo - por
ordem dele - ocorria na barraca ou na sala da administração. Somente os
incorrigíveis eram denunciados aos russos, que os transferiam para outro campo
sempre que uma oportunidade surgisse.
Durara cerca de dois meses meu trabalho no Comando Florestal até que, em
janeiro de 1946, devido ao total enfraquecimento, desfaleci na floresta. Quinze dias
passei no campo recuperando a saúde e depois fui adido à turma da construção de
uma fábrica de cimento.
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II) - NA CONSTRUÇÃO DA FÁBRICA DE CIMENTO "VITÓRIA"
Chefiava o comando de construção da fábrica um prisioneiro que fora
engenheiro-mor da estrada de ferro federal em Koenigsberg, antes de sua
incorporação ao serviço militar. Dominava perfeitamente a língua russa, não
escrevendo nesse idioma porque não quis aprender. Seu nome era Otto Sonter.
No primeiro dia integraram-me ao grupo encarregado de retirar terra do
pântano. Todo o terreno era pantanoso, mas não tanto que se chegasse a afundar
nele, pois mesmo no verão o degelo somente atingia a oitenta centímetros do solo,
ficando abaixo daí tudo firmemente gelado até um metro e vinte de profundidade, a
partir de que a água do fundo fazia pressão para cima. A lama pantanosa tinha de
ser retirada até se chegar à terra firme para depois se poder fazer as valas para as
fundações.
Trabalho mais estupefaciente não pude imaginar. Não havia quota mínima
prescrita, uma vez que a altura do chão pantanoso era irregular. Dividia-se o
trabalho mais ou menos da seguinte maneira: alguns soltavam a lama e a
amontoavam, outros a colocavam com pás em padiolas; cada padiola era levada por
dois homens, que a descarregavam adiante. As padiolas eram feitas com dois caibros
de dois metros de comprimento, ligados no meio por tábuas de três centímetros de
grossura e sessenta centímetros de comprimento, com espaço atrás e na frente para
alguém carregá-Ias.
Uma longa coluna de carregadores em fila indiana ia andando constantemente
em círculo para carregar e descarregar. Neste enervante passo de lesma, era preciso
ficar atento para não adormecer, mas também não se podia andar mais depressa,
para não arruinar totalmente o ritmo de trabalho. Viu-se, finalmente, que o
importante para os russos não era trabalhar rápido, mas manter um ritmo sempre
constante.
Já no terceiro dia tiraram-me do grupo, junto com um companheiro, para fazer
uma longa calha de tábuas. Começara a escavação das valas dos alicerces e a água
do chão fazia pressão antes que se tivesse conseguido a profundidade necessária.
Uma pequena bomba manual foi montada para sugar a água, por isso necessitava-se
da calha. Instalada alguns dias depois uma bomba elétrica, visto que a manual não
dava conta da massa de água, foi preciso uma calha maior. Como nosso primeiro
serviço de carpintaria fora aprovado, não mais voltamos ao antigo serviço, sendo
aproveitados em outros trabalhos até que, por fim, éramos definitivamente
carpinteiros do grupo de construção.
Até agora nossos sapatos tinham estado rotos, mas um dia recebemos ordem
de buscar botas novas de feltro, e quando as recebemos tivemos de entregar os
sapatos velhos. Estes foram identificados com placas de madeira fixadas neles com
nome, número e barraca, como se fazia com todas as peças de roupa, que eram
substituídas. O grande frio tinha passado e matutávamos por que estariam
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distribuindo somente agora essas botas. Passados apenas três dias, veio a contraordem de devolvê-las, com o que recebemos os sapatos velhos de volta. No dia
seguinte tivemos de trocar também os sobretudos de pele por velhas e gastas capas
russas. Se não estivesse gravado o WP - woina plenny, prisioneiro de guerra - com
tinta a óleo nas peças de roupa, ninguém nos teria distinguido dos russos.
A troca da roupa de verão para a de inverno, ou vice-versa, fazia-se sempre
por ordem do comando russo do campo. Acontecia no decorrer dos anos que
algumas vezes recebíamos botas de feltro num dia tendo de devolvê-las no outro,
por causa da ocorrência de degelo, à noitinha.
As botas russas de feltro não se comparavam com as militares alemãs do
mesmo material, pois estas tinham a parte inferior revestida de couro, enquanto as
russas eram prensadas inteiramente com feltro, inclusive a sola. Naturalmente as
botas que recebíamos não eram novas, mas, sim, as já utilizadas por militares russos.
Encontravam-se tão gastas que não se distinguia a esquerda da direita, a menos que
a sola alguma vez tivesse sido substituída. Também acontecia de alguns receberem
uma bota marrom e outra cinzenta, ou uma com o cano mais longo que o outro.
Quem, ao tentar aquecer os pés ao fogo, queimasse as botas, recebia
detenção não inferior a três dias por causa da "dolosa destruição de propriedade
russa".
Aos poucos a primavera chegara, começando o degelo. Notavam-se agora
estragos no reboco externo do edifício principal da fábrica, já pronto. Os prisioneiros
e mesmo a direção russa da construção, executores dos trabalhos de reboco externo
no outono, chamaram atenção naquela época para a inutilidade da execução do
serviço no começo do frio, mas obrigaram-nos a fazê-lo e agora desprendia-se o
reboco que não secara, apenas congelara. Tinha-se de rebocar de novo o prédio e,
para isso, precisava-se de um andaime completo. Enquanto ele era preparado,
fomos designados, eu e meu colega, para uma tarefa especial.
Todo o conjunto de prédios da fábrica tinha sido coberto com telhas de
cimento-amianto. Nosso mestre de obras, durante os trabalhos do reboco, alertara o
supervisor russo da construção para o fato de que o beiral do telhado era curto
demais e, por causa disso, e por não existir calha, a chuva iria escorrer sempre ao
longo da parede. Consequentemente, nos ordenaram que alongássemos o beiral em
mais meio metro. Dois homens destacados para isso não souberam como proceder.
Explicações não se davam, se a gente não fosse diretamente com o chefe da
construção. Cada um devia desenvolver sua própria iniciativa, pois o chefe da
construção não podia se inteirar de tudo.
Para melhor compreender a situação, é bom explicar que todas as manhãs, na
ida ao trabalho, parávamos diante da fábrica, num largo
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caminho de estivas. Os guardas contavam-nos para ver se não se tinha perdido
nenhuma de suas ovelhas - embora o caminho andado tivesse sido menos de
quinhentos metros –e então desapareciam pelo resto do dia, indo para a aldeia ou
para algum lugar sossegado tirar uma soneca. Dividia-se então o trabalho. O
engenheiro-mor russo responsável pela construção pusera nosso chefe a par dos
trabalhos mais urgentes, e este os distribuía aos chefes dos comandos de trabalho.
Estes comandos eram quase sempre compostos de vinte homens, enquanto os
grupos tinham de seis a oito homens, sob as ordens de um capataz. Havia também
muitos grupos especiais com dois e, às vezes, quatro homens. Os chefes de um
comando não precisavam trabalhar, mas apenas controlar e estimular os homens
enquanto que os capatazes tinham de fazê-lo. Naquele caminho de estivas
entrávamos em forma, ao fim do dia, para nos devolverem ao guarda e voltarmos ao
campo.
Como os dois incumbidos do telhado não tinham conseguido nem começar,
de manhã fui encarregado do serviço, com mais um homem para ajudar. Ao sermos
chamados para o trabalho, olhamos um para o outro, pensando se seríamos
capazes de executar a tarefa. Pensar, porém, não adiantava nada; tínhamos de
começar.
Primeiro olhamos, de baixo para cima, e desenvolvemos nosso plano para
fazer o trabalho do modo mais simples e prático. Estando de acordo sobre como
começar, fomos ao depósito de ferramentas, tiramos um serrote e um martelo e
indo ao sótão para nos proteger do vento, colocamos as chapas de cimento-amianto
em pilhas para serrá-las nos comprimentos correspondentes. Precisava-se de uma
boa quantidade dessas chapas, mas conseguimos prepará-las até o fim do dia. Agora
viria o trabalho mais difícil.
Durante o dia todo ninguém se incomodara conosco nem se procurou saber o
que fizéramos. Na manhã seguinte, ao nos destacarem novamente para a tarefa, um
chefe de comando olhou para o telhado e berrou para mim:
- "Vocês dormiram todo o dia de ontem, não se vê nenhum trabalho no
telhado."
Com toda a calma lhe perguntei se aquilo era de sua conta e se ele mandava em
mim. Disse-lhe também que se ele se julgava com direito de controlar nossa
produção, então eu não compreendia porque ele não o fizera ontem; provavelmente
se escafedera para dormir sossegadamente num canto. O falador quase estourou de
raiva, pois com a minha resposta todo o pessoal ria-se a valer, e muitos começaram
a fazer piadas e zombar dele. O chefe geral fez ver a ele que tinha ultrapassado sua
competência e a calma se refez. Este procurou-nos depois em nosso trabalho,
convencendo-se de que fizéramos mais do que o necessário no dia anterior.
Manifestou também seu contentamento por ter aparecido alguém que dissesse a
verdade àquele linguarudo, de quem tinha
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vontade de tirar o cargo, embora não pudesse fazê-lo, porque ele fazia parte dos
importantes do grupo antifascista do campo.
Agora estávamos prontos para colocar as chapas cortadas no telhado. Meu
colega disse que ele jamais poderia subir até lá, pois só de olhar para cima já sentia
vertigem.
Subir não era difícil, pois o andaime do reboco ia quase até em cima. Uma
escada tinha de ser colocada; ela ficava, porém, quase na vertical, como uma escada
de incêndio do lado de fora de um prédio. Meu companheiro tinha de puxá-la com
toda a força para a parede, garantindo assim o equilíbrio.
O vento não amainara e, por isso, para minha segurança, eu atara uma corda
em volta do corpo, amarrando a outra ponta num caibro vertical do andaime, para
evitar uma queda de quatorze metros, uma vez que as chapas não ofereciam apoio.
De descer eu também tinha medo. Por isso disse ao meu colega que desceria
somente quando este lado estivesse pronto. Até a sopa do meio-dia ele me levou lá
em cima.
As chapas eram fixadas com pregos de cabeça larga. Primeiro afrouxava-se o
prego das chapas já pregadas para tirá-Io, cuidando-se para que a chapa não fosse
danificada. O colega empurrava a chapa por baixo com um ferro, até que ela
afrouxasse para que o prego pudesse ser extraído. Feito isso, metia-se uma das
chapas preparadas por baixo da primeira, até que se atingisse o comprimento
desejado, para o beiral. Aproveitando o furo já existente na chapa e o prego velho,
quando possível, as chapas eram então fixadas.
No fim do dia, tínhamos feito vinte metros corridos, excedendo sem querer a
quantidade obrigatória. Cedo, no outro dia, perguntei ao falastrão por que não viera
ao trabalho fiscalizar o serviço; ou será que preferira fazê-Io de longe, lá em baixo?
Com aquele colega cujo nome era Thomas, trabalhei muito tempo. Era
confeiteiro de profissão e não me recordo de seu nome de família. Lembro-me ainda
de que ele me disse possuir uma confeitaria em Frankfurt sobre o Meno. Nosso
trabalho em comum terminou um dia quando, tendo ele adoecido, destinaram-me
um outro colaborador.
O edifício estava com o andaime pronto, o beiral do telhado estava em
ordem, sendo agora preciso erguer o andaime do elevador na parte norte do
edifício. Para isso me conseguiram mais quatro homens e disseram que me
arranjasse como pudesse. Dentre os seis havia diversas profissões, mas nenhum era
carpinteiro ou trabalhara anteriormente numa construção.
Esse trabalho começou em maio de 1946. O vento era tão forte que os homens
quase não conseguiam erguer o madeirame verticalmente. Sem capote não se podia
ficar, por causa do frio. O vento estufava os sobretudos como velas de navio. Para
não ser soprado
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para fora do andaime, cada um se amarrava com corda em volta do corpo.
Conseguimos, porém, fazer o trabalho, e um dia quando estávamos bem no alto,
passaram no Canal de Stalin, que ficava próximo, seguindo para o norte, as lanchas
rápidas da armada alemã do Báltico, capturadas pelos russos. Sua travessia durou
horas a fio, sob o barulho ensurdecedor das sirenas dos barcos, que foram
insistentemente acionadas. Para nós não era uma sensação agradável olhar com que
orgulho levavam nossos vistosos barcos para o Mar Branco.
Terminada a construção dos andaimes, mandaram-me fazer os reservatórios
de cimento, junto com um novo colega. Tais depósitos iam ser construídos
totalmente de madeira, em seguimento ao edifício principal. Do moinho o cimento
seria levado para lá por correia transportadora, de onde seria embalado em sacos de
papel colocados sobre uma balança automática.
Somente as colunas principais já estavam de pé, erguidas por outro grupo.
Nossa primeira tarefa consistiu em ligá-Ias por meio de travessas, colocadas dos dois
lados. Essas peças eram de vinte por vinte centímetros, e tinham de ser perfuradas e
cavilhadas, para ter-se uma espessura total de sessenta centímetros. Brocas havia
algumas, mas tão moles que não se podia fazer uma única perfuração, porque
entortavam antes de penetrar cinco centímetros na madeira.
Reclamar não adiantava, tínhamos de dar um jeito. Conseguimos na oficina
ferro redondo da grossura das cavilhas e mandamos apontá-Ios. Depois aquecíamos
as pontas no fogo, e, quando ficavam incandescentes, as utilizávamos para fazer as
perfurações e as cavilhas. Nem seria preciso dizer como este processo era penoso e
entediante. Ninguém nos apressava, mas ainda assim produzimos a quota diária.
As travessas foram montadas, entretanto mais vigas deveriam ser colocadas dos
dois lados de cada coluna, no sentido longitudinal, para consolidar a estrutura. Isso
se fez enquanto passavam os meses de verão ao mesmo tempo em que fizéramos,
ocasionalmente, outras coisas – e setembro chegou.
A primeira neve tinha caído. Uma noite, antes de nos recolher, vimos um
grande resplendor de fogo por trás da aldeia, onde ficava a olaria. Esta estivera
passando por uma reforma para sua modernização e o fogo queimara toda a
estrutura do telhado, não a destruindo totalmente apenas porque os prisioneiros
alemães o impediram.
Uma comissão de Petrozavodsk chegou ali, no dia seguinte, chefiada pelo
Ministro do Trabalho para a Carélia e determinou que tudo deveria estar como
dantes num prazo de seis meses. Ordenou-se que todos os prisioneiros que
pudessem ser liberados para a reconstrução fossem imediatamente destacados para
o serviço. Essa ordem me abrangia, e a meu colega.
A serraria não podia fornecer madeira para a reconstrução, porquanto estava
atrasada no fornecimento para a construção em série
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de algumas casas, o que era urgente. Nessa emergência, mandaram que se
aproveitassem os toros congelados no rio. Grupos deveriam extrair da massa
congelada de toros aqueles necessários ao serviço, e depois um grupo de
carpinteiros apararia a madeira em dois lados, deixando os outros sem aparar e
retirando-lhes apenas a casca.
O frio era intenso, com o que mal podíamos cumprir a programação diária
prevista, pois a madeira, de tão congelada, mais parecia vidro e os machados
ricocheteavam nela ao invés de cortar. Os dedos ficavam sempre rígidos de frio,
apesar das luvas de peliça.
Tão logo juntávamos algumas aparas fazíamos fogo com elas em toda parte
para aquecimento das luvas do pessoal.
Muitas vezes ocorreu que alguns dos que quebravam o gelo para retirar os toros
ficavam de repente com meio corpo na água gelada, porquanto os toros, onde se
apoiavam, inesperadamente se desprendiam. No entanto, somente por poucos
momentos o coitado podia aquecer-se junto ao fogo, logo tendo de voltar ao
trabalho com a roupa ainda úmida.
O oficial russo supervisor dos trabalhos xingava e praguejava o dia todo,
instigando sempre o pessoal, que já estava fazendo o que podia. Certa manhã, ele
quis mostrar aos homens como se deveria fazer para soltar os toros e tirá-los da
água. Nem começáramos a trabalhar e já tínhamos o prazer de vê-lo mergulhado na
água até a barriga. Ele não percebera que alguns companheiros, com manobras bem
precisas, haviam contribuído para isso. Ele, porém, não fez como nossos camaradas
que, atingidos por desgraça semelhante, tiravam sapatos e panos dos pés e os
secavam ao fogo permanecendo com os pés nus junto à fogueira - ele escafedeuse, e ficamos livres dele por alguns dias.
Minha tarefa, junto com um companheiro um pouco surdo de Litzmannstadt
(Lodz), era a de aparar os toros. Ele falava bem o russo e, quando nada tínhamos
para fumar, desaparecia por alguns minutos, voltando com a mão cheia de tabaco e
papel para preparar cigarros. Trabalhávamos na orla da aldeia, sendo possível sumir
por alguns momentos, desde que um outro continuasse o trabalho e não aparecesse
algum vigilante.
Uma mulher apareceu um dia de trenó, pedindo-nos aparas de madeira.
Entulhamos seu trenó, dizendo-lhe que poderia buscar mais, se quisesse. Ela então
voltou, acompanhada de uma menina que, segundo nossos cálculos deveria ter uns
doze anos, mas que na realidade tinha dezoito. Subnutrida, com seus braços e
pernas frágeis, causava muita pena.
Meu companheiro, conversando com a mulher, ouviu sua história que bem
mostrou quanto sofriam os desterrados daquela região. Seu marido fora fazendeiro
na Ucrânia, mas, por ocasião da desapropriação das terras pelo Estado protestou, e
por isso na noite seguinte tiraram-no da cama e o levaram. Rapidamente o
processaram, e ele foi sentenciado a quinze anos de desterro com trabalhos
forçados. Sua mulher, que se
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prontificara a acompanhá-Io com a filha, fez diminuir sua pena para dez anos, já que
ela também deveria trabalhar, valendo, porém, sua ajuda ao marido a metade da
pena dele.
Não suportando este rebaixamento de fazendeiro a desterrado, o marido
morreu passados cinco anos, mas a mulher teve de completar os dez anos de pena,
conforme mandava a sentença. Na época em que ela mendigava a lenha, já há três
anos estava livre e teria podido voltar, se tivesse meios. O transporte para o desterro
corria por conta do Estado, mas a volta era por conta própria. O ganho da mulher
nem dava para alimentar-se e à filha, quanto mais para as despesas da viagem de
volta, e assim era forçada ao desterro mesmo sendo livre.
As regiões mais inóspitas da Rússia servem de prisões sem muros. Nas casas
de correção e nas prisões, havia somente criminosos e assassinos, que também
deviam trabalhar, requerendo mais guardas do que seu próprio número. Nas nossas
proximidades construía-se uma eclusa do canal e esses elementos foram trazidos
para isso, mas não tivemos contato com eles. Os civis russos também eram
conservados longe deles, exceto os supervisores e o pessoal técnico.
Por muito tempo estivera conosco um capataz russo, desprezado por todos os
prisioneiros porque era odioso contra nós, procurando maltratar-nos de todas as
formas. Um dia foi transferido, justamente para a eclusa. Depois de quatro semanas
voltou para nosso meio, bastante transformado em seu comportamento. É que lá
ele não tivera sucesso com os seus métodos de tratamento, pois os presos pegaramno um dia, deram-lhe uma boa surra e, após lhe cortarem os sapatos dos pés jogaram-no à água, de onde ele, só com muito esforço, se salvou. Isto lhe servira de
lição.
Os presos não tinham domingo nem feriado e, apesar do trabalho pesado,
prescreviam-Ihes um dia de jejum por semana.
Quanto a nós, no ano de 1946, tivemos o alívio de nos vermos dispensados de
trabalhar pesado aos domingos, fazendo somente serviços leves no campo,
principalmente o de buscar lenha.
Tendo sido retirada do rio e aparada a madeira suficiente, começou a
reconstrução da olaria. Os caibros mais pareciam esteios ou postes, com seus seis
metros de comprimento. Era preciso levá-las para cima do edifício a fim de refazer o
telhado. O trabalho lá em cima era tremendamente difícil, dados o frio e o gelado
vento do norte, que fazia nossos sobretudos parecer balões cheios. O congelamento
da madeira tornava-a muito lisa, sendo quase impossível segurá-la em posição
oblíqua, adequada ao serviço.
O que suportamos nesse trabalho não é fácil de descrever. Cada grupo de cinco
ou seis trabalhadores tinha um vigia, quase sempre um oficial sem conhecimento do
trabalho. Fomos empurrados, batidos, recebemos pontapés no traseiro. Cada um
fazia o possível para escapar a tal tratamento.
Apesar disso, houve um de nós que conseguiu andar o dia todo, com um machado
debaixo do braço, no terreno e no edifício, sem fazer
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coisa alguma. Se alguém perguntava o que ele fazia, informava estar procurando um
pedaço de madeira apropriado. Ele comprovou com seu método que era possível ser
inteligente, bancando o bobo. Os russos puseram-no na conta de retardado e, mais
tarde, incluíram-no num trem de enfermos. Em pouco tempo estava ele de volta à
pátria.
Esse sistema de trabalho forçado acabou resultando em que a olaria estivesse
pronta para uso cinco dias antes da data marcada e, em consequência, o Ministro do
Trabalho elogiou até os prisioneiros. Fora, em verdade, um feito único,
considerando-se, além da nossa fraqueza devido à subnutrição - o grande frio e as
gélidas tempestades vindas do Norte. O trabalho extra terminara, portanto, a
contento, e os prisioneiros voltaram a executar suas tarefas anteriores.
Encontrei-me com meu companheiro de antes, voltando às tarefas da fábrica
de cimento. As ligações das travessas para os depósitos ficaram prontas depois de
um longo, longo trabalho, e então começou-se o revestimento dos depósitos, em
número de quatro, com pranchas de quatro centímetros de grossura. Estes tinham
dois metros e meio de altura, afinando-se na parte superior para formar um funil,
com os quatro lados para dentro, para o cimento cair. Serrar as pranchas com o
serrote no devido comprimento levou dias, tarefa esta executada no frio intenso,
fora do depósito. Réguas e fitas métricas não havia, sendo um luxo até mesmo para
os russos. Quem quisesse medida certa tinha ele mesmo de prepará-Ia. O
engenheiro-mor russo tinha uma fita métrica e o torno da ferraria possibilitava
fazer-se a divisão da escala.
Quase todos prepararam então suas réguas métricas por si mesmos, com
noventa centímetros em divisão de dez em dez centímetros e mais dez centímetros
com divisão de centímetro a centímetro. A gente tinha de estar com estes "metros"
sempre guardados para não ter de fazer novos a cada dia, pois tanto os russos como
os companheiros preferiam encontrá-Ios prontos a os fazerem, eles mesmos. De
nada adiantava gravar nome e número neles, pois era fácil raspar e suprimi-los.
Prontas as paredes dos depósitos, menos as divisões, tínhamos de revestiIas internamente com folhas de flandres de três milímetros. Deixamos as divisões
por último para não ter de entrar depois por cima.
Lá dentro era bastante escuro, por ser insuficiente a luz do dia.
Arranjaram-nos um fio com lâmpada elétrica numa grade de arame. A vantagem
disso não foi apenas a de ver melhor nosso trabalho: deu-nos a possibilidade de
desviar ocasionalmente alguma lâmpada. Para isso, tínhamos sempre uma queimada
à mão para trocá-Ia pela nova, apesar da grade.
Nossa iluminação no campo de prisioneiros consistira, inicialmente, de pedaços
de madeira acesa, enfiados na parede. Depois tivemos luz elétrica. Todo o material
para a instalação elétrica foi levado para o campo por nós mesmos, terminado o
trabalho, e isso apesar de rigorosíssima vigilância, num extraordinário talento de
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organização, sem dúvida.
A administração e a guarda do campo ficaram de acordo e contentes com a
melhoria. O pessoal de cada sala era responsável pela substituição das lâmpadas
queimadas, ficando combinado em cada barraca que cada um de nós que trouxesse
uma nova lâmpada receberia trezentos gramas de pão - descontados da ração de
todos - que, em trinta a quarenta homens, quase nada significava para cada um. Em
nossa barraca nunca faltaram lâmpadas, havendo sempre uma de reserva.
Queimada uma, levava-se ao local de trabalho e se trocava, no decorrer do dia, por
uma nova, naturalmente bem escondida durante o dia. Como não podíamos
trabalhar sem luz, davam-nos outra nova. Terminado o trabalho do dia entrávamos
em formação sempre na estiva de pranchas, de cinco em cinco pessoas, e ali
tínhamos de ficar atentos para não encontrarem lenha, pregos ou lâmpadas,
durante a invariável revista.
No inverno trouxe lâmpadas sempre nas luvas de peliça, enfiando-as em frente
aos dedos. Na revista, tínhamos de estender as mãos para a
frente,
horizontalmente, para que o corpo fosse apalpado. Não entrou no pensamento dos
inspetores que pudesse haver alguma coisa nas luvas. Por isso, durante todo o
inverno, carreguei sempre uma pequena faca comigo, tendo passado com ela por
todas as revistas.
Durante dois dias aconteceu que, por causa da nossa tática de desviar
lâmpadas, ficamos sem luz onde trabalhávamos, porque o estoque de lâmpadas dos
russos tinha simplesmente se esgotado. Mesmo sem trabalhar, foi-nos creditado o
trabalho devido, dado que, para inglês ver, sempre um batia com o martelo numa
tábua qualquer, enquanto o outro dormia no escuro.
Passamos assim grande parte do inverno. Contudo, afinal, teríamos de acabar
a tarefa. Pouco antes do Natal de 1946, os depósitos ficaram prontos e recebemos
outra atividade.
No primeiro andar dos depósitos, aprontados por nós, estavam as instalações
para a correia transportadora, que levava o cimento do forno aos depósitos. O local
tinha apenas a terça parte da largura dos depósitos, em baixo. Havia, por
conseguinte, debaixo das janelas dessa parte uma cobertura bastante enviesada
coberta com tábuas e papelão impermeabilizado.
Ali deveria ser colocada a folha da janela, e disso fomos incumbidos, eu e meu
camarada.
Antes do Natal houve um breve período de degelo, seguido de um frio mais
forte, um pouco. Em toda parte havia gelo liso, inclusive no telhado. Para fazer o
encaixe da janela, um tinha de ficar dentro e outro do lado de fora. Nós nos
alternávamos, mas os sapatos de feltro estavam com as solas tão finas e lisas que
não ofereciam segurança alguma para se ficar de pé. Como era véspera do Natal de
1946, cada um tinha seus pensamentos na pátria e no lar. Em consequência,
ocorriam certas distrações.
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Eu estava do lado de fora segurando a janela, para que fosse feita, por dentro,
uma marcação correta para o encaixe. Nessa posição meus pés escorregaram, a
janela caiu-me nas costas e ela e eu deslizamos para a beira do telhado. Um pouco
mais rápida a janela correu e já caíra lá em baixo, enquanto eu ainda me esforçava
para agarrar-me com os dedos nas desigualdades do gelo, o que consegui no último
momento antes de cair. Debaixo os companheiros - que a tudo tinham assistido ajudaram imediatamente com uma escada, impedindo-me de cair do telhado, como
acontecera com a janela.
Apesar de os piolhos se terem tornado uma raridade, o processo de
despiolhamento continuava a intervalos determinados. Para isso, a administração
russa fornecia lenha, mas não para aquecer as barracas, como já nos referimos
antes. Cada companheiro cuidava de matar os piolhos se os encontrasse no colega,
geralmente alguém que fora fazer algum conserto em casas de civis russos. O receio
maior era quanto à febre tifóide transmitida por ele que ceifara inúmeras vidas
durante a campanha da Rússia e nos primeiros anos de nosso cativeiro.
Qualquer pedaço de madeira sobrando nos locais de trabalho era juntado para
ser levado ao campo, à noite. Muitas vezes, durante a revista, os tiravam de nós, e
voltávamos sem eles; por isso, e apesar de tudo, continuávamos a esconder lenha
debaixo dos estrados. Não se podia fazer fogo durante o dia nas barracas, mesmo
que houvesse pessoal doente dispensado do trabalho. Só das quatro horas em
diante. Todavia, depois das nove da noite, só brasas eram permitidas, proibido o
fogo. A observância dessa ordem era muito bem controlada pelo oficial russo.
A partir das dez da noite, cada sala dispunha de uma "guarda do fogo" - era
esse o nome - rendida a cada duas horas, até as seis da manhã, hora de levantar.
Além disso, na ante-sala de cada barraca ficava um homem de sentinela. Estes
estavam em situação bem pior do que a sentinela das barracas, pois não tinham a
menor possibilidade de se aquecer, e o vento ali soprava horrivelmente. Não se
podia sentar também, mesmo porque era necessário estar em constante movimento
para garantir calor ao corpo.
Em caso de fiscalização, ao grito de "Atenção" desse guarda, o que ficava
dentro da sala deveria postar-se junto à porta para ficar em posição de sentido e
reportar, quando entrasse o oficial de controle. Os relatos eram entendidos por
poucos russos, uma vez que eram feitos em alemão. Muitas vezes o oficial somente
olhava a sala, dizia karoscho e se ia. Outros, no entanto, observavam o fogão,
verificavam a limpeza da sala e tentavam encontrar o que repreender, para então
comunicar ao superior - do que resultava em castigo para os componentes da
barraca.
Em frente à fábrica de cimento, na direção do campo, havia uma usina móvel de
eletricidade acionada por uma velha locomotiva, sendo que a turbina a vapor e
outros equipamentos encontravam-se em vagões
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da estrada de ferro, para esse fim. Grande abrigo fora construído apenas para a
locomotiva, encontrando-se a céu aberto os demais componentes.
Para o fogo da locomotiva havia grandes montes de carvão de pedra ao longo
do caminho utilizado por nós para ir e vir do nosso trabalho. Longo tempo
martelamos nossas cabeças pensando em como conseguir um pouco desse carvão
para aquecer melhor nossa barraca.
Um dia, tive a idéia de pedir ao russo do depósito de ferramentas um balde
de madeira emprestado, para devolvê-Io na manhã seguinte. A razão disso, eu
naturalmente não disse. Durante a inspeção o balde passou, pois estava vazio e,
além do mais, dissera o russo ao oficial controlador que o recipiente tinha sido
emprestado.
Ao passar pelo monte de carvão de pedra eu ia pela extrema direita do grupo
e, rapidamente, usando o balde como pá,enchi-o bastante. Feito isso, passei-o aos
companheiros que iam ao centro e o carvão chegou ao campo sem dificuldades.
Pedir o balde emprestado tornou-se então costume e, dentro em pouco, tínhamos
em estoque carvão suficiente para assegurar alojamentos aquecidos no inverno.
Quando voltávamos do trabalho à noite, se o fogo já não tivesse sido aceso por
algum companheiro doente, nós o acendíamos com lenha. Logo que esta virava
brasa púnhamos o carvão por cima. O fogão ficava, assim, com bastante brasa para
nos aquecer durante a noite depois das nove, quando não se podia ter fogo aceso.
Pela madrugada restava ainda um pouco de calor, mesmo estando as brasas
apagadas, e então era possível aquecer os sapatos de feltro metendo suas pontas na
boca do fogão. Isso era necessário, evidentemente, para os que ficavam de
sentinela durante a noite.
Peças de roupa, principalmente sapatos de feltro chamuscados ou queimados,
implicavam para os atingidos em detenção de um a três dias. Livre desta punição
apenas ficava quem soubesse usar a inteligência para consertar o prejuízo, de
alguma forma.
Peças de roupa forradas de algodão muitas vezes pegavam fogo por causa de
faíscas, ou pela proximidade excessiva do fogão. Quase sempre isso era notado
somente quando o algodão já estava queimado e o calor se fazia sentir na pele.
Apagar fogo em algodão não é fácil. O único remédio eficaz era encher a parte
atingida com neve, e esta, ao derreter-se, impedia maior propagação do fogo. Num
caso desses um ajudava o outro sempre, pois o que acontecia hoje com ele poderia
acontecer amanhã com os demais. Com meios de emergência era forçoso tentar
reparar o prejuízo da melhor forma.
Uma noite estive de guarda das doze às duas horas. Depois de inspecionar o
fogão e verificar que não havia mais brasa, meti meus sapatos de feltro na boca do
fogão, sem avaliar se a grelha estava ainda quente. Quando acordei às seis da
manhã, meu primeiro pensamento foi para os sapatos. Ao retirá-los do fogão,
verifiquei que no esquerdo havia um grande buraco, na parte de cima da ponta. O
feltro
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ainda ardia um pouco, e a parte queimada era tão grande que cabia meu punho.
Como fazer agora para ir trabalhar com esse sapato, passando, antes de mais nada,
ao deixar o campo, pelo controle, rigoroso como de hábito, para verem se a
vestimenta estava em ordem?
Como prisioneiro a gente sempre guardava qualquer coisa, mesmo
aparentemente inútil, sem sequer se preocupar alguma vez com sua serventia. Eu há
muito guardara um pedaço de uma velha câmara de pneu de automóvel. No
momento, ele iria ser minha salvação. Enfiei-o pelo lado de dentro do sapato,
vedando o furo, e fixei-o com um pedaço de arame.
Por ocasião da revista rotineira na ponte de estivas, procurei, contra meu
costume, um lugar no meio da linha de cinco pessoas, cobrindo o sapato com um
pouco de neve para ajudar a encobrir o defeito. Para minha felicidade, a revista não
foi muito rigorosa nessa manhã, e logo que ultrapassei a saída meu coração bateu
de novo normal.
Enquanto trabalhava, era inevitável que o remendo saísse do lugar. Por isso
tirei-o, simplesmente, envolvendo o pé do sapato com um arame fino. Ao meio-dia,
por desgraça, começou um degelo e eu fiquei o tempo todo, literalmente, com o pé
esquerdo na lama da neve. A preocupação maior era agora o que fazer se o degelo
perdurasse e se tivesse de trocar de noite os sapatos de feltro por botas comuns.
Pelas quatro da tarde o frio voltou mais forte e nunca o recebi tão alegre, porque o
perigo da troca de calçados passou.
De noite, assumi voluntariamente a vigilância noturna por todos os escalados,
para encontrar um meio de consertar os sapatos, ao menos para que o defeito não
ficasse tão visível. Por sorte, o cano de um deles era cinco centímetros mais
comprido do que o outro. Cortei este pedaço em duas tiras de igual comprimento,
costurando as partes juntas ao comprido; elas se assemelharam, assim, com a
beirada entre o rosto e a sola do calçado.
Agulha não havia, mas cada um improvisara algo parecido, com pedaços de
arame. O mais complicado era aplicá-Io, colocá-Io no lugar exato e pregá-lo.Tendo
gasto em pensamento um bom estoque de palavrões, pois em voz alta não podia
dizê-los para não perturbar o sono dos companheiros, o problema estava resolvido
de manhã cedo a ponto de não se notar de imediato o conserto. Pude passar,
sossegadamente, pelo controle.
No dia seguinte ocorreu degelo outra vez e de noite, quando estávamos na
barraca, veio a ordem de trocar as botas de feltro pelas de couro, na sapataria. Já
me referi ao fato de que nessas ocasiões cada prisioneiro devia colocar - em cada
peça de roupa, sapatos e outras coisas - uma placa com seu nome, barraca e
número, para poder receber suas coisas de volta depois. Entrando na sapataria,
devíamos mostrar o objeto a ser trocado, provido de placa, jogando-o depois no
monte no meio da sala.
Chegara então o momento decisivo: ou descobririam o defeito, ou eu teria
sorte.
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Segurei as botas de forma a que o sapateiro não enxergasse o lugar defeituoso,
nem percebesse que só aparentemente a placa estava fixa, porquanto em verdade
estava solta, na mão. No enxurro de gente tudo se fazia às pressas, pois o sapateiro
também queria terminar rapidamente o seu trabalho. Depois de ter registrado a
entrega das botas na lista, o homem mandou que eu as jogasse no monte, e isto tão
rapidamente que ninguém notou que a placa ficara em minha mão. Os sapatos se
foram e eu fiquei bastante contente.
Após oito dias houve nova ocorrência de gelo, e então mandaram que
buscássemos nossas botas de feltro. Cada um deveria procurar suas botas entre os
amontoados, identificando-as pela placa. Para não dar na vista, procurei-as umas
três vezes e disse então que as minhas não se encontravam ali. "É impossível", disseme o sapateiro, "se foram entregues devem estar". A lista de entrega foi conferida e
lá estava a anotação. Eu bem que os vira junto aos outros, mas não iria dizer isso, já
que não os queria de volta. Como solução, recebi um outro par e nunca saí tão
depressa da sapataria como nesta noite.
Minha esperteza livrou-me da temida prisão, a qual, aliás, não vi por dentro
durante todo o meu tempo de cativeiro.
Finalmente, veio outra vez o verão. Da primavera não se podia falar naquelas
regiões do Norte, pois dela nos apercebemos, a bem dizer, nada, já que a neve e o
frio duravam até o final de maio. Tempo de calor só tínhamos por três meses, no
máximo quatro por uma única vez. Já em setembro caía a primeira neve. Mesmo
durante o verão era raro que se pudesse ir ao trabalho sem sobretudo, pois sempre
havia ventos, e estes ocasionavam às vezes, mudança inesperada de temperatura.
Passei a trabalhar, de novo, na fábrica de cimento, com um ajudante, só que
desta vez à inteira disposição dos nossos pedreiros, que construíam o forno de
cimento. Nossa tarefa era conservar os andaimes sempre em ordem e prontos para
a próxima etapa, e confeccionar os moldes para os diversos canais do forno. Do
engenheiro da construção recebíamos as alturas e larguras dos diversos canais e a
altura do arco, ficando o resto conosco. Nossas ferramentas eram: um serrote, um
machado, e o metro autoconfeccionado.
Para obter o arco apropriado para os moldes, desenhávamos as medidas de
altura e largura no chão, tentando acertar o arco, segundo a medida, por meio de
dois pregos e um fio. Quando afinal acertávamos o círculo certo para o arco, batia-se
um dos pregos na terra, servindo o outro para marcar. Demos conta, sempre bem,
do nosso trabalho, havendo dias em que precisávamos passar o tempo sem grande
atividade. O principal para nós era produzir na quantidade programada, que nos era
indicada pelo próprio engenheiro-mor. Fomos classificados como os melhores
trabalhadores na construção, circunstância esta que muitas vezes nos foi vantajosa,
principalmente quando se precisava fazer algum
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trabalho adicional no campo, depois do trabalho rotineiro. Trabalhos sujos não nos
eram destinados; fazíamos, quase sempre, tarefas de artesãos, e serviços especiais
do campo premiados com ração extra de comida (após sua realização ou a cada
noite às dez – hora de paralisar as atividades - se o trabalho demorava alguns dias).
À noite, de dez horas em diante, devia reinar silêncio absoluto, como também
ocorria nos quartéis alemães. Esse silêncio era interrompido somente quando saíam,
depois da meia-noite, os prisioneiros sentinelas do turno noturno e chegavam os
que estes rendiam.
Todo o serviço de guarda dentro do campo era feito por prisioneiros, que
faziam turnos de quatro horas, e não como na Alemanha, onde os turnos eram de
duas horas; somente nas barracas eram como em nosso país.
Durante o curto verão meu camarada e eu construíramos um bonito portão de
entrada para o cemitério dos prisioneiros e uma grande cruz de toros. Os
prisioneiros que não saiam para trabalhos externos, por doença, já haviam feito a
cerca com paus roliços mais finos, de bétula. O cemitério ficava localizado próximo à
estrada para a aldeia vizinha e à ferrovia Leningrado-Murmansk. Identificava-se logo
como cemitério de prisioneiros alemães porque a cruz tinha apenas um travessão e
não dois, como era o uso na igreja ortodoxa.
Antes que o campo fosse dissolvido, os russos passaram o trator nesse
cemitério, aplainando o terreno, e a cruz e a cerca foram dadas à população como
lenha. Soube-se que tal procedimento foi adotado em toda a Rússia com todas as
sepulturas e cemitérios de soldados alemães e finlandeses. Diz-se, assim, que não se
pode localizar nenhuma sepultura, nenhum cemitério de soldados alemães,
finlandeses, italianos e de outras nações, mortos ou tombados em batalhas, exceto
nas grandes cidades como Leningrado, Moscou e outras, eventualmente
frequentadas por turistas, enquanto que em outros países o procedimento adotado
foi o de cuidar de todas as sepulturas dos soldados inimigos.
Cada barraca do campo possuía sua privada separada, feita de uma pequena
construção de madeira, cuja metade longitudinal tinha uma fossa com uma viga por
cima, dando para dez pessoas se sentar de cada vez. Depois que o campo foi
melhorado em todos os sentidos, com pleno consentimento dos russos, chegara a
vez dessas privadas receberem reformas. Com a aquiescência da administração do
campo e de alguns vigias da serraria, estocaram-se tábuas durante o turno da noite,
fora da cerca da usina, as quais foram trazidas para o campo pelo pessoal do
segundo turno, que terminava seu trabalho à meia-noite. Isso só podia acontecer
quando estava escuro e o oficial russo da guarda, complacente, fechando os dois
olhos. Com o tempo, conhecíamos a índole de todos os oficiais, e raras vezes havia
um que se opusesse a melhoramentos no campo.
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Com as tábuas construímos assentos e vedamos totalmente a fossa. As aberturas
dos assentos receberam tampas com dobradiças feitas à mão pelos ferreiros. Fiz os
preparativos durante semanas, com meu ajudante, cortando e marcando tudo para
que a instalação pudesse ser feita pelos que permaneciam no campo durante o dia.
Quando se aproximou de novo o tempo frio, tornou-se imperioso construir
rapidamente um silo na terra para guardar batatas e repolho. Para tanto, os que
ficavam no campo fizeram as escavações necessárias. Todo o grupo de carpinteiros
começou então a construir, depois de seu horário de trabalho normal, uma
verdadeira cabana dentro da escavação, cujas paredes laterais se nivelavam com a
superfície. Enquanto um grupo construía o vigamento, o outro preparava o telhado.
Este era muito raso, mas de madeira forte, pois teve de receber, depois de uma
camada de toros, um ao lado do outro, uma camada de palha e, por fim, uma de
terra de, pelo menos, cinquenta centímetros de grossura.
Por uma descida oblíqua se alcançava a entrada que tinha uma porta externa,
depois uma antecâmara - servindo de guarda-vento, como todas as construções na
Rússia - e então a porta interna, revestida de palha por dentro. Se se conseguisse
colocar batatas e repolho ali antes de estarem gelados, ficariam protegidos contra o
congelamento e a deterioração, uma vez que a temperatura era constante naquele
ambiente. Nessa atividade, que devia ser feita rapidamente, estávamos livres da
contagem, à noite.
Nas contagens ficávamos muitas vezes mais de uma hora de pé, quando o
encarregado russo não sabia contar direito, o que não poucas vezes acontecia.
Preferíamos trabalhar voluntariamente depois do nosso trabalho obrigatório a ter de
ser sempre reconferidos.
Em fins de 1947 o campo recebeu um velho caminhão de uma tonelada, que
muito ajudou no transporte de coisas que até aí sempre fora feito nos ombros dos
prisioneiros ou com barulhentos carrinhos de mão, trenós, ou simplesmente por
carregamento manual. Rapidamente se fez uma garagem para ele com tábuas
encostadas à cozinha. Para a gasolina precisávamos de um depósito subterrâneo,
que foi feito pelos que permaneciam no campo. Preparei o portão na fábrica de
cimento, onde trabalhava. Na época eu já não era mais controlado pelos vigias
russos, por isso tratei dos detalhes dessa construção com o chefe de minha turma e
o comandante alemão do campo. Construí o portão em duas bandas que, durante a
pausa do meio-dia, transportei até a estrada para o campo, e dali o caminhão que
trouxera nosso almoço as levou até o local definitivo.
O trabalho no forno da fábrica de cimento seguia cada vez mais
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vagaroso, à medida que ela se erguia, pois sempre um maior número de canais
maiores e menores tinham de ser instalados. Esses canais e suas coberturas eram
construídos apenas de tijolos refratários, que não tinham sido fabricados com
medidas padrão.
Para os pedreiros era entediante trabalhar com esses tijolos, visto que cada um
tinha de ser cortado conforme o molde. Que esse trabalho só podia ser feito
vagarosamente é fácil de se concluir, se for considerado que para cumprir sua meta
diária um pedreiro precisava cortar, obedecendo ao padrão, somente trinta e cinco
tijolos. Por isso, nós dois carpinteiros tínhamos muito pouca coisa para fazer.
Um dia o engenheiro-mor russo nos perguntou se não podíamos fazer um
pequeno conserto em sua casa, na aldeia vizinha, erguendo também uma parede
divisória lá. Ele mandara dois homens em outra ocasião que, além de nada terem
feito, tinham roubado o tabaco colhido por seu pai, tabaco esse que fora colocado
sobre um estábulo de cabras para secar. Como estávamos disponíveis, assumimos a
tarefa.
Fomos para lá na manhã seguinte, sendo recebidos amavelmente pelo velho,
que logo nos contou sobre o furto do tabaco. Contar, em verdade, ele o fez por
gestos e com algumas palavras que já entendíamos do russo. Deu-nos depois uma
mancheia do fumo - que tem cor verde e aspecto de serragem - e o papel para o
utilizarmos. Por volta das dez horas veio com uma panela de batatas cozidas e um
pouco de sal, obrigando-nos a uma pausa para comê-Ias. Transmitiu-nos que sentia
não nos poder oferecer coisa melhor já que ele mesmo nada mais tinha. Ficamos
contentes com o que nos ofereceu e felizes por estar mais uma vez com o estômago
cheio, por algum tempo, coisa rara para nós. Quando, depois de três dias,
terminamos o conserto, bateu-nos nos ombros, dizendo-nos de novo karoscho e
dando-nos mais tabaco. Fomos bem tratados por ele e pelo engenheiro-mor, que
gostou do trabalho e, com isso, subimos em sua estima.
Aos poucos terminava a fábrica de cimento, não sendo mais necessário o
trabalho de carpinteiros. Em outros locais, porém, sempre sobrava o que fazer, de
carpintaria. Precisou-se, por exemplo, de instalar uma linha de transmissão de
eletricidade da usina para os lugarejos da vizinhança, devendo-se erguer postes mais
altos para os fios atravessarem a estrada de ferro, os terrenos da fábrica e a linha
principal da ferrovia. Para esses postes de altura incomum não havia árvores tão
altas e grossas o suficiente. A solução indicada foi fazê-los de três árvores juntas, em
forma de um ''Y'' invertido, com uma distância de mais de um metro entre as duas
que ficavam em baixo, inclinando-se estas em ângulo para receber a terceira sobre
elas.
Não tínhamos a mínima idéia de como processar tal emenda, como era
prescrito, sem enfraquecer os toros. Um mestre russo viu como quebrávamos a
cabeça sem achar a saída. Prontamente explicou,
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tão bem como lhe foi possível, todo o esquema do trabalho, mas, como viu que
ainda restavam dúvidas, ajudou-nos a fazer as marcações nos primeiros toros.
Ficamos admirados quando tirou do bolso uma velha lima quebrada, de grande
tamanho, e com aquele instrumento precário e improvisado passou a marcar os
toros de tal sorte que não apenas conseguiu perfeitos encaixes entre os três, como
também deixou-os tão resistentes como dantes. O resto do trabalho completou-se
com o machado, para a abertura dos encaixes, tendo sido perfurados e ligados os
toros com cavilhas de ferro. Feito isso, a abertura do "Y", que ficaria enterrada, foi
unida com travessas para ficar mais estável na terra pantanosa. Aprendemos algo
novo, terminamos o trabalho sem maiores dificuldades e, o que era sempre para nós
o principal, ultrapassamos a produção programada.
Tivemos depois de fazer consertos nas moradias dos trabalhadores russos; elas
se resumiam, na época, a um quarto que era, ao mesmo tempo, cozinha, sala e
dormitório. Muitas vezes moravam duas famílias em uma casa de somente dois
quartos. Nessas casas consertamos ou substituímos janelas e assoalhos, e
remendamos telhados, que eram feitos de cavacos de madeira, o que nos deu,
assim, trabalho de sobra.
Colhemos ali uma visão do primitivismo das condições de vivência doméstica
do operário russo. Interessante que todas as pessoas mais idosas tinham, sem
exceção, um altar caseiro num canto da casa, o que não se via em moradas de
pessoas mais jovens.
Com esse trabalho nunca obtivemos ração suplementar de alimentos, pela simples
razão de que aquela gente tinha, na maioria das vezes, menos para comer do que os
prisioneiros. Ganhávamos tabaco de vez em quando, provavelmente por ser
plantado nas imediações.
Numa aldeia vizinha, a mais de uma hora de marcha do campo, uma grande
casa de dois andares deveria ser construída, com sótão, para servir de habitação a
oito famílias. Os alicerces de pedras estavam prontos. Sobre eles tinham sido
erguidas as paredes de toros, de vinte centímetros de diâmetro, até uma altura de
dois metros, serviço executado por aprendizes russos sob a supervisão de seus
mestres, responsáveis pela construção. Apesar de todos os toros terem numeração
escrita, para montagem como num quebra-cabeças, todas as paredes até então
construídas estavam de cinco a dez centímetros fora do prumo. A madeira fora
fornecida em quantidade certa, mas não tinha sido suficiente por ter sido montada
fora do prumo. Por isso, colocaram nos intervalos madeira não preparada para
aquele fim.
Um grupo nosso teve inicialmente de desmontar tudo, até os alicerces, e
depois outro grupo montou tudo de novo para continuar a obra. Designaram os
aprendizes russos como ajudantes, e eles não
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gostaram disso.
Esses rapazes haviam sido educados e formados pelo Governo Russo e ostentavam o
status de "Jovens Pioneiros". Alojados na casa comunal, no centro da aldeia,
recebiam ali instrução e alimentação. Estavam sempre bem vestidos e com ótimos
sapatos, julgando-se os futuros senhores da "Grande Rússia". Seu horário de
trabalho era de somente quatro horas por dia, dedicando o tempo restante à
instrução e ao esporte. Pareceu-nos que, para eles, sua formação profissional era
coisa secundária, uma vez que procuravam de toda a sorte atrapalhar nosso serviço.
Acontecia diariamente que, ao passar num andaime, davam pontapés em nossas
ferramentas para que caíssem e desaparecessem na neve. Reencontrá-las depois era
questão de puro acaso. Furtavam também serrotes, machados, cinzéis e outros
objetos, que vendiam barato à população para obterem renda adicional, embora
não precisassem disso, uma vez que tinham tudo de graça. Como as ferramentas não
nos pertenciam, tendo de ser devolvidas toda noite ao depósito, havia grandes
dificuldades para aqueles de quem as mesmas eram subtraídas. Se os companheiros
não convencessem nosso mestre a explicar a situação, era certo que seriam detidos.
Na maioria dos casos ajudamo-nos a nós mesmos, conseguindo de algum modo
outra ferramenta, e declarávamos tê-Ia reencontrado. Para acabar com esse estado
de coisas recusamo-nos todos a trabalhar certa manhã, enquanto os rapazes não
desaparecessem da construção. Essa medida foi arriscada, porquanto a greve na
Rússia não era admitida, mas, neste caso, todos os nossos mestres e o oficial
supervisor dos trabalhos estavam do nosso lado, sendo que o próprio engenheiromor nos tinha dado a sugestão. Afastados, os rapazes ficaram incumbidos de erguer
um estábulo para uso daquela casa, também com madeira previamente marcada.
Precavidamente, aquela madeira foi empilhada em lugar distante, para que não se
aproximassem de nós.
Enquanto era verão, dava para fazer este trabalho. Desde que a construção
fosse levantada no prumo, a madeira se ajustava perfeitamente. Com seu ajudante,
cada carpinteiro devia erguer determinado pedaço de parede, acontecendo, muitas
vezes, que o vizinho não conseguia levantar sua parte a tempo de se fazer a
amarração, a menos que se o ajudasse. Nesses casos era preciso distinguir entre os
vagarosos e aqueles prisioneiros espertos, que tudo faziam para não trabalhar. A
estes, nenhuma ajuda.
Cada camada de toros era ligada com a de baixo por pinos de madeira, isolados
entre si por camadas de musgo de dois centímetros de grossura, distribuído por
igual. Os toros eram batidos com marretas, para que o musgo ficasse bem prensado
entre eles, o que proporcionava uma perfeita vedação das frestas, não permitindo a
passagem de vento e de neve.
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Fazer essa vedação nos meses de inverno era o trabalho mais difícil e desagradável,
por isso íamos de má vontade trabalhar, depois de curto período de aquecimento.
Um homem recolhia o musgo, que precisava ser degelado junto ao fogo, enquanto o
outro o distribuía por igual no lugar próprio, com as mãos nuas. O maior
comprimento da casa era de seis metros e, antes que o musgo estivesse espalhado,
as mãos já estavam hirtas de frio. Para que o musgo não congelasse, (se congelasse
não haveria possibilidade de comprimi-lo), colocava-se, antes de distribuí-lo no
espaço correspondente, a camada superior de toros. Em todo o caso, não era um
trabalho atraente, com quarenta graus abaixo de zero e as mãos nuas.
Com o tempo, porém, erguêramos o edifício até o primeiro andar, iniciando-se,
então, a colocação de vigas para o teto deste e, ao mesmo tempo, assoalho para o
segundo pavimento. Fizemos bem rápido este trabalho para contar com um recinto
coberto e espaço onde pudéssemos ter um rápido aquecimento. Uma pequena
barraca onde nos aquecíamos, até então, suportava a permanência de apenas
poucos homens. A construção do teto e do assoalho fez-se com vigas, tábuas e,
entre as tábuas do forro e do assoalho uma camada de aparas de madeira, cinza e
escória, constituindo assim em isolante contra o barulho da parte superior e contra
o frio. Os olhos sofriam bastante quando passamos a pregar as tábuas do forro, já
que sobre elas se distribuíram a cinza e a escória.
Quando chegávamos ao inverno, enquanto prosseguia a construção, havia
neve recém-caída no andaime e em cada viga, com altura de até meio metro. Tanto
quanto possível retirava-se essa neve, porém não toda, porquanto abaixo dela
formava-se uma camada de gelo que poderia fazer-nos escorregar ou cair. Para
ajustar as tábuas, fazendo a camada de isolamento, tínhamos de trabalhar
ajoelhados nas vigas para evitar acidentes. Ajoelhados por muito tempo, provocavase no campo de pressão dos joelhos o degelo devido ao calor do corpo, ficando as
pernas da calça encharcadas de água. Passava-se o dia todo nesse estado, por mais
que se aquecessem os lugares úmidos ao fogão.
Devido à umidade, ao frio e ao constante ajoelhar, formou-se um abscesso
abaixo do meu joelho esquerdo, que alcançou, com o tempo, o tamanho de um ovo
de galinha. Como ficava exatamente num lugar onde, quando eu corria, friccionava o
cano da bota, era um tormento fazer o caminho de ida e volta ao trabalho, pois, por
uma “bagatela” dessas o médico russo não concedia licenças, a menos que se
estivesse com febre acima de trinta e sete graus e meio.
Como o caminho de ida, de maneira geral, durava uma hora, por minha causa
estávamos gastando de hora e meia a duas horas para o percurso, chegando sempre
atrasados. Acompanhando e fazendo sentinela ia conosco apenas um soldado russo,
que conservava o grupo todo junto. Para não chegar tarde demais depois do término
do trabalho a seu alojamento ele soube dar um jeito, mandando-me antecipar a
volta ao campo para as quatro horas, e ao portão aguardar a chegada do restante do
meu grupo. Todos os prisioneiros componentes
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de um grupo que saíssem do campo juntos tinham de entrar juntos; ninguém podia
entrar até que chegasse o último homem. Caso um ou outro tivesse que demorar
mais no local de trabalho, o guarda acompanhante deveria apresentar, no portão do
campo, um atestado fornecido pelo encarregado do trabalho respectivo.
Estando próximo ao portão, já vinham lá atrás os outros marchando, e assim
não tive que esperar muito. Pela manhã o guarda me disse que poderia ir devagar,
enquanto ele partia com os outros na frente. Eu teria o tempo que fosse necessário
para chegar.
Cada dia, após voltar ao campo, eu ia à enfermaria para ouvir de novo o
diagnóstico do médico russo: "bom para trabalhar". O médico alemão sacudia a
cabeça sem nada mais poder fazer. Finalmente, num sábado, quando fui à
enfermaria, disse-me o médico russo: "amanhã operar". Não recebi atestado de
doença e, na manhã de domingo, veio uma ordem de que todos os da barraca que
não tivessem o atestado fossem para fora carregar lenha para a lavanderia. Não
possuindo o papel e percebendo que teria de ir também carregar a lenha, corri
rapidamente à enfermaria em busca do médico alemão e expliquei-lhe a minha
dificuldade, ao que ele retrucou: "Nada disso, senta-te e espera, quero ver quem te
tira daqui". A operação somente poderia ser feita depois da visita do médico russo,
que demorou horas para chegar. Finalmente chegou, fui operado, e, em
consequência, levaram-me para o hospital.
Depois de ter saído todo mundo para buscar lenha, com exceção dos doentes,
o oficial político russo veio com uma informação surpreendente para os prisioneiros:
pela primeira vez, passados tantos anos, chegavam notícias de familiares. Um
companheiro da barraca, que trouxe minhas coisas ao hospital manifestando alegria,
chegou-se a mim que estava dormindo e acordou-me, mostrando um cartão, bem
perto para que eu o pudesse ver. O efeito do éter utilizado pelo médico como
anestesia durante a operação ainda não passara de todo, e eu estava tão tonto que
adormeci novamente, com o cartão seguro nas mãos.
Minha alegria foi enorme, quando percebi com mente clara que havia mesmo
um cartão comigo, não era sonho. Num canto superior do cartão, minha mulher
costurara uma pequena foto de minha filha, que eu ainda não conhecia. Ela nascera
depois de eu estar prisioneiro há quatro meses, e recebera o nome de Elke. Nos
primeiros momentos, as linhas escritas eram coisa secundária diante daquele rosto.
As sensações daquele instante semelhantes a um reencontro não se podem
descrever. Os que passaram por coisas parecidas podem compreender o que eu
senti. As linhas escritas eram limitadas, pois, por estarmos em tempo de pós-guerra,
o cartão era um formulário fornecido ao familiar pelos russos na Alemanha, com
uma parte destacável, para a resposta do prisioneiro.
O hospital tinha pequena capacidade, mais parecendo um pombal. Logo que a
temperatura de um doente baixava para trinta e sete graus
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e meio, ou uma ferida sarasse mais ou menos, retiravam-no dali, mandando-o de
volta à barraca. Permanecia quem estivesse com distrofia ou tuberculose. Havia três
graus de distrofia: quem atingisse grau "um" tinha esperança de recuperação,
enquanto os de grau' “três'' apenas a sorte os conservaria vivos. A situação para
estes era a mesma dos condenados à morte, aguardando o seu dia nas celas. Os
pacientes em segundo grau estavam em constante perigo de deslizar para o terceiro
grau, e quem não mobilizasse toda a energia e força de vontade de viver estava a
caminho de permanecer para sempre sob a terra russa. Distrofia é estado adiantado
de subnutrição.
Após oito dias recebi alta e, em seguida a três dias de repouso na barraca,
começou o costumeiro caminhar para o trabalho, onde meu companheiro me
aguardava, uma vez que não se entendia bem como o que lhe destinaram durante
minha doença. Esse companheiro, com quem sempre trabalhei naquela construção,
foi aprisionado com dezesseis anos, nunca tendo sido soldado, mas apenas ajudante
em bateria antiaérea. Seu pai tombara nos primeiros dias da guerra na França. A
mãe era parteira e Gustavo - este, o nome dele – era o mais velho de oito irmãos.
Sempre foi um verdadeiro companheiro para mim, embora eu fosse vinte e cinco
anos mais velho. Ele mesmo sempre me tratou como se eu fosse seu pai. Teve sorte
e voltou à Pátria antes de mim, quando uma vez enviaram um grupo de gente mais
nova para Leningrado e, de lá, num trem para a Alemanha.
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III) – COLHEITA DE COGUMELOS E FRUTOS DO MATO
Quando chegava a época de colher mirtilos, cogumelos e murtinhos,
diariamente saíam colunas compostas pelos incapacitados para o trabalho, para as
florestas próximas, a fim de apanhar tais frutos silvestres. Aos domingos, porém,
todo o acampamento era destacado para a tarefa.
Logo após a sopa matinal mandavam-nos formar. Éramos contados e em
seguida íamos para a coleta, sem escolta nem supervisão. Cada um deveria trazer
dois litros de bagas, daquelas que na época amadureciam, para o acampamento.
Quem não completasse essa quota recebia no decorrer da semana trabalhos
adicionais após o trabalho normal. As frutas que excedessem a quota prescrita
podiam ficar em poder de cada um.
Formávamos nossos grupos e um barco nos levava ao outro lado do Canal de
Stalin, seguindo dali cada grupo a direção de sua própria escolha. Na medida do
possível deveríamos estar de volta ao acampamento até a hora da refeição
vespertina.
Cada grupo então se empenhava em rapidamente encontrar um lugar onde os
frutos fossem abundantes e fáceis de colher. Encontrado o local propício, tratava-se
primeiro de encher o próprio estômago e, assim que a sensação de fome
desaparecia temporariamente, chegava a vez de encher a lata destinada ao
acampamento. Enchidas estas, eram os frutos despejados num saco previamente
conseguido por nós mesmos. Novamente catavam-se mais frutos, em ritmo
acelerado, para nosso próprio consumo durante a noite.
Nossos camaradas hospitalizados não eram esquecidos, recebendo quase
todos uma considerável parcela da colheita. Somente aqueles que tivessem, em
algum momento, demonstrado seu desprovimento de espírito comunitário eram
excluídos da distribuição, nesses casos.
Para nós, essas oportunidades constituíam-se numa distração bem vinda.
Completamente livres, podíamos movimentar-nos na mata e quando tínhamos a
sorte de encontrar um lugar com frutas em abundância, enchíamos rapidamente a
vasilha, cuidávamos da própria provisão, podendo ainda tirar uma boa soneca.
Todos tinham de observar, porém, o que fora combinado entre o grupo, no
caso de alguém afastar-se demasiadamente. De tempos em tempos, chamávamos. A
palavra combinada era gritada de um por um e o líder respondia. Quando não era
ouvida a resposta, dever-se-ia procurar o caminho de volta, sempre chamando. O
sinal de recolher era a sirena da serraria às quatro da tarde e, logo em seguida, o
apito do trem da linha Murmansk-Leningrado indicava-nos com seu barulho a
direção do canal, no caso de alguém ter penetrado mais profundamente na mata.
Chegando ao acampamento, todos mostravam as frutas colhidas a
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um oficial russo, que as despejava num grande barril. Quem não completara a sua
quota ficava de lado, aguardando que os demais fossem atendidos. Feito isso, a
sentença do castigo era ditada, sendo imediatamente comunicada ao comandante
alemão pelo estafeta do acampamento,
Do resultado da coleta, somente uma parte mínima destinava-se aos
prisioneiros. A parte maior era distribuída entre os oficiais russos. Para estes, os
frutos constituíam-se em provisão para o inverno, em forma de conserva ou frutas
secas. Os mirtilos eram postos a secar, para consumo do acampamento, sendo um
excelente remédio contra a diarréia. Bem mastigadas, a quantidade de duas
colheres de sopa apresentavam, já após dois dias, bons resultados, em tais casos.
Serviam-se os murtinhos uma vez ou outra, aos domingos, como sobremesa
em forma de compota, muito azeda devido à escassez do açúcar. Cogumelos eram
mais proveitosos para nós, pois tornavam o assim chamado "caldo de carne" um
pouco menos desagradável.
Tínhamos ido à mata, num domingo, trazendo tão boa colheita que a
contagem vespertina foi feita nas barracas mesmo, dispensada a formação no pátio.
A contagem na barraca era uma concessão do oficial do dia. O mais velho de cada
alojamento fazia a contagem, prestava contas ao comandante do campo e este, ao
oficial de plantão.
De repente, chamaram-nos para formação, no pátio. Isto indicava,
evidentemente, alguma anormalidade, logo confirmada com a constatação de que o
número da contagem final não estava conferindo. Fomos novamente contados e a
diferença persistiu: faltavam dois homens. Somente naqueles instantes tal
desaparecimento fora notado, uma vez que o controle no portão do acampamento
não fora rigoroso. O mais antigo do respectivo alojamento recebeu violenta
recriminação, que na verdade era uma repetição do que vinha desde as instâncias
superiores, dado que os russos, em tais circunstâncias, eram absurdamente
grosseiros.
O resultado final em ocorrências como essas era sempre o sacrifício de nosso
descanso noturno. Continuamente os russos percorriam todas as barracas,
querendo relatórios completos. Contagens seguiam-se a outras e sempre o
resultado era o mesmo.
Os russos estavam certos de que se tratava de uma tentativa de fuga, do que
duvidávamos, pois os desaparecidos eram pessoas que jamais mencionaram tal
possibilidade, nem jamais tentaram, antes. Um deles tinha cerca de cinquenta anos
e o outro, trinta e cinco. Ambos eram mais doentes do que capazes para o trabalho,
e de modo algum teriam suportado a extravagância que significava uma fuga,
reconhecidamente inútil.
Como sempre em tais casos, quando se supunha fuga, assim que o número
não conferia na contagem final, convocavam a gente a qualquer hora do dia ou da
noite para inesperadas chamadas. Normalmente constatavam-se erros matemáticos
dos russos. O comandante alemão, mais de uma vez, ficara sob suspeita de haver
facilitado alguma fuga, dada a rapidez com que procedia à contagem dos
prisioneiros. Mesmo durante
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o trabalho mandavam-nos formar para ver se ninguém fugira, o que absolutamente
não nos agradava, nem aos encarregados das construções.
Toda a guarnição russa fora incumbida de sair para agarrar os "fugitivos". Só
ficaram os que tinham guarda ou serviço nos comandos de trabalho. Para estes, o
serviço continuaria sem interrupção nem revezamento até a volta dos primeiros.
Nem seria preciso mencionar que, em tais circunstâncias, o barômetro do ânimo dos
escalonados descia ao ponto mínimo.
No terceiro dia do desaparecimento dos dois prisioneiros, veio
inesperadamente na parte da manhã o mais novo deles, dirigindo-se ao posto da
guarda. Através de intérprete, disse que ambos perderam contato com seu grupo,
ficando completamente sem direção. Penetraram, com o tempo, sempre mais na
floresta, guiando-se pelo eco do barulho do trem de ferro, que julgavam ser a
direção certa. Não mais ouviram a sirena da serraria. Repentinamente haviam
chegado a uma clareira e viram-se diante de um lago. Seu companheiro mais velho
ficara sempre mais fraco, não podendo finalmente prosseguir.
Essa clareira, que eles alcançaram, tinha ao todo sete pequenos lagos quase
ligados uns aos outros. O jovem não teve alternativa senão deixar o mais velho ali,
prometendo-lhe procurar ajuda. Deixara sua própria capa sobre ele, que já estava
vestido com uma, para cobri-lo mais confortavelmente. As frutas colhidas tinham
sido totalmente consumidas na rota. Para matar a sede, deixou para o companheiro
as duas latas cheias de água, bem a seu lado.
No seu afã de procurar socorro para o companheiro, viu-se de repente diante
de um russo, ao qual fez entender que perdera a direção do acampamento. O russo
tomou conta dele, mesmo porque havia prêmios para a captura de fugitivos.
Não demorou muito e eles alcançaram um pequeno povoado onde o russo
deixou-o repousar um pouco, dando-lhe algo para comer. Após dormir na casa do
russo, à noite, este, na esperança de receber recompensa, pôs-se a caminho na
manhã seguinte rumo ao acampamento, que distava apenas cerca de sete
quilômetros.
Iniciara então, para o prisioneiro, uma temporada sem sossego, logo ao
regressar. Ficou proibido de ir ao alojamento, permanecendo na sala de guarda,
onde lhe foi dado algo para comer. Vezes e vezes, submetido ao fogo cruzado do
interrogatório, pois no mapa militar não constava nenhuma região com os tais sete
lagos. Repetidamente gritavam-lhe que deixasse de lado suas mentiras, pois sabiam
perfeitamente que ele, com aquilo, pretendia dar ao companheiro maiores chances
de avançar na fuga.
À tarde um comando da guarnição sob direção do comandante russo deixou
o acampamento a caminho do povoado, de onde o prisioneiro viera em companhia
do russo, para certificar-se se, de fato, os lagos existiam nas proximidades. Vários
habitantes confirmaram sua existência. Regressaram então, para iniciar, na manhã
seguinte, a procura do
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homem. Cedo, o comandante foi pessoalmente buscar o jovem na sala de guarda,
conservando-o durante todo o tempo da expedição a seu lado.
Chegando à aldeia formaram-se pequenos grupos e combinaram que quem
obtivesse resultado na busca, daria três tiros para o ar, como sinal.
Nesse ínterim, o prisioneiro já se encontrava completamente desorientado e
intimidado, não mais conseguindo recordar-se da direção, para encontrar o local
onde deixara o companheiro. Custou-lhe isso várias cotoveladas, pois ainda se
mantinha a opinião de que ele procurava favorecer a fuga do outro.
Finalmente o grupo sob a direção do comandante alcançou um dos
famigerados lagos, confirmando-se que os mapas militares não assinalavam a ele,
nem aos demais. Ainda durante essa pesquisa nos mapas, o prisioneiro viu um
bando de abutres voando em círculos e chamou a atenção do comandante para o
fato. A distância, em linha reta, era curta, mas levou tempo até chegarem ao local
assinalado pelos abutres, pois todo o lago teve de ser circundado. Quando o grupo
se aproximou do local, viram no chão uma mancha escura, identificada - quando se
chegou mais perto - como o corpo ainda coberto, do prisioneiro que faltava.
Permanecera ali, tal como o deixara o companheiro para ir em busca de
auxílio. Mesmo as latas de água jaziam intatas. O homem deve ter morrido pouco
depois que o outro o deixara. Finalmente passou-se a acreditar que o prisioneiro
falara a verdade. Viram-no agora como um ser humano e não como um animal a
quem maltrataram até a poucos instantes. Os tiros foram dados e o morto passou a
ser transportado sobre sua própria capa.
À noite o comando de busca regressou e o comandante ordenou que o
prisioneiro – até ali, tão menosprezado - fosse internado por oito dias no hospital. O
morto foi sepultado e, mais uma vez, chegara ao fim o destino de um prisioneiro.
Sua família esperaria inutilmente o regresso do marido e pai, que seria tido como
um desaparecido.
Assim que terminavam os mirtilos, chegava o tempo da colheita dos murtinhos
na floresta. Enquanto os primeiros eram doces, podendo ser consumidos em
grandes quantidades sem qualquer efeito prejudicial, os segundos, devido à acidez,
não podiam ser comidos na mesma proporção. Mesmo assim ingeríamos também
esses frutos avidamente, embora língua e gengivas ficassem feridas.
A coleta de cogumelos não representava para nós grande vantagem,
porquanto nos faltavam os temperos para cozinhá-los, tornando-os ingeríveis.
Recebíamos esses, adicionados ao caldo no qual se encontrava o minguado
racionamento semanal da carne, que mal se percebia.
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IV) - CAPTURA DE QUATRO FUGITIVOS
O campo de Letnaja possuía um pequeno comando externo que ficava à
margem da linha férrea, incumbido do abastecimento de carvão e água para as
locomotivas da linha. Distava de nós várias estações ferroviárias e os prisioneiros lá
instalados tinham de vir, de dez em dez dias, apanhar suas provisões em nosso
acampamento.
Lá não havia cerca de arame nem de tábuas em volta do alojamento e os
prisioneiros podiam movimentar-se livremente, tendo intenso contato com a
população civil. O destacamento de guarda existia apenas "pro forma", estando
alojados na mesma barraca. Os guardas passavam a maior parte do tempo no
povoado, deixando os prisioneiros entregues a si próprios, os quais também iam
para lá no tempo livre, sendo bem vistos.
O comando que periodicamente buscava a provisão era sempre o mesmo. Seus
componentes possuíam um passe que Ihes possibilitava o uso do trem entre as
estações, além das quais não podiam ir.
Durante algum tempo a provisão de carne era fornecida em forma de
conservas americanas, muitas vezes utilizada também para substituir outros tipos de
alimentos. Essa oportunidade foi aproveitada por quatro prisioneiros que guardaram
parte das conservas, sem que isso fosse notado na entrega. Controle exato o chefe
de cozinha não fazia, pois não havia escassez de alimentos. Eles recebiam,
adicionalmente, da população, batatas, repolho e outros víveres.
Com o tempo, os quatro haviam conseguido boa provisão de conservas e
discutiam a possibilidade de uma fuga. Quando a mesma estava suficientemente
preparada, de acordo com seus cálculos, executaram o plano. Certa manhã os
quatro não se encontravam nos barracos. Supôs-se que houvessem passado a noite
na vila, por isso nenhuma comunicação foi feita. Como não retornassem até o meiodia, fez-se o relatório a respeito.
Enquanto isso, os quatro haviam penetrado um bom pedaço na floresta e já se
viam em liberdade, pois se julgavam próximos da fronteira finlandesa. Por ser verão,
encontraram frutas para reforçar a ração, sem jamais imaginar que pudessem
encontrar alguém por ali.
Dispensaram, durante a caminhada, toda e qualquer precaução. Ao
atravessarem uma clareira pequena na floresta, ouviram repentinamente "stoj" e
viram-se frente a frente com um caçador de ursos, russo, com seu rifle pronto para
atirar. Não Ihes restou outra alternativa senão cruzar as mãos na nuca e se entregar.
O contato com a população tinham-nos ajudado a aprender a língua russa.
Entendiam tudo o que o russo falava e conversaram com ele, esforçando-se para
convencê-lo de que os deixasse partir sem, entretanto, lograr êxito. O homem
indicou-lhes a direção a seguir e acompanhou-os com o rifle no braço, até que
chegaram a uma pequena aldeia dentro da mata.
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Ali, tomou-lhes as conservas, levando-as para dentro de sua casa e, em
seguida, pôs-se a caminho, com eles, para o campo de concentração. O
acampamento externo, onde moravam antes, nunca mais o viram. O russo entregou
os fugitivos no comando do acampamento, recebeu sua recompensa e se foi.
Começou, então, o martírio para os quatro.
Logo ao se iniciar o interrogatório já foram recebendo dos soldados russos
pancadas de todos os lados. Na manhã seguinte entregaram-nos ao chefe dos
antifascistas para que este promovesse um espetáculo com essas criaturas, que
servisse para intimidar aos demais.
Meia hora antes do horário habitual fomos chamados para fora do alojamento,
formando em fila de cinco no trapiche principal. Mal estávamos em posição, surgiu o
chefe dos antifascistas em companhia do comissário político, tocando os quatro
homens.
Brindaram-nos, inicialmente, com um discurso sobre o mal que fizeram esses
homens; depois exigiram deles, que já estavam com colorações azuis e verdes de
tanto apanharem, que se ajoelhassem para receber a sentença. Tiveram de jurar que
jamais tentariam fugir novamente e declarar-se dispostos a pagar com trabalho
extra as conservas roubadas. Além do mais, ser-Ihes-ía tirada uma refeição diária até
que os alimentos roubados fossem compensados.
Cerimônia tão asquerosa a todos enojou. Depois de anunciada a sentença, que
incluía também dez dias de prisão seguida pela deportação para o trabalho numa
pedreira, ordenaram-nos que nos afastássemos à esquerda e à direita da estiva, de
modo que ficasse um corredor no meio. Os fugitivos tiveram de passar por esse
corredor, enquanto os prisioneiros deveriam bater-lhes de punhos cerrados, com
força.
O chefe dos antifascistas e o comissário político observavam atentamente se as
pancadas eram executadas. Caso contrário o omisso deveria também entrar no
mesmo corredor. Pudemos, no entanto, usar nossos punhos sem magoar as pobres
vítimas. Possivelmente poucos bateram com força.
O chefe dos antifascistas passou, a partir dessas medidas, a ser olhado como a
um algoz, porém não se podia demonstrar tais sentimentos abertamente.
Pessoalmente, admirei o destemor dessas vítimas, que dessa forma pagavam
de modo desumano pela tentativa de alcançar sua liberdade. Nenhum som ou grito
de dor passou pelos seus lábios. Com as mãos cruzadas atrás da cabeça, corriam tão
rápido quanto podiam pelo longo corredor de suplícios.
Durante os anos ficara-nos claro que uma fuga seria impossível. Tínhamos
agora prova disso. O impulso em direção à liberdade continuaria a ser reprimido, até
que um dia, quem sabe, dar-nos-iam a liberdade ou a prisão se perpetuaria com a
morte nesse "inferno verde e branco", pelas suas florestas imensuráveis e o inverno
lúgubre, com suas massas de neve.
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V) - PAI E FILHO NOVAMENTE JUNTOS
O mesmo chefe dos antifascistas que dera a sentença sobre os quatro
fugitivos, tinha de ir constantemente, com mais dois homens buscar provisões no
acampamento principal de Segeja. Possuía, para esse fim, passe permanente para o
uso do trem, pelos três.
Além de buscar provisões, prestava também informes sobre os
acontecimentos no campo e era também intermediário nas solicitações de
concessões para casos especiais. Simultaneamente, trazia correspondências
destinadas a nosso campo.
Aqui havia, desde o início, um jovem prisioneiro que fora aprisionado aos
dezesseis anos, sem ter sido soldado. Chamava-se Peter Simon. Era um jovem
simpático e mesmo os duros anos de aprisionamento não afetaram sua boa
educação. Continuava sempre sendo um rapaz bem formado e correto com todos.
Certa feita, ao conferir a correspondência, o chefe dos antifascistas verificou
que havia dois cartões para Peter Simon, cujo remetente era o mesmo. Isso deu
motivo à leitura das missivas, por parte dele, que viu logo tratar-se de pai e filho,
recebendo notícias da esposa e mãe, respectivamente.
Assim, em virtude dessa constatação o chefe dos antifascistas, juntamente
com seu colega de serviço, dirigiu-se ao comandante russo, que mandou chamar o
Simon mais velho, interrogando-o, porém sem revelar-lhe o objetivo. Ficou sem
dúvida comprovado tratar-se de pai e filho, depois do interrogatório.
Entrementes, preparava-se uma surpresa para os dois, enquanto no
acampamento principal faziam-se os preparativos para transferir o pai ao campo de
Letnaja, por ocasião da próxima entrega de provisões, possibilitando a união dele
com seu filho.
Assim que o chefe dos antifascistas chegou ao acampamento trazendo o velho,
manteve-o em seu escritório, enviando um mensageiro para trazer o jovem. A
surpresa teve êxito completo e pai e filho ficaram felizes por finalmente haverem se
encontrado. Ficaram, dali em diante, no mesmo alojamento e juntos no trabalho.
Triste foi para o pai quando, num trem destinado aos jovens, seu filho pôde
partir para a pátria, com ele permanecendo no campo. Todos os esforços do chefe
do acampamento, bem como os do chefe antifascista, para que deixassem o pai
seguir junto, foram em vão, uma vez que por ordem superior somente jovens
poderiam seguir viagem.
Breve o pai recebeu a alegre notícia de que seu filho chegara em casa e, junto
com a mãe, o aguardavam. Essa esperança concretizou-se somente depois de mais
de um ano.
A atuação do chefe do grupo antifascista nesse episódio contentou a todos os
prisioneiros, que relevaram muito do que ocorrera antes, em relação aos quatro
fugitivos.
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VI) – MELHORIA NO ACAMPAMENTO, POR INICIATIVA DE UM MÉDICO RUSSO
No decorrer dos primeiros anos, os médicos russos do acampamento
mudavam constantemente. Nosso velho médico alemão era pediatra e tinha
tuberculose óssea na clavícula, que ele próprio não podia tratar, dada a falta de
meios disponíveis. Ele tinha muito trabalho, mas quase nenhum medicamento
necessário para ajudar aos doentes.
Até mesmo a população civil da aldeia vizinha estava sob sua proteção,
buscando-o para quase todos os trabalhos de parto. Era um homem muito calmo e
consciente, mas quando abusavam de sua paciência também sabia ser terrivelmente
grosseiro.
Quando uma vez estive no hospital, achava-se ali também um prisioneiro no
catre vizinho ao meu, que, sempre que o médico vinha, apresentava novas queixas.
Deste modo conseguia passar longo tempo no hospital. Um dia, porém, o médico
ficou farto da "preguicite" do homem e disse-lhe: - "não compreendo como, com
tantos males, você não tenha preferido morrer heroicamente, pois a morte heróica
deveria ser-lhe um alívio, por livrá-lo de vez de todas as suas intermináveis dores". A
partir desse dia o doente sarou e logo foi trabalhar novamente.
No final do ano de 1947 recebemos um novo médico russo, major, que fazia
questão de ser chamado assim. Era grande e forte, devendo pesar uns cem quilos.
Sua paixão era o jogo de xadrez e o enfermeiro tinha de jogar com ele de manhã e à
tarde. Em consequência, o médico alemão teve de pedir um ajudante para o
enfermeiro, pois ele não dava conta do serviço por causa do jogo. O médico russo
prontamente aprovou o pedido.
Enquanto a partida não terminava os doentes tinham de esperar; o médico
alemão também não podia iniciar as consultas nem o atendimento ambulatorial.
Esse médico trouxe muitas inovações vantajosas para o campo. Rapidamente
providenciou um segundo médico alemão, cujo nome era Mueller-Beck, o qual
assumiu quase sozinho o hospital. O antigo médico ficou quase que totalmente para
cuidar da população civil.
O médico russo, que se ocupava apenas dos casos especiais, estava sempre
presente nas consultas. Providenciara um parceiro entre os prisioneiros doentes e
não se deixava perturbar em seu jogo, mesmo durante as consultas.
Quando íamos para o refeitório receber a sopa matinal esse médico russo
aparecia, às vezes repentinamente, para inspecionar nossas unhas. Em outras
ocasiões, examinava as vasilhas de sopa, usualmente velhas latas de conserva, para
ver se estavam limpas.
No princípio ficamos rindo dessas medidas, para nós, inócuas, mas
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tivemos de admitir que, em certos casos, eram necessárias, pois alguns prisioneiros
tornaram-se verdadeiros porcos, somente se higienizando se Ihes fosse ordenado.
A esse mesmo médico também ficamos gratos quando, no início de 1948,
dispensou-nos de raspar as cabeças, cada um podendo deixar crescer os cabelos até
o tamanho do corte militar. Somente as cabeças que tinham piolhos eram raspadas.
Daí em diante, também não fomos molestados com a raspagem de todos os pelos
corporais, o que sempre era - além de vergonhoso - feito com muita dor, pois eram
usadas para esse fim as navalhas mais cegas.
Durante seu tempo de guarnição na Alemanha o médico russo conhecera em
Berlim os bolinhos doces fritos chamados de "Berliner Ballen”. Quis então, em nosso
campo, que o chefe da cozinha preparasse desses bolinhos para todos nós por
ocasião do Dia do Trabalho, 1º de Maio.
Para esse fim reservou-se diariamente parte do nosso racionamento de trigo
até que, quatorze dias após, havia o suficiente para se tentar fazer três bolinhos para
cada prisioneiro. A gordura, na qual foram fritos, foi economizada da mesma forma.
Chegado o dia recebemos juntamente com a sopa matinal, dois bolinhos, ao invés
dos três esperados. O terceiro foi consumido pelos oficiais russos encabeçados pelo
médico, os quais carregaram sacos cheios.
Aos russos a experiência agradou bastante, de forma que, em qualquer feriado
queriam os "Berliner". Conseguiam, deste modo, deliciar-se às nossas custas, uma
vez que os ingredientes eram obtidos diminuindo-se a nossa magra ração. O médico
russo, durante a preparação dos bolinhos, não arredava pé da cozinha, comendo um
após o outro.
Se durante a vida militar o tema número um são as proezas a respeito da
masculinidade, no campo de concentração esse assunto perdera totalmente a
importância. Somente entre aqueles que estavam em comandos externos ou
especiais, tendo, por isso, melhor alimentação e contatos com o povo, podia um ou
outro ainda gabar-se de se sentir como homem.
Em lugar desse tema, a conversação girava em torno da arte culinária. Muitas
vezes podia-se acreditar que todos eram famosos cozinheiros de hotéis, tantos eram
os conhecimentos, que iam e vinham pelo alojamento, sobre receitas e modos de
preparar comidas deliciosas, enquanto a maioria dos que se gabavam mestres nem
sequer sabiam preparar um café.
Entretanto, o importante era ter um assunto para conversar, do que muitos se
aproveitavam para reprimir a fome constante, enquanto outros ficavam com água
na boca só de pensar nos pratos saborosos.
Nos seus sonhos, os prisioneiros viam apenas mesas com deliciosos
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banquetes, segundo contavam. Sonhos eróticos não aconteciam mais.
Outro assunto muito explorado era a volta para casa. Não havia um dia no qual
não se discutisse a esperança desse acontecimento. Muitos duvidavam da
possibilidade de uma vida matrimonial harmoniosa, após a volta, mas estes eram na
maioria aqueles que nunca haviam dado muita importância à questão da fidelidade.
Quando certa vez foi distribuída a correspondência, um companheiro recebeu
a informação de sua mulher de que, durante sua fuga da Silésia fora violentada por
um polonês e, desse ato de violência nascera um menino. Até então, ela não
mencionara o fato, para não tirar do marido o desejo de voltar para casa, Como
agora, a qualquer momento tal expectativa poderia se concretizar, ela achara
necessário escrever-lhe a verdade,
Lida a noticia, o homem ficou totalmente traumatizado e entristecido.
Comentou o fato com os colegas do alojamento, a quem pediu conselhos sobre qual
o comportamento a adotar, diante do assunto, com sua mulher. Por infelicidade,
adiantou-se um companheiro que, por meio de pornografias, começou a instigar o
colega contra sua mulher. Esse camarada era justamente um daqueles que nunca
fora sincero com sua mulher, tendo, em conversas anteriores, sempre se gabado de
suas aventuras extraconjugais.
Achei que já era demais e, na presença dos outros, disse-lhe meu ponto de
vista. Disse-lhe que o considerava um canalha, por aproveitar a depressão do colega
para instigá-Io contra alguém indefeso. Se nós soldados, com armas e tudo fomos
liquidados, quanto mais devem ter sofrido as mulheres, sobre as quais veio a horda
dos libertadores do regime de Hitler, sem ter como se defender. A partir de minhas
opiniões, os ocupantes do alojamento passaram a dar ao prisioneiro o necessário
apoio para se recuperar.
Quando chegou a época de enviar o seu cartão, através da Cruz Vermelha,
ajudei-o a formular a missiva para sua mulher e ele ficou muito grato. Com
ansiedade, passou a aguardar a resposta de sua mulher e ficou contentíssimo,
quando ela escreveu: "agora novamente posso ficar alegre, esperando sua volta".
Num acampamento encontramos certa vez um homem de cerca de trinta e
cinco anos cujos cabelos estavam totalmente brancos. Mais tarde soubemos que ele
recebera a notícia de que toda a sua família - mulher, filhos, pais, irmãos, sogros haviam perecido durante um bombardeio em fevereiro de 1945, em Dresden. Ele
fora sacristão na "Frauenkirche" daquela cidade. Muito tempo se passou até que
esse homem conseguisse superar esse golpe, ele que acalentara, tantas vezes, idéias
de autodestruição. Conjuntamente conseguimos animá-lo de novo, e ele recuperou
a vontade de viver, e de voltar à pátria.
Chegamos a maio de 1948. Uma noite, todo o campo teve de formar para uma
chamada, mesmo antes da contagem noturna. Depois
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de permanecer bastante tempo em pé, esperando, veio finalmente, como sempre
acontecia nesses casos, o oficial político com o comandante alemão até a praça onde
estávamos.
Não foi repreensão ou instrução o que ouvimos dessa vez, porém palavras
elogiosas pelo comportamento exemplar e a boa vontade na construção da fábrica
de cimento e em atividades noutros locais de trabalho. No final da conversa, tirou
uma lista do bolso e começou a ler nomes. O boato de que um trem dentro em
breve nos levaria de volta à Alemanha não se transformou em realidade. Disse-nos
ele que os componentes da lista iriam para Petrozavodsk, capital da Carélia, e que,
de lá, iriam voltar à Pátria.
Não se podia pensar em dormir nessa noite, com uma notícia destas. Feita a
contagem, todos os escolhidos tiveram de deixar sua barraca, sendo agrupados num
alojamento separado. Outra vez tivemos de formar, para a conferência dos objetos,
para se verificar se cada um tinha ainda os trapos que constavam do registro. Os
sacos de palha e cobertores - na verdade, metades de cobertor, usados
normalmente em montaria - que nos haviam entregue pouco tempo antes, tinham
de ser devolvidos. Como essas providências não se processavam em tempo rápido,
boa parte da noite passou até que pudéssemos descansar ainda um pouco em
tábuas nuas e sem cobertas, como em anos atrás.
Uma hora antes que os demais, portanto às cinco horas da manhã, acordaramnos para a viagem, e às seis já estávamos formados no trapiche principal, diante da
guarda, tendo recebido a primeira refeição. Desta vez deram-nos alimentos para um
período de dez dias, que levaríamos ao campo para ter o que comer até a próxima
distribuição para mais dez dias. Os mantimentos foram acondicionados em sacos de
papel para serem levados pelos primeiros da coluna, até a estação, que ficava, por
sorte,apenas a vinte minutos do campo.
Mais uma vez ficaram companheiros com os quais a gente compartilhara,
durante anos, necessidades, misérias e privações. Estes sempre foram momentos
que denunciavam as incertezas do futuro, para os que se iam e os que ficavam.
Diante do portão, leram-se mais uma vez os nomes dos que compunham a coluna
dos que partiam, fez-se nova contagem e o portão se abriu, com ordem de marcha.
Ouviu-se, dos que se iam, a saudação "Adeus, camaradas!" e dos que permaneceram
a recomendação "Saúdem a Pátria, camaradas!” Então o portão se fechou atrás de
nós, impedindo-nos, com seus três metros de altura, de olhar para trás.
A caminho da estação, passamos pelo cemitério dos prisioneiros mortos. Cada um
de nós pensou mais uma vez nos que ficaram para sempre.
Logo veio o expresso Murmansk, ao qual foram acoplados nossos dois vagões de
carga, e lá fomos nós para o Sul, em direção a Leningrado.
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PETROZAVODSK
Horas e horas esperamos na plataforma da estação de Petrozadovsk, onde
chegamos na manhã do dia seguinte, até que estivessem prontos, no novo campo,
para nos receber. Esfomeados, porque a comida fora levada in natura,
impossibilitados de cozinhar no trem sem dormir durante a viagem, e ainda com
aquela interminável espera, dominou-nos a lembrança dos primeiros tempos como
prisioneiros.
Os dois soldados russos que nos tinham acompanhado desde o campo não
quiseram levar-nos ao nosso destino, por terem recebido ordens para apenas nos
conduzir à estação e voltar no próximo trem. Tivemos de aguardar até que os novos
guardas viessem buscar-nos. Após uma hora de caminhada até o campo, lá
chegamos ao meio-dia.
Como sempre ocorria, não fomos diretamente para os alojamentos, passando
primeiro pela desinfecção ou, como diziam, despiolhamento, embora não
tivéssemos piolhos na roupa.
Fomos agrupados numa grande sala, que era o refeitório, como um rebanho de
carneiros. Enquanto isso, o pessoal da cozinha se esforçou em preparar uma refeição
com as coisas trazidas por nós, depois que todos os do campo tivessem comido,
quando estavam desocupadas as panelas. Nesse meio tempo íamos em grupos para
a desinfecção.
Pelas cinco da tarde recebemos nossa ração para o dia todo, isto é, três
conchas de sopa. Pão, conseguimos somente trezentos gramas, pois não deu para
fazê-Io tão depressa com a farinha que trouxemos.
Passamos a noite no assoalho nu, sendo sorte nossa que a temperatura não
estivesse tão baixa, pois não tínhamos cobertores. No dia seguinte fomos
distribuídos nos alojamentos, sendo permitido que ficassem juntos os conhecidos do
outro campo. Nomearam-se os encarregados das salas e infelizmente fui designado
chefe da minha, ficando responsável por ela.
Havia ali um edifício grande, de dois andares, que aparentemente fora quartel
do exército russo. Além dele havia algumas barracas de madeira, todas erguidas um
pouco distantes do edifício do alojamento, perto da administração e da cozinha.
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Primeiro inspecionamos nosso alojamento, situado no primeiro andar, e
verificamos que enxameavam pulgas e percevejos. Por isso fui ao meu grupo,
destacando alguns para limpeza e mandei-os pegar baldes, vassouras e panos,
enquanto fui a todas as instâncias para conseguir um pouco de cloreto de cal, que
acabei conseguindo. Os demais seguiram meu exemplo.
Começou a grande limpeza. Baldes e baldes de água foram utilizados, até se
chegar às tábuas do assoalho. Vassouras e panos serviram para dissolver a camada
de sujo e absorver parte da água lodosa. Imaginávamos que o pessoal da sala de
baixo acabaria por receber nas cabeças parte da água da limpeza, o que realmente
aconteceu. Houve protestos por causa disso, mas explicamos a situação de sujeira
reinante e terminaram por aceitar o fato.
Limpo o assoalho, colocamos cloreto de cal nas junções das tábuas e com essa
providência deflagramos um verdadeiro processo de extermínio contra os nojentos
bichos, principalmente pulgas. O tempo não fora suficiente para submeter os
beliches a uma sólida limpeza, daí termos de suportar uma noite de invasão de
percevejos, que, naquela região, coabitavam em todas as casas com os moradores.
Essa praga nos assaltou em massa à procura de um alimento que há muito não
deveria estar conseguindo.
No domingo seguinte atacamos os torturadores, desmontando os beliches e
colocando as peças no forno de despiolhamento, onde ficaram duas horas a mais do
que a prescrita. Quando as retiramos dali varremos montes de percevejos mortos,
pois o local devia ser entregue limpo. Mesmo com essa "violência", não
conseguimos destruí-los em definitivo, e éramos chateados, daí em diante, todas as
noites, embora em muito menor escala do que antes do expurgo.
Neste campo encontramos todos os austríacos que, há mais de um ano,
tinham sido reunidos de todos os campos da Carélia para serem repatriados.
Enganaram a todos eles. Disseram-nos preferirem os campos anteriores, uma vez
que a ninguém agradava este. Reencontramos também nosso primeiro comandante
alemão do campo, que não mais estava internado, porém com incumbência especial
junto ao comando russo, na cidade, podendo movimentar-se livremente.
Quando reuniram os austríacos para concentrá-los naquele campo, tinhamlhes dito que nada mais tinham em comum com a nação alemã. Agora, porém, eles
eram considerados alemães novamente.
Sobre repatriamento nem se falava no campo, de modo que voltamos ao
trabalho. Novatos, fomos destacados primeiramente para trabalhos de arrumação
numa serraria da vizinhança e somente depois de certo tempo nos agregaram ao
grupo principal de trabalho na cidade. Esta ficava no alto e tinha um declive bastante
íngreme para o lado do Lago Onega. No declive existira antes todo um bairro que
fora dinamitado pelos russos na Guerra Russo-Finlandesa de 1938/1939, porque
temiam um ataque finlandês partindo do lago e o bairro atrapalharia sua defesa.
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Ao longo do lago, somente um ou outro edifício estava de pé; e, no declive, havia
um quartel.
Iam começar a construir casas por ali e nossa tarefa era cavar as valas para as
galerias de águas servidas. Esses canais atingiam a profundidade de até quatro
metros, pois o terreno era irregular. Durante as escavações encontramos, amiúde,
alicerces e fossas revestidos de toros. Por sorte nossa, o conteúdo dessas fossas se
encontrava praticamente decomposto, mas não era com vontade que a gente fazia
este trabalho.
Nessas fossas havia, além de detritos fecais em decomposição, inúmeras
garrafas vazias, produto que estava em falta no local. Portanto, encontrar garrafas
quase significava encontrar dinheiro. Um dia nosso grupo passou com as escavações
por uma fossa, e encontrou muitas garrafas. Com a pá retiraram-nas dali e então um
dos nossos se deu ao trabalho de limpá-las numa poça de água, tanto quanto
possível. Estavam cheias de dejetos, naturalmente. A idéia era trocá-las por dinheiro
para adquirir tabaco para todos.
Ninguém notou que um sentinela russo observara, durante todo o tempo,
aquela atividade. Terminada a limpeza, o homem conseguiu um saco de cimento
vazio e nele acondicionou as garrafas. O guarda aproximou-se então e ordenou ao
companheiro que o acompanhasse e trouxesse as garrafas. Ambos foram à cidade,
onde o sentinela vendeu-as numa farmácia, alegrando-se muitíssimo ao receber o
dinheiro.
O prisioneiro nada recebeu. Daí em diante, sistematicamente,
quebrávamos todas as garrafas eventualmente encontradas, nem sequer passando
pelas nossas cabeças limpá-las ou juntá-las.
No segundo dia desse trabalho vieram procurar carpinteiros, mas ninguém se
ofereceu. Alguns companheiros queriam que me oferecesse para formar um grupo
para algum trabalho que fosse, eventualmente, mais leve. Aconselhei-os a ficar
calados, pois não sentia nenhuma vontade de prolongar o tempo de prisioneiro
como profissional especializado. A maioria já compreendera que pedreiros,
carpinteiros, mecânicos e ferreiros e especialmente motoristas eram tidos pelos
russos como especialistas indispensáveis, mesmo se não possuíssem grandes
conhecimentos profissionais, que muitas vezes foram adquiridos na prisão.
A longa fila de prisioneiros trabalhando na vala, que já cortava o terreno de
ponta a ponta, nem sempre estava vigiada por guardas, de quem dependia a
produção, pois ninguém gostava do trabalho. Cada um tentava, de vez em quando,
representar o "Monumento ao Operário", apoiando-se longamente no cabo da pá.
Assim que se avistava um guarda soava imediatamente o grito de "Atenção". Com o
tempo os russos aprenderam o significado desse grito. Por isso ele foi substituído
por "Alarme Aéreo" e, depois, "Perigo Aéreo 15". Ouvido o grito, logo se via que
todos estavam aplicadíssimos ao trabalho.
Em todos esses anos esforçáramos por cumprir a quota de trabalho
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programada, quanto possível, mas aqui ninguém mais se incomodava com isso. O
que queríamos era ir para casa.
Iludimo-nos redondamente, pois o que finalmente nos foi dado a conhecer era
totalmente diferente do que sonhávamos.
Em 22 de setembro de 1948, um domingo, pela manhã, mandaram-nos formar
em quadrado aberto na praça do campo e aguardar instruções. Mais de uma hora
ficamos de pé, até que se ouviu o grito de “Atenção!”, e o comissário político russo
veio marchando como um pequeno general. Ficamos à vontade assim que foi feita a
apresentação pelo comandante alemão do campo. O comissário pegou uma lista e
começou a ler nomes, após ter dito que os chamados deveriam sair para a esquerda.
Lidos uns trinta nomes, tendo seus donos se agrupado no local indicado, disse ele
que esses eram os mais preguiçosos do campo e que iriam para uma pedreira, como
castigo. Nova lista foi lida e os chamados deviam formar do lado direito. Estes foram
declarados os mais aplicados do campo, recebendo, como recompensa, oito dias
sem trabalho, com comida melhorada.
Então nova lista apareceu e todos pensavam que seria a vez dos que voltariam
para a Alemanha. Estes continuaram formados. Foram oitocentos e oitenta os
nomes, dentre os quais eu também. Com alegria, cada um ocupava seu lugar assim
que o nome era lido. Disse então o comissário político russo que esse grupo iria para
um campo de desterro, transformando nossa alegria em profunda tristeza. Não se
explicou o porquê daquela atitude, mas um que estava ao meu lado, conhecido com
um dos antigos comunistas disse: "Não é possível que, sendo eu um velho
comunista, me mandem para o desterro!" O comissário retrucou que se os
comunistas não tivessem falhado Hitler não teria nunca chegado ao poder.
Eu não atinava qual seria a razão de estar incluído naquele grupo, que foi formado
de antigos membros da SS, SA, Polícia e bombeiros (estes, talvez porque o nome em
alemão dessa corporação era "polícia de apagar fogo"). Provavelmente demorariam
mais tempo presos os membros da Polícia do Exército e os antigos membros da
“Waffen-SS", ramo militar da SS.
Membros do Partido Nazista não foram incluídos no grupo, pois não eram
considerados pelos russos como criminosos, no sentido geral de criminosos de
guerra.
Bastante mais tarde eu saberia por um comissário político por que me
incluíram entre os que seriam desterrados. Embora tivesse pertencido ao Partido, eu
não fizera parte de mais nenhuma outra organização, além dele.
Os grupos selecionados foram buscar suas coisas logo após a chamada,
dirigindo-se unidos para alojamento separado. Foi proibido qualquer contato com
outras pessoas do campo, mas a proibição não foi observada, já que não era possível
controlá-la. Na manhã seguinte, depois da refeição matinal, apresentamo-nos com
todos os pertences,
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numa grande praça ali existente, esperando de pé como de costume, horas a fio. Um
oficial russo veio e perguntou, através de intérprete, se alguém tinha alguma
exigência a fazer à administração do campo. Havia ali um prisioneiro que há anos
deveria ter sido repatriado. Ele assim respondeu à pergunta: "Sim, tenho ainda
direito a trezentos gramas de pão". Por causa de sua resposta, afastaram-no da
coluna e fizeram-no pagar sua insensatez com mais três anos, na Rússia.
102
RUMO AO DESCONHECIDO
Pouco antes do meio-dia, finalmente, nos mandaram formar em linhas de cinco
e a contagem foi feita pelo oficial da guarda do campo. Como a quantidade estivesse
certa, abriu-se o portão e ficamos surpreendidos de sermos entregues a guardas
com metralhadoras e cães policiais. Pareceu-nos que escolheram para a ocasião os
guardas mais brutais, pois, se tudo não fosse feito o mais rápido possível, davam
coronhadas e pontapés.
Colocaram-nos na rua em forma, novamente fomos contados pelo chefe dos
guardas e ficamos horas em pé, aguardando. Depois, cada um dos guardas nos
contou e, finalmente, quando ficaram de acordo com a nossa quantidade, começou
a marcha rumo ao porto do Lago Onega.
Embora houvesse um caminho para o porto, passando ao longo das margens
do lago, fizeram-nos entrar na cidade, andando ruas acima e abaixo, até encontrar
de novo o caminho certo.
Chegados ao lago em frente ao porto, tivemos de ficar novo longamente de pé.
Tinha vindo atrás de nós um carro transportando comida, mas ninguém a recebeu,
embora o chofer, como nós, estivesse com o caminhão parado à espera de ordens.
Muito tempo depois o veículo levou nossa alimentação próximo ao barco que nos
era destinado, sendo ela transferida para outras panelas grandes, a fim de que o
carro voltasse ao campo.
Estômago vazio, cansaço e incerteza quanto ao futuro causaram acessos de
fraqueza em muitos. Diversos companheiros tiveram de ser segurados e apoiados
para não caírem e serem levantados com coronhadas. De repente um deles não
aguentou mais, e caiu. Era um austríaco, dos que há anos deveriam ter sido
repatriados. O guarda mais próximo veio correndo e deu coronhadas em todos os
que se dispuseram a ajudar. Espancou também o desfalecido, mas este nada mais
sentia, nem se podia ajudá-lo porquanto um ataque de coração pôs fim a sua vida,
livrando-o de mais fadigas. Obrigaram-nos a deixá-Io no exato lugar onde havia
caído. Enquanto estivemos ali, nenhum deles providenciou para que o homem fosse
removido.
Sem que nos tivessem dado qualquer ordem, fomos tangidos a
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coronhadas, tal qual manada de gado, e impelidos sobre o cais e uma prancha, para
dentro de uma alvarenga de ferro. Esta era semelhante às barcaças usadas na
Alemanha, nos rios Reno, Elba e Oder. Diante da larga prancha de acesso havia um
russo de cada lado, cada um deles com uma dessas máquinas de calcular com
bolinhas multicores que conhecemos em criança antes de ir para a escola aprender a
contar. De cada vez, cinco deviam parar diante da rampa até que os russos
movessem suas bolinhas e fôssemos contados. Depois, em trote, subíamos a rampa,
para dar lugar aos próximos cinco.
Uma escada larga e íngreme levava para dentro da barcaça, onde estava muito
escuro, pois a única luz que havia era a da escotilha da entrada. Nela deveriam
caber, se tanto, umas quatrocentas pessoas deitadas, mas, todos nós, oitocentos e
oitenta, fomos enfiados ali. Em três filas duplas deitamo-nos ao longo do piso, cada
um tentando acomodar seus pés e pernas de tal forma a não incomodar o vizinho da
frente. Tiramos logo os sapatos para evitar ferimentos. Era ruim quando se precisava
fazer necessidades fisiológicas num canto onde puseram, para isso, baldes e cubas.
A comida do meio-dia, trazida para nós do campo, foi-nos dada às oito da noite.
Embora estivesse fria, ninguém a recusou, pois não se sabia quando haveria outra.
Pouco antes da meia-noite, um pequeno rebocador chegou e rebocou nossa
alvarenga sobre o Lago Onega.
A viagem durou três dias, sem que pudéssemos por os olhos na luz do dia.
Davam-nos comida diariamente. A cozinha estava instalada no convés. Para receber
alimentos, íamos até o pé da escada, sendo proibido subir.
Na primeira noite, com uma escuridão tamanha que ninguém podia enxergar
um ao outro, levantou-se um prisioneiro apresentando-se como pastor protestante
e pedindo permissão para nos dirigir algumas palavras. Ninguém se insurgiu, nem
mesmo os mais duros que nada queriam saber de igreja e religião, qualquer que
fosse ela. Este indivíduo deveria ter sido um excelente pastor de almas, pois não
houve ninguém dentre os prisioneiros que, no fim, não tivesse ficado
profundamente sensibilizado. Constatou-se, então, que havia cinco pastores
protestantes entre nós, tendo todos eles nascido no exterior. Seus pais tinham ido
trabalhar em outros países como missionários, comerciantes ou engenheiros.
Depois de três noites e dois dias chegamos, ao entardecer, num ponto de
transbordo, passando para uma alvarenga menor. A anterior pelo menos possuía
cobertura, mas esta era totalmente aberta e tão pequena que ficamos como
sardinha em lata. Sentar ou deitar era impraticável. Ademais já fazia bastante frio e
começaram as primeiras tempestades de neve.
A alvarenga estava subdividida por vigas em compartimentos menores e em
cada um destes havia um balde para as necessidades fisiológicas. Conseguir chegar
até esse balde era difícil. Para o
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necessitado era vergonhoso e para os outros desagradável ter de usá-lo dessa
forma. Um dos prisioneiros foi destacado para despejar os baldes, cada vez que
ficassem cheios, para dentro do lago. A cozinha situava-se atrás, e os baldes com os
dejetos eram despejados na parte da frente. A água de que a cozinha se utilizava era
retirada também do lago. Não se podia deixar de imaginar que estivéssemos nos
alimentando com comida feita com água contaminada, mas a fome não nos deixava
alternativa senão a de engolir as sopas preparadas daquele modo.
Do lago passamos para um canal e, no decorrer de três dias, transpusemos
dezoito eclusas para vencer uma grande diferença de nível. Ninguém sabia para
onde íamos e isso não nos interessava de forma alguma, sendo importante apenas
que a viagem findasse o quanto antes. Na tarde do terceiro dia chegamos a um lugar
onde avistamos uma pequena aldeia, ou cidade, e sobre um morro, um campo
parecido com os de prisioneiros. A maior parte das barracas estava ainda sem
janelas e portas, vendo-se, de onde estávamos, apenas poucas pessoas.
Na região devia ter chovido durante semanas, pois quando pudemos
finalmente sair da alvarenga totalmente gelados e hirtos, ficamos logo com lama até
o tornozelo. Estávamos agora tão enfraquecidos que não fomos capazes de vencer
sozinhos o caminho, morro acima. Fomos de dois em dois, um tentando apoiar o
outro na estrada íngreme.
Chegados em cima, ficamos horas diante do portão do campo, já que ainda não
estavam preparados para nossa chegada. Os primeiros prisioneiros que vimos
perguntaram-nos de onde viéramos, e nós, em contrapartida, queríamos saber de
onde vinham. Havia prisioneiros de todas as partes da Rússia ali reunidos. De
Moscou, Leningrado, Montes Urais, e onde ainda houvesse campos.
Um deles, disse: "Vinde, entrem, em breve se comemorará aqui o Dia Nacional
do Partido." Humor, felizmente, ainda havia, e isto foi para muitos de nós que já se
encontravam totalmente apáticos, de grande valia; o ânimo subiu um pouco.
O portão, depois de horas, abriu-se finalmente e marchamos campo adentro.
Uma barraca sem portas e sem janelas nos recebeu. Gelados e com fome ficamos
expostos ao vento, sem poder aquecer-nos de forma alguma, porque nada se
encontrou para ao menos fechar as portas. Para outro alojamento não nos deixaram
ir, porque ainda não passáramos pela desinfecção. Pelas dez da noite, o primeiro
grupo foi chamado para cumprir o ritual, que desta vez incluía também o corte dos
cabelos e barba, antes do banho. À meia-noite, foi a vez do segundo grupo.
Depois do banho fomos para o exame médico, feito por uma médica russa,
que pareceu impressionada com nosso estado de saúde. Na realidade, éramos
apenas esqueletos revestidos de pele. De madrugada pudemos ocupar uma barraca,
após cumpridas todas as etapas rotineiras, sempre demoradas. O alojamento estava
cheio, mas era melhor do que o anterior e ali nos instalamos no chão, entre as
106
camas.
Às seis, recebemos a sopa matinal e formamos na praça para chamada e para
verificação da lista de roupas e outras coisas. No entanto, recebemos a informação
de que deveríamos ir novamente a exame médico, pois jamais ocorrera um duplo
exame ao longo do cativeiro.
A médica, ainda à noite, passara um telegrama para Leningrado solicitando
uma comissão médica, pois devido ao estado de saúde dos prisioneiros, negava-se a
assumir a responsabilidade por suas vidas. A comissão viera, prontamente, de avião,
sendo formada de seis médicos, afora a doutora que nos examinara anteriormente.
Outra vez nus, passamos diante da comissão. Cada um declinava nome,
graduação militar e data do nascimento e, se tinha um número estabelecido por
algum campo, também este. Localizavam então sua ficha médica, que o
acompanhava de campo em campo e, depois de ficar em várias posições de corpo,
davam o diagnóstico sobre o estado de saúde. Parecíamos gado de corte examinado
por um magarefe de trás para diante e de baixo para cima, em um leilão.
Como resultado do exame, metade foi declarada “OK”, o que significava "sem
condições para trabalhar"; um terço passou para a categoria de "distrofia" e
somente o sexto restante ficou na categoria de "grupo de trabalho três", isto é, do
grupo de menor produção, para o qual era suficiente a meta de trabalho igual a
cinquenta e cinco por cento do programado. (Classificavam como “grupo dois" aos
que poderiam chegar a setenta e cinco por cento do programado e, de “grupo um”,
os que chegariam a cem por cento).
Os classificados na categoria “OK”, cumpriam apenas tarefas leves no campo,
durante quatro horas, enquanto que o grupo "distrofia" estava totalmente
dispensado do trabalho, recebendo também melhor alimentação, reforçada com um
pouco de manteiga ou margarina. Uma estranha forma de distribuição havia com
relação ao tabaco: os que trabalhavam recebiam cinco gramas por dia, enquanto
que os doentes recebiam dez gramas.
Nunca eu estivera com saúde tão ruim que pertencesse ao grupo "distrofia
dois", a última escala para o candidato à morte, mas desta vez foi assim. Em vista
disso, fui separado de meu companheiro e antigo colega de trabalho, que foi para o
grupo de trabalho três.
Um outro companheiro recebera, pouco antes, devido aos meus esforços,
notícia através da Cruz Vermelha Alemã de que seus familiares estavam bem e
moravam perto de Hannover. Esta notícia conseguiu reavivar seu ânimo, sendo-lhe
de total surpresa, pois sem ele saber, eu escrevera inúmeras vezes para vários
organismos que se interessavam pelos desaparecidos.
Todos os distróficos foram concentrados ali numa barraca especial para
aguardar sua sorte. Trabalhar não precisávamos, nem devíamos. Neste campo
reencontrei um oficial da SS que conhecera brevemente no campo de Segeja, bem
como um chefe antifascista do nosso campo
107
de Letnaja, que soubera conseguir, novamente, ser nomeado chefe de um grupo
deste campo. No entanto fora rebaixado, tendo de trabalhar como os outros, assim
que esclarecimentos sobre sua vida pregressa e seu procedimento para com os
outros prisioneiros chegaram ao conhecimento do comando daqui.
Ao que parece, não sabiam o que fazer conosco. Ficamos oito dias naquele
campo, depois fomos retransportados em outra barcaça, só que desta vez a viagem
foi mais rápida, porquanto seguimos canal abaixo e a barcaça tinha motor.
Alojamento e comida eram melhores do que na viagem de ida.
Após um dia e uma noite chegamos a um destino intermediário, mas jamais
ficamos sabendo em que região da Rússia esse campo ficava. Nosso campo-abrigo,
foi-nos dito, era temporário, situado no meio de lama e lodaçal, e bastante pequeno.
Todos os cinco pastores foram meus companheiros nesse alojamento.
Fizemos ali trabalhos "leves", quais sejam, retirar e transportar terra e lama.
As padiolas foram construídas de caixas rasas ou de simples tábuas transportadas
por dois homens. Com a terra e o lodo que carregávamos enchíamos um grande
buraco existente no campo.
Cada grupo era formado de três homens. Enquanto um deles enchia a padiola, dois
descansavam e quando estes transportavam a lama, o primeiro descansava.
Ninguém se esforçou aqui.
Os cinco pastores e eu formamos dois grupos; assim fiquei sabendo que um
deles nasceu na Argentina, um em Alexandria, um na América do Norte, um no
México e o último na África. Quase todos atuaram na guerra como enfermeiros.
Com o tempo, parece que encontraram onde aquartelar-nos, pois um dia
mandaram que nos aprontássemos para ir. Depois do almoço todos ficaram prontos
e à disposição para a viagem. Os guardas eram boas pessoas, nos três vagões de
gado que ocupamos na viagem de trem por uma linha secundária. Em cada vagão
havia um deles.
Já escuro no vagão, à noitinha, deram-nos jantar, constituído de pão seco e
peixe salgado. Cada um recebeu duas fatias de pão e um peixe defumado foi
repartido para três pessoas. O único que possuía uma faca em nosso vagão era eu,
que a confeccionara. Por isso, fui incumbido de dividir os peixes para todos,
enquanto se iluminava o ambiente com uma acha de lenha ardendo. Nesta tarefa
feri o polegar direito com uma espinha de peixe, que no outro dia já inflamara,
doendo muito e me ocasionando futuros incômodos.
Tendo jantado, logo sofremos uma terrível sede por causa do peixe fortemente
salgado. Não havia água. Pela manhã nosso vagão foi acoplado a um outro trem,
sem possibilidade de se conseguir água, pois a viagem logo continuou. No decorrer
do dia, quando paramos brevemente numa estação, os guardas nos deixaram descer
e procurar água, que afinal foi encontrada. Vasilhame, porém, não havia, e antes
que todos se saciassem bebendo com a concha das mãos, mandaram-nos embarcar.
Por interferência dos guardas, o chefe do trem
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aguardou enquanto matávamos a sede.
Alguns prisioneiros possuíam uns rublos e na estação seguinte combinaram
com um guarda que fosse com três deles a uma aldeia próxima comprar alguma
coisa. Como depois de uma hora ainda não haviam retornado, pensou-se que
tivessem caído nas mãos de sentinelas e detidos. Nossa viagem prosseguiu sem eles
e, após um curto trecho, chegamos a uma pequena estação, onde desembarcamos e
tivemos de marchar por uma hora.
O caminho passava por um campo de beterrabas já colhidas, numa terra
totalmente amolecida. Aqui e ali encontrou-se uma ou outra beterraba, e
conseguimos, assim, ração adicional. De repente, chegamos diante de um grande
rio, o Wolchow, que se dividia em dois braços, possuindo uma ilha no meio, com um
pequeno campo. Este campo nos foi destinado, por estarmos em "convalescença".
Éramos esperados, já que, chegados à margem do rio um bote saiu da ilha e
veio para transportar-nos aos poucos. Doze homens faziam a viagem de cada vez e
assim, depois de horas, o prisioneiro convertido em barqueiro tinha-nos levado a
todos para a ilha.
Nenhum dos guardas do campo ficou preocupado com o fato de terem faltado
três prisioneiros, pois tinham como certo que viriam no próximo trem, às seis horas,
o que realmente aconteceu.
Este campo fora um claustro, em outros tempos, e durante o sítio de
Leningrado nossas tropas o transformaram em hospital de campanha. Os russos
disseram que debaixo de um prédio totalmente arrasado por um bombardeio de
suas forças, mas não demolido, estavam sepultados todos os feridos alemães, em
suas camas.
O alojamento que nos destinaram encontrava-se no primeiro andar. Debaixo
dele a cozinha, a administração e uma grande sala de reunião. Num prédio ao lado,
mais alojamentos para os prisioneiros. Noutro edifício estava o hospital, um anexo
da administração com depósitos de roupas, o comando, e outras dependências. Um
pouco afastado havia um prédio para lavanderia, banheiros e sala de desinfecção.
Em outro havia as oficinas dos artesãos e também uma cavalariça, ocupada somente
no inverno quando o rio congelado possibilitava o tráfego.
Passamos nesse campo o inverno todo e não precisávamos trabalhar todos os
dias. De manhã cedo, na hora da chamada e da contagem dos prisioneiros, cada
grupo de um alojamento escolhia os descascadores de batatas e transportadores de
alimentos - que os apanhavam no armazém do outro lado do rio em um bote - e
outras pessoas para pequenos trabalhos no campo. Para essas tarefas havia sempre
dois grupos, um para a manhã e outro para a tarde.
Depois do total congelamento do rio, que no auge do inverno tinha sempre
uma camada de gelo de mais de um metro de espessura, o tráfego passava a ser
feito totalmente no leito congelado. Trenós puxados a cavalos, caminhões,
esquiadores, e pedestres, todos usavam o rio.
O polegar de minha mão direita inflamara tanto que nem descascar batatas
eu podia. Diariamente eu ia pela manhã e à noite à enfermaria.
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Um prisioneiro enfermeiro comportava-se como se fosse mais que um médico russo.
Cada dia passava no ferimento uma pomada preta, e nada mais. Sequer me deixava
falar com o médico. Com o tempo as dores tornaram-se insuportáveis, o dedo
brilhando como uma bola de árvore de Natal. Um dia, quando o enfermeiro quis
tratar-me como de hábito, disse-lhe umas verdades em voz bem alta, sem saber que
o médico russo e o intérprete estavam na sala contígua. O médico mandou
imediatamente perguntar pelo intérprete o que estava acontecendo e mandaramme logo entrar em sua sala. Assim que examinou o dedo, chamou o enfermeiro e
disse-lhe que se agisse assim mais uma vez por conta própria, e acontecesse uma
coisa daquelas seria destituído de sua função. Em seguida, abriu um corte na área
inflamada e incumbiu um médico alemão do resto do tratamento. Nunca mais o
enfermeiro tratou-me mal.
Do outro lado do rio havia um kolkhoze, cooperativa agrícola comunal. Um
grupo constante de prisioneiros ficava ali, na maioria formado de agricultores.
Somente os prisioneiros destinados a ajudar os primeiros voltavam todas as noites
para o campo. O trabalho principal deles era o tratamento de bovinos e suínos. Gado
e porcos ficavam num estábulo e os tratadores tinham trabalho de sobra. Os cereais
eram estocados ao ar livre, pois não havia celeiros. No outono, terminados os
trabalhos no campo, eram debulhados lá ao ar livre com uma grande debulhadora. A
palha era também guardada em campo aberto, ao passo que o cereal era
armazenado em grandes silos. Estes igualmente serviam como depósito de rações
para os animais.
Devido aos muitos trabalhos no kolkhoze, do qual não davam conta os civis e
prisioneiros ali permanentemente lotados, mais prisioneiros iam diariamente da ilha
para lá. Embora trabalhassem o dia inteiro e não a metade, iam todos com prazer,
pois havia um almoço especialmente forte para todos, isto é, a mesma refeição
destinada aos russos.
Havia ali grandes tortas de farelo de girassol. Estas tortas, duríssimas, eram
amolecidas todos os dias em grandes cubas para alimentar as vacas leiteiras como
ração de reforço. Enchíamos os bolsos diariamente com pedaços dessas tortas, para
reforçar a comida do campo. Com dificuldade mordiscávamos as tortas, até que se
desprendesse um pedaço para ser mastigado aos poucos. Eram somente restos,
principalmente cascas e alguma semente oleaginosa, mas isso satisfazia, com o
tempo, a fome constante.
Um dia, mandaram que um grupo cortasse varas de salgueiro para outro grupo
fazer cestas de transporte de batatas. Estas varas existiam na beira dos afluentes do
rio, cheios de neve e gelo. Era necessário atravessar o rio congelado para se chegar
aos ribeiros, vencendo a alta neve. Os guardas não nos acompanhavam, quase não
ligavam para nós, ali. Tinham seus alojamentos separados e mesmo a guarda da
entrada do
110
campo era confiada a prisioneiros.
Como estávamos entregues a nós mesmos, esforçamo-nos por algum tempo
para cortar a quantidade de varas encomendadas e levá-las ao campo. E, dado que
havia outro tipo de varas ali, muito semelhante aos salgueiros, acabamos por
completar o número com elas, embora não servissem ao fabrico dos cestos.
Para nós era uma quebra de rotina correr livres, sem os guardas a nos
vigiarem, e embora fizesse muito frio, desta vez ele nem nos incomodava. Avistamos
aves e lebres brancas. Devido a seu pelo branco que as confundia com a neve, só
eram descobertas quando estávamos bem próximo delas, quando então fugiam
velozmente.
Nos invernos mais severo ouvíamos muito o uivar de lobos, mas quase
nenhum de nós vira um deles. Nas cercanias do kolkhoze de há muito havia um lobo
solitário e o pessoal se esforçava para matá-lo. Embora estivessem armados, os
russos não o conseguiram, mas os prisioneiros numa noite o apanharam. Os guardas
do estábulo sentiram que ele se encontrava nas proximidades. Cada entrada do
estábulo tinha uma porta externa e uma interna, servindo de guarda-vento. Numa
destas portas amarraram uma corda forte, deixando a porta um pouco aberta. Uma
ponta de corda foi passada por um buraco na porta interna, ficando segura por um
homem, colocado dentro do estábulo. Alguns se armaram de pedaços de pau,
escondendo-se do lado de fora, à espera. O lobo, deixando-se enganar, entrou, com
o que a porta foi rapidamente fechada. Quando se abriu uma fresta, logo ele enfiou
a cabeça, que foi imprensada. Foi morto a pauladas.
No campo havia muitos oficiais alemães prisioneiros, ocupando alojamento
especial. Eram pessoas idosas, nenhum deles com menos de quarenta anos. O mais
velho era um coronel de sessenta e cinco anos que, devido ao reumatismo, era
obrigado a andar de bengala. Esses oficiais tinham comida melhor que os
prisioneiros de graduação inferior. Até recebiam manteiga ou margarina - vinte
gramas por dia – o que somente nos davam em caso de total distrofia em segundo
ou terceiro grau, na base de dez gramas por dia para a preparação da comida,
enquanto os oficiais a recebiam in natura podendo degustá-Ia diariamente pelo
menos uma vez, com pão.
Entre eles, havia vários profissionais de nível superior. Professores de
universidade, um diretor de escola de uma instituição para surdos-mudos,
engenheiros master de grandes empresas, dentre outros. Esses homens
conseguiram do comando russo e do comissário político permissão para ministrarem
por dia, duas horas de aula para que a mente não se embrutecesse de todo pela
apatia dos longos anos de prisão.
O tema devia ser previamente comunicado aos russos para aprovação.
Preleções não comunicadas ou não aprovadas somente se
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faziam depois da contagem noturna, pois que depois dessa contagem ficávamos
livres dos sentinelas, que vinham apenas uma vez, às dez horas, para ver se todos
estavam nos estrados e se não havia fogo no fogão.
Quase todos os prisioneiros aproveitaram aquela oportunidade para
frequentar as palestras. Os médicos usaram das oportunidades, em suas preleções,
para esclarecer e orientar os mais jovens para a vida quando voltassem à Pátria, se
tal ocorresse. Não havia, é verdade, ninguém com menos de vinte anos, pois quatro
já se tinham passado desde o fim da guerra. Em vista de muitos deles terem
somente dezesseis anos quando aprisionados, conheciam mais da vida de
prisioneiros do que do viver propriamente dito. Tais preleções foram, pois, dirigidas
para ajudá-los no retorno à vida civil.
Todos os prisioneiros que vieram a este campo portando doenças mais graves,
como a tuberculose, foram logo enviados a outros. Havia muitos que sofriam de
tumores e erisipelas, sendo tratados na enfermaria do campo.
Um vizinho do catre sofreu de um furúnculo na nuca que lhe doía
horrivelmente em vista da inflamação provocada pelo atrito constante do colarinho
no local. Nos primeiros dias de tratamento ambulatorial colocaram pomada e um
emplastro. Alguns dias depois teve de ficar na enfermaria, lá permanecendo por
mais três meses, até deixarmos o campo. Ainda com o pescoço envolto em ataduras,
voltou à Pátria.
Este homem de nome Kabisch, fora agricultor, tendo sido inspetor de grandes
propriedades rurais e, posteriormente, proprietário perto de Leipzig. Antes da
guerra figurara como chefe distrital do Partido, para os camponeses, fato que não
escondera aos russos. Quando foi para a enfermaria disse-me que em breve
estaríamos juntos de novo. Ele tinha razão, já que, oito dias mais tarde eu também
fui para lá, devido a eczemas. Ficamos de novo em camas próximas.
Nós, doentes, quase sempre passávamos as noites acordados, pois ficávamos
de cama também durante o dia. Assim, cada um passou a contar ao outro sua vida.
Uns tinham mais e outros menos coisas a contar e, com o passar do tempo, cada um
soube um pouco da vida de todos. O primeiro a narrar foi um professor de geologia,
Dr. Stein, que mais tarde fez uma palestra na sala de reunião despertando grande
interesse. O segundo fui eu, que contei da minha vida e vivência adquirida durante
os dez anos passados no Brasil. Isso durou algumas noites, sendo para todos algo
diferente.
Foi, então, a vez do vizinho à esquerda, que contou de sua vida como inspetor
e depois como proprietário rural, o que também despertou muito interesse. Muitos
outros também narraram suas histórias, não se estendendo muito, seja porque
pouco havia a dizer, ou porque não se sentiam à vontade. Além disso,
combináramos antes que
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não se contaria nada a respeito da guerra.
O Dr. Stein ficou curado e recebeu alta, entrando outro prisioneiro na enfermaria em
seu lugar.
Uma noite, quando todas as conversas cessaram, pois se aguardava para
qualquer momento o sentinela, chegou o estafeta da guarda gritando a Kabisch que
fosse falar com o comissário político. Todos ficaram imediatamente alertas.
Esperava-se que outros fossem chamados mais tarde.
Os enfermos ali eram obrigados a ficar vestidos apenas com camisa e ceroula,
seja durante o dia ou à noite. As roupas ficavam no quarto de roupas do hospital,
sob a guarda de um enfermeiro. Este foi acordado, portanto, para que o homem
pudesse se vestir e se apresentar ao comissário político. O estafeta já voltara a seu
posto, quando o enfermeiro trouxe a roupa, que mais parecia uma massa de gelo.
Kabisch pegou-as, levando peça por peça junto ao fogão para aquecê-Ias. Lá fora
soprava uma tremenda tempestade de neve e fazia muito frio. Pela segunda vez,
chegou o estafeta a fim de apressar o companheiro, que não se incomodou e,
calmamente, aqueceu sua vestimenta, argumentando com ele que estava enfermo e
não podia, devido à febre, vestir roupas frias e logo correr para fora. Assim que
estivesse pronto iria sozinho até à guarda.
Após ter-se aprontado para ir, veio de novo o estafeta e juntos foram falar com o
comissário, cuja sala de inquirição se encontrava fora da cerca do campo. Chegando
lá, viu que muitos prisioneiros esperavam em fila, o que significava ter de esperar
durante horas a sua vez. Decidiu-se, voltou à guarda avisando que o chamassem
quando o penúltimo homem tivesse voltado da inquirição, já que como estava
doente não poderia ficar esperando longo tempo até que chegasse a sua vez. Voltou
à enfermaria e postou-se junto ao fogão, vestido, aguardando o estafeta, que
apareceu a sua procura depois de longo tempo.
Durante todo esse tempo, nenhum de nós dormiu aguardando a volta de
Kabisch para saber o resultado da inquirição. Não nos importava dormir muito à
noite, já que tínhamos o dia inteiro para isso. Até a comida nos era levada até a
cama. Levantar-nos, apenas o fazíamos para lavar-nos e ir ao banheiro.
Após longos minutos nosso camarada voltou e foi crivado de perguntas.
Contou-nos, então, como foi que se saiu. Agindo como mandava o serviço militar
alemão, bateu à porta do oficial, abriu-a um pouco, pediu licença para entrar e
entrou. Com a saudação militar e em posição, ficou junto à porta. Não ouvindo
resposta, foi-se em direção à mesa, sentando-se numa cadeira. Ver, ele não
conseguiu quase nada, porquanto poderosos holofotes estavam dirigidos para ele,
enquanto o oficial político, outro oficial e um intérprete sentavam-se atrás. Assim
que ele se assentou, o oficial perguntou-lhe se estava medo. Sua resposta:
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"Se eu tivesse medo, não teria passado por cinco anos de guerra. Naquele tempo vi
muitas balas e granadas fazerem estragos à minha volta e não sei por que agora
deveria ter medo, uma vez que a guerra terminou. Não conheço a minha culpa, a
não ser a de ter cumprido ordens, mas isto é dever de todos os soldados de todas as
nações. Se me atribuem crimes fora desse dever, não tenho consciência deles. Mas,
se eu o fiz, não posso me assustar com uma punição a bala".
Devido a seu comportamento e respostas, o oficial político perdeu a fala,
fazendo apenas algumas perguntas de menor importância e logo liberando o
Kabisch.
Quem fosse com medo a um interrogatório e por acaso entrasse em
contradição, ficava horas sendo inquirido. Alguns foram tão confundidos que, no
fim, nem mais sabiam o que tinham dito. Havia um certo temor pela presença do
oficial político em interrogatórios. Estes, além disso, se realizavam à noite, mesmo
quando os prisioneiros tinham trabalhado muito o dia todo, o que absolutamente
não era levado em conta pelos russos.
Quando recebi alta do hospital, Kabisch ainda permaneceu ali, só saindo para
voltar à Alemanha, com o pescoço ainda doente.
O Dr. Stein também foi repatriado. Antes de ir, falara aos seus colegas oficiais a
respeito de minhas narrações na enfermaria, e eles me pediram para repeti-las em
seu alojamento. Durante oito noites assim o fiz, como entretenimento e mudança do
cotidiano. Agradeceram-me bastante e até me deram tabaco, suficiente para mim e
meus companheiros por alguns meses.
Assim passamos o inverno, sentindo-nos em verdade quase como se
estivéssemos num campo de recreação. Contribuía para nosso crescente bem-estar
a promessa de que muito em breve estaríamos a caminho da Pátria, no que todos
acreditavam piamente.
De fato, um dia saímos da ilha e embarcamos no trem que deveria levar a
gente de volta. Depois de algum tempo de viagem desembarcaram-nos num outro
campo. A razão disso foi que outros prisioneiros também seriam repatriados dali.
Haveria uma certa demora, disseram-nos. Enquanto aguardávamos fomos postos a
trabalhar, mesmo porque estávamos bem recuperados depois do tratamento no
hospital da ilha. Onde era esse campo não sabíamos, pois estávamos com a mente
embotada e bastante desinteressados em saber os nomes dos lugares por onde
passávamos. O que queríamos mesmo era ir embora. É possível que o campo
estivesse próximo da cidadezinha chamada Svir.
Havia ali uma fábrica de papel, bastante menor do que aquela na qual
estivéramos anteriormente. Nos primeiros dias aproveitaram a nós, que éramos
novatos, para serviços secundários fora da fábrica. Suas caldeiras utilizavam como
combustível, além de madeira, a turfa, e durante dias embarcamos esta numa via
férrea funicular para ser transportada para a fábrica. Em seguida descarregamos um
armazém de farinha que sofrera danos com uma enchente, estragando-se os
estoques mais próximos do chão.
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Depois, pusemos em ordem uma padaria onde, por sinal, ganhamos bom
complemento alimentar. Recebemos um pão inteiro para duas pessoas, pão este
que nos deram por estar defeituoso. Disseram-nos para comê-lo logo, ou seríamos
apanhados pelos inspetores. Se eles vissem puniriam o pessoal da padaria. Tão
quente como saiu do forno, o engolimos. Aplacamos a fome perene, mas na noite
seguinte tivemos dor de barriga; esta não nos incomodou muito, uma vez que
tínhamos satisfeito a fome.
Nesse entretempo, os administradores do campo compuseram a lista dos que
deviam retornar à Pátria. Meu nome estava na lista. Uma noite, quando retornamos
ao campo depois do trabalho, encontramos o pessoal reunido e pronto para a
viagem. Aí, os russos nos informaram que ainda não seguiríamos viagem. Além do
mais, proibiram-nos qualquer contato com aqueles companheiros.
Ficamos grandemente desiludidos por causa do descumprimento, embora
parcial, da promessa dos russos, e para os que partiam somente nos foi possível
gritar: "Saudações à Pátria!”, ao que eles responderam: "Adeus camaradas, revernos-emos na Pátria". Pela segunda vez eu estivera na lista e não viajara. Não tinha a
menor idéia das razões encontradas pelos russos para continuarem a me manter
prisioneiro. Teriam eles me enquadrado no conceito de "criminoso de guerra"?
Tendo partido o trem, mandaram-nos trabalhar na fábrica de papel.
Inicialmente, limpamos a área e pusemos algumas coisas em ordem, pois a neve
derretida transformara todo o terreno da fábrica num lodaçal. Os caminhos entre os
prédios precisaram ter a lama retirada para os carros poderem andar.
Organizamos também um depósito de lenha, empilhando-a até uma altura de
dois metros para criar mais espaço de armazenamento.
Um mestre de obras russo, que fora major, procurou pessoas para organizar um
grupo de doze homens subordinados a ele. Sua mão direita tinha sido perfurada
durante a guerra, impedindo-o de segurar bem os objetos. Oferecemo-nos, seis
antigos companheiros, e fomos incumbidos de escolher os outros seis. O mestre nos
inspecionou e distribuiu as tarefas, e não satisfeito com o chefe alemão do grupo,
escolhido pelo comando, transformou-me em responsável pelo grupo, no lugar dele.
A madeira, em toros, chegava às proximidades da fábrica por meio de um
canal. Dali os toros de um metro, usados como lenha, eram puxados por meio de
uma transmissão por correntes, num declive e, sobre uma plataforma, carregados
em vagonetes de dois metros cúbicos de capacidade. Uma pequena locomotiva a
vapor Henschel, reabastecida de vapor a cada duas horas, rebocava até vinte e
quatro desses vagões à praça de estocagem. Havia ali vários grupos de trilhos,
necessários para o desvio do trem na direção pretendida, para possibilitar o racional
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aproveitamento do espaço. Trabalhávamos ali.
O regulamento mandava primeiro retirar a madeira dos vagões, devolvê-los, e,
somente então, empilhar os toros nos lugares. Simplificamos o trabalho colocando
trilhos - durante os intervalos entre as viagens do trem - tão próximos do local de
empilhamento, que o trabalho de descarregar e empilhar ficou um só. Conseguimos
também ganchos de ferro que facilitaram a arrumação dos toros em pilhas de até
dois metros de altura com um mínimo de esforço.
No terreno da fábrica havia um refeitório de prisioneiros que tinha um grande
quadro negro ocupando todo o lado da frente. Nele, em língua e alfabeto russos,
estava consignada a meta de trabalho para todas as tarefas na praça de madeira e
no terreno da fábrica. Exceto eu, nenhum prisioneiro entendia o que ali estava
escrito, e justamente essa tabela oferecia muitas possibilidades de realizar
facilmente o trabalho exigido, e até mais. O principal trabalho diário era descarregar
os vagões e empilhar a madeira. Muitas vezes ocorriam problemas com as máquinas
acarretando a interrupção do fluxo de chegada da madeira à praça de empilhamento
e assim, não tínhamos trabalho. Para evitar isso, o mestre de obras detalhava-me a
cada manhã o que deveríamos fazer além do trabalho rotineiro. Por exemplo,
tínhamos de empilhar a madeira utilizada para lenha separadamente, em local
próprio, embora, de vez em quando, os montes se desmantelassem.
Todas as tardes, lá pelas quatro horas, o russo que desaparecia
sistematicamente durante o dia, três dias após a constituição do nosso grupo chegava ao local onde trabalhávamos e eu o informava da produção, mostrando o
serviço feito, aqui e ali, e ele a tudo anotava,fazendo relatórios do andamento dos
trabalhos. Para medir quantos metros de lenha tínhamos empilhado, ele trazia uma
escala de dois metros, que eu segurava na ponta de trás e ele na frente, assinalando
o local onde a medição deveria continuar. Se tínhamos arrumado pilhas de trinta
metros corridos durante o dia, eu conseguia que ele medisse sempre de trinta e oito
a quarenta metros, pois enquanto ele esperava na frente para fazer a marca eu
retrocedia a escala, ocasionando em verdade redução na medida com um ganho de
até meio metro. Para nós era importante produzir acima dos padrões normais, a
qualquer custo, pois os russos tinham-nos prometido que quanto mais
produzíssemos, mais rapidamente iríamos embora.
Os toros a serem transformados em papel, com dimensões de quatro a seis
metros, eram levados do canal por correntes até o andar superior da fábrica. Como
vinham diretamente da água, a madeira muito molhada frequentemente
escorregava, caindo durante o transporte, embaraçando-se nas engrenagens ou
deslizando declive abaixo. Quando nosso trabalho se interrompia, seja por algum
desarranjo nas máquinas, seja por falta de madeira, devíamos aproveitar esse tempo
também para retirar os toros engatados e empilhá-ios ao lado.
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Fazíamos esse trabalho com prazer, se não havia outra coisa, denominando-o
de "juntar kopeks”, porque cada toro valia um número de pontos que convertidos
em dinheiro, os russos davam-lhes o valor de vinte e dois e vinte e três kopeks. Os
toros empilhados no dia anterior não deveriam ser juntados aos do dia, para que
pudessem medir o trabalho de cada dia. Mas, como a madeira juntada no dia
anterior já estava medida, porém ainda não transportada, melhorávamos nossa
produção adicionando alguns toros do dia anterior.
O mestre de obras ficou tão confiante, com o passar do tempo, que aparecia
apenas à tarde para receber de minhas mãos as anotações sobre as tarefas
cumpridas. Por causa disso, fomos o único grupo a apresentar já na primeira semana
uma média de produção de cento e sessenta e cinco por cento por dia, quando a
média para os meses de verão era somente cento e doze por cento. Não levou muito
tempo e adquirimos a fama de melhor grupo de trabalho do campo, recebendo o
apelido de "Grupo Hennicke".
Por que "Grupo Hennicke"? Todo sistema russo que adotava normas préestabelecidas de execução ou metas de produção tinha a denominação de "Sistema
Stakhanov". Diziam que esse homem fora um mineiro do Ural durante o tempo da
revolução. Seu entusiasmo pelo trabalho, buscando sempre se superar na
quantidade produzida, serviu de exemplo para estabelecer metas de produção. Na
parte da Alemanha ocupada pelos russos encontrou-se um homem que também
serviu de modelo por causa de sua produção, e este homem se chamava Adolf
Hennicke. Por isso o nosso grupo recebeu aquele apelido.
Com o tempo elevamos nossa produção diária para uma média de trezentos e
cinquenta por cento, chegando a ter dificuldades com outros grupos, que não
entendiam como era possível alcançar tal produção. Demos-lhes explicações para
ajudá-los a obter o que para nós era o principal, naquilo tudo: a volta à Pátria.
Começou o tempo da chuva, uma chuva persistente de seis semanas
continuadas, variando apenas de intensidade. Na praça de empilhamento da
madeira ficávamos com água até os tornozelos e não podíamos abrigar-nos como
era possível a outros grupos, porque tínhamos de ficar sempre à disposição para não
quebrar o ritmo do trabalho.
Nossos sapatos não resistiram ao esforço e, aos poucos, algumas partes foramse dissolvendo. Falamos com nosso mestre de obras russo e, devido a sua
interferência, recebemos logo sapatos adequados para o trabalho, novos e bons. Os
casacos forrados com algodão, que deviam proteger-nos da chuva, estavam à noite
tão ensopados e pesados que era impossível secá-los durante a noite. Deram-nos, a
cada um, outro casaco, o que tornou possível dispor de um casaco enxuto a cada
manhã. De noite entregávamos o casaco molhado na câmara secadora do campo,
recebendo o enxuto em troca.
No início de julho de 1949 reuniram um pequeno grupo dos melhores
trabalhadores e os enviaram para Leningrado, com a
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informação de que iriam ser repatriados. De nosso grupo dois foram selecionados,
exatamente aqueles que menos contavam ser soltos, já que um fora da Polícia e o
outro da SA. Felicíssimos eles se foram com as melhores esperanças a caminho da
Pátria, sem saber o que os esperava na Zona Oriental da Alemanha, na recém-criada
República Democrática Alemã (RDA).
Para nós que ficamos, isso era naturalmente um incentivo. Às vezes estávamos
tão exaustos, à noite, que a marcha de volta ao campo era uma tortura, mas
aguentávamos, lembrando-nos do nosso lema: "agora ou nunca". Em substituição
aos dois do nosso grupo que se foram, deixaram-nos escolher os novos
companheiros. Um antigo capitão de Hamburgo, que perdera quase tudo num
ataque aéreo, inclusive os filhos, restando-lhe somente a esposa pediu para ser
admitido. Satisfizemos sua vontade, encontrando nele realmente um camarada. O
segundo era de há muito nosso conhecido.
Cada prisioneiro de guerra que no decorrer do mês sempre cumprisse sua
meta pré-fixada, satisfizera sua obrigação para com o Estado Russo, o que significava
ter coberto as despesas com alojamento, alimentação, roupa e guarda. Para o
excedente de produção era-nos creditado o valor correspondente em rublos, que
deveria ser pago mais tarde, seis semanas após o crédito. Aos prisioneiros de guerra
não podiam ser pagos mais que noventa e seis rublos por mês, sendo o excedente
revertido em favor da direção do campo.
Depois de um mês cada um de nós tinha ganho pouco mais de cento e
sessenta rublos pelo trabalho excedente, e já calculávamos mentalmente quais
coisas poderíamos adquirir na cantina do campo, recém-instalada. Comprar alguma
coisa haveria de ser algo bem diferente, depois de tantos anos sem esse hábito.
Passado o segundo mês, faltavam somente quinze dias para recebermos nossos
primeiros rublos. Neste campo, porém, não vimos a cor do dinheiro, pois tudo veio
de modo diferente.
Em junho de 1949 recebi carta de minha mulher, que a escrevera um mês
antes, pedindo meu consentimento para que ela, com as três filhas, viajassem logo
para o Brasil aproveitando um convite de meu sogro, que Ihes mandaria as
passagens de navio. A notícia no momento não era muito boa, pois eu contava ficar
livre brevemente e voltar à companhia delas, De outro lado, porém, estava contente
em saber que elas sairiam do aperto da Zona Oriental, onde residiam, embora nossa
reunião ficasse adiada para um futuro incerto.
Em 20 de julho de 1949 o estafeta da administração do campo estava junto ao
portão, por ocasião de nossa volta do trabalho, e leu uma lista de pessoas que
deveriam apresentar-se imediatamente no Comando. Todos se perguntavam: "O
que teria acontecido?"
Mal chegáramos a nossos alojamentos e os que compunham a lista já vinham
de volta, distribuindo suas fichas de comida aos melhores amigos, pois, de pura
alegria, não queriam comer porquanto iam para casa. Imediatamente deveriam ir ao
depósito apanhar roupa nova,
118
barbear-se e cortar os cabelos para não terem aspecto de vagabundos quando
chegassem a Leningrado.
Entre eles havia um da Renânia, companheiro com quem estive quatro anos
junto em todos os campos. Um dia quis se desesperar e eu o encorajei, dizendo que
não se deixasse vencer perto do fim, pois chegaria o dia em que nós dois iríamos ser
soltos juntos.. Nesta noite ele me deu sua ficha de comida, alegre e triste ao mesmo
tempo, porquanto não seguiríamos juntos. Apesar disso, respondi-lhe: "Vamos, sim,
juntos para casa". Ele respondeu, sacudindo a cabeça: "Mas como isto ainda pode
ser possível? Milagres não acontecem mais". Depois de ter arrumado suas coisas
despedimo-nos, visto que, como de costume, mudaram-se os que iriam viajar para
um alojamento separado, a fim de passarem a noite.
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DE VOLTA À LIBERDADE
Na manhã seguinte, ao sairmos para o trabalho, aqueles companheiros estavam
perto do portão, alegres e com roupa nova, aguardando a ordem de marchar para o
terminal ferroviário. Como de costume, trocamos os tradicionais gritos de despedida
assim que nos distanciamos deles.
Neste dia o trabalho não apeteceu a ninguém e até então nunca cumpríramos
tão mal nossa programação. Finalmente veio o tão desejado término do dia e assim
marchamos de volta ao campo.
No portão fomos surpreendidos com a excelente notícia de que mais quatro
homens do nosso grupo foram chamados, além dos quatro de ontem. Desta vez eu
estava entre os que podiam se preparar para a volta. Restavam agora, do nosso
grupo original, apenas dois.
Quinze dias antes, tinha havido interrogatório no campo, com o oficial político
inquirindo muitos companheiros, a maioria dos quais foram incluídos na viagem de
repatriamento.
Percebi, no meu inquérito, a razão encontrada para não me libertarem a mais
tempo: companheiros meus teriam mentido aos russos, afirmando-lhes que eu fora
Sturmführer da SA, ou seja, dirigente de tropa da tristemente famosa
Sturmabteilung (Tropas de Assalto) organização paramilitar cujo poder fora
esvaziado na Alemanha em 1935.
Este oficial político não necessitava de intérprete porque falava um alemão
irrepreensível e, contrastando com todos os oficiais políticos conhecidos, era
também muito amável.
A inquirição transcorreu assim:
ELE: Você foi Sturmführer da SA?
EU: Nunca, Senhor Tenente.
(GRITANDO) – NÃO MINTA, SEUS PRÓPRIOS CAMARADAS O AFIRMARAM.
– Fui membro do Partido, porém, nunca pertenci à SA.
– Cada membro do Partido não era obrigado a pertencer à SA?
– Permite, Senhor Tenente, uma retificação?
– Pois não.
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– Exigia-se de cada membro da SA que pertencesse ao Partido, mas não se podia
exigir que cada membro do Partido pertencesse à SA. Ao Partido podiam se filiar
mulheres, velhos e jovens de ambos os sexos acima de dezoito anos, e mesmo
aleijados. Dessas pessoas não se podia exigir que servissem na SA, que era uma
organização por assim dizer, paramilitar.
– Está bem, está esclarecido.
Imediatamente entregou-me duas folhas de papel para escrever meu curriculum
vitae político e trazer-lho dentro de, no máximo, dez minutos. Repetiu bastante que,
se eu não o fizesse dentro de dez minutos nada mais se poderia fazer. Marcou o
tempo no relógio, indicando a hora, pois andávamos sem relógio, sabendo da hora
somente pela sirena do campo e dos locais de trabalho.
Nunca atravessei a praça do campo tão apressadamente como então. Saí da
sala do oficial, peguei os tamancos na mão e corri como um louco para não perder o
prazo. No alojamento todos queriam, evidentemente, saber o que acontecera, mas
pedi-lhes que me deixassem em paz. Escrevi rapidamente o currículo e a declaração
com força de juramento e voltei correndo à sala do oficial político. Ainda sem fôlego,
bati na porta, abri-a um pouco e gritei:
– "Permissão para entrar?"
– “Entre”, foi a resposta.
Fiz a saudação militar e perguntei: – "Posso entregar ao Sr. Tenente o que escrevi?"
E ele recebeu o papel e rapidamente o leu. Quando disse: "está bem, pode ir”, tiroume um peso do coração. "Será", pensei, "que isto é o fim de tanto tempo de
prisão?”
Nós, os felizes escolhidos para o repatriamento, ficamos na manhã seguinte
perto do portão, esperando a ordem de seguir para o trem. Passaram por nós os
outros prisioneiros que iam trabalhar e se repetiram as costumeiras saudações.
Logo chegaram os guardas para nos acompanharem, e seguimos. O caminho
até a estação era curto. Fizemos a viagem em vagões-plataforma até a próxima
estação, onde havia ligação para Leningrado. Naquela estação a demora foi curta.
No novo trem havia para nós um carro especial, mas devido à superlotação muitos
civis entraram ali. Tal não era permitido, mas a sentinela e o pessoal do trem não se
incomodaram com isso, devido a ser uma viagem de curta duração.
Pouco depois do meio-dia chegamos a Leningrado. Ali ficamos esperando
durante horas, pois, para não perturbar o trânsito, era proibida a marcha de colunas
de prisioneiros pela cidade. Os caminhões solicitados para nos transportar só
chegaram ao fim do entardecer. Nem podíamos entrar no edifício nem na praça da
estação, e assim as horas de espera tornaram-se uma eternidade, mesmo porque
não recebêramos comida durante todo o dia.
Chegados os caminhões, tivemos de sentar em fila de cinco na carroceria, até
que não houvesse lugar desocupado. Dobramos os joelhos, colocando os braços em
volta deles e lá fomos para o campo,
123
passando sobre a ponte do rio Neva.
Na nossa chegada ao campo, todos os prisioneiros dali estavam no pátio
esperando-nos, para ver se encontravam conhecidos. Ouvi, de repente, chamar meu
nome: era meu velho companheiro que viajara um dia antes, gritando de alegria
porque estávamos juntos de novo.
O edifício era um velho quartel de tijolos holandeses. Ficamos oito num
alojamento, admirados por ver quanto este se parecia com os existentes num
quartel alemão. Havia beliches metálicos com telas de arame para sustentação dos
colchões, que eram bons. Até cobertor de lã havia para cada um de nós, não
utilizados por ser alto verão. Para nossos padrões a comida era de primeira. Era
melhor e mais farta, para melhorar nosso aspecto. Não havia obrigação de trabalhar,
mas, em contrapartida durante duas horas por dia recebíamos doutrinação política,
para que não voltássemos à Pátria sem conhecer e estarmos esclarecidos sobre as
benesses da doutrina comunista. Muitas vezes o tempo era ultrapassado, pois o
assunto era da máxima importância para o doutrinador russo.
Um kolkhoze novo devia ser instalado perto de Leningrado por um grupo de
prisioneiros alemães que somente seria repatriado depois de concluído o trabalho.
Todos os prisioneiros do campo combinaram então ajudar os camaradas,
trabalhando um grupo a cada três dias, alternados, voluntariamente. Dois
caminhões passavam todos os dias através de Leningrado, com prisioneiros para os
trabalhos no kolkhoze. Nessas viagens, vimos ainda as ruínas da luta por Leningrado.
Tanques russos e alemães destruídos, aviões abatidos, de ambos os adversários,
obstáculos antitanques formados de trilhos e blocos de concreto. Ao longe ainda se
via a fábrica russa de tanques, objeto de luta encarniçada. Ao voltar, passávamos na
ponte sobre o Neva onde se via, à esquerda, em frente a um castelo, o conhecido
cruzador "Aurora", decisivo para a Revolução de 1917.
Após termos sido doutrinados até à exaustão sobre o comunismo, começaram
os preparativos para a repatriação. Certa manhã recebemos ordem de formar no
pátio. Uma comissão de oficiais russos apareceu e informou-nos que agora seríamos
repatriados, depois de termos ajudado durante anos a reconstruir o que fora
destruído na guerra. No fim, um major disse que havia dinheiro para alguns que não
fora recebido no campo anterior. Os próprios prisioneiros deveriam verificar ao fim
da chamada quem tinha dinheiro a receber. Sabíamos que esse dinheiro era o
pagamento pela produção acima dos níveis programados, pelo menos para alguns
de nós. Ao mesmo tempo, ele perguntou-nos se alguém ainda tinha alguma
exigência a fazer ao governo russo. Quem as tivesse deveria apresentá-las para
serem examinadas.
Realmente alguns chegaram a avançar, querendo exigir atrasados. Mas,
quando os outros Ihes perguntaram se queriam trocar sua liberdade por eventuais
noventa e seis rublos, quase todos voltaram atrás. Alguns mostraram notas
recebidas dos russos por ocasião da captura, como
124
comprovante da apreensão de relógios, e outras coisas. Ao vê-Ias, o major lhes disse
que deveriam recorrer ao Ministério da Guerra. Eles então retiraram suas exigências
e as rasgaram.
Tendo recebido nossos rublos, fizemos compras na cantina para dispormos de
melhor comida durante a viagem. Pão, margarina, queijo e cigarros foram
comprados até que os rublos acabassem, já que não se podia levar dinheiro para
além da estação fronteiriça russa de Brest-Litowsk.
Fomos levados aos poucos, de caminhão, pela tarde desse dia até a estação.
Como esperávamos, o transporte de volta se fazia por trem de carga, daí os
caminhões nos terem levado à estação de carga de Leningrado, onde o trem já nos
esperava. Todos os vagões tinham citações e faixas com nomes de chefes
comunistas. Meu vagão tinha a inscrição "Max Reimann", do então chefe do Partido
Comunista da Alemanha Ocidental.
Esse trem parecia adequado a seres humanos, embora formado de vagões de
carga, pois havia apenas vinte pessoas em cada vagão. As portas não estavam
trancadas, ao contrário, ficaram escancaradas durante toda a viagem e nas paradas
nas estações. Descer nas estações não podíamos, mas houve paradas fora das
cidades nas quais pudemos descer à vista dos guardas, que viajavam em vagão
separado, muito alegres por poder nos acompanhar na viagem até à Alemanha.
Em Brest-Litowsk o trem parou além da estação, numa plataforma especial,
que tinha de um lado trilhos da bitola larga russa e de outro os de bitola normal da
Europa Central e Ocidental. Ali se encontrava outro trem para continuar a viagem.
Fez-se o transbordo para vagões do mesmo número de identificação, e transferiramse as faixas para eles.
Chegou então a hora de nos revistarem, ou melhor, de fazerem uma inspeção
corporal.
Doze homens, de cada vez, iam para uma pequena ante-sala, despiam-se
totalmente, punham suas coisas debaixo do braço e se dirigiam a uma sala grande,
onde ficavam mesas com os soldados russos incumbidos da fiscalização. Sua
preocupação principal era a de que não passasse além da fronteira nenhuma
anotação ou papel, carta de familiares ou coisa parecida e também, muito
especialmente, dinheiro. Houve fiscais que abriram inclusive solas de sapatos,
quando elas se apresentavam costuradas. Forros de bonés, jaquetas e sobretudos
foram abertos. Cada um mostrava as solas dos pés, para ver se havia ali alguma coisa
colada. Nenhum lugar do corpo deixou de ser examinado por eles.
Tive sorte de me dirigir a uma mesa na qual havia um soldado calmo e amável.
Numa caixa de papelão eu pusera as compras feitas para a viagem e também
cigarros. Ao abrir a caixa tirei logo um maço de cigarros que coloquei de lado, dando
a entender que era para ele. O maço foi de imediato para seu bolso e a caixa não foi
mais revistada. Pegou as coisas uma por uma nas mãos e logo as devolveu, metendo
em seguida as mãos no bolso. Pronto. Terminara minha revista, que durou no
máximo cinco minutos. Outros ficaram cerca de meia hora, alguns
125
com o solado dos sapatos aberto, forro rasgado e estragos na roupa.
Depois de nos vestirmos na pequena sala, acampamos diante do trem, já
pronto. Às cinco da tarde ordenaram que entrássemos nos vagões para a última
inspeção em terra russa. Faltava ainda a locomotiva que nos levaria através do rio
Bug e do território da Polônia à Pátria. Essa locomotiva e também todos os vagões
foram fornecidos pela Alemanha. A máquina havia ido para o lado polonês para
revisão e abastecimento e tinha chegado aqui somente às oito horas.
Por causa disso, tivemos de passar a noite no lado russo, uma vez que os
poloneses fechavam habitualmente a ponte sobre o rio Bug às seis da noite,
reabrindo-a às seis da manhã.
Pontualmente às seis a máquina deu o sinal de partida e começou a andar.
Passada a ponte, pararam do lado polonês para nos comunicar que durante a
viagem através da Polônia ninguém poderia deixar o trem e, se isso acontecesse, as
portas seriam trancadas. Nunca obedecemos com tanto prazer a uma ordem desse
tipo, pois ninguém se sentia com vontade de ter de ficar na Polônia por
desobediência. Paradas ali houve somente para abastecimento de água e carvão, em
lugares quase sempre fora das estações. Parou-se às vezes também à espera de sinal
verde, por se tratar de trem especial.
À noite chegamos a Frankfurt sobre o Oder, já em solo pátrio sob controle
russo. Havia ali um campo nos esperando. Depois do costumeiro banho de chuveiro,
em massa, distribuíram-se os alojamentos já separados conforme as zonas de
destino na Alemanha. Havia barracas com as denominações "Zona Norte, Sul, Oeste,
Berlim e Hamburgo". Aos da Zona Oriental, deram-se logo as passagens até o lugar
de destino e eles puderam continuar a viagem lá mesmo da estação.
Depois de nos indicarem as barracas, formamos para receber cinquenta
marcos cada um, em moeda da Alemanha Oriental, como dinheiro para voltar. Além
disso, deram-nos até três formulários de telegramas e cartões da Cruz Vermelha
quantos necessários, para nos comunicarmos com os familiares. O despacho foi
gratuito. Informaram-nos também que o dinheiro não podia ser levado para o lado
Ocidental, devendo ser gasto até a fronteira.
Com dinheiro na mão, fomos à cantina do campo para, finalmente, depois de
tantos anos, beber outra vez um copo de cerveja e comer algo, pois não mais nos
apetecia a comida de rotina. O dinheiro deveria ser gasto até o dia seguinte.
Neste campo de concentração havia muitos que estavam ali há anos, por
estarem impossibilitados de indicar lugar certo de destino, já que não tinham notícia
de familiares. Quem não tinha para onde ir, ficava simplesmente retido ali, cuidando
do funcionamento do campo. Muitos estavam arrependidos de não terem tido
coragem de indicar qualquer lugar no Oeste.
Em direção à Zona Oeste, partindo às seis da manhã, viajamos para
Heiligenstadt. A cidade fica na fronteira da Zona Leste e, como os russos não
deixavam passar transportes pela fronteira à noite, tivemos de pernoitar ali, numa
grande escola preparada
126
para tanto. Jantamos café com pão.
Na manhã seguinte, domingo, 31 de julho de 1949, ordenaram a formatura às
seis horas, na praça da escola, para marchar rumo à fronteira. Quando estávamos
formados, ficamos pasmos de ver tanta gente com carrinhos de mão, em sua
maioria velhos e crianças. Terminada a contagem e estando tudo pronto para a
marcha, eles se achegaram e nos pediram que colocássemos a bagagem em seus
carrinhos ou a déssemos para carregar, pois seria longa a caminhada até a fronteira.
Porém, que tínhamos como bagagem? Caixa de papelão, um ou outro casaco
forrado de algodão, talvez um velho sobretudo. Aí é que entendemos ter sido a
situação de miséria que lá levou essa gente a nos ajudar, para obter alguma coisa de
comer, pois passavam fome e bem sabíamos o que é fome prolongada por anos e
anos.
Deixaram seus carrinhos e andaram conosco, contando, como lhes era
possível viver ali, naquelas circunstâncias, quatro anos depois de terminada a guerra.
Os dirigentes não tinham a menor consideração com os velhos, uma vez que eles
não faziam trabalho produtivo. Eles sabiam que no Oeste as coisas melhoravam dia a
dia, pois as fronteiras àquela época ainda não estavam hermeticamente fechadas e
havia muitos que de noite levavam outros tantos através delas. Disseram-nos
também que estávamos sendo esperados e que seríamos bem recebidos e tratados
pelos ingleses.
Distribuímos entre aquela gente o que ainda possuíamos de víveres e dinheiro,
ficando somente com parte dos cigarros, que do outro lado da fronteira eram ainda
escassos e caros.
Após uma boa hora de marcha chegamos à barreira fortemente protegida
deste lado pelos russos. A aproximadamente cinquenta metros além da barreira
encontravam-se policiais ocidentais, enfermeiras da Cruz Vermelha, pastores de
todas as confissões religiosas e também muitos civis, para cumprimentar os que
voltavam e fazer-lhes perguntas.
Como o oficial russo em comando não estava, indicaram o acostamento da
estrada como lugar de espera, porquanto era domingo e nesse dia ele não viria
antes das nove. Mais essa.
Finalmente depois das nove chegou o oficial e ordenaram-nos que
formássemos de novo em linhas de cinco para a marcha que haveria de ser a última
que faríamos sob comando militar, pois daí em diante isso não mais viria a ocorrer.
A primeira linha marchou até a barreira e depois, com uma distância de cinco
passos, a segunda linha. A barreira se abriu, e a marcha para a liberdade começou.
127
O REENCONTRO
Abraços, apertos de mão e saudações efusivas nos receberam do outro lado.
No posto dos ingleses recebemos copos de papel com meio litro de chocolate e
sanduíches de salame, patê de fígado e de queijo. Que prazer, depois dos longos
anos de privação dessas coisas tão corriqueiras na vida normal. Nos bons tempos a
gente nem as apreciava devidamente, tão comuns eram.
Depois que o último de nós terminou seu lanche, levaram-nos em veículos
militares ingleses em curta viagem ao campo Friedland. Na chegada soou o sino da
liberdade. Indicaram-nos os alojamentos, dado que a continuação da viagem
somente seria possível no outro dia, por causa das formalidades a cumprir.
Cada um passou por exame médico, foi inquirido e recebeu, no Certificado de
Soltura, as assinaturas e anotações necessárias. Era, para todos, o único e mais
importante documento para ser readmitido na comunidade. Os encarregados dos
órgãos para os desaparecidos eram os maiores perguntadores, pois poderia ocorrer
que um ou outro pudesse dar alguma informação sobre desaparecido ou prisioneiro.
As paredes estavam atapetadas de fotos de desaparecidos, a maior parte em
tamanho bem grande, contendo nome, graduação militar, unidade ou número de
campanha ou ainda, o número do campo de prisioneiro e a época da última notícia.
Pediu-se a todos para ajudar, observando bem as fotos, pois talvez se lembrassem
de algum camarada.
Até que findassem essas formalidades chegou o meio-dia e pudemos comer
nossa primeira refeição alemã. Batatas com sal, molho, e um pedaço de suculento
assado e até um pouco de pudim. Esforçavam-se por fazer-nos sentir que estávamos
em casa. Às duas da tarde houve a celebração de um culto ecumênico de
agradecimento, do qual todos puderam participar. Fizeram preces o sacerdote
católico, depois o pastor protestante, e dois outros ainda. Ninguém se excluiu desse
culto, nem mesmo aqueles que não mais queriam saber de religião ou de igreja.
Um filme foi exibido à noite para nosso entretenimento, e foi visto por grande
assistência.
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As barracas desse campo eram cobertas de chapas onduladas, como era
costume entre americanos e ingleses. Não se podia permanecer nelas durante o dia
por causa do calor, pois, afinal de contas chegáramos de uma região em que não
tínhamos sido aquinhoados com muito calor.
Depois do jantar comunicaram que nosso trem para a última etapa partiria às
seis da manhã e que todos fossem pontuais. Nem precisamos desse aviso, pois
ninguém conseguiu dormir de tanta excitação, todos ansiando o momento de chegar
mesmo em casa. Na viagem pela Zona Oriental tinham-nos destinado vagões de
terceira classe cujas janelas, quebradas, mostravam ainda os efeitos da guerra
passada. Aqui também tivemos vagões de terceira, mas com as janelas intatas.
A viagem foi boa, porém muito vagarosa para o gosto da maioria. Muitos
calculavam quantas estações ainda passariam antes de chegar ao ponto final. O trem
parava em cada cidade, e a chegada de repatriados fora noticiada pelo rádio e por
informações boca a boca, por toda parte.
Em todos os lugares, o mesmo quadro. Pessoas correndo ao longo do trem,
com fotografias na mão, procurando saber da sorte de um filho, pai ou irmão.
Muitos companheiros procuraram despedir-se de seus colegas de infortúnio
antecipadamente, já que na chegada a sua estação não haveria tempo para isso,
com os familiares os aguardando.
Inesquecível, a impressionante chegada do trem à estação de Paderborn. A
banda de música da cidade estava na plataforma tocando o Hino Nacional durante a
lenta entrada do trem. Durante todo o tempo de parada a banda tocou e
enfermeiras da Cruz Vermelha, ajudantes e voluntários de ambos os sexos
deslocaram-se ao longo do trem ou se postaram na plataforma oferecendo café e
sanduíches, refrescos, charutos e cigarros. Alguns senhores portavam bandejas com
copos pequenos e garrafas de conhaques ou bebidas semelhantes, oferecendo um
gole a cada um. Devido à longa parada, pudemos descer e fazer contato com a
população. Os homens sempre traziam copos de cerveja e a gente nem se lembrava
mais de quanto tempo se privara de tanta coisa boa. Ocorreu-lhes oferecer também
pequenos pacotes com chocolate e bombons para que não chegassem de mãos
vazias os que tivessem filhos. Bolos havia em quantidade. Todos os que iam
continuar viagem foram convencidos a levar algo para comer durante o trajeto. O
que a cidade e a população fizeram por nós, pessoas totalmente estranhas, deu-nos
a certeza de que não estávamos esquecidos. Quando o trem continuou a viagem e a
banda tocou "A Canção do Bom Camarada", pensamos em um ou outro que ficou no
cativeiro.
Nos últimos meses na Rússia havia alto-falantes no campo e mesmo nos
alojamentos, que nos transmitiam notícias em língua alemã: eram simplesmente
louvações à Zona Oriental e propaganda contra
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a Zona Ocidental. Um dia, fomos avisados que às vinte horas falaria uma importante
pessoa da República Democrática Alemã, sendo obrigatória a audição da
transmissão por todos os que não estivessem fora trabalhando. Mas, quando
soubemos pelo discurso deste senhor que, segundo sua opinião, não mais havia
prisioneiros de guerra na Rússia, uma vez que todos os que ainda permaneciam nos
campos eram criminosos de guerra isso nos encheu as medidas a todos, mormente
os que simpatizavam com o comunismo. Por isso também não ficamos admirados de
que ninguém tivesse tomado conhecimento de que estávamos de volta, quando
passamos pela Zona Oriental. Vimos mudanças drásticas na imagem daquela região
quando passamos por ali. Para muitos fora a terra natal, mas, por diversas
circunstâncias, como a evacuação de familiares, a Alemanha Ocidental valia agora
como nossa Pátria. As estradas de ferro, todas construídas com duas linhas, tinham
agora somente uma em uso, enquanto crescia capim na outra. Rostos alegres não
havia na passagem pelas estações, mal havendo pessoas por ali. Em Leipzig, onde
paramos por maior espaço de tempo para que enfermeiras da Cruz Vermelha nos
servissem sopa, vimos que pouco movimento havia por ali. O hall outrora coberto de
vidro, estava ainda no estado em que as bombas dos americanos e ingleses o
deixaram. Na cidade de Haale an der Saale o quadro era o mesmo.
Embora se vissem ainda muitos estragos de guerra no Oeste, via-se também
que muito se fizera para repará-los, após quatro anos. O Oeste, antes de mais nada,
sofreu mais com as bombas do que o Leste, mesmo em Dresden. As pessoas
residentes no Oeste davam outra impressão. No Leste a gente parecia subnutrida e
amargurada; no Oeste, mais alegre e bem nutrida, a despeito dos eternos
descontentes que existem em tempos bons e ruins em toda parte.
Depois de passar por Paderborn, desceram companheiros em cada estação,
tendo para eles chegado o fim da viagem. As cenas do reencontro nas plataformas
tocavam o coração de todos, havendo não poucos camaradas que receavam este
momento, pois ainda em Friedland tinham recebido telegramas de suas esposas
com a comunicação: VOLTA NÃO DESEJADA.
Essas mulheres decidiram-se por outro homem nos longos anos de separação,
sem ter coragem de escrever contando isso aos maridos durante a permanência
deles na Rússia, mas em suas cartas, ou antes, cartões, expressavam sempre a
esperança de um breve retorno. Agora, chegado o momento, os companheiros
sofriam a maior desilusão de suas vidas.
No dia 1º de agosto de 1949 o trem alcançou Colônia, seu destino final, e
somente poucos ainda saltaram. A plataforma estava superlotada de pessoas,
poucas das quais aguardavam algum parente, mas com fotografias nas mãos, tinham
esperanças de receber informação sobre algum familiar.
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Eu sabia que nenhum familiar me esperava, pois supunha que minha família
estivesse em viagem para o Brasil.
Um amigo solícito que me proporcionaria abrigo para o tempo necessário de
providenciar os papéis de saída do país, recebeu-me na plataforma. Não nos víamos
há quinze anos, mas reconhecemo-nos logo, apesar das mudanças sofridas por
ambos. Havia muita gente na plataforma do trem, com pessoas formando uma
pequena passagem para nós, da estação até a praça, todos fazendo perguntas ou
mostrando fotos. Outros portavam cartazes seguros em hastes para serem vistos de
longe, indicando nome, dia do nascimento, graduação militar, arma e número de
campanha ou, em certos casos, o número do campo de prisioneiros, pedindo
informações e indicando a data da última notícia do desaparecido.
No caminho para o ponto do bonde meteram-me cigarros no bolso, sem que
eu considerasse isso uma esmola, pois reconheciam logo um soldado prisioneiro de
volta ao lar, e queriam manifestar-lhe apreço. Mesmo com sapatos novos, calças e
casaco simples, mas novos, e tendo como elemento identificador apenas o boné
militar, todos sabiam, mesmo sem olhar para a caixa de papelão, que se tratava de
um prisioneiro recém-libertado.
No bonde meu amigo quis pagar minha passagem, mas não aceitaram, e todos
me ofereceram lugar para sentar. Com gentileza, mas firmemente, recusei,
declarando que ficara muito tempo sentado em trens e queria ter o prazer de
deleitar-me de pé com as impressões de minha terra, tão nova para mim. Perguntas
e mais perguntas se faziam, todos espantados de ver minha tez escura que não era
morena, mas quase preta. Alguns julgavam que seria fácil concluir que eu viera da
África e não do Norte da Rússia.
Ainda hoje me lembro da cara do meu barbeiro que, ao cortar-me os cabelos,
julgou que meu pescoço há muito tempo não via água e sabão. Foi de certo modo
embaraçoso para ele, quando lhe disse que não se chocasse tanto, pois a cor era
real, e não sujeira, mas que poderia se convencer disso usando água e sabão.
Chegado à casa do amigo e recebido amavelmente por todos os seus familiares
e moradores da casa, havia inicialmente muito o que contar. A boa comida só não
tinha sabor ainda melhor porque não se entranhara em minha mente, até então, a
frase que me repetia sempre: "agora, estás realmente livre". Com esta sensação a
gente tem que se acostumar. Somente pode avaliá-Ia quem ficou por longo tempo
privado da liberdade.
Na mesma ocasião da chegada, soube que meus familiares ainda se
encontravam na Zona Oriental. Eles esperavam todos os dias que chegasse o navio
para o qual tinham as passagens. Esta notícia abalou-me profundamente! Foi muito
doloroso saber que minha família se encontrava na Alemanha, sem que a gente
pudesse se rever.
Soube, depois, que a viagem teria início em princípios de setembro e
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vislumbramos a possibilidade de nos encontrarmos em Hamburgo por algumas
horas. A emoção do reencontro e da despedida, por tempo incerto, fizeram-nos
concluir que seria demasiado para nós. Combinamos por carta evitar isso,
suportando a separação até nos reencontrarmos no Brasil.
No primeiro dia dediquei-me a um completo repouso e aos contatos com as
pessoas com quem conviveria durante meses.
No dia seguinte iniciei os passos necessários ao meu ingresso na comunidade
como cidadão, apresentando-me no posto central de atendimento aos prisioneiros
que regressavam. Exibindo o Certificado de Soltura expedido em Friedland, preenchi
formulários com todos os dados relativos à minha pessoa e origem e diversos
questionários, dado que ninguém possuía documentos a não ser o Certificado.
Aguardei os trâmites da papelada pelas repartições até que me chamaram.
Pagaram-me, como o fizeram com todos, cinquenta marcos, e me entregaram
cartões de racionamento para os alimentos ainda racionados, vinte cigarros, um
carnê com dez passagens de bonde e um aviso de comparecimento ao serviço de
saúde para um exame completo. Ali o exame foi minucioso. Como eu não ficara com
lesões corporais, fui mandado ao médico local para observação do estado de saúde
por oito semanas, voltando, depois desse prazo, para um segundo exame no serviço
de saúde.
Dediquei-me no dia subsequente a procurar a Caixa de Previdência à qual
estava vinculado e que tinha mudado o nome, de Caixa de Previdência Profissional
para Caixa de Previdência dos Empregados. Depois de muito perguntar, encontrei-a
finalmente. Como ainda sabia meu antigo número de filiação, fui rapidamente
readmitido, recebendo no ato, para os primeiros oito dias, quarenta marcos de
Auxílio-Doença e a comunicação de comparecimento em um dia determinado da
semana para receber esse benefício semanal.
A próxima etapa foi o Serviço de Emprego, para onde fui a fim de me registrar
para tentar obter, quando o tratamento de saúde terminasse, algum trabalho para
fazer. Esta esperança, porém, falhou, pois tinha quarenta e seis anos e fui
considerado velho demais para trabalhar. A massa de desempregados era grande na
época e ninguém acreditava que, ao contrário, alguns anos mais tarde todos
tivessem emprego e até faltassem trabalhadores.
Como última formalidade a cumprir, apresentei-me ao Serviço de Registro dos
Habitantes, com isso satisfazendo as exigências de caráter policial.
Durante as primeiras oito semanas, fui semanalmente ao exame médico para
a verificar se tinha sofrido lesões durante o tempo de prisão e se o corpo estava
reagindo bem à mudança do regime alimentar. Uma ou outra conseqüência do
cativeiro, porém, manifestou-se somente muitos anos depois, não tendo podido ser
constatada durante aqueles exames.
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O médico declarou-me, ao fim dessas inspeções médicas, são e capaz para o
trabalho, mas trabalho não havia. Assim, passei a receber, em substituição ao
Auxílio-Doença, o Auxílio aos Desempregados, no valor de dezoito marcos, portanto
a metade do benefício anterior.
Quatro semanas após ter sido libertado, fui chamado à central incumbida dos
prisioneiros que retornavam, e lá recebi cento e cinquenta marcos como ajuda para
a aquisição de roupas, possibilitando me vestir condignamente. Sabendo que minha
mulher saíra com as filhas ilegalmente e sem dinheiro da Zona Oriental, passando
por Berlim e ali tirando seu passaporte, enviei-lhe cinquenta marcos desse dinheiro,
via Hamburgo, para que ela pudesse dispor de mais recursos. Essa importância
chegou-lhe às mãos de surpresa e no momento preciso, pois tinham-lhe roubado
uma maleta na estação em Berlim, com o pouco que ela tinha de roupa; com o
dinheiro ela pôde comprar, ao menos, o mais necessário.
Em maio de 1950 pude, finalmente, viajar para fora do país, depois da longa
demora da obtenção da papelada e da chegada da ordem de fornecimento da
passagem. Viajei em princípio de maio do porto de Le Havre, no navio francês
"Claude Bernard" para o Brasil, desembarcando em solo brasileiro no dia 31.
Era a segunda vez que desembarcava no porto do Rio de Janeiro. Ali fui
recebido por velhos conhecidos de épocas passadas, que tinham me proporcionado
belos dias. Havia formalidades a cumprir. Ao deixar o navio, retiveram os
passaportes de alemães e dos outros de territórios ocupados, e esses documentos
deveriam ser procurados no Ministério das Relações Exteriores após três dias. Ali
também se encontravam os passaportes de meus familiares, retidos na sua chegada
e ainda não recebidos porque minha mulher não tinha dinheiro para o pagamento
das taxas, nem experiência no trato com as autoridades. Consegui retirar todos os
passaportes e, após oito dias pude viajar para o interior do país.
Fiquei impressionado com o Rio. Como tinha mudado a cidade! Muitas
construções e largas avenidas destinadas ao trânsito de automóveis e de ônibus, já
que os bondes praticamente pertenciam ao passado.
Para a viagem ao interior não precisei ir de navio, como da vez anterior, o que
era bastante demorado. Fora construída uma grande rodovia para o Norte. A
estrada ainda não era asfaltada, contudo, e a viagem de ônibus levou dois dias com
pernoite. O ônibus era pequeno e um tanto velho, e tudo isso fez dela um itinerário
algo estafante.
Empoeirado e cansado, alcancei Teófilo Otoni na noite de 9 de junho, onde
uma irmã e um sobrinho me esperavam. Em verdade, ninguém sabia a data certa de
minha chegada, pois se tivesse querido comunicar o dia pelo correio, certamente a
informação teria chegado depois de mim, pois os serviços postais ainda eram bem
vagarosos. Todos, porém, sabiam da chegada do navio ao Rio de Janeiro, que tive
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ensejo de comunicar com bastante antecedência.
Minha mulher e filhas se encontravam a cerca de vinte quilômetros de Teófilo
Otoni, em casa de meu sogro, na antiga colônia alemã "Francisco Sá". Um
conhecido, que comprara uma camioneta, prontificou-se a me levar até à colônia,
para onde iria no dia seguinte à minha chegada a Teófilo Otoni. Era vizinho de meu
sogro.
Admirei-me que fosse possível fazer o trecho em trinta e cinco minutos,
quando antes se gastavam quatro horas a cavalo e mais de cinco a pé. Notava-se
ainda que o caminho passava por região montanhosa, mas as subidas tinham sido
niveladas aos poucos, eliminando as antigas dificuldades. Chegado à casa do vizinho,
queriam que eu entrasse, em oferecimento de hospitalidade, mas, tão próximo dos
meus, tinha pressa em chegar a casa, o que eles compreenderam. Não era uma volta
para casa, no sentido geral, era uma permanência momentânea que, no momento,
significava mesmo "chegar em casa".
A pé, fui caminhando devagar no último trecho do caminho, fortemente
emocionado, naqueles poucos minutos finais. Eu seguia ao longo da terra que
pertencera aos meus pais, o que me despertava muitas recordações.
Finalmente avistei a casa de meu sogro, bastante encoberta por laranjeiras. Na
pequena escada de acesso à casa, vi sentada a minha segunda filha, agora com dez
anos, que tinha quatro quando a deixei. Por acaso ela olhou o caminho e, vendo-me,
imaginou que só podia ser eu mesmo, e entrou correndo para dentro da casa,
gritando: "Mamãe, papai está chegando!" E logo voltou para me saudar, já na
escada.
Quando entrei, abracei e beijei minha mulher, vi uma menina de cinco anos,
um pouco afastada, que não tinha idéia do significado da palavra "pai" e aguardava
os acontecimentos.
Quando minha mulher lhe perguntou: "Então, como te parece teu pai, queres
ficar com ele?" achegou-se ela acanhada, e dizendo "sim", colocou seus bracinhos
em volta de meu pescoço. Agora sim, eu estava em casa.
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EPÍLOGO
Chorar de alegria foi um sentimento bom e espontâneo. Todos choramos,
naquele momento tão real, mas tão difícil de conceber em épocas passadas.
Ao ver minha filha mais velha, com dezoito anos, admirei-me profundamente,
pois guardava a imagem de uma garota de doze anos, quando parti para a guerra.
Com as filhas tão crescidas pude constatar quanto tempo havia passado longe da
família. Levou algum tempo para elas compreenderem que aquele estranho era seu
pai.
Seis anos de separação, cheios de privações e de sofrimentos para os que
ficaram, e para os que tiveram de ir àquela guerra. O que as mulheres tiveram de
suportar, nos últimos dias da guerra e durante a ocupação pelos russos, foi muito
mais do que nós homens passamos nas batalhas e nos campos de prisioneiros.
Enquanto tínhamos de cuidar apenas de nós mesmos, elas ainda tinham as crianças
para se preocupar. Tínhamos nossa comida, embora miserável, providenciada por
outros. Elas, porém, além de seu sustento, precisavam conseguir algo para as
crianças comerem, coisa extremamente difícil naquelas épocas de trevas.
Quando os russos chegaram, minha mulher esperava o nascimento da terceira
filha, nascida um dia após o término das hostilidades. Esse fato poupou-lhe a sorte
de tantas outras mulheres e moças naqueles tempos de muitas privações.
Comunistas alemães puseram meus familiares para fora de casa, para dá-Ia a
um chefe deles, para morar. Deixaram-nos levar apenas coisas que pudessem
carregar com as mãos. Até mesmo uma cama para a criança não pôde ser
transportada. Um quarto de poucos metros quadrados foi-lhes arranjado em outra
casa e minha mulher foi obrigada a trabalhar nas minas de carvão. As crianças
tiveram de cuidar de si mesmas, até que a menor começasse a frequentar o jardim
de infância e as maiores fossem à escola.
Comparados com os que muitas mulheres realizaram durante os difíceis anos
da guerra e do após-guerra, os feitos dos homens carecem de maior expressão,
ainda que consideradas as batalhas travadas e a vida miserável dos campos de
prisioneiros.
As mulheres começaram a reconstrução do que a guerra destruiu, enquanto
muitos homens ainda permaneciam aprisionados.
Foi, sem dúvida com razão, que se erigiu em Berlim um monumento em honra
às mulheres que acabaram com as ruínas, pois fizeram muito mais do que trabalho
de homem. Mostraram que, apesar de todas as privações, o ser humano é capaz de
se superar, empurrando mais para longe seus próprios limites de resistência e
tenacidade.
Deram um grande exemplo a muitos homens que, não obstante libertados dos
campos de concentração, continuaram aprisionados em suas próprias prisões
mentais, sem ânimo para recomeçar a viver livres.
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