APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS NO NORTE DE MINAS
GERAIS: UMA PERSPECTIVA COMPARATIVA ENTRE DUAS
RACIONALIDADES EM CONFRONTO
Carolina Poswar de Araújo Camenietzki
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social - UNIMONTES
[email protected]
Rômulo Soares Barbosa
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social - UNIMONTES
[email protected]
Tathiane Paraíso da Silva
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social - UNIMONTES
[email protected]
Nayana Rosa Freire
Departamento de Economia – UNIMONTES
[email protected]
Grupo de Trabalho: Populações Tradicionais e Processos Sociais
Introdução
O Norte de Minas Gerais vem se transformando nos últimos anos refletindo as
consequências do modelo de modernização implementado a partir da década de 1970,
através, principalmente, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste SUDENE1. Este processo suscitou transformações que abrangem as esferas social,
cultural, econômica e ambiental da região. A partir de então, intensificaram-se as
estratégias de sociabilidade e de apropriação dos espaços naturais no Norte de Minas
Gerais, que caracterizava-se até então pela existência de um expressivo número de
populações tradicionais2, identificadas por Dayrell (1988) como possuidoras de uma
racionalidade própria de vida.
A partir das transformações ocasionadas pela modernização econômica e
tecnológica da região, modelos e visões de mundo se chocaram diante da nova realidade
instaurada. Neste sentido, o Norte de Minas Gerais e suas extensões territoriais que
vislumbram complexas diferenciações do bioma Cerrado, se transformaram em lugar de
1
Segundo Feitosa e Barbosa (2005), as estratégias desenvolvidas pelas SUDENE fundamentaram-se em
quatro pilares fundamentais: agricultura/fruticultura irrigada, monocultura de eucalipto, pecuária
extensiva e monocultura de algodão.
2
Neste sentido, os chapadeiros são os que habitam nas áreas denominadas de chapadas; campineiros os
que habitam nas campinas; barranqueiros ou vazanteiros os que vivem e produzem nas barrancas ou
vazantes do rio São Francisco; geralistas ou geraizeiros as populações que habitam nos gerais e
caatingueiros os que habitam na Caatinga (DAYRELL, 1998). O conceito de populações tradicionais é
aqui utilizado a partir da obra de Diegues & Arruda (2001), onde este é definido como um grupo com
cultura diferenciada e trajetória histórica própria, através da qual atualiza e reproduz seu modo particular
de vida e sua relação com a natureza.
disputa. É neste contexto de múltiplas racionalidades presentes no Norte de Minas
Gerais que buscar-se-à neste trabalho comparar as diferentes concepções de apropriação
dos recursos naturais presentes em duas racionalidades inseridas na região estudada: a
tradicional, representada pelas populações locais, e a capitalista, representada pelos
grandes projetos agropecuários.
As duas coletividades estudadas neste trabalho são marcadas por sujeitos
históricos que configuram um contexto presente no Norte de Minas Gerais, contexto
este que está pautado pela disputa do controle dos recursos naturais, uma vez que a
exploração destes espaços – para a lógica do capital – é fundamental para sua
reprodução material. Já para as populações locais, o acesso a estes recursos e o uso dos
mesmos são regidos por lógicas diferenciadas que são fundamentais não só para sua
reprodução material, mas também social e cultural. Comparar estas coletividades pode
contribuir para um melhor entendimento sobre os conflitos socioambientais e sobre as
dinâmicas inseridas no Norte de Minas.
Ao reconhecermos a multiplicidade de processos e sujeitos envolvidos nesta
proposta de estudo, o emprego da metodologia comparativa surge como um importante
instrumento analítico que possibilite o resgate das heterogeneidades, singularidades e
particularidades presentes à análise proposta. O estudo comparativo se efetivou a partir
de pesquisa bibliográfica especializada que possibilitou melhor entendimento das
práticas sociais específicas dos grupos envolvidos. Neste sentido, as formas de
apropriação dos recursos naturais foram analisadas principalmente a partir dos seguintes
parâmetros: o conceito de recursos naturais compreendido pelas racionalidades
capitalista e tradicional; os valores estabelecidos na relação homem/natureza; e as
principais consequências que estas relações causam para o meio ambiente.
No estudo ora apresentado, o esforço do uso do método comparativo se justifica
por atender à necessidade de se analisar, no contexto desta pesquisa, múltiplos objetos
em questão. Para Franco (2000) um grande avanço na área das ciências sociais e,
especificamente, das análises comparativas, foi o momento a partir do qual buscou-se
analisar cada sistema, ou cada sociedade, dentro de sua própria racionalidade. No
âmbito desta pesquisa, este fator torna-se fundamental, uma vez que buscamos analisar
as racionalidades a partir dos seus costumes e dos valores específicos em cada contexto,
mas entendendo estes grupos inseridos em uma dinâmica global. Utilizar a análise
comparativa nesta pesquisa significa buscar elementos que possam contribuir para uma
construção teórica que está para além da descrição superficial dos fatos, que ora
explicita suas diferenças, ora suas singularidades.
A análise que se prossegue está fundamentada teoricamente na perspectiva da
Justiça Ambiental3. Este paradigma indica a necessidade de trabalhar a questão do meio
ambiente não apenas em termos de preservação, mas também de distribuição e justiça
(ACESERALD, 2004). A Justiça Ambiental, ou Ecologismo dos Pobres, representa o
marco conceitual necessário para aproximar em uma mesma dinâmica as lutas populares
pelos direitos sociais e humanos, pela qualidade coletiva de vida e a sustentabilidade
ambiental.
O uso da Metodologia Comparativa
Ao longo dos últimos anos, o Norte de Minas Gerais tem sido alvo prioritário de
implementação de grandes projetos agropecuários, de monoculturas, pela expansão de
grandes empreendimentos econômicos e pela instituição de unidades de conservação.
Como já apontado anteriormente, estas diferenciações das práticas sociais e econômicas
que se incidiram na região a partir das ações dos órgãos do governo e de empresas
privadas, instauraram um mosaico de racionalidades e de estratégias territoriais e sociais
que muito se diferenciaram das tradicionais dinâmicas dos povos da região. No que
tange o acesso e uso dos recursos naturais, Araújo & Barbosa (2008, p.02) apontam que
nesta região
Observa-se uma aproximação discursiva sobre a importância de
conservação da natureza entre capitalistas e populações tradicionais,
porém, com intervenções e interesses bastante distintos em relação ao
uso e a destinação dos territórios em disputa.
O conflito evidenciado entre as duas racionalidades explicita interesses, usos e
sentidos distintos de vinculação com a natureza, onde é possível apreender a existência
de diferentes concepções do meio ambiente, estratégias territoriais antagônicas, mas ao
mesmo tempo, uma dependência direta das condições de uso e acesso aos recursos
naturais para as duas racionalidades se reproduzirem social e economicamente. Neste
caminho entre singularidades e diferenças, a necessidade de comparar, de estabelecer
um conhecimento entre estes grupos, se faz possível, uma vez que, fundamentado na
3
As outras perspectivas analíticas serão analisadas durante este trabalho.
obra de Sartori (1994, p. 17), compreendemos que a questão que se deva levar em
consideração quando utilizamos a metodologia comparativa, é que a comparação é feita
com relação a determinadas propriedades e características e incomparável com relação a
outras. Ou seja, para comparar é preciso assimilar e diferenciar os objetos em
determinados pontos. A existência do conflito na área pesquisada já explicita que há
uma disputa em torno de interesses comuns, mas as formas de vida, de entendimento
sobre as diferenças entre os grupos analisados demonstram que existem também muitas
discrepâncias entre estes.
Ao reconhecermos a multiplicidade de processos e sujeitos envolvidos nesta
proposta de estudo, o emprego da metodologia comparativa surge como um importante
instrumento analítico que possibilita o resgate das heterogeneidades, singularidades e
particularidades presentes à análise proposta. A comparação surge então, enquanto
processo inerente à construção do conhecimento e à formulação de outros novos no
contexto das ciências sociais (SCHNEIDER & SCHIMITT, 1998). Entretanto, é preciso
considerar que no exercício da prática comparativa, vários interesses e perspectivas
teóricas se demonstram presentes. Na condução do método comparativo, os caminhos
seguidos devem ser guiados com muita cautela, uma vez que, por muitos anos o uso
ideológico da percepção da diferenças pela comparação tem sido usado para justificar a
ocupação territorial, para submeter ou aniquilar o outro (FRANCO, 2000) 4.
A aplicação da análise comparativa em uma pesquisa pressupõe que se busquem
elementos que possam contribuir para uma construção teórica que está para além da
descrição superficial dos fatos, que ora explicita suas diferenças, ora suas
singularidades. De acordo com Franco (2000, p. 200)
O princípio da comparação é a questão do outro, o reconhecimento do
outro e de si mesmo através do outro. A comparação é um processo de
perceber diferenças e as semelhanças e de assumir valores nesta
relação de reconhecimento de si próprio e do outro. Trata-se de
compreender o outro a partir dele próprio e, por exclusão, reconhecerse na diferença.
O conhecimento produzido decorrente do processo comparativo tem sido um
importante instrumento para a condução de políticas públicas, das ações dos
4
Sobre este uso do método comparativo, Sartori (1994) afirma que a comparação está sempre permeada
pelo controle. É esta busca pelo controle que tem conduzido muitos estudos comparativos, o que tem
demonstrado os interesses obscuros na relação do ‘conhecer o outro’.
movimentos sociais e da criação de novas estratégias de enfrentamento das condições
analisadas a partir da análise comparativa. Por serem fundamentados em lógicas de vida
tão diferenciadas, procuramos neste trabalho analisar cada grupo dentro de sua própria
racionalidade, ou seja, buscamos entender os objetos em estudo em seus contextos
específicos (FRANCO, 2000). É importante compreender, como neste estudo, de que
forma as populações locais se reproduzem social e economicamente em seus lugares de
vida em comparação às estratégias produzidas pela lógica do capital para que possamos
apreender de que forma tem se efetivado a apropriação e uso dos recursos naturais no
Norte de Minas Gerais. O entendimento destas dinâmicas, o confronto entre estas
realidades, pode contribuir para que o trato com as mesmas seja balizado com mais
igualdade e justiça, e não impondo e tratando como superiores os interesses de uma
sobre a outra como tem sido realizado freqüentemente5.
Quando se trata do estudo comparado entre duas racionalidades distintas, as
contribuições da Antropologia se fazem presentes, uma vez que esta perspectiva
analítica possibilitou no campo da metodologia comparativa
(...) educar para o diálogo, para o confronto – e, portanto, para a
escuta – tornando-se sempre mais necessário, porque sem esta
capacidade, sem esta vontade, condenaremos as futuras gerações ao
conflito permanente, à luta e à violência, a se tornarem protagonistas
da destruição de nosso planeta (CALLARI GALLI 1996, p. 28 apud
FANCO, 2000).
Entende-se neste trabalho que o método comparativo deve ser pautado pelo
respeito entre as diferenças analisadas e no reconhecimento dos valores específicos a
cada dinâmica em questão. Os conhecimentos produzidos a partir da análise
comparativa devem ser fundamentados em aspectos teóricos e metodológicos que
considerem os múltiplos fatores que exercem influência sobre o objeto pesquisado, para
que estes novos saberes não resultem em equívocos ou imposições epistemológicas. É
consenso entre os autores estudados para esta análise o fato de que é inerente ao
processo comparativo a construção ou reformulação do conhecimento (FRANCO, 2005;
SCHNEIDER & SCHIMITT, 1998). Implícita ou explicitamente, a análise comparativa
5
Para Franco (2000, p. 204) a percepção das diferenças e o reconhecimento da dominação e das
resistências contra a dominação são elementos importantes para a identificação dos problemas e de suas
fontes de origem.
é permeada por juízos de valores, generalizações e explicações sobre os fenômenos
estudados.
Importantes mecanismos de compreensão dos processos sociais no âmbito das
análises comparativas são analisados na obra de Sartori (1994) Compare Why and How:
comparing, miscomparing and the comparative method, que constitui-se o fundamento
teórico-metodológico deste trabalho. Nesta obra, o autor propõe algumas perguntas que
são essenciais para se ter clara a importância do uso da metodologia comparativa em um
trabalho. Estas perguntas englobam os questionamentos do ‘o que’ comparar, ‘porque’ e
o ‘como comparar’. Para Sartori (1994), o emprego da metodologia comparativa
necessita de uma clareza quanto aos critérios de sua comparação, inseridos dentro de um
contexto histórico-social específico, uma vez que “comparison presupposes multiple
objects of analysis” (SARTORI, 1994, p. 14). Desta forma, a verificação comparativa
deve se manifestar de forma clara em uma pesquisa, buscando, para além da descrição,
a explicação e a interpretação dos múltiplos objetos analisados.
Assim, ao considerarmos as três indagações propostas pelo autor supracitado, o
estudo comparativo sobre as dinâmicas de uso e apropriação dos recursos naturais no
Norte de Minas Gerais possibilita construir uma história e um melhor entendimento do
contexto específico das práticas realizadas pelas racionalidades estudadas. O
reconhecimento dos valores inerentes a cada um destes grupos, evidencia uma realidade
que possibilita uma compreensão das heterogeneidades das dinâmicas socioeconômicas,
assim como das identidades analisadas. Neste sentido, a comparação surge como um
aprendizado com a experiência do outro (SARTORI, 1994), a partir do reconhecimento
da alteridade e da busca da diversidade.
Neste sentido, Sartori (1994) propõe que no desenvolvimento do método
comparativo, para que se busquem as diferenças e semelhanças entre os objetos, tal
procedimento seja fundamentado em classificações. A estratégia comparativa feita a
partir das categorias analíticas busca ordenar o universo dado na pesquisa, onde a
pergunta fundamental para as classificações é: comparável em que aspecto? Para este
autor, a definição de classes comparativas e das variáveis da pesquisa, não se constitui
no único caminho para efetivação da análise, mas este o considera o procedimento mais
seguro para efetivação deste tipo de método. A criação de classes deve ter uma
legitimidade que possa ser aplicada aos contextos pesquisados, para que não se criem
classificações falsas que não atendam à análise proposta. Outro aspecto importante
ressaltado por Sartori (1994) é que as classes devem ser teorizadas antes da sua
verificação empírica e utilizadas forma crítica, tendo um cuidado específico com a
aplicação dos conceitos que classificam as análises.
Schneider & Schimit (1998) afirmam que existe um ciclo investigativo que situa
o método comparativo dentro de um campo teórico-metodológico abrangente, composto
por múltiplas estratégias de abordagem dos objetos empíricos. Para estes autores, as
diferentes orientações analíticas conduzem as estratégias empíricas o que, por sua vez,
irão nortear as inferências que serão formuladas a partir do processo comparativo. As
classificações propostas por Sartori (1994) podem ser uma das estratégias que compõe o
que os autores chamam de ciclo investigativo. A construção das analogias, da busca
pelas semelhanças, diferenças, continuidades e descontinuidades do objeto investigado,
deve constituir-se em um caminho epistemológico claro que permita “romper com a
singularidade dos eventos, formulando leis capazes de explicar o social” (SCHNEIDER
& SCHIMIT, 1998, p. 02).
Nesta pesquisa, foram escolhidas como categoria principal de análise as
diferentes concepções de apropriação dos recursos naturais nas racionalidades
tradicional e capitalista. Entendemos que estes grupos são importantes sujeitos
históricos no cenário norte-mineiro, uma vez que seus territórios e seus vastos recursos
naturais tem se tornado instrumento de disputa entre as duas lógicas que se projetaram a
partir destas coletividades. Desta forma, a metodologia comparativa possibilitou
compreender as diferentes dinâmicas socioeconômicas dos grupos, entendo-os dentre de
contextos específicos, onde os fenômenos são interpretados dentro de uma lógica
histórica própria. Entretanto, entendemos, baseados teoricamente nos princípios da
Justiça Ambiental, que as estratégias de uso e apropriação dos recursos naturais
inerentes à racionalidade tradicional, traduzem uma ação ambiental mais adequada ao
tempo da natureza, evidenciando um modo de vida que conjuga os valores éticos e
morais que convivem de forma harmoniosa e sustentável com os recursos naturais.
Apropriação dos Recursos Naturais no Norte de Minas Gerais: duas
racionalidades em confronto
O cenário que se projeta no início do século XXI, no âmbito das discussões em
torno do meio ambiente, é marcado pelas disputas em torno do controle do uso e do
acesso aos recursos naturais. Este controle significa também controle de poder, uma vez
que a expansão do modo de produção capitalista, ao mesmo tempo em que precisa
destes recursos para se auto-sustentar, produz externalidades negativas que provocam a
destruição e conseqüente escassez dos recursos naturais no mundo. O conflito
instaurado também configura um contexto devastador para as populações que possuem
práticas tradicionais de uso dos recursos naturais. Por serem populações sem grandes
poderes de articulação e sem recursos financeiros para disputarem com os grupos
representantes do capital, estas coletividades também são impactadas por esta disputa
em torno dos recursos ambientais, já que a reprodução socioeconômica destes também
depende do acesso e uso dos recursos. Para Almeida (2005, p. 322)
Há uma pluralidade de valores frente ao Cerrado que nos faz afirmar
que a natureza é um conceito plural. Para uns, Cerrado é ecossistema,
para outros é capital. Há aqueles que defendem o Cerrado pela beleza
de suas paisagens, o sacralizam, ufanam-se de um entorno em
equilíbrio que outros já o consideram caótico.
Neste contexto, podemos afirmar que várias são as atitudes dos grupos humanos
frente à natureza, e várias são as concepções sobre os recursos naturais com relação,
principalmente, entre as sociedades industrial-capitalistas em comparação às sociedades
primitivo-tradicionais ou não industrializadas. Para Shiva (2000) a palavra recurso
sugeria, e ainda é entendido pelas sociedades tradicionais, como uma
(...) antiga noção a respeito do relacionamento entre seres humanos e a
natureza, segundo a qual a terra cobre os seres humanos de dádivas e
esses, por sua vez, e para o seu próprio bem, têm obrigação de
demonstrar um certo zelo para com ela, não abusando de sua
generosidade. Portanto, já no início dos tempos modernos, além de
regeneração, “resource” sugeria reciprocidade.
Foi a partir da industrialização e da diferenciação das formas de uso da natureza,
que a concepção de recursos naturais se transformou na esfera da racionalidade
capitalista e das ações públicas. A natureza perdeu seu potencial de criatividade sendo
que seus recursos se transformariam apenas em matérias-primas passíveis de serem
explorados economicamente. No âmbito da industrialização, o homem era o principal
agente que, através do uso da tecnologia e do trabalho, emprestaria à natureza o
desenvolvimento do seu valor de uso (SHIVA, 2000). Perdia-se, a partir de então, a
relação de reciprocidade entre homem e natureza presente nos grupos primitivotradicionais, sendo que esta seria de agora em diante, submissa às ações do homem.
Na perspectiva de desenvolver, no âmbito da racionalidade capitalista, os
recursos naturais, a relação estabelecida entre homem e natureza, passou a se basear na
exploração ilimitada. A proposta contida no modelo de desenvolvimento que se
partilhava entre as décadas de 1940 e 1980 era de que os países do Terceiro Mundo
precisavam da ajuda externa para potencializar o crescimento econômico, já que estes
possuíam fartos recursos a serem explorados, necessitando somente do capital e da
tecnologia para se desenvolverem. Para Sachs (2000, p. 302) “acreditava-se que o
capital e a tecnologia tinham poderes de auto-regeneração e que o crescimento
econômico seria capaz de dar um fim à escassez, e acabar para sempre com a luta pela
sobrevivência”. A transformação da natureza em matéria inerte e manipulável foi
fundamental para a expansão da exploração do capitalismo nas sociedades.
“Paralelamente à destruição da natureza como algo sagrado, deu-se também o processo
de destruição da natureza como propriedade pública” (SACHS, 2000, p. 305). Neste
sentido, para a viabilidade do modelo de desenvolvimento capitalista, foi necessária a
expropriação de terras comunitárias que ofereciam as “matérias-primas” ou os recursos
naturais essenciais ao processo de industrialização.
Na cultura industrial ou capitalista, a utilização da natureza como matéria-prima
continua sendo essencial para o projeto de desenvolvimento. Em contraposição à lógica
das terras comunitárias (lógica inerente às populações tradicionais), a relação
estabelecida para o desenvolvimento ultrapassa os aspectos éticos que eram a base da
relação entre homem e natureza. Contudo, a redução deste laço a meros intercâmbios
comerciais, tem demonstrado os limites do processo de desenvolvimento, uma vez que
se tornam mais escassos os recursos, e a natureza têm demonstrado estes limites através
das catástrofes ambientais. Para Sachs (2000, p. 309)
Apesar das sérias crises ecológicas que dele resultaram, o paradigma
moderno-dominante, que vê a natureza como um recurso, continua a
operar porque, para o Norte, e para as elites do Sul, grande parte da
destruição ainda permanece oculta. (...) Na visão do homem ocidental
moderno, os processos naturais de renovação das plantas e da
fertilidade da terra são apenas um obstáculo, um impedimento que
deve ser removido.
A emergência do modelo de desenvolvimento baseado na maximização da
exploração ambiental demonstra que, tanto as economias tradicionais como as
industriais utilizam da apropriação dos recursos naturais como meio de satisfação das
suas necessidades vitais básicas. Esta é uma singularidade importante no âmbito da
análise comparativa entre os grupos analisados. Entretanto, é preciso assinalar que as
formas que ambas utilizam estes recursos se diferem muito. A expansão das atividades
industriais, requerendo cada vez mais a exploração das matérias-primas, acaba tornando
escassos os recursos que são acessíveis às economias tradicionais. Desta forma, estas
últimas ficam com cada vez menos meios de sobrevivência, uma vez que suas
estratégias de vida dependem fundamentalmente dos recursos disponíveis na natureza.
Ao transpormos estas análises para um contexto específico, podemos considerar
que o processo de expropriação territorial no Norte de Minas Gerais ocorreu,
principalmente, devido à necessidade de modernizar a região através da otimização do
uso dos recursos naturais. Como apontado anteriormente, o órgão do Estado que
potencializou este processo foi a SUDENE que se instalou no Norte de Minas Gerais
com a missão de desenvolver esta região e inseri-la nos moldes da produção capitalista
(FEITOSA & BARBOSA, 2005). Entretanto, aos objetivos “modernizantes” dos
grandes projetos implementados, se contrapunha as práticas de cultivo e de vida dos
povos tradicionais do Norte de Minas. Desta forma, como explicita Silva (2005), o
processo expropriador e homogeneizante do modelo monocultor-exportador de
expansão da fronteira agrícola, vai desterritorializando as populações e liquidando com
o Cerrado-habitat (agri-cultura) para a afirmação do Cerrado-mercadoria (agronegócio).
As racionalidades que estão envolvidas neste processo explicitam concepções de
modos
de
vida
diferenciados.
Estas
estratégias
específicas
de
reprodução
socioeconômica e cultural provocam diferentes impactos para os espaços naturais que
são transformados de diversas formas. O espaço rural norte-mineiro, tradicionalmente, é
composto por um complexo de povos e de formas especiais de relação homem-natureza
de forma tal que estes espaços se traduzem como o lugar de efetivação dos seus direitos.
Na racionalidade tradicional, o “Cerrado-habitat é a casa, o lugar de viver, de habitar, de
criar hábitos. Carrega o sentido do espaço vivido, preenche das significações materiais e
simbólicas que conformam essas territorialidades camponesas” (SILVA, 2005, p. 229).
Para Chevez Pozo (2002) os territórios6 secularmente utilizados pelos povos
tradicionais, fornecem os meios de subsistência, de trabalho e produção, assim como os
meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais dos indivíduos. A relação
estabelecida com o meio natural nestas áreas se dá através do vasto conhecimento
tradicional e de técnicas rudimentares de manejo o que faz com que este seja feito de
forma sustentável (CHEVEZ POZO, 2002). Ainda, de acordo com este autor a
utilização dos recursos naturais oferecidos por aqueles territórios ocupados pelos povos
tradicionais é feita basicamente por meio do extrativismo vegetal (cipós, fibras, frutos,
ervas medicinais da floresta), do extrativismo animal (caça e pesca) e da pequena
agricultura itinerante. Estas formas de apropriação dos recursos naturais são baseadas
em muitos valores, normas e interdições comunitárias que regulam o acesso a estes, o
que impede sua degradação e auxilia na preservação sustentável do ecossistema (Idem).
Fundamentadas nos princípios da Justiça Ambiental, entendemos que a
racionalidade tradicional, ora representada pelas populações tradicionais do Norte de
Minas, possui, em sua essência, formas de reprodução socioeconômica que estabelecem
uma relação harmoniosa e sustentável com a natureza. Como afirmado anteriormente, a
partir da obra de Sachs (2000), a relação entre homem/natureza, nesta racionalidade, é
baseada pela reciprocidade e pela dimensão ética.
Entretanto, para Martinez-Alier
(2007), a necessidade cada vez mais crescente de exploração dos recursos naturais por
parte da racionalidade capitalista, vai tornar alguns recursos naturais raros, e a sua
apropriação, cada vez mais estratégicas. Para este autor,
O controle de sua extração e beneficiamento (dos recursos naturais)
será disputado. A maior tensão decorre da expansão da produção
sobre uma base material que não se expande e que está distribuída
pelo planeta segundo processos naturais, com maior concentração nos
países do hemisfério Sul, se considerarmos, por exemplo, a oferta de
informação genética (MARTINEZ-ALIER, 2007, p. 10).
O paradigma da Justiça Ambiental, defendida por Martinez-Alier (2007), se
contrapõe às análises propostas por duas outras correntes do ambientalismo que se
propagaram no mundo, principalmente, a partir da década de 1970. A primeira corrente
6
Para Castro (2000, p. 166) o território é um espaço ao qual um certo grupo garante aos seus membros direitos
estáveis de acesso, de uso e de controle dos recursos e sua disponibilidade no tempo. Complementando a idéia do
autor, podemos ainda citar Little (2002, p. 13), para qual o território é caracterizado conforme as significações que
lhe são atribuídas, passando a ter um valor simbólico, onde a imemorialidade é constantemente reafirmada a partir da
reprodução cultural do grupo, que se baseia na ocupação e utilização comunal do espaço.
identificada por este autor é o “culto ao silvestre”. Esta perspectiva de análise surge do
amor às belas paisagens e dos valores profundos de preservação da natureza, contudo,
para Martinez-Alier (2007) basta que o sagrado intervenha na sociedade de mercado
para o conflito tornar-se inevitável. Outra corrente surge identificada como o
“evangelho da ecoeficiência” que tem sido descrita como o vínculo empresarial com o
desenvolvimento sustentável.
Esta corrente do ambientalismo, “acredita no
“desenvolvimento sustentável”, na “modernização ecológica”, e na “boa utilização” dos
recursos” (MARTINEZ-ALIER, 2007, p. 26).
O entendimento sobre a existência destas diferentes perspectivas teóricas no que
tange as análises sobre as questões ambientais, constitui-se importante mecanismo de
análise neste trabalho, uma vez que as categorias ora analisadas são entendidas a partir
da teoria da Justiça Ambiental. As comparações dos modos de vida, dos valores
intrínsecos às formas de acesso e uso dos recursos naturais entre as duas racionalidades
estudadas são entendidas a partir de uma concepção de Justiça Ambiental que se
preocupa com as maiorias que, na contramão dos processos econômicos vigentes,
dispõem de relativamente pouco espaço ambiental para se reproduzirem e praticarem
suas dinâmicas de vida. Estas estratégias socioeconômicas são, em sua grande maioria,
feitas a partir do gerenciamento sustentável dos recursos naturais, mas “cuja
subsistência está ameaçada por minas, poços de petróleo, barragens, desfloramento e
plantations florestais para alimentar o crescente uso de energia e matérias-primas dentro
ou fora dos seus próprios países” (MARTINEZ-ALIER, 2007, p. 38).
Considerações Finais
A abordagem comparada constitui-se em um importante instrumento
metodológico no que tange as análises das especificidades, generalizações, semelhanças
e diferenças dos fenômenos estudados. Para sua utilização, tornou-se imprescindível a
contextualização, a conceituação do objeto pesquisado, assim como o fundamento
teórico o qual foram feitas as análises do estudo proposto. Este trabalho teve como
objetivo comparar as diferentes concepções de apropriação dos recursos naturais
presentes em duas racionalidades inseridas no Norte de Minas Gerais que aqui foram
entendidas como a tradicional, representada pelas populações locais, e a capitalista,
representada pelos grandes projetos agropecuários.
A partir do estudo comparado, podemos compreender as diferentes dinâmicas de
apropriação dos recursos naturais entre as racionalidades estudadas, assim como os
valores que são atribuídos à relação com os espaços naturais em cada coletividade. As
práticas sociais da sociedade dita moderna, ou capitalista, fazem uma separação entre
homem e natureza, entendendo que esta serve apenas como uma matéria-prima para a
consolidação dos seus objetivos econômicos. Já as comunidades tradicionais constroem
um modo de vida que é diretamente ligado aos ciclos da natureza, de forma que suas
práticas sociais resultam de uma apropriação simbólico-expressiva dos espaços os quais
habitam.
Pode-se assinalar que, embora o Norte de Minas Gerais já apresentasse antes da
década de 1970 diferentes lógicas de ocupação dos espaços (como as grandes fazendas
de gado, a incipiente industrialização e as práticas comerciais em cidades-pólo) que
eram contrárias às lógicas das populações locais, foi com a implementação das ações da
SUDENE que estas diferentes formas de apropriação dos espaços naturais se
multiplicaram. Em conseqüência, assistimos a uma crescente disputa pelos recursos
naturais da região, que se tornam cada vez mais estratégicos para os lucros dos grandes
empreendimentos agropecuários e cada vez mais limitados para as populações
tradicionais, evidenciando desta forma, um conflito socioambiental na região.
As dinâmicas das populações tradicionais do Norte de Minas Gerais envolvem
uma relação de reciprocidade e dependência mútua com a natureza. Estas utilizam as
matas, lagoas, plantas usadas como remédios, alimentos, das frutas e do rio como
instrumentos que compõem não só as suas estratégias de vida, mas fundamentalmente,
que fazem parte de toda uma cultura, um modo de vida inerente a estas populações que
possuem práticas seculares de existência.
A partir da análise comparada entre as formas de uso a apropriação dos recursos
naturais entre as racionalidades tradicional e capitalista no Norte de Minas Gerais,
observou-se que a privatização e apropriação empresarial (incentivadas pelo poder
público) dos recursos naturais têm explicitado diferentes significados e usos atribuídos
aos ambientes naturais na região. Neste sentido, cabe ressaltar que a apropriação dos
recursos naturais sob a lógica estritamente econômica, se contrapõe ao modo de vida
das populações tradicionais que ao longo dos anos desenvolveu um conhecimento
ambiental muito mais adequado ao tempo da natureza e que permitiu sua conservação
ao longo dos anos.
REFERÊNCIAS:
ACSERALD, Henri. Justiça Ambiental: ação coletiva e estratégias argumentativas. IN:
ACSERALD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (Org’s). Justiça
Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2004.
ALMEIDA, Maria Geralda de. A captura do Cerrado e a precarização de
territórios: um olhar sobre sujeitos excluídos. IN: Tantos Cerrados: múltiplas
abordagens sobre a biogeodiversidades e singularidade cultural. ALMEIDA, Maria
Geralda de. (Org.) Goiânia: Ed. Vieira, 2005.
ARAUJO, E. C.; BARBOSA, R. S. Vazanteiros do Rio São Francisco: os
encurralados pelas Unidades de Proteção Integrais no Norte de Minas Gerais. In:
32 Encontro Anual da ANPOCS, 2008, Caxambu/MG. Anais do 32 Encontro Anual da
ANPOCS, 2008.
CASTRO, E. Território, biodiversidade e saberes de populações tradicionais. In:
Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos (A.C. Diegues,
org). 2 ed. Hucitec, São Paulo, 2000.
CHEVEZ POZO, O. V. Regimes de Propriedade e Recursos Naturais: a tragédia da
privatização dos Recursos Comuns no Norte de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Tese
de Doutorado. UFRRJ, 2002.
DAYRELL, C. A. Geraizeiros e biodiversidade no norte de minas: a contribuição
da etnologia nos estudos dos agroecossistemas tradicionais. Andalucia: Universidade
Internacional de Andalucia, 1998. 188p. (Dissertação de mestrado em Agroecologia e
Desenvolvimento Rural Sustentável).
DIEGUES, Antônio Carlos; ARRUDA, Rinaldo S. V. Saberes Tradicionais e
Biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2001.
FEITOSA, Antônio Maurílio A.; BARBOSA, Rômulo Soares. Homem e a Natureza os
Gerais de Minas. EDUCARE: Revista Científica da Faculdade de Educação – Instituto
Superior de Educação Ibituruna - ISEIB> v.1, n.1. Montes Claros- MG: Editora ISEIB,
2005.
FRANCO, Maria A. Ciavatta. Estudos comparados em educação: uma discussão
teórico-metodológica a partir da questão do outro. In: CIAVATTA FRANCO, M. A.
(org.) Estudos Comparados e educação na América Latina. São Paulo: Livros do
Tatu: Cortez, 1992, p.13-35.
LITTLE, P. Territórios Sociais e Povos tradicionais no Brasil: por uma
antropologia da territorialidade. In: Simpósio “Natureza e Sociedade: desafios
epistemológicos e metodológicos para a antropologia”. XXIII Reunião Brasileira de
Antropologia, Gramado-RS, 19 de junho de 2002.
MARTÍNEZ-ALIER, Joan. O Ecologismo dos Pobres: conflitos ambientais e
linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2007.
SACHS, Wolfgang. Meio Ambiente. In: SACHS, Wolfgang. Dicionário do
Desenvolvimento: Guia para o Conhecimento como Poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
SARTORI, Giovanni. Compare Why and How: Comparing, Miscomparing and the
Comparative Mehod. In: Mattei Dogan e Ali Kasancigil (orgs). Comparing Nations:
Concepts, Strategies and Substance. Oxford, UK e Cambridge, US: Blackwell, 1994.
SCHNEIDER, Sergio.; SCHIMITT, Claudia Job. O uso do método comparativo nas
Ciências Sociais. Cadernos de Sociologia: Porto Alegre, v. 9, p. 49-87, 1998.
SHIVA, Vandana. Recursos Naturais. In: SACHS, Wolfgang. Dicionário do
Desenvolvimento: Guia para o Conhecimento como Poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
SILVA, Carlos E. Mazzetto. Lugar-hábitat e lugar-mercadoria: territorialidades em
tensão no domínio dos cerrados. In ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI Klemens;
PEREIRA, Doralice Barros (Org’s). A Insustentável leveza da Política Ambiental –
Desenvolvimento e Conflitos Socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
Download

APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS NO NORTE DE