Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Comunicação e Expressão Departamento de Jornalismo Tacada per igosa A polêmica constr ução do Costão Golf sobr e o maior aqüífer o de Flor ianópolis Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo Orientadora: Barbara Arisi Aluno: Rodrigo Brüning Schmitt Florianópolis, março de 2008
Dedico este livro aos meus pais por tudo; aos meu irmãos, pelo bom humor de sempre; à Rafa, pelo amor, apoio e alegria; à Dione, pelo carinho e hospitalidade; aos amigos, pelas risadas e confiança.
Agradecimentos Gostaria de agradecer especialmente à minha família, por me apoiar sempre e compreender perfeitamente a minha ausência nos últimos três meses do trabalho. À Rafa e Dione, minha nova família, por todo o amor, carinho e hospitalidade. À minha orientadora, professora Barbara Arisi, por ter aceitado com muita vontade o desafio de realizar este projeto, que é o primeiro que ela orienta. Aos professores do Curso de Jornalismo que ajudaram na minha formação, especialmente o professor Ricardo Barreto e a professora Míriam Santini de Abreu. Ao apoio recebido da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) e da Fundação W.K. Kellogg, no âmbito do Programa InFormação – Programa de Cooperação para a Qualificação de Estudantes de Jornalismo. 1 A todos que colaboraram com este livro. Quero agradecer a: Adriane Nopes, Ana Paula Marcante Soares, Daniel Nascimento Medeiros, Eliane Westarb, Felipe Pereira, Francis França, Galeno de Sena Lima, Isadora Faust Peron, Luiz Christiano Nunes de Souza, Marina Teixeira Gazzoni, Míriam Santini de Abreu, Ricardo Mattevi, Roberto Saraiva Ferreira, Rodrigo Brisighelli Salles, Sônia Depiné, Vera Maria Flesch e Wendel Martins. 1 Ressaltamos que os conteúdos, reflexões e opiniões constantes deste trabalho, bem como do Projeto que a ele deu origem, não representam, necessariamente, as opiniões da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) e da Fundação W.K. Kellogg.
O poço era fundo, bem fundo e misterioso, e a água vinha clara, num balde, do fundo do poço. Martinho Brüning, O poço (Micropoemas, 1986)
Sumár io Capítulo 1: A or igem do Costão Golf 7 Do silêncio ao caos .............................................................................................. 9 A conquista do costão ........................................................................................ 15 O sonho é maior do que a lei .............................................................................. 18 Capítulo 2: Um pr ivilégio para poucos 26 Tacadas bilionárias............................................................................................. 27 Uma procuradora incomoda muita gente ............................................................ 32 O salão virou estádio.......................................................................................... 36 A escolha do local predestinado ......................................................................... 43 Capítulo 3: O teleférico, o aqüífero e o campo 46 Os outros ........................................................................................................... 51 A melhor água de Santa Catarina não é infinita .................................................. 55 Justiça paralisa as obras ..................................................................................... 64 Capítulo 4: Uma nova ameaça sobr e a ter ra frágil? 69 O tapete verde é estendido.................................................................................. 77 A propaganda, as omissões e os fatos ................................................................. 81 Remédio ou veneno?.......................................................................................... 86 Capítulo 5: A solução política 95 A cidade dividida ..............................................................................................102 O poderoso aliado e o documento distorcido .....................................................109 A ilha que afunda..............................................................................................114
Epílogo: A prisão de Mar condes e a inauguração do Costão Golf 119 “A procuradora queria que o embargo levasse cinqüenta anos!” ........................128 O fim?...............................................................................................................135 Refer ências bibliográficas 136 Apêndice Lista de perguntas enviadas à Casan..................................................................139
7 Capítulo 1: A or igem do Costão Golf O dia amanhece lentamente em Florianópolis e os primeiros jogadores já caminham pelo campo do Costão Golf. De longe, parecem todos iguais: protegem­se do sol com bonés e chapéus, vestem­se com camisas pólos, utilizam uma só luva, para não deixar os tacos de carbono escorregarem, e calçam sapatos com travas. Em silêncio, eles se aproximam do buraco e param para pensar na melhor maneira de bater na bolinha e na trajetória mais adequada a ser feita; qualquer impulso desnecessário na tacada pode prejudicar a conclusão da jogada. Um leve estampido metálico soa e a bolinha rola suavemente até cair. O pequeno grupo arruma os tacos e parte para o próximo buraco, para o desafio seguinte de força e precisão. Logo atrás, outros jogadores se aproximam. A movimentação contínua assusta os quero­queros. Agitados, eles erguem vôo e seus gritos se misturam com os ruídos mais distantes de máquinas e operários. O jovem Adriano Ferreira olha para o céu e sorri por um momento. Tudo continua azul na manhã de 13 de dezembro de 2007, não há nuvem alguma para atrapalhar o primeiro torneio oficial do Costão Golf. Ex­carregador de tacos, ele trabalha há seis meses como starter , funcionário responsável por organizar e iniciar os jogos de golfe, e sonha em trabalhar em clubes do exterior. As primeiras tacadas começaram há três horas, mas ainda falta muito tempo para o almoço; faminto, Adriano resolve cortar um pedaço de bolo no carrinho elétrico. A secretária Tiéli Franzen pergunta por que ele não pega comida no escritório, do outro lado da rua. “É um bolo seco, de areia, isso aí”, ela comenta brincando. O Costão Golf está sendo construído no Capivari, localidade da planície arenosa dos Ingleses, um dos três grandes balneários da costa norte da Ilha de Santa Catarina. A areia que o vento sopra vem das dunas próximas ao campo e de lotes de terra descoberta, sem rolos de grama, onde serão erguidas casas de alto padrão. O projeto é ambicioso: além de criar o primeiro clube com campo de golfe de Florianópolis, o empreendimento também pretende fazer o melhor condomínio residencial da cidade e atrair turistas ricos, principalmente os estrangeiros. A primeira parte do investimento está concluída. Um tapete verde, de tons claros e escuros, cobre uma área de 188 mil quadrados e, por ele, caminharão cerca de 100 jogadores
8 hoje e no dia seguinte para participar do 1° Aberto Costão Golf Classic. Adriano, o responsável pela saída dessas caminhadas, está ao lado do tee, o ponto de partida, do buraco 1. Ele olha para os horários de saída dos golfistas, irrita­se e solta um palavrão. No relógio, são quase dez horas. – Que foi? – pergunta Tiéli, assustada. – Tá tudo atrasado. Se dependesse de mim, os jogadores nem tomariam água. Uma partida completa de golfe exige o percurso total de 18 buracos. Como o campo do Costão Golf possui apenas nove, os jogadores precisam dar duas voltas. Adriano está preocupado com a demora de alguns grupos para iniciar a segunda parte do jogo e pega um walkie talkie azul para falar com o argentino Ricardo Agüero, diretor­técnico do clube. Agüero aparece em seguida e quer saber qual é o problema – Adriano reclama da demora dos jogadores. O diretor se senta no carrinho, pega o papel e tenta arrumar os horários. O starter , em pé, observa e ouve as explicações do chefe, que, no fim, decide manter o ritmo das saídas. Apesar de considerar a pontualidade um item fundamental no golfe, Agüero sabe muito bem que os atrasos podem, às vezes, ocorrer inesperadamente. O campo de golfe, por exemplo, deveria ser inaugurado em 2005. Uma ação do Ministério Público Federal (MPF) na Justiça, no entanto, paralisou as obras por questionar vários pontos do projeto, sobretudo o uso de fertilizantes e agrotóxicos na manutenção do gramado, que poderiam contaminar a maior reserva de água potável da Ilha: o Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho, com área de 30 quilômetros quadrados, utilizado para abastecer cerca de 100 mil habitantes da costa norte. Para Fernando Marcondes de Mattos, dono do Costão Golf, esta possibilidade definitivamente não existe. Criador do famoso resort Costão do Santinho, o empresário mais importante em turismo de Santa Catarina contratou estudos de especialistas brasileiros, com experiência internacional, para garantir a viabilidade do projeto, lançado em 2003. Os pesquisadores concluíram que não há riscos de contaminação, mas o MPF apontou falhas nestas análises. Em meio a uma batalha judicial de quase três anos, as obras só reiniciaram em setembro de 2007. Em três meses, os operários finalizaram a estrutura do campo, construíram o clube de golfe e ergueram o portal de entrada. Em três meses, prepararam o novo sonho de seu patrão. O sol da manhã de 13 de dezembro de 2007 faz brilhar ainda mais os carros luxuosos, de marcas como Mercedes, Toyota e Honda, que continuam a chegar ao torneio. Marcondes observa silenciosamente a essa movimentação na frente do portal de entrada do clube. No dia de seu sexagésimo nono aniversário, o empresário comemora sua mais recente vitória pessoal, após um turbulento ano no qual passou, segundo ele, os momentos mais tristes de sua vida: a
9 sua prisão em maio na Operação Moeda Verde, maior investigação na área ambiental já realizada pela Polícia Federal em Santa Catarina. A operação apurou um possível esquema de fraudes no licenciamento ambiental de projetos entre servidores públicos, políticos e empresários de Florianópolis. A PF indiciou Marcondes, em outubro de 2007, por corrupção ativa no caso de outro empreendimento dele, o condomínio residencial Vilas do Santinho I. O empresário, entretanto, ignorou essa acusação na época e declarou que a investigação é um assunto superado, sobre a qual não tem mais o que falar. Suas preocupações estão voltadas agora para o Costão Golf, considerado um dos mais importantes projetos turísticos em execução hoje em SC, com investimentos de R$ 45 milhões. O empreendimento foi planejado para ser um pequeno e luxuoso recanto de classes abastadas, mas acabou acumulando várias polêmicas desde a sua divulgação em 2003 e virou símbolo de um embate entre grupos com diferentes visões sobre o desenvolvimento de Florianópolis. Nesta ilha que não pode ter indústrias e, até agora, não soube se transformar adequadamente em cidade, há quem considere os grandes empreendimentos turísticos como solução econômica; outros defendem um controle maior às construções em nome da preservação da natureza e são acusados, por isso, de estar contra o progresso. Para os defensores do Costão Golf, o condomínio será um exemplo de organização urbanística no Capivari, onde loteamentos irregulares aumentaram muito nos últimos anos, e também para Florianópolis. Os críticos opinam, contudo, que o projeto, por mais qualificado que seja, apresentou falhas e gerou questionamentos, potencializados por omissões e incoerências do poder público. Por esses motivos, o empreendimento talvez não seja o melhor exemplo a ser seguido. Do silêncio ao caos A cidade avança vorazmente sobre o passado do Sítio do Capivari. As servidões, ruas de chão estreitas, longas e sem calçadas, rasgam os últimos terrenos baldios, e abrem o caminho para novas casas. As plantações de subsistência não existem mais e pequenos estabelecimentos comerciais, como mercados, farmácias e lojas de material de construção, proliferam. O silêncio e a tranqüilidade da localidade já não são os mesmos de antigamente. Em menos de vinte anos, o Capivari deixou de ser sítio para se tornar um bairro­dormitório do Distrito de Ingleses, e sofrer os efeitos de uma ocupação sem controle.
10 Sentada à mesa, a uruguaia Ana Gabriela Lalane recorda essas transformações radicais. “Era tudo campo quando eu vim pra cá. Não tinha iluminação pública, telefone, não tinha nada”, detalha enquanto observa, através da janela, o fim do entardecer. Antes de se levantar para ir à cozinha e preparar um chimarrão, esta mulher de meia­idade sorri sem mostrar os dentes e resume parte de sua vida: “Vi a degradação do Capivari”. Ana Gabriela está em Florianópolis desde 1980 e mora no Capivari há quinze anos, junto com a filha Fabiana. As duas vivem em um aprazível chalé de dois andares, escondido entre as árvores – o terreno foi comprado pelos pais de Gabriela, fugitivos da ditadura uruguaia. Eles foram atraídos pela beleza dos campos e dos morros, uma beleza bucólica que começou a desaparecer em meados da década de 90, quando foi concluída a pavimentação da SC­406. A rodovia é mais conhecida como João Gualberto Soares, em homenagem a um antigo político da região, e surgiu como caminho de areia no século XVIII, aberto pelos colonizadores açorianos. Ela atravessa o Capivari e o bairro Rio Vermelho para interligar os Ingleses à Lagoa da Conceição, dois dos principais pontos turísticos da Ilha de Santa Catarina. Com a chegada do asfalto, construções se multiplicaram nas duas margens e a rodovia virou avenida de dois bairros cada vez mais populosos. A estrada passa pela parte mais alta do Capivari, chamada de Sítio de Cima. Aí ficam a casa de Ana Gabriela, o Costão Golf e a melhor vista dos Ingleses: os morros ainda verdes, as dunas e a distante Ilha do Arvoredo contrastam com um mar de telhados de vários quilômetros e uma muralha de prédios que escondem a praia. Este é o resultado de um crescimento desordenado que atropela os Ingleses e, mais recentemente, o Capivari. “E pensar que era tudo estrada de chão com grandes propriedades de gado”, acrescenta a moradora uruguaia quando retorna da cozinha. A ocupação neste balneário é uma das conseqüências da longa mudança pela qual Florianópolis passou na última metade do século passado. O Brasil começava a efervescer. Políticas nacionais de urbanização dos governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek estimulavam a construção de estradas, o desenvolvimento de cidades e a transformação das capitais estaduais em regiões metropolitanas e pólos de modernização. Na época, Florianópolis era uma província de 50 mil habitantes, de costumes rurais, e sobrevivia economicamente por causa do funcionalismo público. A produção da pesca e da agricultura decaía desde a inauguração da Ponte Hercílio Luz em 1926 e a entrada facilitada de bens produzidos no continente. Nos anos 60 e 70, o crescimento da cidade começou a se intensificar com a implantação de uma universidade federal e de empresas estatais.
11 Funcionários de classe média, das regiões Sul e Sudeste, migraram para atender a demanda em empregos que os nativos não tinham qualificação para ocupar. Diferentes padrões de vida e comportamento alteraram o cotidiano da cidade e rendas maiores provocaram um boom na construção civil, sobretudo na região central da Ilha. Estradas foram feitas para integrar as regiões mais afastadas e impulsionar a nova vocação econômica. “A vocação para o turismo nasce quando planos governamentais da década de 70 vislumbram a possibilidade de explorar o potencial turístico de Santa Catarina e, em particular, de Florianópolis”, detalha o livro Uma cidade numa ilha 1 , uma das melhores obras sobre a transformação da capital catarinense. “Incrementa­se a busca e a ocupação das praias pela população local e, principalmente, por turistas estaduais, interestaduais e estrangeiros, que transitam pela BR­101, recém­construída e asfaltada.” 2 O potencial turístico do norte da Ilha interrompeu o isolamento de quase um século e meio dos Ingleses. A construção das rodovias SC­401 e SC­403 terminou com as dificuldades de acesso provocadas pela cadeia de morros da região e pelos 36 quilômetros de distância do Centro. Elas possibilitaram a vinda de uma série de melhorias, como energia elétrica, sistema de telefonia, escola e posto de saúde. Por outro lado, atividades tradicionais entraram em decadência com o incremento do turismo. A orla dos Ingleses era destinada à pesca e o interior era área agrícola. Enquanto a atividade pesqueira ainda se manteve como alternativa econômica para parte da população, a agricultura, já prejudicada pelas péssimas características do solo arenoso e ácido, praticamente desapareceu por causa do mercado imobiliário, muito mais rentável. As terras, até então de uso comum, valorizaram a partir da década de 70. “A posse da terra vai sendo transferida de pescadores e agricultores para veranistas, turistas e grupos econômicos interessados na implantação de residências de veraneio ou de empreendimentos de natureza turística”, descreve a pesquisadora Marilú May em sua dissertação 3 para o Curso de Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “A terra deixa de ser rural para ser urbana.” 4 A construção civil, o comércio e os serviços se expandiram nos anos 80, diante da vinda maciça de veranistas e turistas (especialmente os argentinos), além de novos moradores. 1 CENTRO DE ESTUDOS CULTURA E CIDADANIA. Fundação Nacional do Meio Ambiente e Ministério do Meio Ambiente. Uma cidade numa ilha: relatório sobre os problemas sócio­ambientais da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Insular; CECCA, 1997. 248 p. 2 Ibidem, p. 111. 3 MAY, Marilú Angela Campagner. Implantação de obr as públicas em núcleos tr adicionais: o caso da praia dos Ingleses, na Ilha de Santa Catarina. 148 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1995. 4 Ibidem, p. 52.
12 A vila de pescadores passou a ser um dos canteiros de obras mais agitados de SC, com a construção de prédios, hotéis e pousadas. A população da região dos Ingleses duplicou nessa década, passando de 3 mil para 6 mil pessoas. “Os nativos assistiram com fascínio a esta transformação. Suas terras foram supervalorizadas de uma hora para outra, acelerando os deslocamentos locacionais dentro da própria comunidade”, conta Tânia Ferreira em sua pesquisa 1 sobre o crescimento dos Ingleses. Com o preço valorizado, os antigos moradores optaram por vender parte dos terrenos, próximos da praia ou da estrada principal, a SC­403. O dinheiro da transação era usado para melhorar as próprias casas ou se recolher para lugarejos como o Capivari, onde ainda se plantava um pouco de mandioca, feijão, milho e laranja. “Eram terrenos semelhantes”, lembra o engenheiro agrônomo Saul Bianco. Natural de Caixas do Sul (RS), ele veio para Florianópolis em 1984 para trabalhar na nova matriz do departamento de fumo da Souza Cruz. Apesar de morar na recém­criada Avenida Beira­Mar Norte, o engenheiro desejava viver em um local mais tranqüilo e comprou um terreno de quase 15 hectares nos limites do Capivari com o Rio Vermelho. “Meu chefe até perguntou se eu tinha certeza se queria comprar essa área”, sorri. Hoje, Bianco é vizinho do Costão Golf e, dos muitos moradores “estrangeiros” da localidade, certamente é um dos mais antigos, a ponto de dar nome a um dos poços de abastecimento da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), construído em sua propriedade. Os olhos deste homem barbudo e bem humorado se apertam e suas rugas ficam mais visíveis quando detalha as diferenças daquela época e da atual. “O trânsito era menor, mas era brabo enfrentar a estrada de chão.” Esta estrada, a João Gualberto, dividia o terreno dele em duas partes. O maior trecho, de 12 hectares, estava do lado leste da pista e terminava nas dunas. Ali, o morador gaúcho construiu a primeira de suas três casas. O dono do Costão Golf, Fernando Marcondes, interessou­se por essa área, no limite sul do campo, e chegou a caminhar por ali para avaliá­la, mas não houve uma proposta concreta – o engenheiro acabou vendendo o terreno para um grupo de investidores em 2005. As outras duas residências foram feitas durante a década de 90, no topo de um pequeno e íngreme morro que fica no outro lado da rodovia. Máscaras de ferro decoram o hall de entrada da casa atual e tapetes acomodam os passos no corredor que leva à sala de jantar. A visão que se tem dali dispensa qualquer foto 1 FERREIRA, Tânia Márcia Machri. Distr ito de Ingleses do Rio Ver melho – Flor ianópolis: um espaço costeiro sob a ação antrópica. 151 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999.
13 aérea para entender os impactos da ocupação: uma seqüência de casas, na direção norte, estende­se por toda a planície até alcançar os prédios colados na praia. Com um cigarro na mão, Bianco aponta para a cruz da torre de uma pequena igreja. “Quando cheguei aqui, só havia propriedades agrícolas, desde o Rio Vermelho até os Ingleses. Aqui no Capivari tinha aquela igreja e, no máximo, 10 casinhas ao redor.” A ocupação foi tão expressiva que o tempo agora não passa mais devagar no Capivari. Dados de 2006 do posto de saúde mostram que a localidade concentra 75% da população do Distrito dos Ingleses. Cálculos realizados pelo Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf), através da coleta de lixo, estimam uma população fixa de 35 mil a 40 mil na região. Logo, a população atual do Capivari seria de 26 mil a 30 mil pessoas. “O problema dessa ocupação é que não houve planejamento”, ressalta Bianco enquanto fala dos loteamentos irregulares que cortaram pastos e plantações com servidões e os repartiram em lotes minúsculos, de apenas 360 metros quadrados em média, estando abaixo dos 450 metros mínimos estabelecidos por lei. Como estes loteamentos têm poucas ligações entre si e com as três principais ruas do Capivari, muitas servidões são somente ruas de areia e lama sem saída. O Capivari repetiu os erros que aconteceram nas áreas próximas à Praia dos Ingleses, onde não houve também um controle efetivo do poder público sobre o crescimento. De acordo com a geógrafa Tânia Ferreira 1 , faltaram leis mais específicas no Plano Diretor dos Balneários, criado pelo Ipuf em 1985 para regulamentar a urbanização das praias e do interior da Ilha. Este planejamento acompanhou a versão para o distrito­sede de Florianópolis (área central da Ilha e a parte continental), elaborada em 1978 e atualizada em 1997. “A incessante busca do lucro e de vantagens imediatas, por parte de grupos econômicos, veranistas e residentes, têm induzido o Legislativo Municipal a efetuar alterações no Plano Diretor dos Balneários, provocando prejuízos na qualidade de vida da sociedade presente e futura. O resultado desse processo materializa­se em ocupações irregulares e desordenadas de áreas de preservação permanente”, acrescenta 2 . O primeiro modelo do Plano Diretor dos Balneários previu uma população potencial de 330 mil habitantes na Ilha até 2005. O Ipuf, no entanto, teve de alterá­lo, pois técnicos da Casan estimaram que a empresa de água teria condições de abastecer somente 220 mil 1 FERREIRA, Tânia Márcia Machri. Distr ito de Ingleses do Rio Ver melho – Flor ianópolis: um espaço costeiro sob a ação antrópica. 151 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999, p. 123. 2 Ibidem. Ela cita a construção de casas nas dunas, o desmatamento nos morros, o aterro de banhados e a retirada da vegetação de restinga da orla marítima como conseqüências deste crescimento.
14 pessoas. “Para conter a ocupação, foi preciso aumentar o tamanho dos lotes mínimos nos balneários para 450 metros quadrados e deixar grandes áreas rurais do Capivari e da região vizinha, o Rio Vermelho, como vazios urbanos”, explica o arquiteto José Rodrigues da Rocha, que participou da criação do Ipuf em 1977 e dos planos diretores da cidade. Raios solares opacos atravessam as frestas das venezianas azuis­piscina da gerência de planejamento do instituto, uma grande sala sem divisórias e com diversas caixas com rolos de mapas sobre as mesas. Rocha, diretor desta gerência, olha rapidamente para a agenda e os dois celulares antes de prosseguir com a história do zoneamento no Capivari. “Estas áreas rurais poderiam ter edificações, mas não sofrer parcelamento do solo”, ressalta com sua voz professoral. A fiscalização frouxa da prefeitura, porém, permitiu que essas terras fossem ocupadas. Como não existiam parâmetros previstos por lei, os loteamentos foram feitos irregularmente. Não houve uma infra­estrutura adequada para a construção das casas, tampouco respeito ao espaço que deveria ser destinado para calçadas e à população. O resultado deste processo é alarmante: não há hoje sequer uma praça ou área comunitária em toda a região dos Ingleses. “O aspecto cultural dos terrenos também pesou nesta ocupação, por causa do fracionamento hereditário”, prossegue o diretor do Ipuf, ao abordar um problema que se repetiu em outras áreas da Ilha. Os açorianos e seus descendentes tinham a tradição de repartir seus terrenos longos e estreitos em diversos lotes para deixar de herança aos filhos. As áreas cada vez mais fatiadas e ocupadas impediram a abertura de ruas transversais que ligassem as servidões. “Não tem desenho urbano. Para consertar, só com cirurgia”, resume Rocha em seu diagnóstico. Sem a criação de quadras, o sistema de trânsito no Capivari está comprometido e, para piorar, a largura das ruelas existentes só permite a passagem de um carro por vez. As servidões estão espalhadas pela cidade. Muitas delas foram oficializadas pela Câmara de Vereadores de Florianópolis para permitir que as empresas concessionárias de água e energia atendessem às demandas dos moradores. Ao invés de combater a ocupação desordenada, o poder público foi conivente e consolidou o caos urbano em vários lugares. “Se a Ilha fosse toda ocupada com campo de golfe, seria muito mais bem preservada do que com esses loteamentos clandestinos”, opina o morador Saul Bianco, que é favorável ao Costão Golf. Na planície dos Ingleses, só dois trechos permaneceram intactos ao caos urbano. Um deles é o Parque Estadual do Rio Vermelho, entre a Praia do Moçambique e a costa leste da Lagoa da Conceição; o outro se estende por um quilômetro, do fim do Capivari até o início do
15 Rio Vermelho. Da sala de sua casa, Bianco aponta para essa segunda área e garante que ela continuará ilesa. “O crescimento que veio dos Ingleses e passou pelo Capivari deu um salto aqui e continuou no Rio Vermelho.” Um fenômeno semelhante de ocupação ocorre na Praia do Santinho, ao leste da planície e das dunas dos Ingleses. As casas desta localidade estão em condições irregulares, pois foram construídas sobre uma faixa de restinga, área de preservação permanente. O início do crescimento acelerado no Santinho e no Capivari foi simultâneo, durante a década de 90, mas a vinda dos famosos empreendimentos vizinhos ocorreu em fases distintas. A localidade rural, por exemplo, já estava totalmente transformada antes da chegada do Costão Golf; por outro lado, a praia ainda se restringia a uma vila de pescadores quando iniciaram as obras do Costão do Santinho. Principal estrela da rede hoteleira de Santa Catarina, o famoso resort de Florianópolis foi eleito o melhor do país entre 2005 e 2007 pela revista Viagem e Turismo, da editora Abril. De proporções jamais vistas antes na Ilha, ele foi o primeiro projeto turístico do empresário Fernando Marcondes de Mattos. A conquista do costão Filho de juiz e de professora, Fernando Marcondes nasceu em Florianópolis em 1938, mas viveu a infância e juventude em diversas cidades catarinenses. A família sempre se mudava quando o pai era transferido para outra comarca. A profissão paterna influenciou e convenceu Marcondes, desde os primeiros anos de aprendizado, a entrar na Faculdade de Direito. Resolveu estudar na Universidade Federal de Santa Catarina na metade dos anos 50 e saiu de Tubarão, no sul do estado, para morar sozinho na capital catarinense. Apesar de ter se formado em Direito, destacou­se desde o início da carreira nas áreas administrativa, política e empresarial. A trajetória começou como secretário­particular do economista Alcides Abreu, que estruturou o vitorioso plano de campanha de Celso Ramos ao governo do estado em 1960 e assumiu a pasta de planejamento. Marcondes passou a ser assessor de Abreu no governo e participou da criação do Banco do Estado de Santa Catarina (Besc) e do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE). Divergências na escolha do candidato sucessor a Celso Ramos, porém, motivaram a saída de Abreu da gestão e Marcondes, em solidariedade ao homem que considera seu mentor, também pediu para ser exonerado. Os empregos seguintes acabaram afastando­o da Ilha. Marcondes voltou a morar no sul de SC para comandar a direção financeiro­comercial da Sociedade Termelétrica de
16 Capivari. Depois viveu no Rio de Janeiro, onde participou da criação e da gestão da Eletrosul. Com o bom desempenho da estatal de energia, o governo militar decidiu mudar a sede dela para uma das três capitais da região Sul; após aceitar a recomendação de pesquisas internas, transferiu­a para Florianópolis em 1976. Para Marcondes, que coordenou estes estudos, isto significou a possibilidade de voltar à cidade natal. Nos onze anos de ausência, muitas mudanças drásticas ocorreram. Aterros foram feitos na baía norte da Ilha para permitir a construção da Ponte Colombo Salles e da Avenida Beira­Mar. A área central se urbanizava rapidamente e a população quase dobrou, passando de 100 mil moradores para 190 mil em vinte anos. Embora não estivesse na lista de divulgação dos principais pontos turísticos da Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), Florianópolis passou a atrair turistas argentinos, uruguaios e de outros estados do país. A rede hoteleira crescia e a maior ocupação acontecia nas praias da costa norte. Era por lá que Marcondes passeava nas manhãs de sábado desde que voltara à Ilha. “Quase sempre sozinho, percorri, entre outros locais, a Lagoinha, que ainda continua como uma das praias mais bonitas de Florianópolis; a Praia Brava, Canasvieiras, Ponta das Canas, Jurerê, Ingleses e Santinho, que eram bem diferentes do que são hoje”, lembra na autobiografia Saga de um visionário1 . Sem uma finalidade ainda definida, adquiriu vários terrenos nessas praias, mas precisou vendê­los para reforçar o caixa de seu primeiro negócio empresarial, a Indústria de Plásticos S.A. (Inplac), criada em 1974 em Biguaçu, cidade da Grande Florianópolis. No fim dos anos 70, a empresa estava financeiramente melhor e Marcondes pôde comprar um novo terreno, desta vez no costão sul da Praia do Santinho, localizada na região dos Ingleses. Apaixonado pelo local, ele compraria, no total, 28 terrenos, com uma área total de um milhão de metros quadrados. “Era raro o sábado que eu não estivesse aqui para percorrer e conhecer profundamente as áreas já adquiridas e completar a gleba necessária para desenvolver um projeto. Um desses lotes custou­me cinco anos para convencer o proprietário a fechar o negócio”, revela 2 . O objetivo para estas terras também foi definido: construir o complexo turístico do Costão do Santinho. Marcondes e a esposa Iolanda realizaram quase 15 viagens ao exterior, em busca de um modelo adequado para esse projeto e encontraram a resposta em Marbella, na Espanha. Este balneário era um dos principais pontos da expansão turística mundial nos anos 1 2 MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p. Ibidem, p. 192.
17 80; ao invés de grandes hotéis, destacava­se com vilas com pequenos prédios, chamadas resorts. O modelo era recente no mundo, mas agradou ao empresário, que transformou o seu projeto em um complexo de 14 vilas com traços portugueses e um hotel. Apresentado no fim de 1989, o Costão do Santinho provocou reações de espanto. “Realmente, o projeto nada tinha a ver com a cultura imobiliária da Ilha, ou com as coisas e os apetrechos existentes na área dos hotéis turísticos em funcionamento”, admite Marcondes 1 . As obras dos dois primeiros blocos logo foram afetadas pelo Plano Collor, assim como a venda dos apartamentos. A falta de dinheiro e tempo obrigou o empresário a contrair empréstimos para manter o projeto e a sair da Secretaria Estadual do Planejamento e Fazenda da gestão de Vilson Kleinübing (PFL), governador de SC na época. Os problemas, no entanto, não tiraram o ânimo de um homem que se considera um guerreiro. “Minha luta para vencer começou já no ventre de minha mãe.” 2 Dificuldades financeiras e de saúde assolaram os pais durante a gravidez de Marcondes em 1938. João Thomaz era promotor público, mas estava impedido de trabalhar; um derrame paralisou o lado esquerdo do corpo, impediu­o de se locomover e o deixou na cama por meses. A mãe, Maria de Lourdes, ficou desesperada. O marido estava doente, ela tinha uma criança no ventre e outra, o primeiro filho, para cuidar. Lourdes chamou um médico e pediu para abortar. “Conhecendo minha mãe como a conheci, somente um quadro desolador a teria movido para um gesto de tamanha intensidade, que feria todos os seus princípios”, relata o empresário 3 . O médico aplicou algumas injeções, mas o abortou não ocorreu. Pediu então para Lourdes deixar a criança nascer. Ela concordou, esperou pelo fim da gravidez e deu à luz a um menino que sempre chamaria de teimoso. Marcondes só soube desses fatos através de sua esposa Iolanda, para quem Lourdes contara a história. A data do nascimento, 13 de dezembro, passou então a ser extremamente especial para ele: as duas primeiras vilas do Costão do Santinho foram inauguradas nesse dia em 1991, assim como os outros blocos nos anos seguintes e, agora, o Costão Golf em 2007. 1 MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p., p. 195. Ibidem, p. 40. 3 Ibidem, p. 39.
2 18 O sonho é maior do que a lei A idéia de implantar um projeto imobiliário com campo de golfe em Florianópolis acompanha Marcondes há quase 20 anos. Assim como no caso do Costão do Santinho, ele decidiu procurar inspiração em projetos bem sucedidos no exterior para achar um modelo ideal. Em 1989, viajou para Argentina, maior pólo de golfe na América do Sul, e visitou um empreendimento de proporções gigantescas: o condomínio Las Praderas de Lujan, da região de Buenos Aires, com 270 hectares (cinco vezes o tamanho do Costão Golf), 550 casas, três campos de nove buracos e cinco campos de pólo. O empresário conheceu nesse condomínio o argentino Ricardo Agüero, filho do criador do projeto e uma pessoa sempre ligada ao golfe. “Comecei a caminhar num campo ainda criança”, recorda Agüero, que hoje é diretor do Costão Golf. Durante uma entrevista realizada no fim de setembro de 2007, ele fica cerca de meia hora explicando como o esporte é uma filosofia de vida. Ao ser perguntado como começou a jogar, este homem de meia­ idade, de cabelos e cavanhaque grisalhos, cala­se por alguns instantes na confortável sala de reuniões e vendas do escritório do empreendimento, que fica ao lado do campo. Uma das mãos segura o queixo; o rosto moreno de tanto pegar sol permanece sério e voltado para cima, como se procurasse por lembranças suficientes antes de começar a revelá­ las. A chuva que despenca violentamente lá fora quase emudece suas palavras pausadas, calmas e praticamente sem sotaque. Agüero começou a praticar golfe com 12 anos por influência de seu pai, Héctor, que jogava em diferentes clubes do país. A paixão do pai pelo esporte era tão forte que resolveu formar uma sociedade civil sem fins lucrativos com os amigos para construir um campo próprio. Com apenas 17 anos, Ricardo Agüero trabalhou neste projeto, participou da plantação de 40 mil árvores e tomou vocação pelo esporte. Depois de estudar agronomia, passou a atuar como desenhista de campos e, em 1982, fundou uma empresa de design chamada Resorts, junto com Angel Reartes, que projetou o condomínio Las Praderas. Em 1989, Marcondes e Agüero fecharam um contrato para criar o Florianópolis Golf Club, um condomínio fechado com campo de golfe de 18 buracos em Ratones, no norte da Ilha. O terreno ficava ao lado da estrada dos valorizados balneários de Jurerê Internacional e Canasvieiras. “Era uma bela área. As restrições ambientais não eram tão grandes na época e o estudo de impacto ambiental foi aplaudido na apresentação”, conta Agüero. O empreendimento, porém, não deu certo por falta de acordo entre Marcondes e a incorporadora. “Foi um projeto muito importante, que coincidiu com a explosão do golfe no
19 mundo”, lamenta o diretor do Costão Golf. Durante a década de 90, o empresário brasileiro continuou a investir na idéia de fazer um campo e adquiriu terrenos no Sítio do Capivari, a um quilômetro do Costão do Santinho, separados apenas pelas dunas dos Ingleses. A escolha desta área era extremamente estratégica para Marcondes: o resort, que vinha crescendo ano após ano, deveria ter um campo de golfe para se tornar um dos melhores do mundo. “O estabelecimento teria seu futuro comprometido se não dispusesse de um campo”, avalia 1 . Os terrenos ficavam ao lado da confluência entre a estrada Dário Manoel Cardoso, via importante do Capivari que passa perto das dunas, e a rodovia João Gualberto. Em pouco tempo, o empresário já havia comprado cerca de 40 hectares, o equivalente a 400 mil metros quadrados. Faltavam de 10 a 20 hectares para poder viabilizar o projeto, mas novos problemas o obrigaram a interromper os planos. “O Costão do Santinho entrou numa situação financeira bastante difícil, não nos restando alternativa senão vender as áreas adquiridas”, explica na autobiografia 2 . Os novos proprietários dos terrenos eram o argentino Carlos Alberto Gomis, o inglês Jonathan Rupert Bacon Heald e o brasileiro Guilherme Zambrana, três empresários que tinham o mesmo desejo de construir um conjunto residencial com campo em Florianópolis. O projeto se chamava Desterro Golf Clube e, para implantá­lo, criaram a sociedade Empreendimentos Internacionais anos depois, em 1999, para atuar no turismo, construção civil e compra e venda de imóveis próprios. Eles aumentaram a área adquirida para 57 hectares, dos quais 45 estão na planície, à direita da rodovia João Gualberto Soares – os outros 12 hectares ficam à esquerda, na encosta dos morros. A Empreendimentos buscou incorporadoras e empresas dedicadas à construção de campos de golfe no Brasil, Argentina e Estados Unidos. No fim, preferiu escolher um pretendente local, a Santinho Empreendimentos Turísticos, que pertence ao próprio Marcondes, para realizar a obra. A parceria resultou em um acordo de permuta: a Santinho ficaria encarregada de incorporar e construir o campo de golfe e o condomínio, recebendo em troca mais da metade dos lotes que seriam criados e comercializados. O contrato de prestação de serviços foi assinado pelas duas empresas em outubro de 2002 e, um mês depois, contrataram Ricardo Agüero e Angel Reartes, da Resorts, para elaborar o projeto, que passou a se chamar Condomínio Residencial Costão Golf. 1 FERNANDES, Simone. Cada vez mais vip: Florianópolis ganha condomínio com campo de golfe. Revista Amanhã, agosto 2005. Disponível em <http://amanha.terra.com.br/notas_quentes/notas_index.asp?cod=2415>. Acesso em: 16 março de 2008. 2 MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p., p. 234.
20 Os desenhos levaram seis meses para ficar prontos, mas precisaram ser totalmente alterados. “A questão da rodovia modificou tudo”, justifica Agüero, referindo­se à intenção do poder público de duplicar a João Gualberto, o que obrigou os empresários a deixar um espaço maior sem construção. Com as modificações efetuadas, a Resorts planejou 181 lotes, com 900 metros quadrados em média, ao redor de um campo de nove buracos para o setor leste do terreno, além de um teleférico sobre as dunas para ligar o conjunto residencial ao Costão do Santinho. A parte oeste se chamará Altos do Costão Golf e terá 13 vilas com 120 apartamentos. Tendo o projeto enfim concluído, Marcondes o enviou à prefeitura de Florianópolis no fim de julho de 2003, para obter sua aprovação como complexo de usos turístico, esportivo e residencial. A prefeitura decidiu que os órgãos responsáveis por essa avaliação fizessem um trabalho conjunto para evitar possíveis conflitos de análise, explica o diretor José Rodrigues da Rocha, que foi um dos representantes do Ipuf 1 . Além de mostrar as características do empreendimento, o projeto trazia uma proposta para mudar o zoneamento do Capivari. A aprovação, vital para os interesses de Marcondes, seria a segunda alteração na localidade no mesmo ano. No dia primeiro de julho de 2003, a prefeitura tinha sancionado a Lei Complementar n° 116 para regulamentar a ocupação no interior das zonas urbanas dos distritos, após quase vinte anos de loteamentos irregulares. As regiões rurais foram transformadas em áreas exclusivas para residências enquanto planos específicos de zoneamento não fossem preparados. Uma exceção foi aberta às áreas situadas ao longo das ruas principais, em uma distância de até cem metros. A lei as classificou como áreas mistas de serviço e proibiu a construção de condomínios residenciais multifamiliares, categoria na qual o Costão Golf se encaixava. O empreendedor sugeriu então modificar o zoneamento para área residencial predominante, o que permitiria a implantação do projeto. O grupo de trabalho da prefeitura aceitou a proposta e determinou que as casas tivessem, no máximo, dois pavimentos e ocupassem apenas 40% dos lotes. Esta taxa “é considerada uma baixa densidade habitacional e, portanto, mais restritiva que a ocupação atual quanto aos índices urbanísticos”, argumenta no parecer Elizabeth Amin Vieceli, diretora superintendente da Floram na época. De acordo com o diretor Rocha, o Ipuf não constatou problemas maiores no projeto do condomínio. “O Costão Golf é adequado do ponto de vista urbanista e vai qualificar o espaço da região”, garante. A análise do instituto e dos outros órgãos foi favorável, mas seis medidas 1 Também participaram do estudo integrantes da Procuradoria Geral do Município, da Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis (Floram) e da Secretaria de Urbanismo e Serviços Públicos (Susp).
21 compensatórias solicitadas por eles precisam ser obedecidas, além da questão da João Gualberto Soares. “O projeto deverá respeitar uma faixa de domínio de 60 metros, incluindo a rodovia existente, livre de qualquer construção, reservando­se, assim, a área necessária para uma futura duplicação”, determina o documento, enviado ao gabinete da ex­prefeita Ângela Amim em 17 de outubro de 2003. Seis dias depois, a prefeita repassou a proposta como Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 513 para a Câmara de Vereadores. Um novo parecer foi concluído, em 19 de novembro, pelo engenheiro Antonio José da Silva Filho, da Assessoria de Engenharia, Urbanismo e Arquitetura. Ele sugeriu a aprovação do projeto, desde que as comissões de Justiça, Meio Ambiente e Viação da Câmara atendessem a uma série de recomendações, emendas e questionamentos. Entre os temas abordados pelo assessor, destacam­se duas questões. Uma delas é o teleférico projetado para ligar o Costão Golf ao Costão do Santinho. Silva Filho indagou se isso não fere o Decreto Municipal n° 112, de 1985, que proíbe quaisquer atividades nas áreas tombadas nos campos de dunas dos Ingleses e Santinho, como edificações e escavações, seja para preparar o terreno para ocupação, seja para a retirada de areia. O artigo da lei justifica que “os campos dunares existentes em Florianópolis (...) são bens de uso comum do povo, ainda que particulares invoquem em seu favor direitos de propriedade sobre porções da área”. Um teleférico neste local atenderia claramente o que a lei define como “objetivos particulares”, afinal permitirá o fluxo entre os visitantes do resort e os moradores do condomínio. A propaganda do empreendimento, porém, concede ao teleférico um caráter público ao alegar que a população poderá utilizá­lo, mediante o pagamento de ingressos. “É claro que existe interesse, esse é um empreendimento e se visa lucro”, admitiu o engenheiro Carlos S. Thiago de Carvalho, diretor de obras do Costão Golf 1 . Em nenhum momento os órgãos da prefeitura citaram este choque de interesses no parecer. Ao invés de vetar o equipamento, o grupo de trabalho recomendou, como medida compensatória, um convênio entre o empreendimento, o poder municipal e uma universidade local para criar o Parque das Dunas e destinar 10% da receita líquida das tarifas do teleférico para remunerar o uso do espaço aéreo. Esse dinheiro será encaminhado ao Fundo de Integração Social e utilizado para transferir as famílias que ocuparam, a partir dos anos 80, o norte das dunas, a um quilômetro e 1 ABREU, Miriam Santini de. Ação popular é tachada de “alvoroço” por quem visa lucro. J or nal Cir culação, Florianópolis, jul. 2004.
22 meio do Costão Golf. Chamada de Favela do Siri e/ou Vila do Arvoredo, esta localidade com 800 moradores e condições precárias de vida passou a ser um dos argumentos preferidos dos defensores do Costão Golf durante as discussões provocadas a partir de 2005, após o embargo das obras.
O outro ponto questionado por Silva Filho, da assessoria de Engenharia da Câmara, foi o sistema viário da região do Capivari. “O Ipuf, ao determinar uma faixa para ampliação da João Gualberto, admitiu que aquela será a única ligação entre Ingleses e Rio Vermelho”, observa o morador Paulo Rizzo, professor de Arquitetura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A Estrada Dário Manoel Cardoso, que faz uma curva em frente ao Costão Golf antes de terminar na rodovia, poderia ser prolongada nos terrenos do empreendimento e das áreas vizinhas. “Daqui a 20, 30 anos, essa via alternativa poderia ser necessária. O instituto não pensou nisso”, adverte o professor Rizzo enquanto discorre e gesticula sobre a grande movimentação de automóveis na João Gualberto, que fica próxima à sua casa. “Não só o Capivari, mas o bairro Rio Vermelho também cresceu muito na última década e esta rodovia é a sua única saída. Além da ocupação nos Ingleses, não se pode esquecer a pressão de crescimento que vem do sul, da Lagoa da Conceição. Não é a largura da rodovia o principal ponto do sistema viário, mas a quantidade de alternativas. Quanto mais, melhor.” O engenheiro da Câmara segue essa linha de pensamento ao perguntar se “não haveria necessidade de reserva de espaços para vias próximas à base das dunas e a cada 400 metros, conforme diretrizes que vêm sendo adotadas na elaboração dos planos diretores”. De acordo com o projeto do Costão Golf, as ruas abertas dentro do condomínio serão de uso interno, sem integração com o sistema local. A assessoria jurídica da Câmara aprovou a mudança de zoneamento, prevista pelo Projeto de Lei Complementar nº 513, casos todas as orientações do parecer do engenheiro fossem cumpridas. No entanto, as dúvidas sobre a questão viária e boa parte das solicitações acabaram ignoradas pelos vereadores, que analisaram a proposta dentro de um prazo fora do comum. Em 24 de novembro, o vereador Gean Loureiro foi designado relator da Comissão de Justiça; na mesma data, concedeu parecer favorável e sugeriu o cumprimento integral das recomendações. Na semana seguinte, o projeto estava na Comissão de Viação e Obras Públicas, cujo relator, DJ Machado, convocou uma audiência pública no plenário da Câmara para 8 de dezembro, uma segunda, às 15h30.
23 A assessoria de Engenharia tinha recomendado a participação de diversas instituições, mas duas delas, os ministérios públicos do Estado e da União não puderam ir por causa de um fato, no mínimo, curioso: a sessão foi marcada justamente para o Dia Internacional da Justiça, quando não há expediente no Poder Judiciário e nos ministérios públicos de todo o país. O vereador Nildomar Freire (na época do PCdoB), o Nildão, destacou essa coincidência no início da audiência, avisou que promotores e procuradores talvez não viessem, e realmente acertou: nenhum apareceu. A economista Fabiana Lalane, moradora do Capivari e filha da uruguaia Ana Gabriela, participou dessa sessão e se impressionou com o clima tenso no plenário. “As posições estavam bem divididas”, recorda. De um lado, estavam movimentos sociais e integrantes da comunidade. Do outro, funcionários do Costão do Santinho e entidades, como o Rotary Club e a sucursal dos Ingleses da Associação Comercial e Industrial de Florianópolis. Participaram também representantes do Ipuf, Floram, Fundação Estadual de Meio Ambiente (Fatma) e Companhia Catarinense de Abastecimento e Saneamento (Casan). Fernando Marcondes de Mattos iniciou a sessão apresentando um vídeo de sete minutos sobre o Costão Golf e depois falou dos detalhes do empreendimento e de sua contribuição ao desenvolvimento de Florianópolis, à comunidade e ao meio ambiente. O empresário ressaltou a oferta de empregos abertos aos jovens 1 , como auxiliares dos praticantes do golfe, e a criação de uma escola de golfe para crianças e adolescentes carentes da localidade. Na seqüência, o público pôde participar fazendo perguntas e comentários. O professor Paulo Rizzo, da UFSC, aproveitou a oportunidade para criticar alguns itens do projeto de lei complementar, como o artigo sobre a quantidade de casas. “Isto não seria objeto de uma lei de zoneamento”, enfatizou. Na visão dele, o PLC 513 tinha origem num projeto urbanístico e arquitetônico já desenvolvido, ao qual a legislação buscava se adequar. Na entrevista concedida em sua casa, quatro anos depois, o professor foi mais direto: “Esta lei não tem a ver com planejamento, ela atende a interesses do empreendedor”. Outro questionamento partiu de Modesto Azevedo, então presidente da União Florianopolitana das Entidades Comunitárias (Ufeco), sobre a necessidade de se realizar Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) antes de se discutir mudanças no zoneamento da cidade, como no caso do Costão Golf. Desta forma, prosseguiu, os vereadores entenderiam melhor o projeto e sua viabilidade. 1 De acordo com a ata da audiência, o empresário não citou a quantidade de empregos que serão abertos aos jovens.
24 Ao invés de esclarecer as dúvidas do público, conta Fabiana Lalane, Marcondes perdeu a cabeça. “Ele ficou truculento e nervoso com simples questionamentos. Falava sem parar, gritava”, detalha. Os integrantes dos movimentos vaiaram o empresário, mas também sofreram pressões do lado pró­condomínio. Azevedo reclama que os associados da Ufeco e do Conselho Comunitário dos Ingleses (CCI) foram provocados por funcionários do Costão do Santinho. “Eles nos atacaram com o argumento de sempre, de que somos contra o desenvolvimento e a geração de empregos. É claro que queremos que Florianópolis cresça e se desenvolva, mas que haja sustentabilidade”, pondera. Em sua autobiografia, Marcondes considera esses opositores como pessoas descomprometidas com os interesses da cidade e os acusa de querer impedir a aprovação do projeto. “Todavia, prevaleceu o bom senso”, declara 1 , ao se referir à votação extremamente favorável da proposta. Houve apenas três votos contrários – um deles partiu de Nildão, o único vereador a criticar veementemente o Costão Golf durante a audiência. “Foi um circo montado para não haver questionamento”, descreveu Nildão sobre a sessão, em entrevista ao jornal­laboratório Zero2 , do Curso de Jornalismo da UFSC. Na tribuna, o ex­vereador comentou o processo de adensamento na cidade e o fetiche do emprego. “Este segundo ponto impede o debate e cria uma situação de maniqueísmo. Quem questiona qualquer coisa está contra [a geração de empregos]”, reforça, durante uma conversa no saguão do Tribunal Regional de Trabalho de Florianópolis, onde voltou a trabalhar após encerrar o mandato em 2004. Nildão também atacou, durante a audiência, a diferença de tratamento da Câmara para o Costão Golf em relação a projetos muito menos complexos. Marcondes lhe respondeu que o rápido trâmite era justificável. “No Brasil, a pressa não é inimiga da perfeição, é necessário ter pressa”, exclamou, além de elogiar a Câmara. “Ela está muito bem servida de 21 vereadores da mais alta competência, que estão trabalhando e ordenando a cidade com todas as suas dificuldades.” A vontade do empresário continuou a ser atendida sem maiores empecilhos. Um dia depois da sessão, o parecer do relator da Comissão de Viação, DJ Machado, aceitou a mudança de zoneamento e três emendas sugeridas pelo engenheiro Silva Filho. As recomendações e os questionamentos sobre o teleférico nas dunas e o sistema viário novamente não foram atendidos – o mesmo tratamento se daria na comissão seguinte, a de 1 MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p., p. 236. FRANÇA, F. Conivência da Câmara foi na madrugada de domingo [sic]. J or nal­labor atór io Zer o, Florianópolis, mar.­abr. 2005. P 4­5.
2 25 Meio Ambiente. Na quarta­feira, 10 de dezembro, o vereador João Batista foi nomeado como relator e, já no dia seguinte, apresentou o seu parecer favorável 1 . Entre 24 de novembro, quando o projeto chegou à primeira comissão, e 11 de dezembro, transcorreram 14 dias úteis. Em apenas duas semanas, a alteração no Plano Diretor que permitiria a construção do condomínio já estava pronta para ser votada. A aprovação do PLC 513 ocorreu na última sessão do ano, à meia­noite de 16 de dezembro – a importância do fato para o Diário Catarinense, principal jornal de Florianópolis e de Santa Catarina, se resumiu a uma pequena nota. Na semana seguinte, às vésperas do Natal, a ex­prefeita Ângela Amin sancionou a alteração através da Lei Complementar nº 133; assim, o Costão Golf venceu sua primeira etapa de disputas políticas e judiciais. A rápida mudança de zoneamento, porém, não surpreende tanto. Para Paulo Rizzo, especialista em Urbanismo, Florianópolis é uma cidade onde os agentes de mercado com poder interferem e influenciam no Plano Diretor de acordo com os seus interesses 2 . Segundo o presidente do Ipuf, Ildo Rosa, em declaração feita ao jornal Diário Catarinense3 , os vereadores já realizaram 480 mudanças no plano atual, principalmente no zoneamento urbano. A declaração de Rizzo ganha mais força ao se verificar que o Costão Golf já contava como certa a aprovação ainda quando o projeto mal começara a tramitar na Câmara. A etapa seguinte do cronograma do empreendimento era a realização dos estudos ambientais, que iniciou em 1° de dezembro, um dia antes de o projeto ser encaminhado para a Comissão de Viação, uma semana antes da audiência pública, dez dias antes de receber parecer favorável na Comissão de Meio Ambiente, duas semanas antes de a lei ser aprovada pelos vereadores e três semanas antes de ser sancionada pela então prefeita Ângela Amin. “A aprovação estava garantida desde o começo”, garante Nildão. “O roteiro já dizia isso. Ninguém na Câmara comentava as irregularidades.” No dia da votação, Fernando Marcondes de Mattos estava tranqüilo. “Ele parecia um representante da Câmara, tinha acesso a todos os gabinetes”, declarou Lázaro Bregue Daniel 4 , outro vereador (sem partido) que votou contra a mudança. *** 1 Uma entrevista com o vereador João Batista foi prometida por sua secretária, mas posteriormente ela não retornou mais aos pedidos de entrevista. 2 Isso foi demonstrado pelas gravações feitas pela Polícia Federal, reveladas após a Operação Moeda Verde em maio de 2007. 3 ROSA, Ildo. “Maioria dos imóveis é irregular”. Diár io Catar inense, Florianópolis, 6 mai. 2007. Entrevista concedida a Viviane Bevilacqua. 4 FRANÇA, F. Conivência da Câmara foi na madrugada de domingo [sic]. J or nal­labor atór io Zer o, Florianópolis, mar.­abr. 2005. P. 4.
26 Capítulo 2: Um pr ivilégio para poucos A pontualidade não é o único problema no dia inicial de disputa do Aberto Costão Golf Classic. Outra regra fundamental do golfe, o silêncio, não pode ser totalmente respeitada por causa das circunstâncias. Duas diferentes tropas se movimentam pelo campo sob ordens totalmente opostas. O primeiro grupo, os jogadores, é comandado pelas regras da competição. Eles devem ficar calados e parados nos momentos das tacadas para não atrapalhar a concentração do adversário. O público poderia acompanhá­los nesta jornada sem ruídos, mas os organizadores assim não permitem por motivos de segurança. Só resta, de consolo, observar as poucas jogadas próximas ao clube de golfe, como a saída do buraco 1 e a conclusão do buraco 9. O segundo grupo é composto pelos operários e funcionários do Costão Golf. São cerca de cem homens de chapéus azuis e camisas verde­claras, movidos pelas ordens do tempo e do dinheiro. Seu trabalho significa barulho e ignora o pacto de silêncio exigido pelo golfe. Enquanto estampidos metálicos anunciam o vôo de bolinhas, furadeiras, serras e martelos ressoam para erguer diversas tendas brancas, onde acontecerá a festa de inauguração dentro de três dias, e acelerar os últimos detalhes do clube de golfe recém­construído – os três meses de obras no fim de 2007 não foram suficientes para fazer o chafariz jorrar, não é possível usar os banheiros e a loja de equipamentos ainda não abriu. Os ruídos podem ser deselegantes para um esporte sinônimo de elegância, mas ao mesmo tempo são urgentes e alentadores para uma obra que ficou parada por dois anos. O Costão Golf de 13 de dezembro de 2007 ainda está longe de ser o Condomínio Residencial Costão Golf de bosques idílicos que aparece no site do projeto e deveria ter sido inaugurado há um ano, já com 30 casas prontas. Como o embargo atrasou o cronograma, as primeiras residências só começarão a ser feitas em abril de 2008, com mais de dois anos de atraso em relação ao plano original. A intenção agora é inaugurar o condomínio até dezembro de 2008. O clube de golfe está praticamente pronto, com campo, área de treinamento, bar e vestiário; falta somente a sede social, que terá sauna, restaurante, wine­bar e espaço para festas e eventos sociais. Por outro lado, é preciso concluir a estrutura do conjunto residencial e de seus atrativos: sistema de segurança 24 horas, com entrada restrita a moradores, sócios do clube de golfe e convidados 1 ; sistema de separação de lixo e estação de tratamento de esgoto; 1 Disponível em: <http://www.costaogolf.com.br/condEntrada.htm>. Acesso em: 16 março 2008.
27 rede de energia elétrica subterrânea e internet sem fio; e área comercial com “lojas de acordo com o padrão do condomínio” 1 . A propaganda do empreendimento é clara: o Costão Golf será um privilégio para 2 poucos , com charme e requinte, mais precisamente para quem puder pagar R$ 950 mil por uma casa de 300 metros quadrados em um lote (área média de 900 metros) ou até R$ 1,3 milhão por uma de 600 metros em dois terrenos. Os proprietários terão uma série de benefícios, como a utilização da Marina do Costão, no canto sul da Praia dos Ingleses, e do Clube de Lazer do Costão do Santinho – este com 30% de desconto. Eles também poderão desfrutar de aulas de golfe e de uma extensa central de serviços 3 , como apoio para churrascos e festas, babá (ou baby­sitter, informa o site do empreendimento), esteticista, entrega de comida (ou food­express), lavação de automóveis, lavanderia, manutenção de equipamentos domésticos, massagem, personal training , pet services, serviços de helicóptero, táxi especial e transporte escolar. Com toda esta logística, o Costão Golf pretende trazer um novo estilo de vida a Florianópolis e ingressar em um clube de empreendimentos cada vez maior, e com um crescimento cada vez mais rápido, no Brasil e em diversos outros países: os condomínios e resorts com campos de golfe. Este fenômeno começou durante a década de 70, tornando o campo uma opção de lazer, e ganhou força vinte anos depois com a explosão mundial do esporte e a proliferação dos turistas­golfistas, uma categoria de viajantes que fica mais tempo em hotéis e apresenta gastos mais elevados. Tacadas bilionár ias Embora a palavra golf tenha vindo do alemão kolb, que significa taco, a versão mais provável e aceita sobre a origem do esporte aponta para a Escócia do começo do século XV. O jogo teria surgido como uma brincadeira de pastores. Com seus cajados, eles batiam em pedrinhas para ver quem conseguia mandá­las mais longe e, reza a lenda, certa vez um deles acertou um distante buraco, o que seria a toca de uma lebre; os outros pastores gostaram da idéia e assim os pobres animais passaram a não ter mais sossego. Esta versão rústica do golfe ganhou mais adeptos no país a partir da fundação da Universidade de Saint Andrews em 1411, quando muitos estudantes, filhos de nobres, passaram a jogar. 1 Disponível em: <http://www.costaogolf.com.br/condEntrada.htm>. Acesso em: 16 março 2008. Disponível em: <http://www.costaogolf.com.br/empreendimento.htm>. Acesso em: 16 março 2008. 3 Disponível em: <http://www.costaogolf.com.br/condPay.htm>. Acesso em: 16 março 2008.
2 28 O sucesso foi tão grande que o rei escocês James II tentou proibir a prática do golfe em 1457 por motivos de segurança nacional: os soldados estariam jogando demais e se dedicando pouco nos treinamentos de guerra. O povo, porém, simplesmente ignorou o decreto, derrubado pelo governo de James IV. Três séculos depois, a capital Edimburgo entrou para a história do esporte ao fundar o primeiro clube do mundo, a realizar o primeiro campeonato e, sobretudo, a definir as regras modernas do jogo. Popular também na Inglaterra, o golfe se tornou conhecido em outros continentes com a expansão do Império Britânico, chegando a lugares como África do Sul, Índia, Hong Kong e Austrália, e conquistando rapidamente os Estados Unidos, que já tinham em torno de mil campos no começo do século XX. Com ingleses e americanos à frente de sua organização, o golfe se profissionalizou para evoluir e crescer em diversos lugares do mundo no século seguinte, sempre sendo visto como um esporte de elite. Esta imagem começou a se modificar nos anos 80, quando os custos para praticar o esporte decaíram e permitiram um acesso maior de pessoas de classe média, principalmente nos EUA, onde milhares de campos públicos foram criados. A explosão do golfe e a conquista de milhões de novos jogadores, porém, ocorreram uma década depois. “O golfe é o esporte que mais cresce no mundo em termos de negócio”, conta Ricardo Agüero, diretor­ técnico do Costão Golf, “e há três fatores que possibilitaram isso: a ligação do esporte com o meio ambiente, o turismo de alto padrão e o fenômeno Tiger Woods”. O americano Tiger Woods é novo símbolo do golfe desde a aposentadoria do lendário Jack Nicklaus, o maior jogador profissional de todos os tempos. Woods começou a se destacar logo no segundo ano de sua carreira profissional, quando ganhou o Masters de Golfe, um major , que é a principal competição do esporte 1 . No mesmo ano, tornou­se o número 1 do mundo mais jovem da história, com 21 anos, e superou a marca anterior, de um golfista de 29 anos 2 . De 1996 a 2007, o americano já venceu 82 torneios, entre os quais 13 majors. Embora ainda esteja atrás das 18 conquistas de Nicklaus, o jovem jogador é o único da história a ganhar as quatro edições anuais dessa competição em seqüência. O fato de Woods ser negro foi outro ponto relevante para torná­lo um fenômeno de mídia e marketing. A Associação de Golfistas Profissionais dos Estados Unidos (PGA, na sigla em inglês) proibia a participação de negros nos torneios até 1961 e teve dificuldades depois em eliminar o preconceito entre os jogadores. A vitória do jogador no Masters de 1997 1 Um major seria como um Grand Slam do tênis. SERIO, Denis Eduardo. Tiger Woods é o maior ícone do golfe das últimas décadas. Abr il Notícias, São Paulo, 27 fevereiro 2007. Disponível em: <http://www.abril.com.br/noticia/diversao/no_215721.shtml>. Acesso em: 16 março 2008.
2 29 diminuiu a imagem tradicionalmente conservadora do golfe, e a transmissão das partidas por emissoras internacionais ajudou a aumentar o interesse pelo esporte em outras culturas e países. “Tiger Woods é um ídolo mundial e exemplo para as crianças e os jovens”, acrescenta Ricardo Agüero. Mesmo que o esporte esteja ficando mais popular e ganhando praticantes de todas as idades, grande parte de seus adeptos continua sendo composta por empresários e executivos, que jogam para combater o estresse do dia­a­dia e gostam de conhecer novos campos. O fato de organizações empresariais em todo o mundo desenvolverem programas de atividades turísticas ligadas à natureza 1 também ajudaria a fortalecer o turismo do golfe. “O esporte tem elementos apreciados pelos turistas mais ricos, como a qualidade de vida e o contato com a natureza”, argumenta o diretor do Costão Golf. Este novo tipo de viajante é chamado de turista­golfista, com renda média anual de 45 mil dólares, gastos diários de 200 a 300 dólares nas viagens (incluindo hotel) e um consumo quatro vezes maior do que o turista convencional. De acordo com relatório feito pela consultoria européia Golf Benchmark Survey em 2006 2 , existem 57 milhões de golfistas no mundo, dos quais 13 milhões participam do mercado do turismo de golfe. O segmento fatura anualmente mais de US$ 16 bilhões no mundo todo, em lugares como Flórida (Estados Unidos), Algarve (Portugal) e Palmas de Mallorca (Espanha). O crescimento deste ramo do turismo é tão forte que os novos campos estão sendo construídos em larga escala, não por clubes, mas por resorts, hotéis internacionais e condomínios de luxo, que utilizam o golfe como principal atração do empreendimento. Muitos países, inclusive o Brasil, estão modificando o perfil de seus projetos a tal ponto que as grandes cadeias de hotéis agora só partem para investimentos em lugares onde possam construir campos 3 . Deste modo, o turismo de golfe se transformou no principal fator de expansão mundial do esporte. O impacto do novo modelo de construção no Brasil possibilitou um aumento no número de praticantes nunca visto antes na história do país. O esporte chegou por aqui no fim do século XIX, trazido por engenheiros ingleses e escoceses que vieram construir a Estrada de Ferro Santos­Jundiaí (a São Paulo Railway) e acabaram fazendo na capital paulista o primeiro 1 CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE GOLFE. O espor te: Integr ação do espor te, ecologia e tur ismo – seção Golfe e ecoturismo. Disponível em: <http://www.cbg.com.br/web/oEsporte_integracao.asp>. Acesso em: 16 março 2008. 2 FEARIS, Bev. Golf exhibition attracts 392 exhibitors. Tr avelMole – The Online Community for the Travel and Tourism Industry, 27 novembro 2007. Disponível em: <http://www.travelmole.com/stories/1124428.php>. Acesso em: 16 março 2008. 3 CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE GOLFE. O espor te: Hotéis e resorts – seção Esporte em ascensão. Disponível em: <http://www.cbg.com.br/web/oEsporte_hoteisResorts.asp>. Acesso em: 16 março 2008.
30 campo do país. De 1915 até o fim dos anos 30, outros seis campos surgiram em clubes de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná. Em 1958, foi criada a Associação Brasileira de Golfe (ABG), que se transformaria em confederação onze anos depois. A prática do esporte se manteve restrita aos clubes até a década de 90, quando o Brasil passou a acompanhar as mudanças mundiais do golfe e intensificar a construção de novos campos dentro do novo modelo. Dos 115 campos existentes hoje no país, cerca de 20 estão ligados a hotéis e condomínios, todos dentro de um padrão de qualidade internacional para atrair golfistas estrangeiros. O fenômeno também influiu internamente: o número de jogadores brasileiros triplicou em menos de uma década, passando de 7 mil em 1998 para 25 mil em 2007. O país vive atualmente um ciclo de crescimento contínuo. A oferta maior de campos traz novos jogadores, eleva a quantidade de torneios, tanto amadores como profissionais, e atrai mais investidores interessados em realizar outros projetos turísticos e imobiliários. O mercado brasileiro de golfe aumenta 15% ao ano e, segundo as entidades nacionais, está estimado em R$ 400 milhões, um valor irrisório se comparado com os 60 bilhões de dólares anuais 1 que a indústria do esporte movimenta em todo o planeta. Apesar de representar somente 0,2% do mercado mundial, o Brasil tem boas perspectivas de abocanhar uma fatia muito maior em pouco tempo. Países tradicionais como Estados Unidos, Reino Unido, Japão e Austrália estão saturados de campos de golfe e, para realizar novos projetos, investidores procuram mercados menores e pouco explorados, como a América do Sul. A única potência na região é Argentina. Com seus 130 mil jogadores e 260 campos, foi primeiro país sul­americano a conhecer o golfe, em meados de 1880. Assim como no Brasil, o esporte foi introduzido no país vizinho por engenheiros de origem britânica que vieram construir estradas de ferro, um dos produtos exportados pela revolução industrial inglesa para todo o planeta. Para relaxar, os engenheiros exigiam a construção de campos de golfe próximos dos trajetos das ferrovias. Em terras brasileiras, isto somente ocorreu com as obras da São Paulo Railway. Na Argentina, o número de campos criados foi bem maior por causa da imigração maciça de ingleses e escoceses. “O Brasil não tem essa experiência com o esporte, faltou uma cultura anglo­saxônica”, acredita Ricardo Agüero. Outra diferença é que Argentina começou com campos públicos e muitas áreas de treinamento, além de clubes em pequenas cidades, o que 1 Disponível em: <http://www.golfcarcatalog.com/print_article.cfm?archive_id=117&step=4>. Acesso em: 16 março 2008.
31 facilitou o acesso para iniciantes. “E aqui praticamente não há campos públicos”, conclui o diretor do Costão Golf. Mesmo com cenários tão diferentes, o Brasil acompanha a Argentina entre os países com maior potencial para a construção de futuros campos, ao lado, por exemplo, da Índia e da China. As grandes extensões brasileiras de terra, aliadas a condições naturais diversificadas como clima e paisagens, garantem a concretização de investimentos, especialmente os internacionais. O cenário é favorável: o turismo de golfe, antecipa a consultoria Golf Benchmark Survey, deve crescer consideravelmente nos próximos dez anos por diversos fatores, como passagens aéreas mais baratas, a propagação de estilos de vida considerados mais saudáveis e o aumento de renda nos países emergentes, onde o esporte pode conquistar milhões de jogadores e consumidores. Com base nas estatísticas atuais, e avaliando­se o crescimento atual, o número de turistas­golfistas deverá chegar a 65 milhões nos próximos 50 anos 1 no mundo. Diante deste panorama, a indústria brasileira de golfe realizou o Brasil Golf Show, primeiro encontro de negócios de sua história, em outubro de 2007. O evento ocorreu em um resort do grupo americano Marriott na Costa do Sauípe, na Bahia, e contou com 350 participantes das mais diversas atuações: presidentes de entidades oficiais e de clubes de golfe de todo o país, importadores e distribuidores de equipamentos, construtores de campos, operadores hoteleiros e instituições financeiras. Também compareceram órgãos oficiais de turismo, marcas esportivas e veículos de comunicação, além de representantes do Ministério do Turismo, que deu o apoio institucional ao encontro. A participação de empresários e representantes ligados a futuros empreendimentos turísticos e imobiliários foi mais um sinal de que o novo modelo de construção de campos está consolidado no país. Grupos brasileiros, espanhóis, portugueses, franceses, americanos e poloneses vão realizar 24 projetos de campos nos próximos anos em nove estados, com investimentos que somarão mais de R$ 8 bilhões. Em 2007, foram apresentados 40 projetos desse tipo no total. “Os participantes do Brasil Golf Show testemunharam uma nova e importante fase do esporte brasileiro, que está sendo marcada pelo crescimento da indústria do golfe em nosso país”, declarou Fabio Mazza, sócio da GT Golfe, organizadora do encontro, à revista Negócios S.A2 . 1 CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE GOLFE. O espor te: Hotéis e resorts – seção Esporte em ascensão. Disponível em: <http://www.cbg.com.br/web/oEsporte_hoteisResorts.asp>. Acesso em: 16 março 2008. 2 TOCCHIO, Eduardo. Golfe: A bola da vez. Revista Negócios S.A., Recife, ano 3, n. 14, 2007.
32 “A maioria dos projetos se encontra na fase de estudo de impacto ambiental, que passou a ser um dos passos mais demorados da implantação dos empreendimentos imobiliários e turísticos”, adverte, contudo, Guillermo Piernes, colunista de golfe mais antigo do Brasil, que escreve para o jornal Gazeta Mercantil desde 1994. Não impressiona, portanto, o fato de que uma das palestras mais concorridas 1 do Brasil Golf Show tenha sido apresentada por advogados de um escritório especializado em estruturar projetos de golfe e orientar os empreendedores sobre como agir durante o licenciamento. Um dos sócios deste escritório é Luis Arthur Guimarães Filho, ex­presidente da Confederação Brasileira de Golfe. Ele elaborou um dos panoramas mais precisos sobre a relação entre a legislação ambiental brasileira e a construção de campos de golfe em entrevista à revista Golf & Turismo2 , em julho de 2007. Ao ser questionado sobre quais problemas de licença o escritório estava encontrando no Brasil e o que fazia para resolvê­los, ele deu uma resposta curta e surpreendente: “Na verdade, hoje, caso ambiental grave com golfe só tem um, que é a questão do Costão do Santinho, que não está sob nosso cuidado, mas que temos acompanhado através de informações de amigos e colaboradores do projeto”. Uma procuradora incomoda muita gente Se Fernando Marcondes tivesse que convidar todas as autoridades públicas de Florianópolis para um evento no Costão Golf, talvez ele fizesse questão de vetar a entrada de algumas pessoas. Nesta hipotética lista de persona non grata , o empresário provavelmente colocaria o nome de uma mulher que ele acusa de persegui­lo injustamente há mais de dez anos 3 : Analúcia de Andrade Hartmann, procuradora da República do Núcleo de Meio Ambiente do Ministério Público Federal de Santa Catarina. Analúcia Hartmann é um das figuras mais conhecidas, e polêmicas, quando se fala de questões ambientais em Florianópolis e Santa Catarina. Parte do empresariado da Ilha critica suas ações judiciais contra projetos e obras suspeitos de irregularidades legais e com riscos à natureza, como empreendimentos turísticos e imobiliários. Acusam a procuradora de ser contra o desenvolvimento, de atuar por motivos mais ideológicos do que técnicos e aqueles permitidos por lei. Analúcia é um entrave que adorariam transferir para outro estado. 1 TOCCHIO, Eduardo. Golfe: A bola da vez. Revista Negócios S.A., Recife, ano 3, n. 14, 2007. FILHO, Luis Arthur Guimarães Caselli. Boas e más notícias. Golf & Tur ismo, ano 1, n. 2, p. 103, jul.­ago. 2007. Disponível em: <http://www.golfeturismo.com.br/web/flip.asp>. Acesso em: 19 janeiro 2008. 3 MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p., p. 243.
2 33 A visão de entidades ambientalistas e movimentos sociais é totalmente oposta. A procuradora é um exemplo da atuação do Ministério Público na defesa da natureza e dos interesses da sociedade. Consideram suas ações devidamente amparadas por leis e estudos, assim como elogiam sua participação em audiências públicas. Para eles, Analúcia cumpre seu dever profissional com seriedade e é a maior defensora da lei, do meio ambiente e do interesse coletivo. Nascida na capital Porto Alegre, mas criada em Carazinho, no noroeste do Rio Grande do Sul, como faz questão de ressaltar, Analúcia tem interesse por assuntos ecológicos 1 desde a infância. Uma das influências foi o avô paterno, um dentista que praticava agricultura orgânica como hobby, mas o maior impacto para ela foi testemunhar as mudanças de sua região. Culturas de soja ocuparam o espaço de plantações diversificadas e florestas, provocando “uma verdadeira tragédia ambiental e social”, recorda 2 . A perda de qualidade de vida dos habitantes passou sempre a lhe servir de orientação para uma visão mais politizada da ecologia. Quando se mudou para Florianópolis no fim da década de 70, estudou Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e participou de movimentos estudantis, feministas e ambientalistas 3 . Após se formar, ingressou no Movimento Ecológico Livre (MEL), uma das entidades pioneiras em ambientalismo de Florianópolis, criada entre 1983 e 1984 para discutir problemas como plano diretor, saneamento básico e combate a ocupações irregulares. Na militância, Analúcia encaminhou inúmeras denúncias de problemas ambientais para procuradores da República e pôde conhecer melhor o trabalho deles com proteção ambiental. Ela resolveu então prestar concurso para o Ministério Público Federal; ingressou na instituição em 1992 e foi escolhida, por acaso, para acompanhar os empreendimentos de Fernando Marcondes de Mattos quatro anos depois. A procuradora recebeu, por sorteio na distribuição de trabalhos, o processo administrativo do Costão do Santinho e entrou com uma ação civil pública para impedir que o hotel internacional do complexo turístico fosse construído sobre o costão sul da Praia do Santinho, em uma área de preservação permanente. No começo de 1998, um acordo judicial 1 HARTMANN, Analúcia de Andrade. Entrevista: Procuradora da República Analúcia Hartmann. Blog Pitacos da L ontr a, Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Rio das Lontras, São Pedro de Alcântara (SC), 8 jul. 2007. Entrevista concedida a Fernando José Pimentel Teixeira e Christiane de Souza Pimentel Teixeira. Disponível em: <http://pitacosdalontra.blogspot.com/2007/07/entrevista­procuradora­da­repblica.html>. Acesso em: 16 março 2008. 2 Ibidem. 3 Ibidem.
34 liberou a obra, mediante o cumprimento de diversas condições de reparação e recuperação de danos ambientais. Em 2003, outro caso. O empresário lançou a maquete do Costão Golf em junho; o MPF recebeu material sobre o projeto e resolveu acompanhar o desenvolvimento dele. Através da distribuição de trabalhos da área ambiental da instituição, Analúcia foi sorteada de novo. “Essa história de perseguição é inverídica”, garante ela em seu escritório, com dezenas de livros e processos sobre toda a mesa, armários e até o sofá. “Está vendo a quantidade de processos que tenho que acompanhar? Mesmo se eu quisesse, não teria tempo para ficar perseguindo alguém”, ironiza essa mulher de declarações firmes e claras. O inquérito civil do Costão Golf foi aberto em 1º de dezembro daquele ano, quando Analúcia enviou ofícios para a Santinho Empreendimentos Turísticos, empresa responsável pelo projeto, e para a direção­geral da Fundação Estadual de Meio Ambiente (Fatma), órgão ambiental de Santa Catarina. A procuradora solicitou informações sobre a localização e o licenciamento do condomínio. O licenciamento ambiental é uma etapa obrigatória a todos estabelecimentos poluidores ou potencialmente poluidores, capazes de modificar, sob qualquer forma, o ambiente no qual vão funcionar. Os empresários precisam obter uma licença com os órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), de acordo com a Política Nacional do Meio Ambiente 1 . A aprovação desta licença passou a depender do cumprimento e da qualidade do Estudo de Impacto Ambiental e do Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (EIA/RIMA). Estes dois itens diagnosticam as condições ambientais da área de influência dos projetos, analisam os impactos positivos e negativos da implantação e da não­implantação, e sugerem medidas para amenizá­los e monitorá­los. Os estudos devem ser feitos pelos empreendedores e avaliados por um órgão ambiental. O EIA/RIMA foi regulamentado pela Resolução nº 01/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), órgão composto por representantes de órgãos públicos, do setor empresarial e da sociedade civil, e criado para propor diretrizes de políticas ambientais e definir normas para o setor. A resolução também definiu uma série de atividades que precisam apresentar o estudo; outras podem ser incluídas em casos especiais. No caso do Condomínio Residencial Costão Golf, o estudo foi necessário por se tratar de um projeto urbanístico com mais de 100 hectares e estar em uma área de relevante 1 Lei federal 6.938/81.
35 interesse ambiental, sobre o Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho. Para realizar o EIA/RIMA, o empresário Fernando Marcondes, dono da Santinho Empreendimentos Turísticos, contratou a Caruso Jr. Estudos Ambientais, empresa de Florianópolis especializada em serviços e consultoria. Em novembro de 2003, a consultoria preparou um termo de referência, uma espécie de projeto do estudo ambiental, com os objetivos, procedimentos e justificativas do trabalho. No dia 17 do mesmo mês, a Santinho enviou o termo à Fatma e solicitou uma avaliação do documento, iniciando então a primeira fase do licenciamento. Duas semanas depois, a empresa e o órgão ambiental receberam os ofícios da procuradora Analúcia Hartmann e lhe deram informações totalmente distintas sobre o andamento do processo. A primeira resposta veio da Fatma em 11 de dezembro. Analúcia tinha mandado o ofício para o diretor­geral Sérgio Grando, mas quem escreveu de volta foi o advogado André Luiz Dadam, coordenador da regional da Grande Florianópolis, que analisa estudos de empreendimentos na Ilha de Santa Catarina e região. Apesar de a Fatma ter recebido o termo de referência em novembro, Dadam informou que nenhum protocolo referente ao licenciamento ambiental do Costão Golf foi feito em seu departamento. No dia seguinte, veio a resposta da Santinho através de seu advogado, Aroldo Camillo, que declarou que a empresa tinha encaminhado o documento para a Fatma, “destinado à futura obtenção da Licença Ambiental Prévia”. A procuradora então requisitou cópia deste termo de referência ao órgão ambiental, mas novamente não teve sucesso. Assim como Dadam, o diretor Grando falou que o projeto do condomínio não se encontrava no cadastro ambiental de atividades licenciadas. A direção geral da Fatma em Santa Catarina e a coordenadoria regional estão localizadas no Centro de Florianópolis, mas funcionam em sedes separadas por um quilômetro de distância. Na resposta à procuradora Analúcia, o advogado Camillo não especificou para qual prédio do órgão ambiental o termo de referência foi enviado, mas garantiu que o documento fora encaminhado. Logo, as informações repassadas por Dadam ou por Grando foram imprecisas, por motivos desconhecidos. No mesmo dia que a procuradora da República enviou os primeiros ofícios para obter informações sobre o licenciamento do Costão Golf, a Caruso Jr. iniciou os estudos ambientais do empreendimento, embora a mudança de zoneamento no Capivari que permitiria a realização da obra ainda nem tivesse sido aprovada, e levou quatro meses para finalizá­lo. O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) terminou com 700 páginas, enquanto o resumo dele, o Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (RIMA) ficou com 125.
36 A saga da procuradora para arrancar dados junto à Fatma continuava no começo de 2004 quando o Ministério Público Federal foi convidado a participar de uma audiência solicitada pelo empreendimento. Nesta reunião, ocorrida em 12 de março, Fernando Marcondes entregou uma cópia dos estudos para Analúcia Hartmann, do MPF, e para o promotor Rui Arno Richter, da Promotoria de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público Estadual. A intenção de Marcondes, ao pedir esta audiência com uma instituição que lhe causou problemas com o Costão do Santinho, foi clara. “Ele disse que não queria confusão e desgaste com uma nova ação civil pública”, revela Analúcia. Os técnicos da Caruso Jr. também estiveram presentes para explicar alguns pontos do projeto do Costão Golf. A procuradora ouviu atentamente e respondeu que o Ministério Público Federal avaliaria os estudos. Ainda em 12 de março, Marcondes enviou cinco cópias do estudo à Fatma para os técnicos do órgão analisá­las e utilizá­las durante o licenciamento ambiental. A fundação publicou, três semanas depois, um edital de consulta pública do trabalho na imprensa local 1 . A população de Florianópolis teria, a partir de então, 45 dias para ver e comentar o RIMA, que ficaria disponível na biblioteca da Fatma (no prédio da matriz) e no escritório da Santinho, nos Ingleses. O prazo para a consulta mal começara a correr em abril e uma audiência pública foi marcada para o começo de junho. Quando a procuradora soube, ficou surpresa com o rápido agendamento. “A Fatma solicitou a primeira audiência antes mesmo de analisar o EIA e pedir estudos complementares”, criticou na entrevista que concedeu em seu escritório no fim de 2007. Ela requisitou ao órgão ambiental uma cópia completa da documentação do Costão Golf, inclusive o protocolo com o pedido de licenciamento ambiental e o termo de referência que vinha pedindo há quase seis meses. O salão vir ou estádio O objetivo de uma audiência pública é expor o conteúdo do EIA/RIMA para tirar dúvidas do público e recolher críticas e sugestões, de acordo com o primeiro artigo da Resolução Conama nº 09/87. Estas finalidades, porém, não foram exatamente observadas nas duas sessões do Costão Golf. 1 Conforme prevê a Resolução Conama nº 09/87.
37 A primeira delas ocorreu em 7 de junho de 2004, teve um público de 150 pessoas e participação da procuradora Analúcia Hartmann, do empresário Fernando Marcondes de Mattos, de técnicos da consultoria Caruso Jr. e representantes da Fatma e da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan). A matéria do jornal Folha do Norte da Ilha , publicado na região dos Ingleses, conta que, após o geólogo Francisco Caruso Jr. apresentar o projeto e o estudo do empreendimento, foi realizado um amplo e democrático debate, comandado pelo presidente da mesa e com regras pré­definidas. Os presentes puderam se manifestar sobre a instalação do condomínio, que será o começo da atividade golfística da Ilha de Santa Catarina. Os questionamentos e posições contrários ao empreendimento foram analisados e discutidos entre especialistas, empreendedor e população.1 O relato, porém, é impreciso. Segundo a procuradora Analúcia, os técnicos da Caruso não souberam eliminar todas as dúvidas sobre a aplicação de fertilizantes e os agroquímicos, enquanto os funcionários da Fatma não conseguiram responder algumas perguntas e justificaram que tinham lido parcialmente o estudo. “Inúmeras considerações importantes restaram sem respostas”, resume ela. Por causa desses problemas, ela solicitou outra sessão para o órgão ambiental. “A reunião ocorrida em 7 de junho não pode ser considerada como audiência pública", declarou, alegando a falta de documentos e estudos complementares. Como a Resolução Conama nº 09/87 obriga a realização de uma audiência requerida pelo Ministério Público, a Fatma teve de marcar uma nova data. O agendamento da segunda sessão possibilitou a presença de um grupo de moradores do norte da Ilha que havia se reunido naquele ano para analisar o EIA/RIMA do Sapiens Park, um projeto muito mais ambicioso e gigantesco do que o Costão Golf. Esse projeto foi idealizado por uma fundação catarinense de tecnologia no fim de 2001 para ser um complexo urbano e ambiental que supere o Vale do Silício 2 , famoso pólo científico da Califórnia, nos Estados Unidos. A proposta prevê, por exemplo, prédios residenciais, shoppings, arena multiuso, centro de eventos, parques, jardim botânico, além de pólos de educação, saúde e tecnologia. 1 CAMPOS, Naim. Costão Golf Club apresenta seu EIA/Rima [sic]. Folha do Nor te da Ilha, Florianópolis, 20 junho 2004. Disponível em: <http://www.folhanorte.com.br/site/>. Acesso em: 21 janeiro 2008. 2 Norte da Ilha ganha megaempreendimento. Folha do Nor te da Ilha, 6 agosto 2002. Disponível em: <http://www.folhanorte.com.br/site/>. Acesso em: 21 janeiro 2008.
38 Toda esta estrutura será construída em uma área de 4,5 milhões de metros quadrados, ou 450 hectares – quase nove vezes maior do que o Costão Golf. A propriedade fica na região de Canasvieiras e pertence à Companhia de Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina (Codesc). Além desse órgão, os demais parceiros do projeto são os governos estadual e municipal, os ministérios da Ciência e do Esporte, e a UFSC. Grande parte dos investimentos, contudo, virá da iniciativa privada. Calculam­se a aplicação de R$ 1,5 bilhão em dez anos, a geração de 30 mil empregos e um retorno anual estimado em R$ 1,3 bilhão para os cofres públicos. Ao contrário do Costão Golf, o Sapiens Park foi apresentado às entidades comunitárias em reuniões realizadas muito antes da audiência pública. Embora os habitantes pudessem tirar dúvidas, apontar problemas e fazer sugestões, o projeto continuou a gerar polêmica por causa de seus possíveis impactos sobre o meio ambiente. Durante as reuniões na comunidade sobre o Sapiens Park, um grupo de trabalho foi criado para analisar o EIA/RIMA e apontar os seus problemas. “A nossa estratégia era avaliar a proposta e rever os quesitos legais pertinentes ao estudo para ganhar tempo”, explica o biólogo Jonatha Alves, um rapaz gaúcho que mora, e surfa, em Florianópolis desde os 11 anos. A pele queimada no rosto e o nariz descascado são indícios de sua paixão pelo esporte, do qual se manteve bem afastado durante os anos de faculdade em Erechim, no noroeste do Rio Grande do Sul, a centenas de quilômetros de uma praia. De volta a Florianópolis com o diploma, Alves foi convidado, no começo de 2004, a entrar no conselho fiscal de uma associação de moradores de duas praias do norte da Ilha, Ponta das Canas e Lagoinha. Como a entidade estava envolvida, juntos com outras organizações, no caso do Sapiens Park, a colaboração do biólogo acabou se estendendo, afinal suas qualificações o tornavam extremamente necessário. Apesar de ter se formado há apenas um ano, ele já tinha trabalhado, tanto como estagiário quanto profissional, em grupos de elaboração de estudos e revisão de estudos ambientais. Duas arquitetas ajudaram o biólogo na avaliação do Sapiens Park. A estratégia definida foi rever os quesitos legais referentes ao estudo ambiental para que a comunidade pudesse ganhar tempo e obtivesse novas informações técnicas. Esta tática teve sucesso e chamou a atenção do vendedor autônomo Márcio Porto, que era membro do Conselho Comunitário dos Ingleses (CCI) e estava atuando nos casos do Sapiens Park e do Costão Golf. Após participar da primeira audiência do condomínio com campo de golfe, Porto ficou preocupado com as poucas contestações feitas ao projeto. “Os movimentos sociais souberam
39 dela em cima da hora e não puderam se preparar direito”, lamenta. Para a segunda sessão, ele achou interessante que o CCI pedisse ao grupo de profissionais para analisar o EIA/RIMA do Costão Golf. Apesar da falta de tempo, Alves e suas colegas aceitaram o convite. “Como só tivemos uma semana para fazer isso, nos ativemos às questões mais pontuais”, relata o biólogo. Deste modo, a estratégia utilizada no Sapiens Park foi mantida: deixar de questionar pontos técnicos do projeto, pois não havia recursos para uma discussão deste tipo, e se focar nos problemas legais. “Uma vez que o estudo não atende à legislação, o processo de licenciamento ambiental teria que ser interrompido”, conclui Alves calmamente. Assim, com a suspensão do licenciamento, seria possível procurar mais informações para as discussões técnicas sobre o Costão Golf. Uma das arquitetas, Sara Janini, faz questão de começar a entrevista explicando, mesmo sem ser abordada, que o grupo de análise não tinha caráter político e ideológico algum, era simplesmente técnico. “Éramos um ajuntamento de pessoas que se comprometeram a olhar e contestar.” Formada na UFSC em 2002, ela acompanhava as ações do Fórum das Cidades, principal rede de movimentos sociais de Florianópolis, quando soube do Costão Golf através de amigos e listas de e­mails. Sara mudou­se há alguns anos para Campinas (SP), mas visita regularmente a mãe, a psicóloga Mara Rúbia, que mora na Vargem Grande, localidade rural da região de Canasvieiras, e ajudou na análise do estudo do Costão Golf. A entrevista com a arquiteta foi realizada em uma dessas visitas. Apesar do cansaço provocado pela viagem e pelo engarrafamento de uma sexta­feira chuvosa em Florianópolis, ela não perdeu o ânimo durante a conversa sobre o EIA/RIMA do empreendimento de Fernando Marcondes. “Era fraco e muito pobre. Como urbanista, achei o cúmulo do cúmulo,” critica. Um bom estudo, comenta, aponta os problemas do projeto e as soluções, coisa que a consultoria ambiental responsável, a Caruso Jr, não teria feito. “O estudo do Costão Golf chega a ser amador perto do EIA/RIMA do Sapiens Park.” O Sapiens Park ganha elogios nessa comparação por ter apresentado uma proposta consistente. “Havia equívocos, é claro”, mas ela explica em seguida que o trabalho era enorme e fora produzido em pouco tempo. O grupo reuniu esses problemas em um documento para entregá­lo durante a segunda audiência do Costão Golf, no Vila Futebol Clube, no Capivari. A noite de 16 de agosto estava agradável quando Sara e a mãe chegaram ao local e estranharam ao ver, no estacionamento, microônibus e vans da empresa Fontanella Turismo, que transporta funcionários do Costão do Santinho. Ao entrarem no salão, elas se depararam com dezenas de pessoas vestidas com o
40 uniforme do resort. Assim como na audiência realizada em 2003 na Câmara dos Vereadores, novamente havia empregados de Marcondes em um encontro público. A psicóloga Mara Rúbia ficou incomodada com a presença daquelas pessoas, sentia que elas eram “algo desconectado” da discussão do EIA/RIMA. “Parecia que estavam preparados para aplaudir e vaiar”, recorda. Todos esses detalhes e os descritos a seguir foram ignorados pelo Folha do Norte da Ilha 1 , que preferiu destacar que a grande maioria das 200 pessoas presentes no encontro era favorável ao empreendimento. No mínimo, um terço dos espectadores era composto pelos empregados do Costão do Santinho. Posicionado no fim do salão, este grupo de homens e mulheres, jovens e adultos, mais parecia uma torcida organizada de futebol do que um público disposto a acompanhar a sessão, segundo a psicóloga. Durante a apresentação do projeto, essas pessoas aplaudiam os representantes do Costão Golf até mesmo quando estes faziam apenas simples relatos. Nem bem estas falas terminavam e as mãos já batiam efusivamente. – Muito bem! – urraram os empregados no fim da apresentação. Para Mara Rúbia, foram apresentadas explicações fracas: o grupo técnico do empreendimento dava respostas repetitivas e não convencia com os filmes e os dados. A questão social não estava sendo discutida, tampouco os tipos de empregos que seriam criados e os impactos sobre o entorno e o trânsito local. A monótona audiência começou a esquentar quando o público pôde fazer perguntas. Em sua autobiografia, o empresário Fernando Marcondes dedica apenas um parágrafo às audiências públicas do estudo ambiental e se limita a dizer que houve profundas discussões 2 . O que se viu, entretanto, naquela noite de agosto foi um encontro tumultuado, com muito bate­boca e pouco esclarecimento. A partir da abertura de perguntas ao público, os funcionários do Costão do Santinho tiveram de alternar os aplausos com vaias. “O pessoal do Costão Golf estava confiante. Eles achavam que não haveria contestação durante a audiência. E, se não fosse pelo nosso grupo, realmente não teria havido contestação”, conta a arquiteta Sara Janini. Ela, o biólogo Jonatha Alves e Márcio, membro do CCI, fizeram perguntas nada agradáveis, todas com reações diferentes. Em sua intervenção, Sara falou sobre a troca populacional, um processo que ocorre quando um grande empreendimento valoriza muito o metro quadrado da vizinhança e acaba 1 CAMPOS, Naim. Costão Golf Club tem audiência definitiva. Folha do Nor te da Ilha, Florianópolis, 31 agosto 2004. Disponível em: <http://www.folhanorte.com.br/site/>. Acesso em: 21 janeiro 2008. 2 MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p., p. 236.
41 elevando o valor do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), além do custo de vida local. Se for uma comunidade de baixa renda, como é o caso do Capivari (classe média baixa), os moradores ficam sem condições de bancar esse aumento e, a médio e longo prazo, podem ser obrigados a vender suas propriedades e procurar locais mais baratos para viver. “Isso ocorre muito rapidamente em Floripa”, explica Sara durante a entrevista, “principalmente no norte da ilha”. Na audiência, ela perguntou a Marcondes como ele evitaria essa troca populacional na região ao redor do Costão Golf, mas o empresário não entendeu a questão e respondeu de maneira errada. – Não é isso que eu tô falando – reclamou Sara, que repetiu a pergunta três vezes. Algumas pessoas começaram a rir, entre elas a procuradora da República Analúcia Hartmann. A procuradora pegou o microfone e explicou o assunto para Marcondes, que estava no outro lado de uma mesa comprida onde ficaram as autoridades e os técnicos. O empresário então compreendeu o que se tratava e se irritou, dizendo que não haveria uma troca, pois o projeto era bom para a comunidade. “Que comunidade é essa que será trocada em dez anos? A comunidade vai sair, não será fortalecida”, ataca a arquiteta. As pequenas vaias que Sara recebeu dos funcionários do Costão do Santinho não se comparam ao tratamento dispensado a Marcio Porto. Um clima de irritação e pressão se alastrara pelo salão do clube. Quando foi chamado para fazer sua pergunta, ele já começou a ser hostilizado. Ao contrário de Sara, que morava na Vargem Grande, Porto tem casa no Capivari e é figura conhecida na região por causa de sua participação nos assuntos comunitários. Para os empregados do resort, ele era um alvo previamente identificado. “Era algo já pré­programado”, acusa. O integrante do CCI 1 começou falando sobre a construção do teleférico nas dunas e a transferência das famílias da Favela do Siri, e indagou se as casas seriam retiradas para não prejudicar a vista dos turistas. Marcondes se irritou, mas a procuradora Analúcia disse que os comentários faziam sentido. Nesse instante, alguém do fundo da platéia tentou inverter a pergunta dele e jogar a responsabilidade do assunto para o Ministério Público Federal. – Olha, ele tá questionando a procuradora – gritou uma mulher. Porto ignorou a provocação e continuou a falar, sob vaias. – Ah, tu não é daqui! – ofendeu outra pessoa. Porto é gaúcho, natural de São José do Norte, veio trabalhar em Florianópolis há dez anos e mora no Capivari desde 1999, a dois quilômetros do Costão Golf. 1 Porto presidiu essa entidade entre 2005 e 2007.
42 Os assovios e as seqüências de uhhhhhhs se intensificaram quando ele retornou para sua cadeira. Vermelho de raiva, Porto se exaltou e desafiou os empregados do Costão do Santinho: – Vocês me mostrem as carteiras de trabalho pra saber se estão expressando cidadania ou cumprindo ordens do patrão! – E novas vaias ecoaram pelo salão. As hostilidades não intimidaram Jonatha Alves quando ele foi fazer sua pergunta. Estava calmo e sabia o que tinha que falar. No ponto de vista do biólogo, o estudo do empreendimento não atendeu algumas exigências legais. “Foi direcionado aos interesses, isso fica muito claro. As audiências e a redação do EIA/RIMA comprovam isso.” O principal problema foi a falta de alternativa locacional, que não atenderia aos critérios básicos da Resolução Conama nº 01/86. Esta norma 1 prevê que o estudo de impacto ambiental contemple todas as alternativas tecnológicas e de localização de um projeto para compará­las com a hipótese de não se realizar o empreendimento. Embora o exame destas alternativas seja uma das atividades obrigatórias do EIA/RIMA, ela não foi cumprida no caso do Costão Golf. O texto da consultoria Caruso Jr. dedica somente um parágrafo a esse tema, no qual alega que a única alternativa locacional que se apresenta é o próprio terreno onde se pretende instalar o empreendimento. As considerações que levaram à eleição desse local, [sic] substanciaram­ se prioritariamente na proximidade com o Costão do Santinho Resort, possibilitando a vinculação do Empreendimento com o Resort através da ligação de um teleférico que [...] deverá repercutir positivamente na economia de Florianópolis, elevando o nível da atividade turística. 2 “Isso não existe”, critica Alves. “Os técnicos só levaram em consideração a questão econômica, mas não a parte sócio­ambiental e física.” Depois de atuar como estagiário e profissional na elaboração de estudos desse tipo, o biólogo se cadastrou como perito ambiental no Ministério Público Estadual em meados de 2006 e atualmente presta consultoria na área. Ele conta que um EIA/RIMA normalmente analisa três opções de local. Em todos esses anos de atividade, garante que o Costão Golf foi o primeiro e o único dos trabalhos que viu a não apresentar alternativas. “Totalmente direcionado”, sentencia. Alves questionou esta ausência na sessão pública; Caruso Jr. não respondeu e Marcondes ironizou, perguntando ao biólogo se ele queria que o condomínio com campo de 1 Resolução Conama nº 01/86, artigos 5º e 6º. CARUSO JUNIOR, Francisco Caruso et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação d o Condomínio Residencial Costão G olf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 2­2.
2 43 golfe e os empregos fossem criados em São Joaquim, cidade da serra catarinense que está a 276 quilômetros de Florianópolis. Sem obter uma resposta, Alves encerrou sua participação entregando os documentos escritos por seu grupo à procuradora Analúcia Hartmann. Surpreendentemente, não foi vaiado. “Acredito que poucos entenderam a pergunta”, cogita, “eu podia ter sido mais duro, mas isso geraria conflitos”. Como Alves e seus colegas estavam representando nove entidades comunitárias na audiência, eles temiam um confronto com os funcionários do Costão do Santinho e resolveram ir embora antes do fim do encontro. A arquiteta Sara Janini saiu decepcionada. Ela tinha uma outra imagem do empresário Fernando Marcondes por causa do resort e esperava mais qualidade. “Ele foi muito arrogante. Na audiência do Sapiens Park, as críticas foram ouvidas”, compara. A escolha do local pr edestinado A falta de alternativas locacionais apontada por Jonatha Alves não foi mencionada pelo parecer preliminar da Fatma, feito em agosto, entre as duas audiências. Contudo, o questionamento do biólogo na segunda sessão obrigou o órgão ambiental a tratar desse tema, pois o Conama 1 determina que a ata e os anexos dos encontros sirvam de base para a análise e o parecer final do licenciamento. O jurista Paulo Affonso Leme Machado, doutor em Direito Ambiental 2 , expõe em seu livro 3 que “a Audiência Pública – devidamente retratada na ata e em seus anexos – não poderá ser posta de lado pelo órgão licenciador, como o mesmo deverá pesar os argumentos nela expendidos como a documentação juntada” 4 . O documento de autorização do órgão ambiental ao projeto, portanto, deve incluir o cumprimento deste conteúdo – se não fizer isso, a concessão da licença pode ser cancelada judicialmente. A Fatma também fora questionada sobre esse assunto pelo geólogo Jorge Cravo, assessor da Procuradoria Geral da República, sediada em Brasília. Como o MPF de Santa Catarina não possuía um geólogo em sua equipe técnica, a procuradora Analúcia Hartmann havia solicitado, em junho de 2004, uma análise completa do EIA/RIMA do Costão Golf ao especialista da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão, ligada ao meio ambiente. 1 Resolução Conama nº 09/87, artigo 5º. Foi integrante do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) entre 1984 e 86. 3 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Dir eito Ambient al Br asileir o. 15. ed. São Paulo: Malheiros Editores, mai. 2007. 1.111 p. 4 Ibidem, p. 261.
2 44 Cravo participou da primeira audiência e preparou uma avaliação preliminar do estudo ambiental para o MPF. Ao tratar das opções de local, o assessor explicou no parecer que elas devem possibilitar a escolha do cenário onde o empreendimento provocará o menor impacto. “As alternativas analisadas deverão ter razoável viabilidade. Seria falsear o espírito da lei se, para forçar a escolha de um projeto, se apresentasse outra opção manifestamente inexeqüível”, reforçou, ao citar um pensamento de Paulo Affonso Machado 1 . Assim, o assessor do Ministério Público concluiu que a falta de alternativas locacionais no caso do Costão Golf “caracteriza uma decisão pré­determinada quanto à localização do empreendimento”. O EIA/RIMA seria um documento elaborado apenas para cumprir uma formalidade administrativa, o que corrobora a opinião do biólogo Jonatha Alves de que o trabalho da consultoria Caruso Jr. teria sido “totalmente direcionado”. O parecer preliminar do assessor foi concluído em setembro, após a segunda audiência. Quando recebeu o documento, a procuradora Analúcia resolveu mandar uma cópia para a Fatma, além de solicitar a revisão do item sobre a localização do Costão Golf e a hipótese de não execução do projeto. Duplamente pressionado pela ata e pelo MPF, o coordenador regional da Fatma, André Dadam, enviou dois ofícios para a Santinho Empreendimentos Turísticos, requisitando informações adicionais sobre as alternativas locacionais e outros onze assuntos. A empresa mandou as respostas em 14 de outubro de 2004 e, na semana seguinte, a fundação já tinha terminado o parecer. Todas as complementações foram descritas e explicadas pelos técnicos da Fatma, com exceção do item 3.6, que falava exatamente sobre as alternativas locacionais. “O solicitado foi apresentado”, somente isto consta no documento do órgão ambiental. Nada foi descrito sobre as outras opções apresentadas para o Costão Golf, seus pontos positivos e negativos, por que elas eram menos vantajosas do que a área no Capivari; tampouco foi comentada a possibilidade de não se fazer o projeto. Tudo se resumiu a uma frase. O projeto ganhou análise favorável dos técnicos e obteve a Licença Ambiental Prévia (LAP) no começo de novembro. Embora não autorize ainda a construção, a LAP confirma a viabilidade legal do empreendimento no local determinado. Isso significava que o condomínio com campo de golfe poderia ser feito no Capivari, em cima de uma pequena parte do Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho. 1 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Dir eito Ambient al Br asileir o. 8. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. 971 p., p.204.
45 A eficiência da fundação ambiental para conceder a LAP ao Costão Golf não pode ser comparada com o tratamento prestado à procuradora Analúcia. Além de enviar o parecer do geólogo Cravo no ofício de setembro, ela requisitou os pareceres da equipe de licenciamento e, mais uma vez, o termo de referência que a Fatma já tinha recebido há dez meses. Em 6 de dezembro de 2004, a procuradora se queixou que a fundação não avisara sobre a primeira licença e não marcara uma terceira audiência pública, desta vez para discutir as informações adicionais do estudo ambiental. “Também foi afrontado o direito à informação do público, pois o EIA e sua complementação, bem como os pareceres que ensejaram a LAP, não estão à disposição para consulta, sendo difícil até para o MPF obter suas cópias e poder analisá­los”, disse ela. Outra reclamação era sobre a dificuldade de conseguir os documentos que o empreendimento enviara à Fatma para apresentar o projeto das obras, conseguir a Licença Ambiental de Implantação (LAI) e iniciar a construção do campo de golfe. O fracasso com os ofícios obrigou a procuradora da República a ligar para André Dadam, coordenador regional da Fatma e da análise do estudo do Costão Golf, e pedir os documentos referentes à LAI. “O Dadam primeiro dizia que não achava os papéis e depois me disse que o processo do licenciamento tinha sido desmembrado”, conta Analúcia. O Ministério Público Federal foi atrás dos técnicos da Fatma, mas continuou sem achar o que queria. A confusão só se desfez quando a secretária de Dadam confessou para a secretária de Analúcia que o coordenador estava guardando os documentos na sala dele. Ao saber disso, a procuradora correu ao telefone. “Eu disse ao Dadam que mandaria a Polícia Federal 1 se ele não enviasse uma cópia dos documentos.” Os papéis enfim vieram, mas só depois que o Costão Golf obteve a segunda licença e iniciou as obras na metade de dezembro de 2004. A procuradora soube apenas no mês seguinte que o empreendimento tinha conseguido a LAI. *** 1 O Ministério Público Federal pode, para o exercício de suas atribuições, expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar (Lei Complementar 75/93, artigo 8º, inciso VII); ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública (ibidem, inciso VII); e requisitar o auxílio de força policial (ibidem, inciso IX).
46 Capítulo 3: O telefér ico, o aqüífero e o campo Os primeiros anos de consultoria ambiental foram árduos para o geólogo Francisco Caruso Jr. A pesquisa comercial era um desafio antigo, mas, para encará­la, precisou abandonar a vida de professor universitário. Só conseguiu abrir sua empresa, a Caruso Jr. Estudos Ambientais, quando garantiu o primeiro contrato, o EIA/RIMA do Porto de Navegantes, cidade litorânea do norte de Santa Catarina a 100 quilômetros de Florianópolis. No início, trabalhavam apenas o geólogo e o filho dele. O trabalho era estressante (e continua sendo) por causa da preocupação constante com leis, ética e questões técnicas. A demanda por estudos ambientais em SC, no entanto, ofereceu condições para que a Caruso Jr. pudesse se expandir e se tornar uma das principais consultorias do estado, tendo clientes como Petrobrás, Ford, Vega do Sul, Weg e Eletrosul. O faturamento não é revelado, mas logo se percebe que as finanças andam bem. Em julho de 2007, a sede foi transferida para a arborizada Avenida Trompowski, um dos endereços mais valorizados da região central da Ilha de Santa Catarina. A empresa conta atualmente com 18 empregados na matriz, além de outros sete nas filiais e 15 terceirizados – há desde profissionais de geologia e biologia até especialistas em engenharia florestal, recursos hídricos e legislação ambiental. O novo escritório ocupa um andar inteiro do prédio e sua entrada se assemelha a uma clínica médica, gelada e asséptica, com poltronas brancas. Em um grande recinto de paredes verde­claras, alguns funcionários trabalham diante dos computadores e cercados por estantes com livros e mais livros. Na sala ao lado, o chefe recorda os dez anos nos quais se dedicou exclusivamente à elaboração de estudos ambientais. Embora possua um extenso currículo acadêmico, com dois pós­doutorados, Francisco Caruso dispensa formalismos e pede para ser chamado somente pelo sobrenome. Reclinado na cadeira, ele parece ser feito de pedra. Não sente e tampouco me pergunta, durante os quarenta minutos da entrevista, se a temperatura do ar­condicionado está exageradamente fria. Seu rosto permanece impassível diante das questões e enquanto prepara as respostas sobre o tema da conversa: o estudo ambiental do Condomínio Residencial Costão Golf. Em 2003, a Caruso Jr. foi indicada ao empresário Fernando Marcondes de Mattos. Interessado, o empresário entrou em contato para negociar a realização do EIA/RIMA de seu novo empreendimento. “Foi um trabalho bom e pioneiro”, lembra o geólogo Caruso. Como a
47 consultoria nunca analisara um campo de golfe antes, várias pesquisas foram necessárias. Caruso viajou para a Europa, onde conheceu clubes, condomínios e resorts, e conversou com representantes das federações esportivas da Espanha e Portugal. De lá, voltou convencido da importância econômica do esporte e de seu novo garoto­propaganda, o turista­golfista. “Só quem vai lá fora conhece o que é esse turismo”, garante. Ao começar a detalhar o estudo, ele tenta se antecipar aos questionamentos sobre os problemas do estudo do Costão Golf, defendendo que “todos os aspectos inerentes” foram tratados. Bastou, entretanto, uma pergunta sobre a falta de alternativas locacionais para deixá­ lo exaltado. “Só há uma propriedade. Se o empreendedor tivesse outras propriedades, existiriam alternativas”, tenta explicar. Caruso se esquece de mencionar que a Fatma solicitou outras opções de local para a construção do condomínio, em uma lista de complementações exigidas em setembro de 2004. De acordo com o parecer feito pela fundação no mês seguinte, o empreendimento atendeu a esse pedido; o órgão ambiental, entretanto, nada comentou sobre as supostas alternativas. No fim, permitiu a construção na área de 57 hectares no Capivari. Estas informações adicionais enviadas pelo Costão Golf estavam entre os documentos que a procuradora Analúcia Hartmann teve dificuldades de obter com André Dadam, coordenador regional da Fatma. Walter Widmer, biólogo do Ministério Público Federal em SC, analisou esses papéis e destacou em seu parecer o revelador conteúdo da décima página: “No que concerne às alternativas locacionais, o Capítulo 2 do EIA/RIMA apresenta como única alternativa a propriedade situada a oeste das dunas”. Ou seja, o Costão Golf continuou exibindo como alternativa apenas a área já adquirida no Capivari, que fica ao lado das dunas dos Ingleses. Assim como o geólogo Jorge Cravo já fizera meses antes, Widmer enfatizou que a apresentação de uma única opção não atende à exigência da apresentação de alternativas locacionais 1 . “Apesar disso, o parecer técnico da Fatma considera que o estudo das alternativas locacionais foi apresentado”, concluiu o biólogo do MPF, evidenciando uma declaração falsa do órgão ambiental. Para o jurista Paulo Affonso Machado, o exame 2 das alternativas locacionais é um dos pontos mais críticos do EIA/RIMA. Para se justificar, ele cita uma frase de outro especialista, Luiz Enrique Sánchez 3 : “Os estudos são encomendados somente quando o projeto está inteiramente definido sob o ponto de vista técnico, prejudicando ou mesmo impedindo o 1 Determinada pela Resolução Conama nº 01/86, artigo 5º. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Dir eito Ambient al Br asileir o. 8. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. 971 p., p.232. 3 Professor da Universidade de São Paulo (USP) na área de planejamento e gestão ambiental.
2 48 estudo das alternativas e fazendo com que os estudos ambientais devam ser elaborados em caráter de urgência. Desta forma, se os mecanismos de controle forem eficazes, os estudos terão que ser complementados ou inteiramente refeitos”. 1 A Fatma fingiu que houve complementação e não questionou o documento apresentado pelo Costão Golf. “No trecho em que se discute as supostas alternativas locacionais para o empreendimento, nas complementações do EIA/RIMA, uma das justificativas pela apresentação de um único local é que uma outra localização do campo de golfe, mais afastada do resort, poderia implicar na necessidade de prolongamento da linha do teleférico”, prossegue Widmer, do MPF. Ele considerou incompleto esse argumento, pois não foram abordadas a importância do teleférico entre os dois empreendimentos e a possibilidade de outras formas de transporte. O papel do teleférico na ligação entre os dois empreendimentos de Fernando Marcondes, o Costão do Santinho e o Costão Golf, é vital e economicamente estratégico. Sem este meio de transporte, os hóspedes do resort e os moradores do condomínio teriam que contornar, de carro, um percurso de sete quilômetros e meio pelas ruas estreitas da região dos Ingleses e provavelmente sofreriam com engarrafamentos no verão, ao invés de curtir calmamente um passeio aéreo de um quilômetro sobre as dunas que separam a localidade do Capivari da Praia do Santinho. O teleférico não só integra, mas também serve de trunfo principal para a construção do Costão Golf na propriedade que está às margens da rodovia João Gualberto Soares e sobre o Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho. Os empreendedores acreditam que o Costão do Santinho precisa de um campo de golfe, e quanto mais perto ele puder ficar, melhor. Como não é possível construir uma estrada nas dunas para interligar os dois “costões”, o teleférico foi a solução encontrada. Os equipamentos (torres e cabos) custarão em torno de R$ 2 milhões, mas os dados técnicos se mostraram conflitantes, de acordo com o parecer 2 da arquiteta Ludimila Lamounier, analista pericial da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria Geral da República. Ela identificou uma série de diferenças nas descrições do teleférico: o EIA/RIMA, por exemplo, exibe desenhos do transporte com cadeiras para duas pessoas e 1 SÁNCHEZ, Luiz Henrique. Os papéis da avaliação de impacto ambiental, in Avaliação de Impacto Ambiental – Situação Atual e Perspectivas. São Paulo: EPUSP, 1993. 2 Realizado em 11 de março de 2005.
49 calcula um percurso de 20 minutos, enquanto no site1 do Costão Golf há ilustrações com cabines para quatro pessoas que fariam esse passeio em apenas oito minutos. Há contradições também entre o EIA e o seu próprio resumo, o RIMA. O primeiro afirma que as torres terão de quatro a oito metros de altura, com distância de 80 a 200 metros entre elas. O relatório, juntamente com a homepage, informa que a altura delas será, na verdade, de 6 a 10 metros e a distância, de 80 a 100 metros. Diante desses dados, a analista pericial questionou a real capacidade de fluxo do teleférico. O estudo ambiental conta que o equipamento pode levar até 250 pessoas por hora nas cadeiras, mas os números calculados por Ludimila chegaram a um resultado de 600 pessoas – ela não conseguiu estimar esta capacidade com os valores do site porque a quantidade de cabines não é informada. “Sugiro uma análise de estrutura de capacidade de transporte do teleférico. Com ela, seriam melhor detalhadas as diferenças neste estudo, apresentando o real impacto ambiental gerado pela sua implantação nas dunas,” finalizou. A região possui dois campos de dunas, com 1.044 hectares – caberiam cerca de 18 empreendimentos como o Costão Golf nessa área. O corredor menor une o fim da Praia dos Ingleses com a localidade do Santinho. O outro campo de dunas é uma extensa garganta branca e brilhante, que corta longitudinalmente toda essa planície costeira. Ao norte e ao leste, ficam as praias dos Ingleses e do Santinho respectivamente. À esquerda estão o Capivari e o Rio Vermelho, e no sul, bem distante, as dunas terminam na Praia do Moçambique, a maior da Ilha, com 7,5 quilômetros de extensão de areia protegidos pelo Parque Estadual do Rio Vermelho. Extremamente frágeis, as dunas são ambientes hostis para a fauna e da flora. É preciso se adaptar a fatores como a salinidade, a alta temperatura, a insolação, o solo ruim, a falta de água e os ventos constantes 2 . As dunas são subdivididas em três grupos: as móveis (ou descobertas), as semi­fixas (uma faixa de transição) e as fixas (ou vegetadas), com arbustos e pequenas árvores de restinga que impedem a expansão da areia. De acordo com o EIA/RIMA, o impacto da construção do teleférico nesse tipo de ambiente será temporário. As obras estão previstas para durar dois meses e vão atingir um trecho de 1.200 metros de comprimento. Mesmo assim, os operários precisarão criar acessos nas dunas para transportar materiais, ancorar as bases das torres e erguê­las. “Há que se considerar que a própria dinâmica do ambiente atuará como efeito mitigador, pois tenderá a 1 Disponível em: <http://www.costaogolf.com.br/condTeleferico.htm>. Acesso em: 17 março 2008. CARUSO JUNIOR, Francisco Caruso et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação d o Condomínio Residencial Costão G olf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 3­14.
2 50 recompor, de forma breve, as características do trecho alterado durante as atividades previstas”, argumentam os técnicos do estudo. Caminhões e guindastes também passarão por ali, mas o estudo não menciona o impacto que podem causar. “O EIA/RIMA também não traz nenhum esclarecimento sobre como será feito o acesso de veículos automotores através das dunas para a manutenção do funcionamento do teleférico. Serão mantidos os mesmos caminhos executados na época da implantação? Serão elaborados novos trajetos?”, questionou Ludimila, arquiteta do MPF. A proteção das dunas está prevista na legislação brasileira desde o velho código florestal de 1934, que foi atualizado trinta anos depois e as classificou como área de preservação permanente, junto a outros tipos de ecossistema. Para reforçar essa defesa 1 , a lei do Plano Diretor dos Balneários de Florianópolis 2 tombou as dunas da Ilha de Santa Catarina em 1985, especificando os três subtipos (móveis, semi­fixas e fixas) como APP. No estudo do Costão Golf, os técnicos da Caruso Jr. apresentaram o teleférico como um dos transportes mais indicados para áreas de preservação e argumentaram que ele não gera poluição, interfere somente no local onde as torres são instaladas e não prejudica a fauna e a flora. O geólogo Jorge Cravo, assessor do MPF, criticou que o EIA/RIMA não analisou o corte de vegetação nos pontos onde as torres serão erguidas e a barreira que elas criarão contra o deslocamento das areias. Cada base de sustentação das torres terá uma área de 25 metros quadrados de concreto. Os impactos nesse caso não seriam suavizados, pois esse tamanho não pode ser diminuído. Até a área total de vegetação a ser removida provoca dúvidas, já que o número de torres diverge. O EIA diz que serão sete, o RIMA fala em quatro e o geólogo Francisco Caruso conta que haverá cinco. No estudo, a consultora sugeriu a possibilidade de adequar visualmente o equipamento com as dunas através de torres brancas “que simbolizem mastros de embarcações” 3 . Deste modo, o projeto não seria interpretado como uma descaracterização das dunas, “e sim como uma obra necessária que permite a descoberta, protege e assegura a integração do espaço natural com o meio urbano adjacente, gerando inclusive um efeito estético positivo para a paisagem” 4 . 1 Também prevista pela Resolução Conama nº 303/02. Lei municipal nº 2193/85. 3 CARUSO JUNIOR, Francisco Caruso et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação d o Condomínio Residencial Costão G olf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. II, p. 13­13. 4 Ibidem.
2 51 Para Ludimila Lamounier, do MPF, este trecho representa “um despropósito, totalmente contrário ao bom senso”. “O EIA tenta justificar a construção do teleférico dessa e de outras maneiras. De acordo com a legislação em vigor, tal realização constitui um desacerto”, observou. Ela concluiu que os impactos gerados pelo teleférico não foram totalmente justificados e três pontos relativos 1 às dunas não foram respeitados: a circulação dos veículos que vão trazer os equipamentos, o corte da vegetação e a implantação das torres, que representariam uma construção em área protegida. Todos estes problemas foram ignorados pela Fatma. No parecer de 21 de outubro de 2004, os técnicos do órgão garantiram não existir obstáculo ambiental contra a implantação do teleférico, desde que a legislação fosse respeitada. No entendimento deles, somente uma questão legal precisava ser resolvida. Como as dunas pertenciam ao governo federal, o Costão Golf precisaria de um acordo com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para construir o equipamento e utilizar o espaço aéreo. A permissão da SPU, porém, não foi obtida e os técnicos estaduais tiveram que separar o licenciamento no fim de 2004: um para a construção do campo e do condomínio, que foi autorizada, e outro para o teleférico. “Tão logo seja apresentada documentação federal concedendo a ocupação para instalação do teleférico, este órgão ambiental fará a análise do licenciamento prévio do equipamento, considerando que os aspectos ambientais já foram examinados”, decidiu a Fatma. Assim, as duas grandes atrações planejadas para o Costão Golf tomaram rumos diferentes quando foram separados na fase de licenciamento. Como não saiu do papel, o teleférico e seus problemas permaneceram praticamente esquecidos nos três anos seguintes. A maioria das discussões e dos protestos continuou a se concentrar na implantação de um campo de golfe sobre o Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho. Os outros Um grande evento ao ar livre foi marcado na propriedade do Costão Golf para o lançamento oficial em 18 de dezembro de 2004. Com cinco dias de atraso, o empresário Fernando Marcondes poderia comemorar seu sexagésimo sexto aniversário com tranqüilidade. Seu novo projeto tinha obtido recentemente as licenças ambientais com a Fatma 1 Da Lei municipal nº 2193/85.
52 e estava para conseguir o alvará de construção com a prefeitura. Uma manifestação, entretanto, obrigou­o a trocar o salão de festa. A manhã terminava e esquentava rapidamente quando Marcio Porto, integrante do Conselho Comunitário dos Ingleses (CCI), uniu­se a um grupo de cem pessoas que caminhava pelas ruas do Capivari com faixas contra o empreendimento. Entre os participantes, estavam professores da Universidade Federal de Santa Catarina e membros da União Florianopolitana de Entidades Comunitárias (Ufeco) e do Fórum da Cidade, que reúne setores universitários, organizações não­governamentais e associações comunitárias para discutir os problemas da Florianópolis – na época, Porto era o secretário do fórum. Ao redor da área leste do Costão Golf, onde ocorreria o evento, havia diversos soldados da Polícia Militar, alguns fortemente armados. “Nunca os Ingleses viram tantos policiais”, ironiza Porto. Para o membro do CCI, tratou­se de uma precaução totalmente desproporcional, que representou a maneira como o governo estadual criminaliza os movimentos sociais em Florianópolis. Não havia movimentação dentro da propriedade, apenas na entrada. Os professores e os ativistas chegaram a pensar que o lançamento estivesse cancelado, mas logo souberam que a festa fora transferida para o Costão do Santinho por causa dos protestos. Pessoas ligadas ao cerimonial e policiais avisavam a mudança aos convidados, e poucos deles baixaram o vidro do carro para conversar com os manifestantes. Por causa da longa distância, o grupo de protesto preferiu permanecer no Capivari para distribuir um manifesto contra o empreendimento. O documento denunciou a alteração do zoneamento da área do Costão Golf, a ausência da comunidade “verdadeiramente interessada” na audiência da Câmara dos Vereadores 1 e os riscos de contaminação do aqüífero por fertilizantes e agrotóxicos. “Isso é tão certo que o projeto prevê que eles farão de tudo para minimizar – mas não impedir, pois em parte alguma está escrito categoricamente que o sistema aqüífero não será contaminado por conseqüência dos cuidados e tratamentos do gramado.” Os integrantes dos movimentos sociais também afirmaram que a possível poluição deixaria a água envenenada e sem utilidade para sempre. Esses grupos sociais começaram a acompanhar o caso do Costão Golf no fim de 2003. O Conselho Comunitário dos Ingleses conseguiu uma cópia do projeto e, durante o ano seguinte, começou a se reunir com o movimento Ilhativa, composto por professores 1 Boa parte dos presentes na audiência de 2003 trabalhava no Costão do Santinho, conforme foi escrito em O sonho é maior do que a lei (p. 23), Capítulo 1.
53 universitários, para procurar pessoas e entidades que ajudassem a elaborar documentos e pareceres sobre o empreendimento. As especialistas dos movimentos sociais, a engenheira química Cristina Nunes e a geógrafa Eliane Westarb, concluíram que a Fatma não avaliou corretamente os efeitos da aplicação de fertilizantes e agrotóxicos sobre o solo do Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho. Representantes das entidades solicitaram uma reunião com a procuradora Analúcia Hartmann para expressar suas preocupações e conseguiram agendá­la para novembro de 2004. No encontro, a procuradora da República declarou que as acusações precisavam estar embasadas em estudos técnicos. “Aí começou a ser construída a ação civil pública”, revela Marcio Porto. Os documentos vieram em janeiro, com uma série de pareceres sobre a vulnerabilidade do aqüífero. Assinado por dez associações comunitárias e organizações não­ governamentais (ONGs), o ofício requisitava providências jurídicas cabíveis ao Ministério Público Federal em relação ao Costão Golf. Entre os problemas apontados, estão itens não cumpridos pelo estudo ambiental da Caruso Jr., como as alternativas locacionais e uma avaliação completa dos impactos. “Apesar dos riscos concretos do campo de golfe contaminar o aqüífero com agrotóxicos carcinogênicos e agravar os problemas de abastecimento público, o EIA/RIMA não trata desses assuntos com a devida responsabilidade. Os problemas são apresentados como desafios para o manejo de gramados verdes e não como reais ameaças à saúde pública”, criticam os representantes dos movimentos. Um novo protesto aconteceu no fim de fevereiro de 2005, desta vez no Centro de Florianópolis. Os manifestantes espalharam cartazes, distribuíram panfletos e levaram uma maquete para mostrar a fragilidade do solo no Capivari. A estratégia era obter apoio popular contra a instalação do campo de golfe através de um abaixo­assinado, que foi realizado na Esquina Democrática, no calçadão da Rua Felipe Schmidt. As pessoas que circulavam por ali desconheciam o caso, mas reagiram de modo positivo ao protesto, segundo a engenheira química Cristina Nunes. Os defensores do Costão Golf criticaram a credibilidade do abaixo­assinado, alegando que as assinaturas não foram recolhidas na comunidade dos Ingleses, que estava diretamente envolvida com o caso, ao contrário das pessoas que passavam pelo Centro. O ex­presidente da Ufeco, Modesto Azevedo, defende a escolha deste local. “O problema era de toda a cidade e era preciso alertar a população geral”, explica, argumentando que, se o aqüífero for contaminado, o abastecimento de água de toda a costa norte da Ilha ficará comprometido.
54 Azevedo também garante que o documento passou por outros locais da cidade, inclusive nos Ingleses, onde ficou sob responsabilidade do CCI, do Ilhativa e da ONG Luzes da Ilha. “Tem muitas assinaturas dos moradores de lá”, acrescenta Porto. Os integrantes dos movimentos não deixaram o abaixo­assinado em um ponto fixo da região por temer que a comunidade sofresse possíveis pressões dos empreendedores. No total, foram recolhidas em torno de 2.500 assinaturas em dois dias. Dezenas delas, porém, não têm validade legal, pois os nomes não são acompanhados pelo número da carteira de identidade. Quem também buscava apoio junto à comunidade naquele período era o empresário Fernando Marcondes. No começo de fevereiro de 2005, três semanas antes do protesto no Centro, ele concedeu uma palestra sobre o Costão Golf no restaurante Arvoredo, nos Ingleses, em um evento organizado pelo Rotary Club. De acordo com o Folha do Norte da Ilha 1 , Marcondes fez uma rápida introdução e depois começou a defender o campo de golfe. “Estou aqui [nos Ingleses] há 25 anos e tenho uma ligação muito forte com este lugar. Não faria jamais algo que viesse a prejudicar o que temos de mais importante, que é o nosso meio ambiente. Lhes dou a minha palavra, o risco de contaminação é zero!”, enfatizou. O empresário aproveitou o encontro para anunciar que a área de treinamento do Costão Golf (o driving range) seria inaugurada em julho de 2005 e o campo de golfe, em dezembro. As obras ocorriam rapidamente no Capivari, sob o comando de outra empresa de Marcondes, a incorporadora Costãoville Empreendimentos Imobiliários. O ritmo de trabalho da equipe de 60 trabalhadores assustava a moradora Ana Gabriela Lalane. “Eles começavam às sete horas da manhã e se apressavam.” Em dois meses, retiraram a vegetação esparsa do pasto que havia na área. Na etapa seguinte, tratores e escavadeiras começaram a remexer a terra e ajeitar as ondulações do futuro campo. O cronograma continuaria dentro do prazo, caso não fosse interrompido pela ação civil pública do Ministério Público Federal de Santa Catarina, que acusava o empreendimento de pretender utilizar fertilizantes e agrotóxicos que contaminariam as águas subterrâneas da região dos Ingleses. 1 CAMPOS, Naim. Costão Golf é tema de debate no Rotary Club. Folha do Nor te da Ilha, Florianópolis, 27 fevereiro 2005. Disponível em: <http://www.folhanorte.com.br/site/>. Acesso em: 17 março 2008.
55 A melhor água de Santa Catar ina não é infinita A primeira impressão que se tem de Walter Alperstedt após uma conversa por telefone é a de um homem ranzinza e desconfiado. Ele reluta em conceder uma entrevista sobre o Costão Golf, pergunta qual é o objetivo dela, mas no fim aceita. Alperstedt mora no Capivari e é dono da Pousada do Francês. A recepção e os sete chalés ocupam parte de seu terreno, que está colado à Rodovia João Gualberto Soares e a 200 metros da área do campo de golfe. Ao conhecê­lo pessoalmente, a impressão inicial desse homem careca, de nariz vermelho e bigode branco e pontudo, vai mudando. Alto e corpulento, com fortes traços da ascendência alemã, ele é um senhor educado, que conta sem hesitação a história de sua vida e só franze o rosto quando não ouve direito as perguntas. Da pequena cidade natal na serra catarinense ele foi para São Paulo e depois se aventurou por 15 anos no exterior. Em grande parte desse período, morou com a família em Paris. Quando voltou ao Brasil, Alperstedt acabou parando no Sítio do Capivari depois de aceitar uma sugestão dos filhos, que passaram férias em Florianópolis e acharam interessante que o pai abrisse uma pousada na cidade. Ele iniciou o negócio no fim de 1990, quando o Capivari era extremamente verde, com poucas casas, “mas isso é passado, o asfalto da rodovia trouxe gente e problemas demais”. A estrada ficou mais movimentada, os acidentes aumentaram e algumas pessoas morreram no trecho mais perigoso, a subida de uma curva fechada que fica ao lado da pousada. A sensação de segurança também se foi com os dois arrombamentos na recepção e os roubos de fax, televisão e cortador de grama. Nem a vista para o mar foi poupada; hoje só se enxergam muros, casas e telhados. Alperstedt reclama inclusive de uma melhoria de infra­estrutura no Capivari. Os habitantes da região dos Ingleses sempre se abasteceram com poços artesianos até o começo da década de 90, quando a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) instalou uma rede pública de fornecimento. Alperstedt decidiu utilizar esses serviços, mas logo se arrependeu. “O líquido vinha com gosto de cloro e outras porcarias. Fazia café e ficava horrível.” Ele resolveu usar novamente um poço próprio para extrair água diretamente do Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho.
56 Um aqüífero é um reservatório natural de água subterrânea, formado por rochas onde a água se armazena e circula 1 . A formação rochosa determina a classificação dos aqüíferos em três tipos 2 . O primeiro é o cavernoso (ou cárstico), no qual a água dissolve camadas de calcário ou mármore e abre as cavidades onde se acumula. Nos aqüíferos fissurais, ela preenche as fendas de rochas cristalinas, como o granito, e forma reservatórios descontínuos, com volumes separados. Por outro lado, os aqüíferos porosos (ou granulares) são contínuos porque os seus volumes se interligam através dos poros nos quais fluem e se armazenam. Os poros são os espaços entre os grãos de sedimentos e as camadas sedimentares, como o arenito, que é uma rocha de areia. O volume desse tipo de aqüífero depende principalmente da quantidade dos espaços (porosidade total) e das conexões entre eles (permeabilidade). De acordo com a dissertação 3 de Geografia de Eliane Westarb, a região do Aqüífero Ingleses Rio­Vermelho é composta por duas unidades geológicas. Uma delas são os depósitos de granito que formam a cadeira de morros que separa o nordeste e o noroeste da Ilha. Os depósitos compõem uma camada de rochas que se assemelha a uma espécie de bacia alongada na planície, em forma de V, com 202 metros de profundidade. Essa camada é chamada de embasamento por servir de base para outros tipos de rochas e, em suas fissuras, surgiram aqüíferos descontínuos. A outra unidade geológica são os depósitos de arenitos que ficam sobre esse embasamento. Dentro da bacia com toneladas de areia, surgiu um sistema de aqüíferos contínuos que vai desde a Praia dos Ingleses até a do Moçambique, passando por uma área de 30 quilômetros quadrados. No total, existem três sub­bacias 4 interligadas com até 80 metros de profundidade que constituem o chamado Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho. As águas subterrâneas 5 correspondem a aproximadamente 97% da água doce do planeta em estado líquido, enquanto as superficiais (rios e lagos) representam os outros 3%. Esta grande diferença pode ser verificada na Ilha, cuja maior reserva de água potável é exatamente o Ingleses­Rio Vermelho. 1 ANTONIO, Raphaela Nogueira. Soluções híbr idas par a pr oblemas de migr ação de contaminantes no solo. 122 f. Dissertação (Mestrado em Ciências em Engenharia Civil) – Curso de Pós­Graduação em Engenharia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. P. 25. 2 Ibidem. 3 WESTARB, Eliane de Fátima Ferreira do Amaral. Sistema Aqüífer o Sedimentar Fr eático Ingleses – SASFI: Depósitos costeiros que tem mantêm...ocupação que te degrada! 175 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós­graduação em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. P. 9. 4 Ibidem, p. 51. 5 GUEDES JÚNIOR, Alexandre. Ár eas de pr oteção ambiental par a poços de abastecimento público em aqüífer os costeir os. 185 f. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção) – Programa de Pós­Graduação em Engenharia de Produção, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005. P. 13.
57 Por ser altamente poroso e permeável, seu volume está estimado 1 em 287 bilhões de litros, o equivalente a cerca de 105 mil piscinas olímpicas, e a vazão diária é de 29 milhões de litros. Estes valores impressionam ainda mais se forem comparados aos do Aqüífero Campeche, que tem a mesma área, mas possui “apenas” 105 bilhões de litros e descarrega 12 milhões de litros por dia no mar e na terra. Também não há rivais páreos na superfície para o Ingleses­Rio Vermelho. Os rios são pequenos e a Lagoa da Conceição, a maior da Ilha, tem água salobra por causa de sua ligação com o mar – ela é, na verdade, uma laguna. A segunda maior lagoa é a do Peri, que fica no sul e tem volume 2 de 21 bilhões de litros, 13 vezes menor. A falta de fontes abundantes de água é um problema secular para Florianópolis, que hoje produz apenas 30% da água que consome 3 . O primeiro sistema de captação 4 da cidade surgiu em 1910, através de córregos e do Rio Tavares, no sul da Ilha. Trinta anos depois, esses pequenos rios se tornaram insuficientes para abastecer uma população de 24 mil habitantes. “Por sorte a tecnologia na área de engenharia de recursos hídricos já estava bem desenvolvida e assim permitiu que a cidade pudesse ser abastecida por manancial localizado na região continental, a cerca de 30 quilômetros de distância”, conta a pesquisadora Zoraia Guimarães 5 , em sua dissertação sobre o abastecimento da capital catarinense. Enquanto o interior e as praias da Ilha continuavam a utilizar poços, a parte central, chamada de distrito­sede, começou a depender da água dos rios Pilões e Vargem do Braço, que também abasteciam os municípios de Santo Amaro da Imperatriz, Palhoça e São José. Dos anos 50 aos 70, a população de Florianópolis triplicou, ultrapassando a marca de 150 mil pessoas. O crescimento provocou uma crise no sistema de fornecimento em 1975 e, para resolvê­la, a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) teve de construir uma terceira adutora para trazer mais água do continente. Criada em 1971 como uma sociedade de economia mista e controlada pelo governo estadual, a Casan surgiu para criar e melhorar a estrutura de abastecimento e saneamento nas 1 De acordo com dados da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, Social e Meio Ambiente de Santa Catarina (1997). 2 CONAGE. Planta Batimétr ica, cálculo do volume de água e ár ea da L agoa do Per i. In: Diagnóstico Ambiental visando um programa de monitoramento da Lagoa do Peri. Florianópolis, Núcleos de Estudos do Mar, Universidade Federal de Santa Catarina, 1999. 3 FRANÇA, Francis. Aqüífero em Florianópolis está saturado, mas pode abastecer grandes empreendimentos, diz Casan. Ambiente Já, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 9 janeiro 2007. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=88852>. Acesso em: 17 março 2008. 4 GUIMARÃES, Zoraia Vargas. Os r ecur sos hídr icos utilizados par a abastecimento populacional e o desenvolvimento ur bano em Flor ianópolis. 178 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999. P. 67. 5 Ibidem.
58 cidades catarinenses. Para solucionar o problema de água em Florianópolis, a companhia contratou a empresa Engevix para recomendar futuras propostas de fornecimento público para a capital e os municípios vizinhos. O relatório 1 feito em 1981 sugeriu a criação de três sistemas: o distrito­sede passaria a ser abastecido por outro rio continental, o Cubatão, e as regiões norte e leste­sul continuariam a consumir água da própria Ilha, que passaria a ser fornecida por redes da Casan. A proposta inicial do sistema Costa Norte não previa captação no Ingleses­Rio Vermelho. A Engevix tinha planejado interligar o sistema Cubatão­Pilões com o norte da Ilha, além de utilizar o Rio Ratones. Esta segunda idéia apresentou problemas socioambientais 2 por causa do alto custo na construção de uma barragem e nas desapropriações das áreas inundadas; ela foi definitivamente abandonada quando se descobriu o grande potencial do aqüífero da região dos Ingleses 3 . A companhia começou a explorar o aqüífero em 1987 e abriu dois poços no Capivari, nas áreas próximas às dunas vegetadas. O início do Costa Norte, porém, não trouxe vantagens para os moradores da região. A Casan montou a estação de tratamento nos Ingleses, mas a água era destinada para os balneários vizinhos de Jurerê e Canasvieiras, que estava com o abastecimento em crise – a ligação da rede com as residências dos Ingleses foi feita em 1993. Existem atualmente 22 poços no Capivari e no Rio Vermelho, conectados a duas adutoras, que conduzem a água até a estação antes de distribuí­la para 12 bairros, espalhados por balneários e pelo interior da Ilha de Santa Catarina. Embora a rede de fornecimento exista há mais de dez anos nos Ingleses e no Rio Vermelho, muitos moradores e empreendimentos turísticos locais continuam a usar ponteiras, um tipo de poço que usa bomba elétrica na superfície para sugar água do solo perfurado. Como as areias da planície são finas e bem selecionadas 4 , há muitos espaços vazios no solo e ligações entre eles. Isto permite que a água da chuva penetre, circule e se acumule com facilidade. Na primeira camada além da superfície está a zona não saturada, onde a areia tem pouca água. O aqüífero começa um pouco mais abaixo, na zona saturada, no ponto em que a areia está cheia de água. Essa segunda camada tem espessura média de 50 metros e seu ponto 1 GUIMARÃES, Zoraia Vargas. Os r ecur sos hídr icos utilizados par a abastecimento populacional e o desenvolvimento ur bano em Flor ianópolis. 178 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999. P. 118. 2 Ibidem, p. 122. 3 Ibidem, p. 123. 4 WESTARB, Eliane de Fátima Ferreira do Amaral. Sistema Aqüífer o Sedimentar Fr eático Ingleses – SASFI: Depósitos costeiros que tem mantêm...ocupação que te degrada! 175 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós­graduação em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. P. 44.
59 inicial varia conforme a topografia do terreno – nos Ingleses, ele geralmente é encontrado a poucos metros de profundidade, o que facilita a extração com ponteira. A água subterrânea fica distribuída por todo solo; por isso, o aqüífero é classificado como freático. A filtração nestas areias encharcadas também permite que ela seja de excelente qualidade. “Esse manancial é o mais precioso que a Casan possui em todo o estado”, garantiu Walmor de Lucca, presidente da companhia 1 . Para tratar a água, a empresa adiciona somente cloro e flúor, além de cal batida para reduzir a acidez. Este tratamento, porém, não é bem apreciado pelos moradores e pelos donos de estabelecimentos que têm poços próprios. Entrevistados pela geógrafa Eliane Westarb 2 , eles resistem em usar a água da Casan principalmente pelo mesmo motivo apontado por Walter Alperstedt, dono da Pousada do Francês: o cloro deixa cheiro e gosto na água. Calcula­se que o aqüífero abasteça, no total, cerca de 100 mil pessoas 3 , seja através da rede pública ou de captação própria, número superior à projeção 4 de 79 mil consumidores para 2005, prevista pela Casan em 1981. Diante desta estimativa, a concessionária acreditava que o Ingleses­Rio Vermelho seria capaz de abastecer todo o norte da Ilha e deixou de construir a ligação com Cubatão­Pilões. No entanto, o crescimento populacional foi maior do que o esperado nos últimos vinte e cinco anos, e vem alterando o balanço hídrico do aqüífero. Por estar em uma planície arenosa onde chove bastante, o manancial consegue se recarregar constantemente com a água da chuva que cai em qualquer ponto de sua área de extensão. Um estudo realizado em 1996 pela Companhia de Pesquisas de Recursos Naturais (CPRM), a serviço da Casan, apontou que de 35% a 45% da chuva é absorvida, enquanto o resto escorre pelo solo ou fica retido nas árvores e evapora, e 20% a 30% efetivamente atinge o reservatório. Outra pesquisa, feita pela empresa Engenharia e Pesquisas Tecnológicas (EPT) em 2002, calculou que o aqüífero pode receber até 12,5 bilhões de litros por ano. Vital para este processo, a terra permeável está diminuindo com a ocupação desordenada. A mudança no balanço hídrico é dupla: retira­se mais água para o consumo e diminui­se a entrada com o solo 1 CAMPOS, Naim. Casan inaugura nova adutora dos Ingleses. F olha do Nor te da Ilha, Florianópolis, 27 fevereiro 2005. Disponível em: <http://www.folhanorte.com.br/site/>. Acesso em: 17 março 2008. 2 425 pessoas responderam ao questionário de sua dissertação. 3 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimou no ano de 2000 que 50% da população urbana do país seja abastecida por água de origem subterrânea. Segundo dados da Agência Nacional de Águas (2001), existem no Brasil cerca de um milhão de poços profundos. 4 GUIMARÃES, Zoraia Vargas. Os r ecur sos hídr icos utilizados par a abastecimento populacional e o desenvolvimento ur bano em Flor ianópolis. 178 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999. P. 147.
60 impermeabilizado por casas e as ruas pavimentadas. Se houver estiagem, essa recarga diminui ainda mais. Para não prejudicar drasticamente o balanço, a exploração deve ser de, no máximo, 70% da capacidade de recarga, o que corresponde a 393 litros por segundo. A Casan tem autorização do Ministério Público Estadual para retirar até 330 litros por segundo, disse o presidente Walmor de Lucca 1 , porque não faz idéia da quantidade de água extraída pelos poços particulares. “Presumimos que sejam 70 litros por segundo, mas esse número é apenas uma projeção”, admite ele 2 . A captação da companhia já provocou conseqüências visíveis na paisagem das dunas dos Ingleses. Antigamente, o excesso das águas do aqüífero emergia na superfície e formava lagoas, conta a geógrafa Eliane Westarb na sua dissertação 3 . Com volumes cada vez maiores sendo retirados, o nível do reservatório baixou e as lagoas secaram – agora só reaparecem em períodos com chuva muito intensa. Como não se sabe da extração total do aqüífero, ele talvez esteja sofrendo um rebaixamento excessivo e correndo o risco de ser invadido pela água do mar. “Um consumo acima da capacidade de reposição poderá provocar o avanço da cunha salina, sobretudo onde ela tem maior influência, nos Ingleses, ao norte, e em Moçambique, ao sul”, alerta os autores do estudo da CPRM. A cunha salina é uma zona de transição na qual as águas doces dos aqüíferos costeiros, por serem menos densas, flutuam sobre as salgadas – isso ocorre nos limites entre a ilha, ou continente, com o mar 4 . A cunha separa as duas e sua posição é mantida pelos escoamentos do aqüífero no mar, que agem como uma força contrária e impedem a infiltração das águas salgadas no solo. O movimento e a descarga são controlados pela topografia, e a principal zona de vazão do Ingleses­Rio Vermelho fica na Praia do Santinho. Quanto menor o nível do aqüífero, mais fracas serão as descargas e maior o avanço da água do mar. Portanto, se as extrações forem maiores do que a recarga, haverá um desequilíbrio e a água do mar vai penetrar de modo lento, mas contínuo, até alcançar os poços. Caso a cunha chegue aos níveis mais rasos e se misture com a água doce, o aqüífero 1 Temporada que chega e a infra­estrutura que falta para termos o melhor de Florianópolis. CDL J Á, p. 5. Disponível em: <http://www.spcfln.org.br/cdlja/janeiro07/janeiro07.pdf>. Acesso em: 17 março 2008 2 FRANÇA, Francis. Aqüífero em Florianópolis está saturado, mas pode abastecer grandes empreendimentos, diz Casan. Ambiente Já, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 9 janeiro 2007. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=88852>. Acesso em: 17 março 2008. 3 WESTARB, Eliane de Fátima Ferreira do Amaral. Sistema Aqüífer o Sedimentar Fr eático Ingleses – SASFI: Depósitos costeiros que tem mantêm...ocupação que te degrada! 175 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós­graduação em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. P. 64. 4 Ibidem, p. 29.
61 estará salinizado, impróprio para o consumo e dificilmente poderá ser descontaminado, já que os custos seriam milionários. Mananciais subterrâneos como o Ingleses­Rio Vermelho encontram­se em toda a costa brasileira, sobretudo nas regiões Sul, Nordeste e Norte, e são a principal fonte potável de muitas cidades litorâneas 1 . Já houve casos de salinização no Rio Grande do Norte, Alagoas e até na própria Ilha de Santa Catarina em 2005, quando um pequeno aqüífero da Praia Brava ficou inutilizado por causa da captação exagerada e da impermeabilização do solo provocada por dezenas de condomínios. A praia, que fica entre Canasvieiras e Ingleses, agora depende da água do sistema Costa Norte. O temor de uma possível invasão da água do mar também impede a Casan de fazer perfurações além das camadas de argilas que limitam a parte conhecida do aqüífero. “Segundo Lauro Zanatta, geólogo da companhia, é uma forma de prevenção adotada à possibilidade de salinização, no caso de haver água salgada nos depósitos inferiores que poderiam ascender com o bombeamento, contaminando o aqüífero superior”, explica Eliane Westarb 2 . Sob os poços de até 76 metros da Casan, existem mais de 100 metros de espessura com sedimentos. Como esses depósitos ainda não foram estudados, não se sabe se a água ali é doce ou salgada. O que caracteriza o começo da infiltração marinha no aqüífero é uma rápida elevação da quantidade de sais, como o cloreto de sódio. Apesar da superexploração do Ingleses­Rio Vermelho, a análise da EPT não notou indícios de salinização em nenhum dos poços da Casan. Após um pedido do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente de Florianópolis, a concessionária contratou um segundo estudo sobre esse aqüífero e o do Campeche para conhecer melhor os volumes e limites 3 . Em abril de 2003, o presidente da Casan informou a conclusão dessa segunda pesquisa ao Ministério Público Estadual (MPE). “Os elementos técnicos obtidos, associados aos aspectos legais, serviram de base para o mapeamento das restrições ao uso e ocupação do solo”, discorreu Walmor de Lucca. No fim do ofício, constatou que muitas limitações deveriam ser impostas aos Planos Diretores das regiões dos Ingleses e do Campeche, e 1 GUEDES JÚNIOR, Alexandre. Ár eas de pr oteção ambiental par a poços de abastecimento público em aquífer os costeir os. 185 f. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção) ­ Programa de Pós­Graduação em Engenharia de Produção, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005. P. 14. 2 WESTARB, Eliane de Fátima Ferreira do Amaral. Sistema Aqüífer o Sedimentar Fr eático Ingleses – SASFI: Depósitos costeiros que tem mantêm...ocupação que te degrada! 175 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós­graduação em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. P. 46. 3 GUIMARÃES, Zoraia Vargas. Os r ecur sos hídr icos utilizados par a abastecimento populacional e o desenvolvimento ur bano em Flor ianópolis. 178 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999. P. 123.
62 sugeriu a criação de um grupo com membros de órgãos municipais e estaduais para propor mudanças nas leis. O MPE atendeu a solicitação e iniciou, três meses depois, uma série de reuniões sobre o assunto. No quarto encontro, em 6 de fevereiro de 2004, representantes da Casan afirmaram que a empresa estava no limite de sua captação permitida nos Ingleses e era grande a possibilidade de que a marca dos 393 litros por segundo já se encontrasse ultrapassada por causa dos poços particulares, colocando o aqüífero local em risco. Diante das incertezas, duas medidas foram estabelecidas. Uma delas seria investir em novas fontes de fornecimento ao norte da Ilha para estabilizar e, se possível, diminuir a extração do aqüífero. Seria necessário também impedir novos empreendimentos de médio e grande porte na região dos Ingleses até que a concessionária obtivesse dados concretos sobre a captação das ponteiras. No fim de fevereiro de 2004, os promotores Rui Richter, da Promotoria de Defesa do Meio Ambiente, e Alexandre Herculano Abreu, do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente, recomendaram a vários órgãos para que não licenciassem ou permitissem esses novos empreendimentos. Entre eles, estava a Fatma, que começaria a analisar no mês seguinte o EIA/RIMA de um projeto imobiliário de grande porte previsto justamente para a região do aqüífero Ingleses­Rio Vermelho, chamado Condomínio Residencial Costão Golf. O estudo ambiental previu 1 uma população de 1.380 pessoas (moradores, empregados e visitantes) no condomínio e um consumo diário de 276 mil litros (igual a 3,2 litros por segundo), enquanto o campo de golfe sozinho precisaria de até 200 mil, quantia necessária para casos extremos, como verões de estiagens prolongadas 2 . No total, seriam utilizados 486 mil litros por dia, o que corresponderia a uma captação de 5,6 litros por segundo. A idéia inicial dos empreendedores era obter esse volume com poços próprios. No entanto, a recomendação do Ministério Público Estadual alterou os planos. A Fatma só poderia autorizar a construção do Costão Golf se a Casan tivesse capacidade de abastecer o empreendimento e se comprometesse a fazê­lo. Apesar de representantes da companhia terem dito que a captação estava no limite durante a reunião de fevereiro de 2004 do MPE, o presidente Walmor de Lucca fechou um acordo com Marcondes cinco meses depois e assegurou o abastecimento para 130 casas e 120 apartamentos do condomínio. 1 CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 3­33. 2 Ibidem, p. 3­49.
63 Foi acertada a implantação gradativa de 50 casas e apartamentos por ano, entre 2006 e 2010. No documento, a Casan disse que o acréscimo de consumo poderia ser plenamente absorvido pelo sistema da época. Em troca, a Santinho Empreendimentos Turísticos, empresa de Marcondes, deveria custear três análises mensais em poços alternados da companhia por cinco anos – essas análises seriam feitas nos laboratórios da Casan. 1 Na projeção de consumo de água do EIA/RIMA, seriam construídas 120 casas nos 181 lotes do condomínio – algumas residências ocuparão dois ou até três lotes. Como o acordo com a Casan revelou que haverá mais dez casas (e, portanto, até mais 60 moradores), a demanda diária da população do Costão Golf passaria de 276 mil litros para 288 mil e a companhia precisaria oferecer 3,3 litros por segundo. Depois de enviar uma nova série de recomendações em março de 2005 para proteger o aqüífero, o MPE questionou a Casan sobre esse fornecimento de água ao Costão Golf. “Por se tratar de consumo apenas residencial, esta demanda incremental poderá ser plenamente absorvida pelo sistema de abastecimento, visto que este incremento representa apenas 0,2% da base de economias 2 [ligações em casas e estabelecimentos] atualmente instaladas”, respondeu o presidente Walmor de Lucca, sem comentar o consumo diário do empreendimento. Esta estimativa é discutível caso se analise o consumo per capita de 200 litros calculado pelo estudo ambiental. No bairro mais luxuoso da Ilha, Jurerê Internacional, cada habitante utiliza 225 litros por dia 3 . Como o Costão Golf tem o mesmo tipo de público­alvo, de classe alta (A+) e estrangeiros 4 , pode se supor que os seus moradores terão um padrão de consumo semelhante, obrigando um sistema que já está no limite a extrair até 3,7 litros por segundo para abastecer o condomínio. No acordo com a Casan, ficou acertado ainda que a companhia não ofereceria água para a irrigação do campo. Para resolver esse problema, o empreendimento já tinha elaborado um projeto no qual captaria a água da chuva que escoa pelo solo, do esgoto tratado e dos 1 Grosso modo, pode­se dizer a Casan “vendeu” a autorização por exames cujo preço médio não foi apresentado no documento do acordo e pelo software MudFlow, que seria usado para monitorar o aqüífero e foi avaliado em US$ 2 mil naquela época. 2 Essa conta não fecha. Se 130 casas e 120 apartamentos representam apenas 0,2% das economias atendidas pelo sistema Costa Norte, isso quer dizer que haveria 125 mil economias atendidas no norte da Ilha. O problema é que a Casan fornecia água para 26.494 economias em 2003 (WESTARB, 2004) e hoje deve abastecer em torno de 30 mil a 35 mil. 3 Habitasul Empreendimentos Imobiliários. Sistema de colet a e tr atamento de esgotos de J ur er ê Inter nacional, fevereiro 2004. Disponível em: <https://secure.vanet.com.br/habitasul/sae/sist_trat_esgotos.pdf>. Acesso em: 17 março 2008. 4 PASSOS, Carmela Saraceno. Car mela Imóveis tem exclusividade na comer cialização do Costão Golf. Diário Catarinense, Florianópolis, p. 31, 30 dezembro 2007. Entrevista concedida ao informe comercial Mercado & Sucesso.
64 pontos irrigados do gramado onde o solo seria impermeabilizado. Todo esse volume seria drenado para seis lagoas antes de ser bombeado para o campo. A consultora ambiental Caruso Jr. ignorou o impacto do consumo humano do Costão Golf sobre o Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho. Para minimizar a situação, usou 1 dados insuficientes para alegar que o campo aumentaria a recarga anual no terreno do empreendimento em 63%, através da irrigação auto­suficiente, e assim cobriria o volume retirado pela Casan para abastecer a população do condomínio. Toda a área leste do Costão Golf, onde está o campo, fica sobre apenas 0,5% da área do aqüífero; na parte mais alta do terreno, a profundidade do manancial chega a 40 metros e na mais baixa, é de apenas 4 metros. O percentual de 0,5% aparece no estudo 2 que destaca o suposto aumento de recarga, mas isso não é comparado com a real dimensão do aqüífero. No entanto, quando se trata do uso de produtos químicos (fertilizantes e agrotóxicos) no campo de golfe, o percentual é citado. “O Costão Golf está apenas sobre 0,5% do aqüífero”, contou Ricardo Agüero, diretor do clube de golfe, em entrevista realizada em setembro de 2007. Ele tentou utilizar esse argumento, assim como outros, para demonstrar que não existem os riscos de contaminação que foram questionados judicialmente pelo Ministério Público Federal a partir de 2005. J ustiça paralisa as obras O inquérito civil iniciado pela procuradora Analúcia Hartmann em novembro de 2003 estava finalizado, depois de 16 meses de duração. Os pareceres dos movimentos sociais sobre as ameaças de contaminação do aqüífero através de produtos químicos, o abaixo­assinado e as análises dos técnicos do MPF foram os documentos finais que ajudaram a procuradora da República a preparar uma ação civil pública contra a construção do Costão Golf, antes que o campo fosse finalizado. Criada pela Lei Federal 7.347/85, a ação civil pública defende os interesses difusos, ou seja, interesses da sociedade ou de uma parte dela, e os coletivos, que afetam uma determinada comunidade ou grupo social. Este tipo de recurso judicial, assim como o inquérito civil, faz parte das funções atribuídas pela Constituição Federal 3 aos ministérios públicos para proteger o patrimônio público e social, o meio ambiente e os direitos 1 CARUSO JUNIOR, Francisco; STADNIK, Marciel; TREBIEN; Darci. Complementações ao EIA­RIMA: Estudo de Impacto Ambiental. Florianópolis, ago. 2005. P. 10. 2 Ibidem, p. 9. 3 Artigo 129, inciso III.
65 constitucionais. Ela pode ser promovida também por terceiros, como a União, estados, municípios e associações civis. A ação civil pública contra o Costão Golf foi enviada à Justiça Federal em 31 de março de 2005, com uma série de argumentações e pedidos. A procuradora Analúcia iniciou o texto lembrando que, apesar das ameaças ao aqüífero, os órgãos públicos não observaram as recomendações do MPE quando analisaram, aprovaram e licenciaram o condomínio. Ela usou os princípios da prevenção e da precaução para solicitar o embargo, a suspensão do licenciamento ambiental e dos alvarás concedidos pela prefeitura. O princípio da prevenção é a base do Direito Ambiental e pode ser aplicado quando se conclui cientificamente que os danos de um empreendimento sobre a natureza ocorrerão e difícil ou impossivelmente serão reparados. Mais recente, o princípio da precaução se diferencia porque está relacionado aos casos nos quais os riscos que se quer evitar são incertos, pois sobre eles não há conhecimentos suficientes disponíveis. “É certo que o empreendimento constitui dano certo e irreparável em áreas de preservação permanente, como se comprova pela documentação juntada, especialmente pareceres técnicos dos biólogos que assessoram este MPF e das entidades comunitárias que representaram contra a instalação do empreendimento”, declara a procuradora no texto. “Por outro lado, inexistindo dados conclusivos, não se pode afirmar sobre o tempo que levará para a contaminação do aqüífero, sobre os impactos sobre a fauna e sobre tantos outros aspectos, repita­se, negligenciados no estudo de impacto ambiental e no procedimento da Fatma.” Distribuído na Justiça Federal de Florianópolis no começo de abril, o processo iniciou com o juiz federal substituto Sérgio Cardoso, da 2ª Vara, que não concedeu a liminar solicitada pelo MPF e intimou a Fatma e o município a se defenderem. Na resposta da fundação, os advogados alegaram que os procedimentos adotados estavam de acordo com a lei e exibiram argumentos do coordenador André Luiz Dadam. Sobre a acusação de que o órgão ambiental teria ignorado a ausência das alternativas locacionais e a análise da não realização da obra no EIA/RIMA, Dadam repetiu a já mencionada declaração falsa do parecer final do licenciamento: “Todas estas solicitações foram atendidas e se encontram no volume de complementações”. Em relação ao tratamento do campo, garantiu que isso foi extensivamente discutido e analisado. “Apesar dos esforços do empreendedor em dar respostas satisfatórias que garantissem a não contaminação do aqüífero, ainda assim a Fatma, ao emitir a Licença Ambiental de Instalação, apresentou fortes restrições.”
66 O Ministério Público Federal considerou essa licença negligente por vetar os fertilizantes e os agrotóxicos ao mesmo tempo em que licenciou uma atividade que necessariamente usa grande quantidade desses produtos. O coordenador da Fatma frisou que foi proibida a utilização de produto químico ou subproduto que pudessem poluir o manancial, e permitido somente o uso daqueles que não trouxessem riscos. “O zelo é tanto que beira ao exagero, pois, mesmo em caso de utilização de um produto que não irá contaminar o aqüífero, a aplicação deste deverá ser previamente autorizada pela Fatma”, concluiu Dadam. Para obter essa permissão, o Costão Golf deveria apresentar um relatório com diversas informações, como composição química, forma de aplicação, quantidade e movimentação no solo. A criação da Vara Ambiental na Justiça Federal de Florianópolis no fim de maio de 2005 mudou o curso da ação civil pública. O processo foi repassado para o juiz substituto Jurandi Pinheiro, que cancelou uma inspeção judicial marcada para agosto e concedeu, em 13 de junho, uma liminar para interromper as obras de todo o condomínio e suspender os efeitos do licenciamento ambiental e dos alvarás. “De todos os pontos articulados pelo MPF na petição inicial, o risco de contaminação do aqüífero existente sob a área do campo de golfe é, seguramente, o aspecto em relação ao qual não pode pairar qualquer dúvida”, enfatizou o juiz. A condição apresentada pela Fatma para o uso de fertilizantes e agrotóxicos não mereceria “reparo algum” se não fosse por um detalhe. “A garantia de que os produtos a serem utilizados não irão contaminar o lençol freático deve ser demonstrada no EIA/RIMA, e não posteriormente.” Como o estudo ambiental não trazia informações seguras que desmentissem essa possível ameaça, Pinheiro determinou o embargo das obras, sob pena de multa de R$ 200 mil, e uma audiência entre as partes envolvidas para resolver os problemas. Dois dias depois, os advogados das empresas de Fernando Marcondes, a CostãoVille e a Santinho, enviaram suas contestações e reclamaram que o juiz paralisou a construção do empreendimento sem ouvi­ las. “Não é verdade que o EIA ou o RIMA tenha declarado que seriam usadas 30 toneladas de fertilizantes e pesticidas ao ano no campo de golfe”, corrigiram, acrescentando que um laudo técnico 1 identificou um erro de cálculo do Ministério Público Federal – a quantidade exata seria de 17,4 toneladas. 1 Feito por Diego Miguel Perez, que na época era professor de Biologia da UFSC e foi contratado pela CostãoVille para responder às indagações do Ministério Público Federal, solicitadas pelo despacho da Justiça Federal de 4 de maio de 2005.
67 “Como em qualquer cultura no mundo, na implantação e manutenção de gramados de campo de golfe são utilizados adubos orgânicos e químicos em quantidade adequada, cientificamente prescrita e controlada por engenheiros agrônomos especialistas sob a orientação do fabricante”, disseram. Na conclusão, os advogados afirmaram que o sistema de tratamento do campo será comandado por um especialista e isso garantirá a proteção do aqüífero. A defesa do Costão Golf foi encabeçada por Aroldo Camillo, amigo e colega de Marcondes na faculdade. A primeira ação de Camillo foi tentar a suspensão da liminar que paralisou as obras até o julgamento final do recurso, pois o embargo estaria prejudicando as vendas do Costão Golf. “Esse estrago capaz de comprometer seriamente os negócios da CostãoVille era tudo que a Procuradora da República desejava para tentar liquidar com o empreendimento de vez”, acusou na contestação. No entendimento dele, o MPF não teria apresentado provas que assegurassem a possibilidade de poluição. “Entretanto, mesmo assim, sem a prova, o Doutor Juiz Federal Substituto deferiu a medida liminar, numa decisão que se afigura ilógica”, argumentou o advogado, “apenas alertas de provável perigo ou de dano remoto não podem servir de requisitos para a concessão indiscriminada de liminar.” O pedido não foi aceito pelo juiz Pinheiro, que continuou exigindo um estudo detalhado sobre o uso de fertilizantes e agrotóxicos. A CostãoVille e a Santinho recorreram dessa decisão e tiveram sucesso na instância superior, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sediado em Porto Alegre. O relator do processo, o desembargador Edgard Lippmann Jr., aceitou suspender parcialmente o embargo, em 7 de julho de 2005, por concordar que faltavam provas seguras de contaminação no aqüífero. Ele também considerou a salinização e as fossas na região dos Ingleses como ameaças tão ou mais perigosas do que o campo de golfe. O TRF ficou de reexaminar a paralisação depois da audiência de conciliação e da definição de conclusões sobre o caso. Essa reunião ocorreu na tarde de 8 de agosto de 2005, na Justiça Federal de Florianópolis, e nela o juiz Pinheiro sugeriu um acordo entre o empreendedor e o MPF para se fazer a complementação do estudo ambiental, no qual os técnicos contratados pelo Costão Golf apresentariam os princípios ativos dos produtos químicos, com análise de riscos e alternativas não nocivas 1 . 1 FRANÇA, Francis. Ministério Público Federal rejeita acordo com Costão Golf. Ambiente J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 9 agosto 2005. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=65671>. Acesso em: 15 fevereiro 2008.
68 A procuradora Analúcia Hartmann falou que só aceitaria a proposta se a obra ficasse parada até o esclarecimento total da questão, mas Marcondes não concordou. O empresário ficou impaciente por várias vezes durante a audiência. “Estou absolutamente tranqüilo de que o risco de contaminação é zero. Ninguém vai colocar nada lá para perder dinheiro.” Analúcia encerrou a discussão de quatro horas pedindo que as provas do Costão Golf fossem apresentadas no processo judicial. “A senhora tem a necessidade de atrapalhar”, provocou o advogado Aroldo Camillo. 1 A certeza de Marcondes não pôde ser totalmente justificada por um especialista que ele convidou, o doutor Darci Trebien, do Laboratório de Solos da Universidade Federal de Santa Catarina. “Toda possibilidade de utilização de produtos químicos é uma possibilidade de risco”, explicou Trebien 2 , acrescentando que nem mesmo uma simulação em laboratório seria suficiente para oferecer garantias de que o empreendimento não contaminaria o aqüífero. Com a tentativa de acordo fracassada, a incorporadora CostãoVille ficou encarregada de entregar estudos adicionais sobre o campo de golfe dentro de 15 dias. Uma nova audiência seria marcada após o recebimento desses estudos e das respostas do Ministério Público Federal às contestações. No mês seguinte, o TRF restabeleceria o embargo e a polêmica se arrastaria em 2006. *** 1 FRANÇA, Francis. Ministério Público Federal rejeita acordo com Costão Golf. Ambiente J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 9 agosto 2005. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=65671>. Acesso em: 15 fevereiro 2008. 2 Ibidem.
69 Capítulo 4: Uma nova ameaça sobr e a ter r a fr ágil? O sotaque carioca da engenheira química Cristina Nunes se acentua nos momentos em que critica o Costão Golf. O tom da voz aumenta, as palavras ficam mais rápidas. O chiado do ésse permanece evidente ao expressar com indignação a conivência do poder público ao permitir a implantação de um campo de golfe sobre um aqüífero já ameaçado. Essa mulher morena, de óculos e cabelos curtos mora no Capivari há dez anos e participa do Conselho Comunitário dos Ingleses (CCI). Foi através da entidade que conheceu o projeto do Costão Golf em 2004. Na época, ela fazia um doutorado em Engenharia Ambiental exatamente sobre a contaminação de aqüíferos, com gasolina e etanol, e foi escolhida pelos movimentos sociais para falar do campo de golfe. Cristina acompanhou a primeira audiência do empreendimento e achou­a tumultuada demais. “Os técnicos da Caruso Jr. não souberam falar sobre os contaminantes”, dispara. Em uma das reuniões do Ministério Público Estadual sobre o Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho, ela conheceu uma geógrafa com quem acabaria analisando a viabilidade do campo de golfe: Eliane Westarb, uma pequena mulher de voz fina e delicada que alguns dias antes apresentara sua dissertação sobre o aqüífero para o Curso de Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em seu trabalho, Eliane explica que o conceito de risco de contaminação de aqüíferos é definido pela interação entre a carga contaminante potencial e a vulnerabilidade natural do manancial. O risco se refere à carga que está sendo ou poderá ser aplicada na superfície do solo, como resultado de uma atividade humana; a vulnerabilidade é a tendência que um aqüífero possui para ser poluído por determinados poluentes. Uma carga contaminante só existirá caso suas substâncias sejam suficientemente persistentes (duráveis) e móveis, e contem com a ajuda de um volume de água para fluir no solo e chegar ao reservatório. No entanto, se os poluentes tiverem uma composição diferente, eles podem desaparecer, através da degradação ou da diluição, antes de alcançarem o aqüífero. Essa chance aumenta quando o solo tem camadas de rochas capazes de reter e eliminar os produtos por meio de processos físicos e químicos. Isso, porém, não ocorre com o Ingleses­Rio Vermelho. A areia permite a infiltração de substâncias contaminantes, que passam facilmente pela zona não saturada, altamente
70 permeável e pouco espessa. Para piorar, não há uma camada que proteja a zona saturada, onde o solo está repleto de água, e diminua a quantidade dessas cargas tóxicas. Nos dois artigos que escreveram sobre os riscos de poluição 1 , Cristina e Eliane classificaram de alta a fragilidade do aqüífero, por ser vulnerável a muitos poluentes. Os esgotos domésticos são o maior risco de poluição às águas subterrâneas da Ilha de Santa Catarina, de acordo com o geógrafo Sergio Freitas Borges, que pesquisou 2 o Aqüífero do Campeche. “A contaminação devido à ocupação humana e o despejo de efluentes e resíduos tóxicos no subsolo sem a devida atenção é freqüente na costa brasileira”, descreve, citando casos de poços comprometidos em Balneário Camboriú e Bombinhas, cidades do litoral catarinense. Segundo a Casan, 50% da população de Florianópolis é atendida por sistemas de coleta e tratamento. Nessa estatística, contudo, não estão os habitantes dos Ingleses, que enviam os dejetos para canais pluviais que deságuam no mar ou utilizam o saneamento in situ, no qual o esgoto é tratado no próprio terreno da casa através de fossas sépticas. O risco de contaminação é grande porque o solo absorve líquidos com facilidade e o resíduo das fossas pode se misturar com as águas que estão a poucos metros de profundidade. De acordo com a dissertação de Eliane, as fossas na região são construídas fora dos padrões estabelecidos pela Associação Brasileira de Normas Técnicas, com tamanhos inadequados para o volume gerado de dejetos, além de serem operadas e mantidas de forma precária. Como o tratamento doméstico não ocorre de fato, ao menos parte dos contaminantes está fluindo para o aqüífero. Nas amostras da empresa Engenharia e Pesquisas Tecnológicas (EPT) 3 de 2001, apenas dois de 18 poços da Casan apresentaram concentrações de oxigênio dissolvido na água acima do limite mínimo de seis miligramas por litro, previsto pela Resolução nº 20/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). 1 NUNES, Cristina Cardoso; WESTARB, Eliane de Fátima Ferreira do Amaral. A vulner abilidade do Sistema Aqüífer o de Ingleses par a o Abast ecimento do nor te da Ilha de Santa Catar ina. In: Primeiro Simpósio de Recursos Hídricos do Sul (RS­SC­PR) – ABRH e AUGM, 2005, Santa Maria (RS). Anais do I Simpósio de Recursos Hídricos do Sul, 2005. P. 25­26. NUNES, Cristina Cardoso; WESTARB, Eliane de Fátima Ferreira do Amaral; SILVA, Marcos Francisco da. A prática do golfe, riscos ambientais e retorno social no norte da Ilha de Santa Catarina. Revista Motr ivivência, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, n. 22, jun. 2005. P. 115­133. 2 Borges, Sergio Freitas. Car act er ísticas hidr oquímicas do aqüífer o fr eático do balneário Campeche, Ilha de Santa Catar ina­SC. 87 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Departamento de Geociências, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1996. 3 CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 7­62.
71 O oxigênio dissolvido é um dos critérios mais importantes para análise da água. Caso sua quantidade diminua, isso indica que há presença de poluição orgânica. “Está ocorrendo, portanto, um consumo deste oxigênio livre, o qual pode estar associado à degradação da matéria orgânica presente nos esgotos domésticos. São águas que demonstram um certo grau de contaminação, porém, não a níveis alarmantes”, explicam os autores do estudo ambiental do Costão Golf 1 . A situação poderia estar melhor se os planos iniciais da Casan para o saneamento da costa nordeste da Ilha tivessem sido realizados. Em 1989, a companhia começou a construir um sistema de esgotos em Canasvieiras. Como esse balneário estava sendo abastecido com água dos Ingleses, ele deveria tratar, em troca, os dejetos produzidos no bairro vizinho. “A água foi, mas o cocô ficou”, ironiza o empresário Paulo Spinelli. Gaúcho de Caxias do Sul, Spinelli veio para os Ingleses na década de 80. Depois de acompanhar as mudanças aceleradas da região, tornou­se o grande responsável pela tentativa de reverter a situação em 2006. Os planos diretores de Florianópolis precisavam ser atualizados e, em dezembro daquele ano, ele foi eleito presidente do núcleo local de planejamento participativo. À frente dos trabalhos que vão delinear o futuro dos Ingleses, Capivari e Santinho, o empresário recolheu dados e fez estimativas para apontar o grande culpado dos problemas. “O governo estadual só subtrai. Ganha muito dinheiro com a Casan 2 , mas não dá retorno.” Depois de multiplicar as 34 mil ligações da companhia no norte da Ilha por uma taxa média de consumo, garantiu que o faturamento anual é de, no mínimo, R$ 15 milhões com o aqüífero. Por outro lado, os gastos com tratamento seriam pequenos, afinal se trata da melhor água de Santa Catarina. A Estação de Tratamento de Efluentes (ETE) de Canasvieiras foi inaugurada em 1995, mas só pode atender esse balneário porque ele cresceu demais. O jeito foi construir outra para os Ingleses. As obras começaram no fim dos anos 90, pararam por falta de verba e só recomeçaram há dois anos. A conclusão do projeto com rede coletora de 21 quilômetros e estação de tratamento custará R$ 5,9 milhões – foram investidos R$ 3,4 milhões até dezembro de 2007. 1 CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 7­62. 2 A água do aqüífero é mineral e, por isso, é engarrafada pela Casan e vendida ao governo estadual em copinhos e garrafas. A estação de tratamento de água nos Ingleses pode produzir até 2,5 mil copos por hora.
72 O novo sistema atingirá principalmente os moradores que vivem perto da Praia dos Ingleses e beneficiará o turismo local; estabelecimentos e residências de veraneio serão atendidos, e o mar nesta praia deixará de ser um dos pontos mais críticos para banho em Florianópolis. Em reunião do Conselho Comunitário dos Ingleses em outubro de 2007, representantes da Casan alegaram falta de dinheiro para estender a rede para o Santinho e o Capivari, onde ficará a estação. “A Casan falou que vai levar 20 anos para ter saneamento em todo o distrito”, revela a engenheira química Cristina Nunes. A falta de saneamento em longo prazo não aflige os dois maiores empreendimentos dessas localidades. Assim como o Costão do Santinho, o Costão Golf terá o seu próprio sistema de tratamento e poderá reutilizar a água tratada para irrigar o campo de golfe. O problema dos esgotos, contudo, atrapalha o condomínio por causa da carga potencial de nitrato que existe na região e poderia piorar com a aplicação de fertilizantes no gramado. Nos resíduos das fossas, existe o chamado nitrogênio orgânico, que aparece na forma de proteínas, aminoácidos e uréia. Quando se decompõe, ele se transforma em amônia e depois se oxida através de bactérias nitrificantes. Nessa reação, a substância química vira inicialmente nitrito, mas o seu produto final é o nitrato. Para determinar a carga potencial das fossas nos Ingleses, é preciso multiplicar o número de habitantes pela produção per capita de quatro quilogramas de nitrato por ano 1 . Se considerar que o distrito tem de 35 mil a 40 mil habitantes, a carga potencial está entre 140 a 160 toneladas anuais de nitrato. Classificada como elevada, essa quantidade pode ficar ainda maior com os nitratos dos adubos que o Costão Golf usará para alimentar o gramado. Necessário ao crescimento das plantas, o composto químico é escasso na planície arenosa dos Ingleses porque o solo é ácido e não permite a existência de um grande número de bactérias que capturem nitrogênio e o transformem em nitrato. Por causa dessa deficiência, a agricultura nunca se desenvolveu plenamente na região e dificilmente seria possível plantar o campo de golfe com sucesso se não houvesse adubação para corrigir essa acidez. Juntamente com fosfatos e potássio, o nitrato começou a ser utilizado para adubar solos com nutrientes pobres na Europa do século XIX, intensificou a 1 WESTARB, Eliane de Fátima Ferreira do Amaral. Sistema Aqüífer o Sedimentar Fr eático Ingleses – SASFI: Depósitos costeiros que tem mantêm...ocupação que te degrada! 175 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós­graduação em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. P. 112.
73 prática de monoculturas e aumentou a produtividade agrícola. O uso excessivo, contudo, faz acumular nitrato nas plantas, além de levá­lo a atingir águas subterrâneas. Se for ingerido, ele pode entrar na corrente sangüínea e se transformar em substâncias carcinogênicas. De acordo com a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer 1 , o nitrato é um dos fatores que provocam câncer de estômago 2 . A substância também pode provocar cianose infantil, doença que asfixia e mata bebês de até um ano de idade ao eliminar o oxigênio do sangue. Ao escrever sobre a possibilidade de o Costão Golf poluir o Ingleses­Rio Vermelho com nitrato, a jornalista Cláudia Rodrigues alertou que a contaminação por nitratos na água se dá rapidamente assim que ele entra em contato com a matéria orgânica do solo. O nitrato tem carga negativa e o solo também tem carga eletromagnética negativa. Quando o nitrato atinge o solo e entra em contato com a água, que tem uma molécula polar positiva, ele é atraído pela água, sofrendo então um processo de lixiviação que leva o agente químico automaticamente para as águas profundas.3 “Durante toda a elaboração da pesquisa minha preocupação era com a contaminação via expansão e ocupação, o que certamente aumenta os problemas numa região de terreno arenoso sem tratamento de esgoto”, declarou Eliane para a repórter 4 . “Quando fiquei sabendo do empreendimento em cima da única área preservada de ocupação, levei um susto, vi que tudo poderia ser bem pior do que o já existente e previsto.” Os autores do Estudo de Impacto Ambiental do Costão Golf, no entanto, disseram que não existe risco de contaminação. A possível absorção de parte da carga potencial de nitrato pelo solo, por exemplo, não foi verificada por laudos da Casan, feitos em 2000. “Não foram encontrados coliformes totais ou fecais em nenhuma das amostras analisadas. O valor de nitrato analisado é pouco expressivo e bastante abaixo do máximo permitido pelas normas de potabilidade (10 miligramas por litro). Significa que a água apresenta ótima qualidade bacteriológica e pode ser utilizada para fins de abastecimento sem restrição.” 5 1 RODRIGUES, Cláudia. Costão Golfe: o perigo da contaminação por nitratos na água. Ambiente Já, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Porto Alegre, 23 maio 2005. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=65671>. Acesso em: 23 fevereiro 2008. 2 Ibidem. Há outro texto da jornalista Cláudia Rodrigues sobre o assunto (6 maio 2005), disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=332OFC002>. Acesso em: 23 fevereiro 2008. 3 Ibidem. 4 Ibidem. 5 CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 7­71.
74 Para afastar a ameaça dos nitratos ao aqüífero, os técnicos do empreendimento vão trabalhar com critérios de periodicidade, quantidade e qualidade. No estudo complementar 1 do Costão Golf, de agosto de 2005, os geólogos Francisco Caruso Jr. e os professores da UFSC Marciel Stadnik, doutor em Fitopatologia (doenças de plantas), e Darci Trebien, doutor na área de solo, explicaram que o número de aplicações de fertilizantes será limitado e o volume, controlado. Serão utilizados 1.810 quilogramas de nitrogênio por ano, o que corresponderia a uma colher mensal de 0,81 grama por metro quadrado do campo (ou 96,27 quilogramas por hectare) e faria “com que todo o produto e seus componentes, principalmente os nitratos, sejam absorvidos pelas raízes”. Em relação à qualidade, os técnicos responsáveis usarão fertilizantes com inibidores de nitrificação, para diminuir a formação de nitratos, e de volatilização, para evitar perdas com gases. Outro recurso são os produtos de liberação controlada: o nitrogênio se dissolveria e se transformaria mais devagar em outras substâncias, o que daria mais tempo para as raízes absorverem cada nitrato formado, evitando o desperdício através da lixiviação. A massa de raízes do gramado, com 40 centímetros de profundidade, também evitaria os riscos de contaminação porque possui “uma prolífera população de microorganismos que trabalham na decomposição permanente e degradação de matéria orgânica e de moléculas complexas” 2 . O geólogo Caruso Jr. e o doutor Trebien, especialista em solo, calcularam que, se 80% do nitrogênio virar nitrato, uma quantidade anual de 1.448 quilogramas desse composto iria para o solo. Caso tudo isso fosse diluído na água infiltrada no gramado, haveria 4,17 miligramas de nitrato por litro, valor que estaria abaixo dos 10 miligramas previstos pela Portaria nº 518, de 2004; se a diluição do nitrato ocorresse na água do aqüífero, ela seria “infinitesimalmente menor e, portanto, desprezível” 3 . Como o cálculo dos técnicos não considerou o valor dessa concentração criada pelo Costão Golf que chegará ao manancial, eles não mencionaram o seu acréscimo sobre a concentração já existente, originada pelas fossas – dados obtidos nos poços da Casan em 2000 revelaram uma concentração de 1,2 miligrama por litro. O engenheiro químico Wilson Guimarães Jr., analista do MPF de Santa Catarina, verificou que esses valores não têm embasamento científico porque não foram obtidos por 1 CARUSO JUNIOR, Francisco; STADNIK, Marciel; TREBIEN; Darci. Complementações ao EIA­RIMA: Estudo de Impacto Ambiental. Florianópolis, ago. 2005. P. 10. 2 Ibidem. P. 16. 3 Comentário feito pelos advogados do Costão Golf em peça judicial de 4 de outubro de 2005.
75 meio de cálculos estequiométricos, que indicam as quantidades de reagentes consumidos e produtos formados numa reação química. O conjunto de moléculas do nitrogênio elementar (N2) pesa 14 gramas, enquanto o peso molecular do nitrato (NO3­) é de 46 gramas, ou seja, cerca de 3,3 vezes maior. Se 80% do nitrogênio se transformar em nitrato, seria preciso multiplicar os 1.448 quilogramas pela diferença de peso entre os dois compostos químicos. O resultado indicou, portanto, que os fertilizantes do Costão Golf produziriam 4.758 quilogramas anuais de nitrato. “Refazendo os cálculos de diluição para a nova massa de nitrato, obteríamos uma concentração de 13,7 miligramas de nitrato por litro na água infiltrada [e não na água do aqüífero], o que estaria acima do limite de 10 miligramas”, acrescentou Guimarães Jr. “Portanto, tais números [apresentados no estudo complementar ] não devem ser utilizados para comprovar a possibilidade de contaminação ou não do aqüífero.” O engenheiro sugeriu estudos mais aprofundados, com cálculos de diluição que considerassem as concentrações de nitrato já existentes no aqüífero. “Embora o documento destaque a qualidade dos pesticidas [agrotóxicos] e fertilizantes que serão utilizados no empreendimento, assim como a capacidade técnica das pessoas responsáveis pela aplicação e monitoramento, os dados ainda são insuficientes para atestar de forma conclusiva que não haverá contaminação do aqüífero”, conclui. O estudo complementar, portanto, não convenceu a procuradora Analúcia Hartmann, que requisitou o retorno do embargo no começo de setembro de 2005. A questão já estava sendo avaliada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região; a CostãoVille tinha entrado com recurso logo depois da audiência de agosto para manter a suspensão da liminar, argumentando que a procuradora não apresentara fatos novos. Na análise do novo relator do processo, o desembargador Márcio Antônio Rocha, o pedido da empresa não continha elementos suficientes para reverter a decisão da Justiça Federal, enquanto as alegações do MPF enumeravam vários pontos de suposto perigo ambiental. A ausência de acordo entre as partes do processo motivou Rocha a restabelecer a paralisação das obras em 21 de setembro. Os trabalhos no Costão Golf tinham recomeçado em julho de 2005. Em dois meses, as primeiras placas do gramado, as leivas, foram distribuídas na área de treinamento e no percurso do primeiro buraco; houve avanços também na preparação do terreno das ruas e na construção das lagoas. Até a volta do embargo, os gastos já somavam R$ 5 milhões. Para evitar novos prejuízos com a manutenção das obras e a proibição de vendas dos lotes, o
76 empresário Fernando Marcondes de Mattos garantiu 1 que tentaria chegar a um acordo em uma nova audiência de conciliação. Para o empreendedor, o assunto estava resolvido porque as informações anexadas ao processo e o parecer 2 dos especialistas Marciel Stadnik e Darci Trebien, da UFSC, teriam comprovado que o risco de poluição era zero. “Do ponto de vista ambiental, não existe nenhum tipo de irregularidade. Por isso, eu estou otimista e não acredito que o maior empreendimento turístico do estado em curso possa ser impedido de seguir a sua trajetória”, afirmou Marcondes 3 . Ele exigiu que a reunião fosse realizada em uma sala da Vara Ambiental e não no auditório, como nas outras vezes, para tentar despistar os manifestantes 4 . Marcado para uma segunda, o encontro foi transferido para quarta, dia 5 de outubro, mas a mudança não foi divulgada pelo site da Justiça Federal. Mesmo assim, os movimentos sociais que acompanhavam o caso souberam da mudança a tempo e foram acompanhar a audiência. 5 Luzanídia Ribeiro D’Ávila, integrante da União Florianopolitana de Entidades Comunitárias (Ufeco), esteve lá e declarou à repórter Francis França, da agência Ambiente Já , que os manifestantes foram barrados na porta do elevador por Aroldo Camillo, advogado de Marcondes. No entanto, a procuradora Analúcia Hartmann e o juiz Jurandi Pinheiro lhes permitiram assistir à audiência porque ela era pública. Na matéria, Luzanídia também revelou que Marcondes reclamava, aos brados, que estava perdendo dinheiro com a obra paralisada, pois os funcionários continuam sendo pagos, mesmo sem trabalharem. Reclamou também que a areia, o vento e a chuva estão destruindo a grama já instalada no local. O empresário teria pedido que a audiência não fosse colocada na Internet nem divulgada para a imprensa. 6 O juiz Pinheiro, porém, manteve a paralisação das obras e ordenou que o dono do Costão Golf entregasse um novo parecer técnico ao MPF sobre os fertilizantes e os agrotóxicos que seriam utilizados. Os técnicos das partes envolvidas deveriam se reunir no Costão do Santinho, para discutir os riscos de contaminação e apresentar as conclusões em 1 Empresa tenta retomar obra – Audiência vai discutir obra de campo de golfe. AN Capital, Florianópolis, 27 set. 2005. Disponível em: <http://www1.an.com.br/ancapital/2005/set/27/1ger.htm>. Acesso em: 18 março 2008. 2 Parecer feito em 29 de setembro de 2005 e anexado à peça judicial da CostãoVille de 4 de outubro de 2006. 3 Suspensas obras do Costão Golf Club, na Capital. Clic RBS – Notícias, Florianópolis, 29 set. 2005. Disponível em: <http://www.sc24horas.com.br/noticias/desc_noticias.php?cod_noticia=2312>. Acesso em: 18 março 2008. 4 FRANÇA, Francis. Justiça Federal mantém embargo das obras do Costão Golf em audiência. Ambiente Já, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 7 outubro 2005. Disponível em: < http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=67830>. Acesso em: 26 fevereiro 2008. 5 Ibidem. 6 Ibidem.
77 outra audiência de conciliação. Sem o acordo desejado, Marcondes continuou a ver o terreno descampado de seu empreendimento ser danificado por erosões até que uma solução foi encontrada para resolver o problema. Intencional ou não, essa idéia acabaria driblando o embargo. O tapete ver de é estendido Os últimos dias de 2007 estão mais agitados no Costão Golf. Já é novembro e falta apenas um mês e meio para o lançamento oficial do campo. Operários estão terminando o telhado do clube de golfe, enquanto outros começam a erguer o portal de entrada; montes de areia, tubos, canos, tijolos e telhas mostram que ainda há muito o que fazer. Do outro lado da rua, na recepção do escritório, a secretária Tiéli Franzen parece alheia a essa movimentação. Ela murmura uma canção e masca um chiclete enquanto trabalha em frente ao computador e permanece compenetrada até que um walkie talkie azul toca ao lado dela. Alguém avisa que ainda não há um carrinho disponível para o diretor Ricardo Agüero, estão todos no campo. É preciso esperar mais um pouco e continuar se distraindo com o cenário: um armário com produtos de golfe, bolsas com tacos e cestas brancas com alças pretas e bolinhas que parecem lixeiras. Outros dez minutos passam antes de a secretaria anunciar a chegada de um carrinho. “Vamos”, pede Agüero. Ele se senta no banco do motorista e vira uma espécie de guia turístico: fala sobre a estrutura do campo enquanto dirige pelo percurso de 3.322 metros dos nove buracos do campo – ou 3.500 jardas, se utilizarmos a medida padrão do esporte. Aos solavancos, o veículo desce os morrinhos para então deslizar sobre a grama extremamente curta, para passear por um tapete verde estendido em um tempo quatro vezes maior do que o anteriormente estipulado. Quando as obras começaram no fim de 2004, a previsão era inaugurar o campo em dezembro do ano seguinte, mas o embargo bagunçou o cronograma. O plantio chegou a ser iniciado em julho de 2005, durante a suspensão da liminar, só que logo foi interrompido com a volta da paralisação em setembro daquele ano. Para irritação de Marcondes, expressada durante a audiência de conciliação que ocorreu dias depois, só havia grama plantada na área de treinamento e no primeiro buraco. A propriedade possuía vegetação de pequenos arbustos de restinga, as capoeiras, e de pastagem; tudo isso foi retirado para colocar o gramado. Devido ao embargo, a maior parte se manteve descoberta durante meses, sem proteção contra o vento e chuva. O que era para ser
78 um campo virou um deserto de crateras amarelas e cinzas, com árvores esparsas e poucos trechos verdes. Em dezembro de 2005, a CostãoVille solicitou permissão à Justiça Federal para realizar serviços de manutenção das obras, “como cercas, arruamentos, taludes, gramados, lagos artificiais, mudas de árvore, para proteção do próprio terreno e das propriedades vizinhas”. O Ministério Público Federal reclamou que a empresa fez esse pedido sem mostrar provas e a acusou de querer consolidar a construção do empreendimento. No começo de 2006, um projeto contra a erosão foi feito. Várias ações seriam necessárias para recuperar os estragos e proteger as obras da chuva: terminar a construção das lagoas, concluir as redes subterrâneas (de água pluvial e drenagem do campo) e cobrir a área do campo e lotes com grama. Outras construções, referentes à estrutura do condomínio e do clube, continuariam proibidas. A apresentação desse estudo foi determinada em uma audiência, realizada em fevereiro. Por concordar que a erosão era um risco ambiental, o MPF se comprometeu 1 a analisar o projeto e liberar o plantio da grama se o estudo estivesse satisfatório. No entanto, o parecer do geólogo Jorge Cravo foi contrário à proposta apresentada pela CostãoVille e, baseado na análise dele, a procuradora Analúcia Hartmann considerou a proposta absolutamente inviável e sem fundamento. “Trata­se na verdade de uma tentativa de efetiva continuação da implantação do empreendimento, em afronta à decisão judicial,” criticou ela. 2 A procuradora da República também escreveu 3 que o projeto não atendia às mínimas exigências técnicas necessárias e não faria apenas as obras de proteção vegetal, mas deixaria o solo impermeável e a área completamente alterada. Sem o acordo, o terreno permaneceu sendo danificado até abril de 2006. A Costãoville exibiu novos estragos da chuva no terreno e enfim obteve permissão judicial, assinada pelo juiz Pinheiro, mas só para colocar a grama e sem usar qualquer tipo de produto químico no tratamento. O embargo continuava, mas o seu principal motivo, o campo de golfe, pôde continuar a ser construído. O plantio, contudo, acabou ocorrendo em um momento inadequado e ruim, no inverno de 2006. “Não tínhamos alternativa”, lamenta Ricardo Agüero. O gramado de oito dos nove buracos foi colocado quando o solo estava com 10° C, cinco graus abaixo da temperatura ideal para um crescimento efetivo. Toda a cobertura ficou pronta em setembro de 1 FRANÇA, Francis. Costão Golf consegue acordo com MPF e apresenta novo relatório ambiental. Ambient e J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 10 fevereiro 2006. Disponível em: < http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=72766>. Acesso em: 18 março 2008. 2 Peça judicial do Ministério Público de Federal apresentada em 17 de fevereiro de 2006. 3 Ibidem.
79 2007. Uma equipe de 12 pessoas plantou rolos de 30 metros de largura e 70 de comprimento em 70% do campo e mudas de leivas no restante da área. Ricardo Agüero garante que nenhum produto químico foi utilizado ainda. O campo está sendo fertilizado com adubo orgânico e as pragas, combatidas através de controles biológicos e mecânicos. Segundo o diretor do Costão Golf, a Fatma já recebeu uma lista de fertilizantes e agrotóxicos que poderão ser usados. “Não significa que vamos usar tudo.” Agüero admite que são muitos produtos, mas se justificou dizendo que alternativas são necessárias para cuidar do gramado. A estrutura do campo de golfe também foi finalizada. Bancos de areia rodeiam o percurso dos buracos, ao lado de mudas de árvores, bromélias, trechos preservados de restinga e seis lagoas cuja importância Agüero faz questão de ressaltar. A construção delas foi cheia de problemas. Como não estavam prontas na época da paralisação das obras, elas não foram forradas com mantas de plástico PVC que pudessem proteger as margens da erosão. “Tivemos que reconstruir quatro lagoas, três delas duas vezes”, reclama o diretor. Ao reconstruí­las, os operários puderam colocar a manta em cada uma delas. Com o forro desse material, a água das lagoas não será absorvida pelo solo e não irá para o aqüífero. Elas são fundamentais para a irrigação do campo, pois sua capacidade de 30 milhões de litros permite que operem de maneira independente até mesmo durante três meses de seca. Como o empreendimento não pode usar a água do aqüífero para molhar o gramado, três fontes serão utilizadas para abastecer as lagoas e fazer a irrigação: água de esgoto tratado, da chuva que escoa pelo terreno e da drenagem de pontos impermeabilizados do campo. A Estação de Tratamento de Efluentes (ETE) do Costão Golf está localizada no canto nordeste do condomínio, atrás da área de treinamento. O estudo complementar do EIA/RIMA prevê uma produção diária de 220 mil litros de esgoto 1 ; após o tratamento, 177 mil litros de água serão destinados paras lagoas e poderão fornecer 84% do volume necessário à irrigação. Para evitar que os dejetos acumulados sejam absorvidos pelo solo e fluam para o aqüífero, a base da estação de tratamento foi impermeabilizada. A segunda fonte é a chuva. Bocas­de­lobo recolhem a água que escorrer na rodovia João Gualberto Soares, que fica ao lado da parte mais alta do campo, e nas vias internas do condomínio. Uma série de tubulações leva a água para a lagoa principal e a distribui para as outras, de onde é retirada para irrigar o gramado através de uma estação de bombeamento, que 1 CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 3­34.
80 pode fornecer até 100 mil litros por hora, embora 200 mil litros por dia sejam o máximo necessário, segundo o estudo de impacto ambiental 1 . Essa estação mantém permanentemente pressurizada uma tubulação que está conectada com 540 jatos giratórios de água, os aspersores. De acordo com a complementação do EIA/RIMA, o sistema de irrigação é automático e controlado por válvulas. Quando as obras foram paralisadas, 300 aspersores estavam instalados e 80 deles estragaram nos meses sem manutenção. “Com a erosão, houve uma quebra do perfil natural do solo. Muitas tubulações ficaram entupidas de areia”, conta Agüero antes de reclamar dos prejuízos provocados pela troca das peças, que são importadas dos Estados Unidos e levam três meses para chegar ao comprador. Todos os setores do campo de golfe são irrigados, mas as características de um deles obriga que haja um sistema de drenagem no solo. Diferentemente da saída do percurso (tee), da região central (fairway) e das áreas comuns (roughs), o setor dos buracos, o green, possui uma grama diferente para não atrapalhar a conclusão das jogadas. Ela tem que ser muito mais baixa, com 2,5 milímetros de altura, e necessita de corte diários para se manter fina. Fundamental para o andamento de uma partida, a grama do green não pode ficar alagada em dias de chuvas intensas, caso contrário não haverá condições de jogo. Por isso, o Costão Golf precisou construir valas de dreno sob os sete mil metros quadrados da área dos 10 greens (nove nos buracos e um no setor de treinamento), que correspondem a cerca de 4% do campo. Sob todos os setores do gramado há uma camada de aterro natural com espessura aproximada de 40 centímetros, composta por turfa preta e calcário branco em pó, que acelera a fixação das raízes, corrige a acidez e ajuda a reter umidade, água e nutrientes. Por ser a área que concentra a movimentação de jogadores e máquinas, o green tem uma camada adicional de barro vermelho compactado sobre a drenagem, a 85 centímetros de profundidade, senão a terra ficaria instável e poderia afundar. Mantas de PVC foram postas abaixo das valas para impermeabilizar o solo e deixá­lo mais firme – assim, toda a água da chuva e da irrigação que é absorvida pelos greens é drenada para as lagoas. Após explicar todo o funcionamento do sistema de irrigação, o diretor do Costão Golf finaliza o passeio destacando o viveiro de árvores nativas, construído em 2005. Ali são produzidas as mudas que estão sendo plantadas no campo. Hoje elas são pequenas e frágeis, 1 CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 3­49.
81 mas daqui a cinco anos chegarão à fase adulta e poderão proporcionar sombra por todos os cantos do condomínio. No fim, Agüero aponta para as mudas entre a rua e a área de treinamento. “Foram plantadas por alunos da rede pública”, enfatiza. Ele começa a discorrer, e fazer propaganda, sobre o papel que o Costão Golf planeja ter na educação e conscientização ambiental dos moradores da região. O discurso é bonito, mas contraditório: os empreendedores pretendem ensinar valores que eles mesmos não cumpriram adequadamente durante a trajetória do projeto por causa de interesses maiores. A pr opaganda, as omissões e os fatos Em qualquer material informativo do Costão Golf, sempre há um texto que defende as supostas vantagens do projeto para a natureza. O site1 informa que a prioridade é a preservação e elenca inúmeras ações, enquanto o estudo ambiental garante que o teleférico fará as pessoas “perceberem o significado de valores preservacionistas e incorporá­los ao cotidiano” 2 ; os folhetos destacam a criação de um parque nas dunas e os releases elogiam a relação entre o golfe e a saúde humana. Os defensores do golfe apontam o esporte como o refúgio ideal para o homem moderno. As caminhadas contribuiriam para a forma física e o contato com a natureza relaxaria a mente e melhoraria a respiração, explica Ricardo Agüero 3 , pois um gramado saudável e cortado a uma baixa altura favoreceria a produção de folhas novas e de ar puro. O gramado também funcionaria como um excelente filtro para as chuvas ácidas, diminuiria o risco de erosão, regularia a temperatura do solo e contaria com uma barreira de som criada por suas árvores 4 . Para a engenheira química Cristina Nunes, esses benefícios não podem ser vistos como vantagens ambientais no caso do Costão Golf. “O campo de golfe se localiza numa ilha onde existe a proibição legal de implantação de indústrias, sem ocorrência de chuvas ácidas, sem poeiras suspensas e sem necessidade de barreiras de som. Além disso, o local de 1 Disponível em: <http://www.costaogolf.com.br/ambiente.htm>. Acesso em: 28 fevereiro 2008. CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. II, p. 13­12. 3 PAMPLONA, Paulo. Golfe mobiliza músculos pouco exercitados pelo homem. Em F oco, empresa que presta assessoria de imprensa para o Costão Golf. Disponível em: <http://www.sortimentos.com.br/sc/35_01.htm>. Acesso em: 18 março 2008. 4 CARUSO JUNIOR, Francisco; STADNIK, Marciel; TREBIEN; Darci. Complementações ao EIA­RIMA: Estudo de Impacto Ambiental. Florianópolis, ago. 2005. P. 2.
2 82 implantação não sofre problemas de erosão”, pondera. “Para uso dessas vantagens, seria mais interessante uma outra proposta locacional, no continente ou em municípios vizinhos industrializados como Palhoça e São José.” 1 Entre as ações que vão ajudar o meio ambiente, o site do Costão Golf menciona o plantio de quatro mil árvores 2 , das quais 90% serão nativas, para formar bosques ao redor ao campo e atrair animais da região. Como não há informações adicionais, fica a impressão de que é uma iniciativa própria do empreendimento, o que não é verdade, pois se trata de uma medida compensatória 3 . De acordo com o promotor Rui Richter, do Ministério Público Estadual, a Polícia Ambiental flagrou a vegetação no terreno do Costão Golf sendo ilegalmente arrancada no segundo semestre de 2003, antes de o projeto do empreendimento chegar à Câmara dos Vereadores. Sem repercussão na mídia, o caso passou para o MPE e Richter, responsável pela Promotoria de Meio Ambiente, encaminhou­o para o Juizado Especial Criminal. Em seis de outubro de 2003, o promotor fixou um Termo de Compromisso de Ajuste de Conduta com os responsáveis pelo desmatamento: Érico Macário Duarte 4 , que estava na propriedade quando a polícia apareceu, e os empresários Guilherme Zambrana, Jonathan Rupert Heald e Carlos Alberto Gomis, sócios da Empreendimentos Internacionais, que era a dona do terreno. Richter revela que colocou “várias amarras” no acordo. Caso a Empreendimentos Internacionais fosse construir ali, teria que realizar estudo ambiental, audiências e plantar, no mínimo, três mil árvores nativas – tudo isso acabou sendo feito pela incorporadora da área, a CostãoVille. Além da plantação das mudas, a propaganda omite a explicação da origem do Parque das Dunas. Ao invés de vetar o teleférico em 2003, os órgãos municipais recomendaram, como medida compensatória, um convênio entre o empreendimento, a prefeitura e uma universidade local para criar esse parque. 1 Essas informações aparecem em um documento no qual Cristina faz considerações sobre as complementações do EIA/RIMA (agosto 2005). A análise dela não está datada, mas foi recebida pelo Ministério Público Federal em 5 de setembro de 2005 e anexada ao processo judicial (folhas 1517­1523). 2 Disponível em: <http://www.costaogolf.com.br/ambiente.htm>. Acesso em: 18 março 2008. 3 Quando se trata de informações ao público geral, pode­se afirmar que esse dado foi apresentado no EIA/RIMA, mas não nas propagandas. 4 Em 2004, a procuradora Analúcia Hartmann e o Instituto Nacional de Meio Ambiente (Ibama) entraram com uma ação civil pública contra Érico Macário Duarte, acusado de cortar vegetação de área de preservação permanente da Estação Ecológica de Carijós, que fica na região de Ratones, no norte da Ilha de Santa Catarina. Uma peça judicial do MPF está disponível em: <http://www.prsc.mpf.gov.br/BasePecas/arquivos/132/146.pdf>. Acesso em: 18 março 2008.
83 O discurso do site1 é inverso: “A integração do Costão Golf com a Praia do Santinho será feita por teleférico e permitirá, com o apoio da Prefeitura Municipal de Florianópolis e da Universidade Federal de Santa Catarina, a formação do Parque Municipal das Dunas dos Ingleses e Santinho”, como se a idéia tivesse partido do empreendimento. A propaganda diz que o teleférico vai permitir a criação do parque, quando, na verdade, é essa unidade de conservação que vai permitir a implantação do transporte. O parque terá centros de pesquisas e educação ambiental, com biblioteca e coleção de animais e plantas, museu botânico e um horto florestal para produzir espécies nativas. Os visitantes também poderão conhecer mais sobre as dunas em trilhas com mirantes e placas educativas 2 . Uma torre de fiscalização ajudará na proteção da unidade ao lado do teleférico, que resolverá o problema de ligação entre o Costão do Santinho e o Costão Golf, e sepultará de vez um antigo projeto de uma estrada sobre as dunas que beneficiaria o resort. Em 1999, a prefeitura e o Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf) apresentaram um novo plano diretor para a localidade do Santinho e a parte sul dos Ingleses, mas isso não agradou à maioria da comunidade. “Tratava­se da aprovação de uma proposta de consenso entre os interesses da Prefeitura e do segmento representado pelo empresariado local”, relataram em um artigo 3 Cristina Nunes e o urbanista Lino Peres, que participaram desse episódio. A nova estrada de acesso ao Santinho teria quatro pistas e passaria sobre a borda das dunas e sob elas, através de túneis, para evitar os congestionamentos na alta temporada. “A comunidade local rejeitava a proposta oficial para a região, alegando que se deveria discutir um plano para toda a região de Ingleses e não de forma setorial e em função do empreendimento Costão do Santinho, que de fato é a origem daquela iniciativa da prefeitura e órgão de planejamento”, acusaram Cristina e Lino Peres 4 . A idéia da avenida, assim como muitas outras, foi rejeitada pela contraproposta do Movimento Ilhativa, composto pelos moradores e professores do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC. O impasse entre a proposta oficial e a comunitária durou 1 Disponível em: <http://www.costaogolf.com.br/empreendimento.htm>. Acesso em: 18 março 2008. CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. II, p. 12­15. 3 NUNES, Cristina Cardoso; PERES, Lino Fernando Bragança. Oficinas comunitár ias de planejament o – uma alternativa ao Plano Diretor para Ingleses Sul e à construção democrática do planejamento. In: Seminário Planejamento Urbano no Brasil e na Europa: um diálogo possível? – IV mesa: A contribuição acadêmica sobre o desenvolvimento urbano de Florianópolis, São Paulo, 2006. Esse artigo está disponível em: < http://www.usp.br/fau/eventos_sn/paisagemeparticipacao/universidade/A01_santinho.pdf>. Acesso em: 18 março 2008. 4 Ibidem.
2 84 vários anos; com o início dos debates sobre o novo plano diretor para toda a cidade em 2006, nenhuma delas foi aprovada. Sem a estrada, o teleférico surgiu como solução para o resort. O site, os folhetos de propaganda e até o EIA/RIMA do Costão Golf destacam esse “moderno, silencioso e não­ poluente meio de transporte” 1 , indicado para áreas de preservação, já que “apresenta interferência pontual, no local onde as torres de sustentação encontram­se instaladas, e mantém o fluxo normal da fauna e da propagação de espécies vegetais” 2 . Apesar de todas essas qualidades, um documento importantíssimo não cita o teleférico em momento algum: o projeto de conservação 3 do lagartinho­da­praia. O Liolaemus occipitalis vive em zonas costeiras do Rio Grande do Sul até a Ilha de Santa Catarina, onde pode ser visto nas dunas da Joaquina e da região dos Ingleses. A espécie corre risco de desaparecer por causa de sua distribuição restrita e da perda de hábitat, provocada pela expansão urbana sobre as dunas nas últimas décadas 4 . Por isso, entrou na lista da fauna brasileira ameaçada de extinção, feita pelo Ibama em março de 2003. No EIA/RIMA, os técnicos da Caruso Jr. não registraram espécies raras ou ameaçadas no Distrito dos Ingleses, o que inclui as dunas. O lagartinho­da­praia também não foi citado por dois pareceres da Fatma, de julho e agosto de 2004, e só seria “descoberto” no ano seguinte, a apenas 200 metros da propriedade já em obras, por um programa de monitoramento de animais. Ao saber dessa “descoberta”, o MPF requisitou à Justiça Federal um projeto de conservação ao Costão Golf, que foi obrigado a elaborá­lo no começo de 2006. Dois biólogos da consultoria Caruso Jr., Glauco Jost e Ivo Ghizoni Jr., fizeram o estudo e encontraram dois espécimes do réptil na Joaquina e outros seis nos Ingleses. Todos eles foram vistos no seu único ambiente, as dunas móveis, próximos ou mesmo abaixo da vegetação rala que fixa as areias. 1 Disponível em: <http://www.costaogolf.com.br/condTeleferico.htm>. Acesso em: 18 março 2008. CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 3­17. 3 JOST, Glauco Fernando; GHIZONI JÚNIOR, Ivo Rohling. Pr ojeto de conservação da espécie Liolaemus occipitalis na ár ea de influência indir eta do Condomínio Residencial Costão Golf, Flor ianópolis/SC – Caruso Jr. Estudos Ambientais. Florianópolis, jan. 2006. 50 p. 4 Ibidem, p. 3.
2 85 A abertura de ruas nas dunas, o trânsito de veículos 1 e as cavalgadas nos Ingleses prejudicam o lagarto, pois danificam a vegetação e as tocas 2 . Essa movimentação pode se intensificar caso o condomínio fique pronto; para diminuir os impactos, trilhas seriam demarcadas e cartilhas orientariam os moradores do Costão Golf, do entorno e os visitantes a caminhar nas dunas sem atrapalhar o animal. Como a área do empreendimento e o hábitat do réptil estão separados pelas dunas fixas, com vegetação de restinga, os biólogos disseram que é improvável que o bicho apareça no campo de golfe. As faixas de dunas vegetadas funcionariam como barreira para a espécie, porque o seu solo mais compacto dificulta a construção de tocas e a camuflagem, e as sombras dos arbustos e das pequenas árvores alteram as condições climáticas adequadas. É por esses motivos que a maior ameaça ao lagartinho­da­praia nos Ingleses seriam os pinus, que estão diminuindo o espaço das dunas. “O ambiente, com tais indivíduos exóticos, torna­se arbóreo, e, por ação de alelopatia (inibidores de crescimento), nenhuma vegetação cresce no seu sub­bosque”, acrescentaram os biólogos Glauco Jost e Ivo Ghizoni Jr. – durante as observações de campo, eles não viram nenhum espécime no entorno dos pinus. Caso o projeto de proteção ao animal seja aplicado, as árvores serão cortadas e impedidas de renascer, e haverá pesquisas para averiguar os resultados dessas medidas. Jost e Ghizoni Jr. também sugeriram a criação de uma unidade de conservação; como o Parque das Dunas já cumpriria essa função, descreveram a sua estrutura, mas não citaram o teleférico (e seus possíveis impactos sobre o lagarto) em trecho algum do documento. A presença nas dunas desse lagarto ameaçado de ser extinto pode provocar dificuldades à construção do teleférico. Responsável pela regulamentação dos usos possíveis nos ecossistemas da Mata Atlântica (inclusive áreas de restinga), o Decreto nº 750/93 proíbe qualquer corte de vegetação ou alterações em lugares que sirvam de abrigo a animais em risco de extinção. Em relação ao uso de agrotóxicos no campo de golfe, os biólogos afirmaram que não haveria problemas. A aplicação seria pontual e em pequenas quantidades, o que tornaria improvável a contaminação do réptil ou do seu hábitat. A possibilidade de ventos levarem resíduos até as dunas estaria em grande parte limitada pela barreira de arbustos e árvores das dunas vegetadas e pela sua direção predominante, sul­norte – o campo fica a oeste. 1 Podem ser incluídos os quadriciclos utilizados por hóspedes do Costão do Santinho. Os quadriciclos são citados em: MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p., p. 397. 2 JOST, Glauco Fernando; GHIZONI JÚNIOR, Ivo Rohling. Pr ojeto de conservação da espécie Liolaemus occipitalis na ár ea de influência indir eta do Condomínio Residencial Costão Golf, Flor ianópolis/SC – Caruso Jr. Estudos Ambientais. Florianópolis, jan. 2006. P. 24.
86 O estudo concluiu que o Costão Golf ajudaria na conservação da espécie, apesar de não ter abordado o teleférico. Essa é uma das omissões que o empreendimento acumula desde o lançamento; existe inclusive uma em relação ao uso de produtos químicos no campo de golfe. Remédio ou veneno? Em 18 de dezembro de 2004, data do lançamento oficial do Costão Golf, um anúncio publicitário foi divulgado no jornal A Notícia , segundo maior de Santa Catarina na época. Assinado por Fernando Marcondes de Mattos, o texto agradecia a comunidade pelo novo projeto dos Ingleses, destacava os benefícios do empreendimento e, estranhamente, afirmava que a manutenção do campo de golfe não seria feita com agrotóxicos. Essa última informação não era verdadeira, já que o Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento admitia o uso de pesticidas (um sinônimo para agrotóxicos) no gramado 1 . A contradição do anúncio motivou a União Florianopolitana das Entidades Comunitárias (Ufeco) a denunciá­la aos ministérios públicos e entrar com um processo contra o Costão Golf no Procon por realizar propaganda enganosa e desrespeitar a lei de proteção do consumidor 2 . Enquanto o MPF acrescentava esse fato aos documentos que originariam a ação civil pública, o processo correu por alguns meses de 2005 no Procon, que reconheceu a acusação da Ufeco e condenou o empreendimento. “Foi uma multa simbólica”, conta Modesto Azevedo, ex­presidente da entidade. Ele acrescenta que Marcondes se comprometeu em não divulgar mais que o Costão Golf não utilizaria produtos para cuidar do campo. Questionado pela repórter Francis França sobre o problema em entrevista por e­mail3 , o empresário defendeu­se dizendo que existiam algumas informações equivocadas. “Não são agrotóxicos, ninguém usaria agrotóxicos. São agroquímicos. Na matéria citada [o anúncio], a afirmação que não seriam utilizados agrotóxicos tem a ver com que não seriam utilizados agroquímicos que contaminem o aqüífero ou o meio ambiente”, esquiva­se. Na mesma 1 CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 3­63. 2 Lei federal nº 8.078/90. 3 MATTOS, Fernando Marcondes de. Para empresário, campo de golfe é inofensivo. J or nal­labor atór io Zer o, Florianópolis, mar.­abr. 2005. P. 5. Entrevista concedida a Francis França.
87 reportagem, a jornalista esclarece que a diferença é mínima: os agroquímicos são agrotóxicos utilizados com fertilizantes 1 . Outro problema foi percebido pelo Ministério Público Federal em setembro de 2004. As informações sobre os produtos, também chamados de defensivos químicos, foram detalhadas somente no Estudo de Impacto Ambiental, mas não no seu resumo, o Relatório de Impacto Ambiental. “Como o RIMA é o principal documento em que a comunidade tem acesso aos dados e às informações, o fato constatado equivale a uma omissão de informação à sociedade”, criticou o geólogo Jorge Cravo, assessor do MPF em Brasília, após analisar os estudos. De acordo com o Estudo de Impacto Ambiental do Costão Golf, o funcionamento de um campo de golfe é semelhante a uma cultura agrícola 2 . Os fertilizantes são aplicados para promover o crescimento da grama e os agrotóxicos (pesticidas), divididos em herbicidas, fungicidas e inseticidas, controlam as pragas e as doenças. A quantidade de pragas e os danos que provocam variam conforme as regiões climáticas, “mas constituem um problema sistemático onde quer que exista um gramado de alta qualidade, como nos campos de golfe”, explicaram os responsáveis pelo estudo 3 . O uso desses produtos, juntamente com os fertilizantes, foi considerado uma fonte potencial de contaminação ao Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho, em estudo feito em 1996 pela Companhia de Pesquisas de Recursos Naturais. Com a construção do Costão Golf, esse risco poderia ser concretizado e se unir às fossas e à captação excessiva de água na lista das maiores ameaças de poluição às águas subterrâneas. Técnicos da Caruso Jr. alegaram no estudo ambiental que a utilização de agrotóxicos seria o último recurso no tratamento, caso falharem as medidas preventivas contra insetos e doenças do gramado: corte constante da grama e conhecimento dos ciclos biológicos das pragas, além de sua distribuição no terreno. O engenheiro agrônomo Ricardo Agüero, diretor do Costão Golf, diz que a área do campo de golfe é muito propensa ao aparecimento de pragas porque está rodeada por áreas de preservação permanente. “Por ser um campo aberto, atrai lagartas, por exemplo.” As formigas são mais problemáticas, embora prefiram atacar as árvores. Nesse combate aos insetos, os técnicos do empreendimento têm a ajuda de um poderoso aliado: o quero­quero, um pequeno 1 Vale observar, portanto, o cuidado do empreendimento em não usar a palavra “agrotóxico”, que tem mais peso do que a palavra “agroquímico”. 2 CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 3­63. 3 Ibidem.
88 pássaro de penugem cinza no rosto e nas costas, peito preto e barriga branca, olhos vermelhos e gritos estridentes. “Como faz ninho no chão, ele come os insetos que atacam a grama”, conta o diretor. O uso dos agrotóxicos será avaliado por critérios como solubilidade, persistência e adsorção (capacidade da superfície em reter a substância), deverá seguir às instruções do fabricante e ser feito em dias sem vento ou risco de chuva e com um pulverizador de baixo volume para reduzir o risco de acidentes. 1 “Outra medida importante a ser adotada será o rodízio de produtos, a fim de evitar a resistência das pragas, o que poderia levar à necessidade de doses ou regimes de aplicação maiores”, salientaram os autores do EIA/RIMA 2 , contratados pela Santinho Empreendimentos Turísticos, empresa de Marcondes que iniciou o projeto do Costão Golf. Eles garantiram que a utilização racional de fertilizantes e pesticidas no campo não provocaria qualquer agressão ao meio ambiente, tampouco impactos negativos no Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho. “Esta afirmativa não tem uma fundamentação teórica abrangente”, criticou Jorge Cravo, que analisou o estudo em 2004. Cravo reclamou da ausência de um engenheiro agrônomo na elaboração do EIA/RIMA e da tendência dos consultores da Caruso Jr. em minimizar os impactos ambientais negativos e maximizar os positivos. O geólogo Mário Altamiro Alano e o geógrafo David Vieira Fernandes foram os técnicos da Fundação do Meio Ambiente (Fatma) que examinaram os possíveis impactos sobre o aqüífero. No parecer preliminar de julho de 2004, eles solicitaram ao Costão Golf maiores esclarecimentos sobre os produtos químicos (tipos, dosagens, manejo, e solubilidade) para avaliar melhor os riscos de contaminação; embora tivessem aprovado os controles ambientais apresentados, pediram um plano emergencial de recuperação do solo, mas não da água. Os empreendedores contrataram então a HS Jardinagem, empresa de Minas Gerais especializada em gramados esportivos, para realizar um novo estudo. De acordo com o parecer da Fatma outubro de 2004, o laudo da HS Jardinagem afastou a possibilidade de contaminação das águas subterrâneas. Os técnicos estaduais aceitaram essa conclusão por causa da baixa concentração dos produtos que seriam utilizados e rapidamente degradados, além do monitoramento permanente do solo e da água. 1 CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. II, p. 11­24. 2 Ibidem.
89 À frente do projeto do Costão Golf na época, a Santinho Empreendimentos Turísticos também acertou dois programas com a UFSC, através da Fundação de Ensino e Engenharia de Santa Catarina, para reforçar os cuidados no tratamento do campo. Um deles foi acertado com os laboratórios de solos e fitopatologia, do Departamento de Agronomia, e previa um manejo integrado do gramado com os especialistas do empreendimento para prevenir ou limitar a proliferação de pragas. Ricardo Agüero compara o gramado a um ser vivo. Os fertilizantes são os alimentos que o ajudam a ficar saudável, bonito e resistente; por outro lado, os pesticidas (ou agrotóxicos) seriam os remédios a ser aplicados quando surgissem doenças. Na opinião dele, receitar um excesso de medicamentos para a grama é tão arriscado e nenhum pouco recomendável quanto no caso de uma pessoa doente. O diagnóstico de doenças no campo de golfe é um dos pontos fundamentais do plano de manejo. O engenheiro agrônomo responsável precisa conhecer o gramado para tratá­lo de maneira preventiva. Caso isso não impeça certas doenças e pragas, é necessário distinguir as causas, avaliar as características do problema e definir rapidamente uma aplicação adequada de agrotóxicos na área afetada. “A indústria do golfe está desenvolvendo produtos cada vez mais específicos e eficientes”, declara Agüero. Uma medida de prevenção importante é a escolha de um gramado perfeitamente adaptado às condições climáticas do local. No caso do Costão Golf, o tipo escolhido foi a bermuda híbrida (Cynodon dactylon ), utilizada largamente na Flórida, estado americano com mais de mil campos de golfe (é o recordista nos Estados Unidos) 1 que tem clima semelhante ao de Florianópolis. O uso de herbicidas 2 diminuiria se a grama for plantada com placas de grama, as leivas, e cortada permanentemente a uma baixa altura por máquinas especiais. No outro programa, o Laboratório Integrado de Meio Ambiente, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFSC, ficou encarregado de monitorar eventual concentração de elementos químicos no aqüífero e fornecer os dados para os responsáveis pela gestão do campo – a Fatma determinou a realização de planos emergenciais de coleta e análise, com testes de prova e contraprova, caso fossem identificados traços desses produtos ou de seus subprodutos fora dos padrões legais. Em ofício enviado à Fatma em 6 de dezembro de 2004, a procuradora Analúcia Hartmann criticou a falta de informações sobre a área de aplicação dos pesticidas e seu distanciamento em relação aos três poços da Casan que ficam ao lado do limite sudeste do 1 2 Disponível em: <http://www.cbg.com.br/web/oEsporte_EUA.asp>. Acesso em: 18 março 2008. Pesticidas que combatem as ervas­daninhas.
90 campo de golfe. “Destaco que os pareceres juntados pelo proponente não possuem fundamento técnico ou qualificação técnica, tendo sido relegado o parecer sobre o risco para o lençol freático a uma empresa 1 de jardinagem!”, reclamou. O Costão Golf também não apresentara uma análise de risco do projeto, com simulações matemáticas que utilizassem as quantidades e as propriedades químicas dos produtos (solubilidade, densidade, adsorção, absorção e coeficiente de biodegradação) para calcular se eles poderiam contaminar o aqüífero. Para a engenheira química Cristina Nunes, o monitoramento das águas subterrâneas somente seria válido se essa simulação fosse feita antes 2 . No entendimento dela, é necessário exigir uma análise de risco para liberar a licença ambiental, coisa que a Fatma não teria feito. Os dados dos agrotóxicos deveriam ser cruzados com os valores de movimentação da água no solo e de localização do empreendimento para verificar se os três poços da Casan nas proximidades seriam atingidos pelos elementos químicos 3 . “É importante destacar que nas referências bibliográficas pesquisadas não foram encontradas instalações de campos de golfe próximas às áreas de captação de água potável”, comentou Cristina Nunes, em um dos pareceres sobre o Costão Golf que fez com a geógrafa Eliane Westarb 4 . Abertos em 1992 e 93, os poços da Casan foram batizados por motivos bem diversos. O mais novo deles se chama RBS porque está próximo ao clube da associação dos funcionários da empresa de comunicação; o Paulinho da Matriz fica em uma área que pertencia a um traficante carioca de mesmo nome, enquanto o Bianco é o sobrenome do engenheiro gaúcho Saul, que cedeu uma pequena parte de seu terreno para a companhia perfurar e retirar água. Os elementos dos pesticidas podem alcançar os poços porque são solúveis em água e possuem densidade superior, ou sejam, conseguem migrar para as regiões mais profundas do aqüífero – os poços têm profundidade média de 65 metros. O Bianco é o mais próximo do Costão Golf, a 1.149 metros de distância. 1 Ela se referiu à empresa HS Jardinagem, de Minas Gerais. RODRIGUES, Cláudia. Apesar dos riscos para a saúde da população, obras do Costão Golf continuam em Florianópolis. Ambient e J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 23 maio 2005. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=62915>. Acesso em: 27 fevereiro 2008. 3 Ibidem. 4 NUNES, Cristina Cardoso; WESTARB, Eliane de Fátima Ferreira do Amaral. A vulner abilidade do Sistema Aqüífer o de Ingleses par a o Abast ecimento do nor te da Ilha de Santa Catar ina. In: Primeiro Simpósio de Recursos Hídricos do Sul (RS­SC­PR) – ABRH e AUGM, 2005, Santa Maria (RS). Anais do I Simpósio de Recursos Hídricos do Sul, 2005. P. 25­26.
2 91 Como a velocidade média da água da superfície do aqüífero é de 468 metros anuais 1 , ou 1,3 metro por dia, as duas pesquisadoras calcularam que as águas subterrâneas, com traços de elementos químicos dos agrotóxicos, levariam aproximadamente dois anos e meio para sair do limite do campo de golfe e alcançar o poço. Se considerar que a área de captação do poço chega a um raio de 240 metros 2 , essa hipótese ocorreria seis meses mais cedo. No entanto, o geólogo Luiz Fernando Scheibe, professor da UFSC, explica que uma possível contaminação poderia se revelar muito tempo depois, já que a velocidade da água é baixa. “São processos lentos, que podem se manifestar em 10, 15, 20 anos”, explica Scheibe 3 . A relação do empreendimento com o sistema público fica mais preocupante se for considerada a localização dos poços da Casan. Todos eles foram abertos a oeste do campo de dunas que começa na Praia dos Ingleses e vai até a do Moçambique, e hoje se encontram fortemente pressionados pela ocupação descontrolada da planície costeira. De acordo com Eliane Westarb 4 , apenas um poço está dentro dos padrões de proteção e possui em seu entorno uma área de 400 metros quadrados livres de construções, ponteiras particulares e fossas. “Uma fonte de água mineral, antes de qualquer coisa, é uma captação em manancial subterrâneo, seja ele um aqüífero rochoso ou sedimentar. Se há uma preocupação com relação a possibilidade de contaminação destas fontes, visto que a água é vendida e consumida pela população em geral, por que não existe uma legislação similar para os poços de abastecimento público em aqüíferos costeiros?”, questiona Alexandre Guedes Jr. em tese específica 5 sobre o assunto. Para Guedes Jr., a área ideal de proteção de um aqüífero deveria corresponder à área de recarga, mas tal restrição é impossível de ser aplicada em uma região com ocupação humana. “Nesse sentido se propõe a preservação, pelo menos, das áreas de entorno dos poços de captação que, em última instância, também funcionam como áreas de recarga”, sugere 6 . 1 Valor definido pelos técnicos da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) em 1996. CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. I, p. 7­58. 3 O geólogo Luiz Fernando Scheibe participou da banca de mestrado da geógrafa Eliane Westarb em 2004. Em fevereiro do ano seguinte, ele elaborou um parecer, a pedido de entidades sociais, sobre a fragilidade do Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho na área do Costão Golf e concluiu que ela é muito alta. 4 WESTARB, Eliane de Fátima Ferreira do Amaral. Sistema Aqüífer o Sedimentar Fr eático Ingleses – SASFI: Depósitos costeiros que tem mantêm...ocupação que te degrada! 175 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós­graduação em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. P. 90. 5 GUEDES JÚNIOR, Alexandre. Ár eas de pr oteção ambiental par a poços de abastecimento público em aqüífer os costeir os. 185 f. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção) – Programa de Pós­Graduação em Engenharia de Produção, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005. P. 133. 6 Ibidem, p. 136.
2 92 Se os poços atuais ficarem comprometidos e precisarem ser fechados, a companhia poderá ter dificuldades em substituí­los, pois o Costão Golf se encontra exatamente no começo da área de expansão 1 , que tem cerca de um quilômetro de extensão. Essa área é adequada para abertura de novos poços por não ter loteamentos e estar ao lado das dunas, onde a recarga do aqüífero é maior. “Desta forma, tem­se que considerar a área como reserva estratégica de água. Arriscar esta reserva que é de todos para o benefício de um empreendimento é no mínimo injusto”, criticam Cristina Nunes e Eliane Westarb. Na audiência pública realizada na Câmara dos Vereadores em 2003, Cláudio Floriani Jr., consultor de gestão ambiental da Casan, revelou que o Costão Golf está na área laranja, com forte restrição à ocupação humana, conforme estudo da EPT. O problema, contudo, não chegou a preocupar os vereadores. Um deles, Dalmo Menezes (PP), disse inclusive que o Costão Golf estava acima das restrições apresentadas. Uma entrevista com Floriani Jr., que hoje é superintendente de meio ambiente, foi tentada algumas vezes através de ligações telefônicas e dois e­mails. O primeiro deles foi enviado em 11 de dezembro de 2007, com 44 perguntas sobre o aqüífero, o sistema Costa Norte e o Costão Golf. O choque entre o terreno do empreendimento e a área de expansão da companhia estava nessa lista; Floriani Jr., porém, não respondeu ao e­mail. Essas questões também foram mandadas em 29 de novembro daquele ano, através de ofício, para Osmar Ribeiro, diretor técnico da Casan, e igualmente não houve retorno. Assim como os vereadores, a Fatma não se preocupou com o fato de o campo de golfe estar na área de expansão. O único ponto relativo à captação da Casan abordado pelo órgão ambiental foi a necessidade ou não de isolar o poço Bianco – a Licença Ambiental de Instalação (LAI) obriga o empreendimento a manter análises sobre os parâmetros desse poço. A LAI permitiu a construção do campo de golfe, mas proibiu o uso de fertilizantes e agrotóxicos que pudessem contaminar o aqüífero. Toda vez que for utilizar algum produto, o Costão Golf deverá apresentar um relatório à fundação e informar a composição química, a forma de aplicação, os subprodutos gerados por reações e a movimentação no solo para confirmar a ausência de riscos de poluição. A aplicação só poderá ocorrer depois da permissão da Fatma, com aval dos especialistas da UFSC ligados ao programa de gestão do gramado e das pragas. 1 FRANÇA, Francis. Superexploração condena aqüífero que abastece 130 mil pessoas em Florianópolis. Ambiente J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 14 novembro 2006. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=86371>. Acesso em: 26 fevereiro 2008.
93 Cristina Nunes e Eliane Westarb contestaram a eficiência desse procedimento. “A fiscalização implicaria na disponibilidade de técnicos da Fatma para envio ao campo de golfe praticamente toda semana, conforme calendário de aplicação fornecido pelo empreendimento. Sabendo­se que essa possibilidade é muito precária nas condições atuais da Fatma, a concessão de licença ambiental para uso de agroquímicos [fertilizantes e agrotóxicos] deve ser baseada numa análise de risco a fim de se evitar conseqüências desastrosas.” 1 Essa proibição flexível da Fatma também não convenceu o Ministério Público Federal e o juiz federal Jurandi Pinheiro, que embargou as obras em junho de 2005 porque “a garantia de que os produtos a serem utilizados não irão contaminar o lençol freático deve ser demonstrada no EIA/RIMA, e não posteriormente” 2 . No estudo complementar do EIA/RIMA, pago pela CostãoVille em agosto daquele ano, o geólogo Francisco Caruso Jr. e os professores da UFSC Darci Trebien e Marciel Stadnik responderam que haverá controle e limite no uso de fertilizantes e pesticidas. Como esses produtos estariam sendo produzidos com uma especificidade cada vez maior, as doses seriam menores e não teriam concentrações capazes de contaminar o manancial 3 . “A água é necessária para a lixiviação dos produtos químicos; no entanto, raramente eles se movem na mesma proporção que a mesma. A maioria dos químicos se move mais lentamente e se decompõem antes que sejam lixiviados após a zona de raízes”, acrescentaram 4 . Na opinião deles, o “desconhecimento e a ignorância das pessoas leigas” sobre o manejo profissional e a tecnologia aplicada em campos de golfe fariam com que eles “sejam, para os meios de comunicação tendenciosos, focos de atenção no que diz respeito à contaminação do meio ambiente”. “Não podemos fazer de uma exceção a regra. Certamente já houve campos de golfe que, de alguma forma, poluíram o meio ambiente e isso só aconteceu pela irresponsabilidade e a total falta de gestão adequada das pessoas que dirigiam a manutenção desses campos”, enfatizaram. 5 Criticado pelo Ministério Público Federal e pela engenheira Cristina Nunes, o estudo complementar do EIA/RIMA foi defendido pela Costãoville no começo de outubro de 2005. 1 Essa declaração foi retirada de um parecer feito pelas duas, que não está datado e tampouco se encontra anexado ao processo judicial por motivos desconhecidos. Uma cópia desse parecer foi obtida com Eliane Westarb, em agosto de 2007. 2 Essa declaração de Jurandi Pinheiro foi retirada da decisão de 13 de junho de 2005, que paralisou as obras do Costão Golf pela primeira vez. 3 CARUSO JUNIOR, Francisco; STADNIK, Marciel; TREBIEN; Darci. Complementações ao EIA­RIMA: Estudo de Impacto Ambiental. Florianópolis, ago. 2005. P. 16. 4 Ibidem. 5 Ibidem, p. 9.
94 Os advogados contaram que a análise de risco foi julgada desnecessária porque o campo ainda não estava totalmente implantado; não havia também como afirmar onde e qual a praga que poderia aparecer e se o uso de agrotóxicos seria necessário. A empresa entregou à Justiça Federal um parecer 1 sobre a viabilidade do Costão Golf, feito por Darci Trebien, doutor em Ciências do Solo, e Marciel Stadnik, doutor em Fitopatologia, área científica que estuda doenças em plantas. Os dois professores da Universidade Federal de Santa Catarina coordenam os laboratórios que atuarão no programa de gestão do gramado e das pragas. Após elaborar a complementação do EIA/RIMA ao lado do geólogo Francisco Caruso, Trebien e Stadnik prepararam esse parecer para esclarecer as questões envolvidas com o risco de “contaminação” do aqüífero. A intenção era desmistificar a “idéia popular” de que essa poluição significaria, de forma irreversível, a inutilização da água para consumo humano. Se a manutenção do campo for bem feita, eles afirmaram que a possibilidade de haver algum elemento químico contaminante fica próxima de zero. “Devemos enfatizar ainda que essa ‘contaminação’, se houver, será localizada e provavelmente detectada pelo monitoramento, que saberá quais os níveis de concentração de um eventual elemento químico no local. A partir daí deverá ser feita uma avaliação para ver onde está o erro, de modo a rapidamente corrigi­lo.” Os dois especialistas ressaltaram que essa “contaminação” será local e não vai comprometer as águas subterrâneas, pois o eventual traço de elemento químico encontrado no monitoramento se diluiria em todo o volume de água do aqüífero. “Além disso, não existiria efeito cumulativo pelas características dinâmicas do aqüífero, pois sua recarga e descarga é de grande vazão, ou seja, a água da chuva que recarrega o aqüífero é descarregada constantemente junto às praias dos Ingleses e Santinho e pelas bombas de captação da Casan.” No fim, concluíram que o uso de fertilizantes e agrotóxicos não colocará em risco o aqüífero caso sejam “tomados os cuidados recomendados pela técnica e pela ciência no manejo do gramado, com adequado e profissional monitoramento”. Apesar de todas essas explicações, técnicos do Ministério Público Federal declararam que o parecer era insuficiente em uma audiência realizada em dezembro de 2005. *** 1 Feito em 29 de setembro de 2005.
95 Capítulo 5: A solução política Um longo tapume metálico branco separa a sede da organização ambiental Aliança Nativa de um tranqüilo parque no Centro de Florianópolis. Por estar extremamente próxima a um canteiro de obras, a pequena e confortável casa verde da entidade foi cercada recentemente, contra a entrada de vândalos e curiosos. Para chegar até ela agora, é preciso encontrar a entrada lateral do tapume, por onde passam operários e engenheiros da reforma da Ponte Hercílio Luz, principal cartão­postal da Ilha de Santa Catarina. O estado atual da Hercílio Luz simboliza bem as transformações de Florianópolis nos últimos cinqüenta anos. Inaugurada em 1926, foi a primeira ponte da Ilha com o continente e uma das principais obras 1 de engenharia do Brasil na época. Fundamental para o crescimento da capital, ela se desgastou com o tempo e foi interditada em 1991. A restauração começou em 2006 e custará R$ 80 milhões para o governo estadual, que têm planos ambiciosos. O governador Luiz Henrique da Silveira (PMDB) defende a passagem de um metrô de superfície pela ponte, mas há outras propostas menos impactantes 2 . O impasse é um dos sinais visíveis de uma sociedade que não sabe como crescer em uma ilha e se relacionar adequadamente com a natureza. As mudanças podem ser ainda mais sentidas para quem nasceu e passou toda a vida em Florianópolis, como Alexandre Lemos, diretor­ executivo da Aliança Nativa. O economista formado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) conta que a idéia de criar uma organização que colaborasse no desenvolvimento sustentável da capital surgiu em 2001. “Havia uma latência na sociedade perante as transformações no cenário ambiental. As propagandas da qualidade de vida mostravam um paraíso fictício, enquanto o espaço do povo estava diminuindo. A Aliança surgiu como contraponto a esse processo”, recorda. Fundada no ano seguinte, tornou­se uma das organizações mais representativas de política ambiental da cidade, com diversos projetos 3 e atuação no Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente. Em 2004, foi qualificada como Organização da Sociedade Civil de 1 Com 821 metros de extensão, 339 metros de vão central e duas torres de 74 metros de altura, a Hercílio Luz é a maior ponte pênsil da América Latina e a quinta do mundo. 2 Como abri­la para o trânsito para carros ou somente para pedestres, bicicletas e motos; a Associação Amigos do Parque da Luz, que fica ao lado da sede da Aliança Nativa, defende a alternativa de transformá­la em um circuito de arte, cultura, lazer e turismo. Fonte: VIANA, Natália. Reabilitação de ponte incentiva projetos. AN Capital, Florianópolis, 9 out. 2007. 3 Que podem ser conferidos em: <http://www.aliancanativa.org.br/projetos.php>.
96 Interesse Público (oscip) 1 pelo Ministério da Justiça. A entidade trabalha com recursos anuais de R$ 50 mil – grande parte vem de projetos com prefeituras, governo estadual e instituições. Por ser uma Oscip, ela deve prestar contas anuais ao ministério. “Todas são aprovadas sem problemas”, ressalta o diretor. A participação da Aliança Nativa no caso do Costão Golf começou em 2004, quando foi convidada por outras entidades a participar da análise do projeto e reunir apoio técnico capaz de criticar as falhas. Essa atuação se baseava no princípio da prevenção. “O fato de o empreendimento não apresentar uma tecnologia segura quanto à gestão da água tornou­se um elemento decisivo para o posicionamento das entidades em exigir um nível de risco ambiental aceitável”, explica Lemos. A Aliança foi uma das dez organizações que solicitaram ao Ministério Público Federal, em janeiro de 2005, providências judiciais para o caso. Um ano depois, foi autorizada pela Justiça Federal a entrar na ação civil pública 2 para atuar ao lado do MPF e contra o empreendimento. A Aliança se oferecera para fazer a assessoria jurídica dos movimentos porque, dos seus 28 sócios efetivos e 80 colaboradores, entre 15 a 20 são advogados, inclusive o presidente atual, Rodrigo Brisighelli Salles, que representa a oscip no processo. Após a fracassada audiência de conciliação em outubro de 2005, o juiz federal substituto Jurandi Pinheiro, da Vara Ambiental, marcou uma reunião entre os especialistas do Costão Golf e do Ministério Público para discutir o risco de contaminação do aqüífero. Ele também autorizou a presença de técnicos do Conselho Comunitário dos Ingleses e da Aliança Nativa, que seriam representados por Cristina Nunes e Eliane Westarb. Um problema de comunicação, porém, impediu a participação das pesquisadoras no encontro marcado para 9 de dezembro daquele ano no Costão do Santinho. Cristina foi informada por e­mail sobre uma mudança de horário 3 , mas o local não foi confirmado. Na data da reunião, ela e Eliane foram até o Costão Golf. Como ninguém apareceu, ligaram para o MPF e foram avisadas que a reunião estava ocorrendo no resort há duas horas e meia. “A Eliane não pôde ir porque tinha outro compromisso marcado e eu não 1 Uma Oscip é uma organização não­governamental (ONG) reconhecida legal e oficialmente pelo poder público caso comprove o cumprimento de certos requisitos (objetivos sociais, práticas de gestão administrativa, conselho fiscal). De caráter privado e sem fins lucrativos, pode ser eventualmente financiada pelo Estado ou pela iniciativa privada para realizar ações sem retorno econômico. Mais informações podem ser conferidas na Lei do Terceiro Setor (nº 9.790/99) em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L9790.htm>. 2 O artigo 5º da Lei federal nº 7.347/85 permite a participação de associações em ações civis públicas. 3 FRANÇA, Francis. Justiça Federal transfere audiência novamente e Costão Golf continua embargado. Ambiente J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 16 dezembro 2005. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=70301>. Acesso em: 26 fevereiro 2008.
97 quis ir sozinha, já que ela é que tinha os mapas e poderia dar mais informações sobre as condições do solo no aqüífero”, lamentou a engenheira química 1 . A reunião técnica 2 de dezembro tinha se tornado mais importante ainda para Fernando Marcondes de Mattos, dono do Costão Golf, depois que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, de Porto Alegre, manteve o embargo no fim de novembro de 2005; para o desembargador Márcio Antônio Rocha, relator do processo, não havia informações seguras sobre a ausência de riscos de contaminação. A reunião, porém, foi um novo fracasso para Marcondes: a complementação do EIA/RIMA e o parecer dos doutores Darci Trebien e Marciel Stadnik foram criticados pelo MPF. Os representantes da instituição federal consideraram insuficiente o parecer feito pelos professores da UFSC, pois este documento abordou apenas o potencial da carga poluente dos fertilizantes e dos agrotóxicos, e solicitaram uma análise de risco. De acordo com Francisco Caruso Jr., o geólogo Jorge Cravo pediu que essa análise fosse feita por hidrogeologistas 3 . “Uma dúvida surgiu para o pessoal da consultoria. Quem é o melhor disso no Brasil?”, revela Caruso Jr. A CostãoVille, construtora do Costão Golf, resolveu contratar a Hidroplan, empresa de Cotia (SP), que se apresenta em seu site 4 como a pioneira nacional em hidrogeologia de contaminação e avaliação de risco toxicológico. Especializada em contaminantes orgânicos utilizados pela indústria petroquímica, a Hidroplan possui cientistas da Universidade de São Paulo (USP) com experiência internacional e já trabalhou para empresas de porte como Petrobras e Gerdau. A Hidroplan preparou um relatório de 200 páginas em menos de dois meses e o apresentou em reunião técnica na manhã de 9 de fevereiro de 2006. No mesmo dia, à tarde, três especialistas da empresa entregaram o trabalho ao juiz Jurandi Pinheiro, da Vara Ambiental de Florianópolis, e manifestaram suas opiniões. Um deles, o Phd Ricardo Hirata 5 , analisou a carga potencial de contaminação por fertilizantes do Costão Golf e declarou na 1 FRANÇA, Francis. Justiça Federal transfere audiência novamente e Costão Golf continua embargado. Ambiente J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 16 dezembro 2005. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=70301>. Acesso em: 26 fevereiro 2008. 2 Nesse encontro, o Costão Golf foi representado pelo diretor de obras Carlos S. Thiago de Carvalho, Ricardo Agüero e os doutores Francisco Caruso Jr., Darci Trebien e Marciel Stadnik. O Ministério Público Federal levou quatro técnicos, dos quais três tinham analisado estudos do empreendimento: o geólogo Jorge Cravo, que veio de Brasília, o biólogo Walter Widmer e o engenheiro químico Wilson Guimarães Jr. 3 A Hidrogeologia é a ciência que estuda a relação entre as camadas do solo e as águas subterrâneas. 4 Disponível em: <www.hidroplan.com.br>. Acesso em: 18 março 2008. 5 Hirata atualmente é consultor da Unesco e, desde 2007, editor­associado do conceituado Hydrogeology Journal. Trabalhou no Brasil e em mais de 20 países, inclusive ministrando cursos profissionais. Segundo Caruso Jr., trata­se do melhor hidrogeólogo do país e foi citado como referência por Jorge Cravo, do MPF.
98 audiência que uma porção mínima dos componentes chegaria ao aqüífero e não afetaria a sua qualidade. 1 O doutor Celso Kolesnikovas avaliou que, se os contaminantes chegassem diretamente ao manancial, mesmo sem serem filtrados pelo solo, a chance de a água ingerida provocar câncer seria de uma em um milhão. Ele explicou que os componentes utilizados se degradam rapidamente, alguns antes mesmo de atingir a água e outros antes de chegar aos poços da Casan. 2 No estudo, a Hidroplan diz que realizou simulações de risco 3 em um cenário de 15 anos de tratamento no campo, considerando a pior das hipóteses: aplicação de fertilizantes e agrotóxicos muito superior ao que o empreendimento planeja utilizar, combinada com diferentes graus de lixiviação, processo em que os componentes fluem pelo solo com a ajuda da água. As etapas que tendem a diminuir as concentrações dos produtos químicos não foram levadas em conta, como a degradação, a diluição e a retenção das moléculas na superfície do solo e nas raízes da grama (adsorção). Mesmo com uma simulação nesses parâmetros, o parecer foi favorável: “A partir dos resultados obtidos nesta avaliação dos riscos toxicológicos conclui­se que a utilização de fertilizantes e pesticidas em quantidades máximas previstas pelos técnicos do Costão Golf não oferece risco à saúde humana e à saúde dos lagartinhos­da­praia e, conseqüentemente, não há risco de contaminação para o aqüífero”. Embora não tenha constatado riscos, a Hidroplan elaborou um sistema de remediação das águas subterrâneas para atender um pedido do MPF. Se o programa de monitoramento 4 identificar alguma concentração fora dos valores permitidos, os técnicos do Costão Golf deverão instalar uma barreira hidráulica na direção do fluxo da água contaminada. Essa barreira é feita através do bombeamento da água, que vai conduzi­la à estação de tratamento de esgotos do condomínio e impedi­la de atingir os poços da Casan. “O juiz Jurandi ficou satisfeito com o trabalho, mas o MPF pediu para analisar”, relata Francisco Caruso Jr. O geólogo Jorge Cravo reconheceu que os especialistas da Hidroplan eram de alto nível, mas apontou contradições técnicas na apresentação de fevereiro de 2006. 1 FRANÇA, Francis. Costão Golf consegue acordo com MPF e apresenta novo relatório ambiental. Ambient e J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 10 fevereiro 2006. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=72766>. Acesso em: 26 fevereiro 2008. 2 Ibidem. 3 Com softwares utilizados no EUA, Europa e Japão. 4 Os hidrogeólogos recomendaram o atenção especial para os três poços da Casan mais próximos ao condomínio (RBS, Bianco e Paulinho da Matriz), das lagoas que recebem água dos greens, cuja fertilização é mais intensa, e dos 17 piezômetros instalados pelo campo de golfe – um piezômetro é um pequeno poço profundo utilizado para verificar o nível da zona saturada, onde a areia está encharcada de água, e coletar amostras para análise química.
99 “Quando o modelo está pronto e é apresentado no computador, fica tudo muito bonito, mas ainda quero estudar os números que foram fornecidos para a criação do modelo”, acrescentou 1 . Para irritação de Fernando Marcondes, o juiz Jurandi Pinheiro manteve o embargo e concedeu cem dias para o Ministério Público analisar o relatório. “Depois de R$ 7,7 milhões investidos, gastos mensais de R$ 150 mil, não podemos correr o risco de perder este empreendimento. Parou tudo, só não pararam as despesas”, reclamou o empresário 2 , que pediu que a liberação das obras – se o juiz não se convencesse com o laudo da Hidroplan, poderia paralisá­las de novo 3 . Mesmo com o cenário judicial adverso, Marcondes publicou um artigo 4 otimista e confiante em espaço publicitário do Diário Catarinense, destacando o papel do turismo na criação de parte dos 5 mil empregos anuais que ele considera necessários para a cidade. O maior obstáculo do setor seriam os dez meses de baixa temporada; para removê­lo, o empresário defendeu investimentos em marinas, autódromos e, é claro, campos de golfe. De acordo com ele, o Costão Golf poderá movimentar R$ 10 milhões, entre atividades diretas e indiretas, terá projetos voltados à comunidade e não ameaçará o aqüífero. Marcondes tinha esperanças de que a Justiça Federal autorizasse o reinício das obras. Em abril de 2006, teve uma boa notícia: a plantação da grama foi permitida para evitar novos danos com a erosão no terreno do Costão Golf. Por outro lado, maio foi um mês terrível. No dia 5, a CostãoVille pediu o fim do embargo, mas não obteve sucesso no TRF. Duas semanas depois, os assessores da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão, do MPF de Brasília, terminaram a análise com diversas críticas ao laudo da Hidroplan. “Ao contrário do afirmado, o conteúdo deste estudo não atende à totalidade das constatações técnicas contidas na ata da reunião [de 9 de dezembro de 2005 ]”, comentaram o geólogo Jorge Cravo e a bióloga Paula Costa. Na opinião deles, havia uma série de imperfeições, incorreções técnicas e lacunas que não habilitava o trabalho da Hidroplan a determinar a ausência de riscos. A empresa paulista revelou no estudo que usou informações sobre o solo do Costão Golf que foram fornecidas pelo seu cliente, a CostãoVille, e obtidas através de uma “limitada 1 FRANÇA, Francis. Costão Golf consegue acordo com MPF e apresenta novo relatório ambiental. Ambient e J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 10 fevereiro 2006. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=72766>. Acesso em: 26 fevereiro 2008. 2 Ibidem. 3 Se a liberação imediata das obras ocorresse, Marcondes disse que a CostãoVille poderia concluir a construção do campo e da estrutura do condomínio ainda em 2006. 4 Intitulado “Florianópolis e seus desafios” e publicado na edição de 2 de abril de 2006 do Diário Catarinense.
100 investigação intrusiva” – tipo de trabalho feito com amostragem de campo para definir o perfil das camadas subterrâneas 1 . Os analistas do Ministério Público Federal questionaram então a consistência dessa avaliação, já que a validade das simulações dependeu exatamente dos dados repassados pela CostãoVille. A Hidroplan repetiu o discurso de que o gramado é o melhor filtro natural para evitar os riscos de contaminação; para Jorge Cravo e Paula Costa, não há fundamentação técnica e científica no estudo que comprove isso. Sobre os fertilizantes, a empresa informou que serão aplicados produtos à base de nitrogênio, fósforo e potássio, mas não disse a quantidade e a proporção de cada substância, e não adicionou a carga delas às existentes no aqüífero. Os assessores acrescentaram que a matéria orgânica dissolvida dos adubos facilita o movimento de outros elementos químicos pelo solo, como os pesticidas. A lista de pesticidas (agrotóxicos) inclui nove herbicidas, oito fungicidas e seis inseticidas, mas a Hidroplan não justificou porque tantos são necessários. “As quantidades e periodicidades máximas a serem utilizadas não são informadas para muitos dos produtos”, notaram os técnicos do MPF, que analisaram todos os produtos. Um dos herbicidas, o glifosato, já foi aplicado no plantio do gramado do Costão Golf, mas a sua concentração não foi revelada pela empresa paulista. “Embora o laudo informe que o glifosato é praticamente imóvel no solo, este herbicida percola [é absorvido] sim e já foi encontrado em águas subterrâneas na Europa”, afirmaram Jorge Cravo e Paula Costa. Os dois também ressaltaram a presença do metano arseniato monossódico (MSMA) na lista dos produtos do Costão Golf. Esse produto é um poluente atmosférico que pode provocar lesões nos nervos e câncer, mesmo em exposições crônicas de um grama por ano, e penetrar com mais facilidade em solos arenosos, mesmo quando cobertos com turfa 2 . “A extrema solubilidade de MSMA em água e sua pouca adsorção a solos arenosos podem ser um problema grave nas condições locais do empreendimento. A possibilidade de produção de arsenito, composto mais tóxico, no solo e sua entrada no aqüífero deve ser considerada com muito critério”, advertiram os assessores do Ministério Público. Dos oito fungicidas, um dos mais preocupantes seria o clorotalonil, cancerígeno e com alta toxicidade por inalação. Como se espalha facilmente pelo ar e atinge longas distâncias, poderia ameaçar os moradores do Costão Golf, os visitantes e até a população do entorno. “Embora seja raro, há um caso relatado de morte de um golfista devido ao contato com um 1 Disponível em: <www.eletrobras.gov.br/downloads/EM_MeioAmbiente/AvaliacaoPassivosAmbientais.pdf.>. Acesso em: 2 março 2008. 2 Turfa é a matéria orgânica de vegetais em decomposição.
101 campo de golfe pulverizado com clorotalonil uma semana antes”, disseram os técnicos do MPF, questionando se a aplicação prevista anual de 36 quilogramas do produto por hectare não seria excessiva. Os mais perigosos, porém, seriam os inseticidas. O uso do diazinon é restringido pela Agência de Proteção ao Meio Ambiente dos Estados Unidos (EPA, na sigla original) e foi proibido para campos de golfe e fazendas de cultivo de grama em 1988 por matar aves que freqüentavam essas áreas. O geólogo e a bióloga perguntaram então por que ele deveria ser usado em um campo de golfe no Brasil. O inseticida acefato é cancerígeno, com persistência moderada e alto potencial de lixiviação. O laudo da Hidroplan não fornece muitos detalhes acerca dos efeitos biológicos do produto, que se biodegrada no ambiente e se transforma no metamidofós. Este composto é mais móvel e persistente, e tem uso restrito nos EUA por ser altamente tóxico. Os assessores Jorge Cravo e Paula Costa recomendaram que “é preciso demonstrar claramente que nem acefato nem metamidofós contaminarão o aqüífero”. Com as críticas do MPF, a CostãoVille contratou o Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas (Cepas), do Instituto de Geociências da USP, para avaliar o estudo da Hidroplan. Em documento de 31 de agosto de 2006, os especialistas do centro consideraram a metodologia amplamente segura e adequada, e o laudo de alto nível. Sobre os riscos de contaminação, concluíram que o programa de gestão do campo de golfe vai evitá­los. Na opinião da procuradora Analúcia Hartmann, esse estudo do Cepas e os dois anteriores (laudos dos professores de Agronomia e da Hidroplan) ajudaram a melhorar a análise sobre o Costão Golf, mas não a convenceram. “Faltam informações sobre a velocidade dos produtos e dados geológicos completos. O Jorge Cravo bateu o pé em relação a isso”, completa.
A rejeição dos estudos agravou a situação do Costão Golf. Entre setembro de 2005 e outubro de 2006, o empresário Fernando Marcondes contratou três pareceres e todos foram considerados insuficientes; ele tentou derrubar o embargo quatro vezes (novembro, fevereiro, maio e julho) e fracassou. Até o único consolo de todo esse período, o plantio de grama autorizado judicialmente, resultou em problemas.
102 A cidade dividida Em 2 de agosto de 2006, a procuradora Analúcia Hartmann denunciou à Justiça Federal o descumprimento do embargo no Costão Golf, com base em notícias enviadas por moradores da região. No mesmo dia, Zenildo Bodnar, novo juiz federal substituto da Vara Ambiental havia apenas um mês, determinou uma inspeção da Polícia Federal e a suspensão imediata de todo e qualquer tipo de obra. A operação da PF ocorreu quatro semanas depois porque a delegacia de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente contava somente com um agente, que estava envolvido na investigação do resort Il Campanario em Jurerê Internacional, cuja obra também estava paralisada. Os outros policiais estavam ausentes por motivos diversos (férias, licença­ capacitação, licença médica). Os agentes da Polícia Federal constataram o andamento de várias obras proibidas no Costão Golf. Embora tivesse autorização apenas para colocar a grama, a CostãoVille também aterrou a área e implantou sistemas de irrigação e drenagem. “Eles desafiaram a Justiça”, irrita­se a procuradora da República. Ela revela que Carlos S. Thiago Carvalho, diretor das obras, assumiu a responsabilidade do desrespeito judicial, no lugar do empresário Fernando Marcondes, para evitar que o patrão fosse preso – no fim, Carvalho também não foi levado pela PF. Por causa do descumprimento judicial, a procuradora entrou com uma ação de atentado 1 no fim de setembro de 2006 contra a Costãoville e a Santinho Empreendimentos Turísticos. O proprietário delas, Marcondes, negou ao jornal A Notícia que tivesse desrespeitado a paralisação. “A Polícia Federal esteve aqui e não constatou irregularidades. Depois disso já tivemos três reuniões com o juiz. A procuradoria está tentando criar fatos com essa ação”, tentou desconversar 2 . Ao avaliar a ação de atentado, o juiz Zenildo Bodnar declarou que os fatos “criados” estavam demonstrados pelo material do processo e a liminar que paralisou as obras não foi respeitada de fato. Na decisão de 2 de outubro, ele determinou às empresas o pagamento de uma multa de R$ 200 mil no prazo de até dez dias; caso isso não fosse obedecido, a perícia no Costão Golf marcada pelo juiz seria cancelada. 1 Recurso previsto pelos artigos 879­881 do Código de Processo Civil contra violações judiciais. Quando a ação procede, o juiz ordena o restabelecimento do estado anterior (no caso, do terreno), a suspensão da causa principal (a ação civil pública) e a proibição de o réu falar no processo até que sejam desfeitas causas do atentado (as obras não permitidas). 2 COSTA, Carlito. MPF na Justiça contra Costão. AN Capital, Florianópolis, 4 out. 2006.
103 Na semana seguinte, no dia 10 de outubro, o colunista Cacau Menezes, do Diário Catarinense, publicou uma nota sobre a procuradora Analúcia que resultou em um debate sobre a atuação dela na cidade. O empresário Carlos Amastha, responsável pela construção do Floripa Shopping, entrou com uma representação no Ministério Público Federal de Brasília contra a procuradora porque ela estaria prejudicando o desenvolvimento de Florianópolis ao proibir todo tipo de investimento. Amastha reclamava na época que Analúcia atrapalhou as obras de seu projeto em 2005 e, por outro lado, beneficiou o shopping rival, o Iguatemi, com um termo de ajuste de conduta. O seu maior aliado na Câmara dos Vereadores, Marcílio Ávila (na época do PMDB), também enviou uma representação a Brasília. “O que teria tirado a turma do sério e motivado a tentar derrubar a procuradora foi a recente multa de R$ 200 mil que mandou aplicar no Costão Golf, empreendimento que ela já disse que não sai. Mas os empresários acham que deve sair”, esclareceu Cacau na coluna de 11 de outubro. Analúcia não silenciou: “Não pretendia entrar na discussão, mas não posso deixar de fazer um pequeno comentário essencial: o Ministério Público não decide, pois esta é a função do Poder Judiciário. O MP recebe informações e demandas e cumpre com seu papel constitucional, levando­as ao Judiciário, quando existirem elementos para tanto, em matéria cível ou criminal”, declarou à coluna 1 , concluindo, portanto, que as decisões e as multas nunca foram determinadas por ela, mas pelos juízes. Fernando Marcondes aproveitou o debate para desabafar na coluna de Cacau Menezes 2 . “Tenho sido vítima da procuradora desde 1997, quando, sem motivo, obteve o embargo do Hotel Internacional Costão do Santinho, paralisando a obra por um ano e meio. Hoje ele vive sendo premiado no Brasil e no exterior”, recorda, criticando­a por não aceitar os estudos técnicos sobre a ausência de riscos para o aqüífero. Em manifesto divulgado em 18 de outubro, grupos empresariais e comunitários 3 de Florianópolis e de SC apoiaram o Costão Golf e solicitaram o rápido esclarecimento do caso. Para a procuradora Analúcia Hartmann, os ataques ao seu trabalho sempre ocorreram e vão continuar. “Alguns empresários e políticos locais pretendem ainda utilizar a seu favor e à margem da lei os bens ambientais e os poderes públicos. A visão míope prevalece: interesses 1 Em 12 de outubro de 2006 Em 14 de outubro de 2006. 3 A lista é diversa: há entidades industriais, de hotelaria e agências de viagem; sindicatos da construção civil, de corretores de imóveis e de escolas particulares; a ONG FloripAmanhã (criada por Marcondes), o Conselho Comunitário do Santinho, a maçonaria e uma associação de surfistas.
2 104 privados se pretendem de utilidade pública e a destruição ambiental é afastada em nome do mito do desenvolvimento”, pondera 1 . Em entrevista a um blog2 , Analúcia revelou que foi defendida por centenas de pessoas, inclusive empresários e autoridades públicas. “O próprio Cacau Menezes enviou­me correspondência dizendo estar sendo inundado por manifestações de elogios a meu respeito. Pena que publicou apenas uma.” Em novembro de 2006, entidades sociais e ambientais de Florianópolis 3 divulgaram uma carta de apoio à procuradora, com críticas à cobertura da imprensa sobre os problemas de empreendimentos na Ilha, e agradeceram a ela por defender o meio ambiente. Quando se fala de desenvolvimento em Florianópolis, os defensores dos grandes empreendimentos sempre usam, como argumento principal, a criação de empregos e o aumento da renda. Esse ponto é reforçado quando se trata de Fernando Marcondes e os seus negócios: a Inplac, fábrica de Biguaçu, que fica na região metropolitana de Florianópolis e é líder nacional em embalagens para fertilizantes; o Costão do Santinho, eleito três vezes o melhor resort do Brasil pela revista Viagem e Turismo, da editora Abril; e a atuação imobiliária com a incorporadora CostãoVille. O grupo Marcondes fatura R$ 300 milhões por ano e tem atualmente 1,5 mil funcionários 4 – na autobiografia, o empresário conta 5 que 10 mil pessoas estão ligadas às empresas dele, entre empregos diretos, indiretos e dependentes, e são chamadas por ele de “meu rebanho”. Marcondes diz que prioriza a contratação de moradores locais e oferece uma série de benefícios, como bônus salarial, lanches gratuitos, cestas básicas, kits de higiene, assistência médica, educação suplementar, creche e até casamentos coletivos. O Costão Golf deve criar em torno de 400 vagas, das quais 83 serão diretas 6 e o restante, indiretas – segundo Marcondes, esses empregos diretos serão especializados 7 . As pessoas contratadas receberão treinamento quando necessário, como os oito funcionários que 1 HARTMANN, Analúcia de Andrade. Entrevista: Procuradora da República Analúcia Hartmann. Blog Pitacos da L ontr a, Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Rio das Lontras, São Pedro de Alcântara (SC), 8 jul. 2007. Entrevista concedida a Fernando José Pimentel Teixeira e Christiane de Souza Pimentel Teixeira. Disponível em: <http://pitacosdalontra.blogspot.com/2007/07/entrevista­procuradora­da­repblica.html>. Acesso em: 16 março 2008. 2 Ibidem. 3 Entre elas, a Aliança Nativa, organizações e associações de moradores e surfistas do Campeche, Conselho Comunitário dos Ingleses, Federação de Entidades Ecologistas Catarinenses (FEEC), Instituto Carijós e União Florianopolitana de Entidades Comunitárias (Ufeco). 4 MATTOS, Fernando Marcondes de. “Penso em deixar os negócios”. Diár io C atar inense, Florianópolis, 5 ago. 2007. Entrevista concedida à Estela Benetti. 5 _____________________________. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p., p. 500. 6 Essa informação foi obtida de um ofício enviado por Carlos S. Thiago Carvalho, diretor de obras do Costão Golf, à Fatma em 9 de novembro de 2004. 7 MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p., p. 236.
105 cortam a grama do campo de golfe. “São ex­pescadores que foram capacitados”, conta o diretor Ricardo Agüero. Também haverá vagas para jardineiros, seguranças, atendentes comerciais, ajudantes da escola de golfe, cozinheiras e auxiliares de serviços gerais. O EIA/RIMA do empreendimento ressalta que um quarto da renda gerada vem diretamente do campo de golfe e o resto de atividades indiretas, como hotelaria, restaurantes, aluguel de carros, agência de viagens. “A participação das populações locais na modalidade não deve limitar­se à mera ‘exploração’ da atividade, que ficaria caracterizada como exclusivamente destinada ao consumo da população visitante”, advertem, contudo, os consultores da Caruso Jr 1 . Embora o Costão Golf tenha uma área de treinamento para iniciantes no esporte, os custos devem atrapalhar a popularização do golfe no Capivari, região de classe média baixa. Para dar algumas tacadas no driving range, é preciso alugar cem bolinhas por R$ 15 e um taco pelo dobro do preço – uma partida no campo custa R$ 100. Uma aula individual de 45 minutos para crianças e adolescentes custa R$ 50 e, para adultos, os valores podem ir de R$ 60 a R$ 480 2 . A participação em competições também é cara: custou R$ 200 no primeiro torneio oficial do clube 3 , em dezembro de 2007. Uma das soluções apresentadas para integrar o esporte com a comunidade é a criação de uma escola de golfe para jovens. O site do Costão Golf afirma que isso terá “uma valiosa função social” 4 . De acordo a autobiografia de Marcondes, a intenção não é somente ensinar o jogo de golfe, mas também “mostrar as distintas possibilidades de trabalho que oferece”. Ele acrescenta que “essas práticas serão enriquecidas com vídeos, nos quais se demonstrará a importância de preservar e melhorar o meio ambiente e a forma como um campo de golfe o beneficia” 5 . A medida parece ser iniciativa própria do projeto, mas, assim como o plantio de árvores nativas e o Parque das Dunas, atende a objetivos omitidos pela propaganda. Em 12 de janeiro de 2004, a então prefeita Ângela Amin (PP) enviou aos vereadores o Projeto de Lei Complementar 532/2004, que previa incentivos à implantação de áreas esportivas na cidade. Esse ofício foi elaborado apenas vinte dias depois que ela sancionou a Lei Complementar 133/2003, que mudou o zoneamento do Capivari para permitir a construção do Costão Golf. 1 CARUSO JUNIOR, Francisco et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. II, p. 10­2. 2 Os valores das aulas foram obtidos em documentos do processo judicial. 3 Disponível em: <http://www.fprgolfe.com.br/torneios/torneios.asp?cod_torneio=171>. Acesso em: 19 março 2008. 4 Disponível em: <http://www.costaogolf.com.br/empreendimento.htm>. Acesso em 19 março 2008. 5 MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p., p. 236.
106 O objetivo era desenvolver a prática de esportes ao ar livre em loteamentos e condomínios, especialmente em locais distantes da região central da Ilha. Se o empreendedor criasse um programa esportivo para jovens de baixa renda, ficaria isento de pagar até 100% do IPTU. “Salienta­se que esta isenção não implica em renúncia fiscal, pois as áreas verdes de loteamentos e condomínios já estão isentas do pagamento de tal imposto”, alegaram os diretores do Ipuf. No entanto, os vereadores da Comissão de Orçamento da Câmara discordaram e disseram que haveria renúncia de receita. Olívio Rocha, então secretário municipal de Finanças, não foi ouvido na elaboração do projeto 1 e não estimou, portanto, a perda eventual de recursos. “O órgão de origem [o Ipuf], por sua vez, também não efetuou qualquer demonstrativo nesse sentido, nem apresentou sugestão de alteração da legislação tributária municipal, no sentido de compensar a renúncia fiscal”, destacou o secretário. O projeto só foi aprovado em 5 de outubro, como Lei Complementar 150/2004, e concedeu a isenção a condomínios, clubes e associações com programas esportivos. “Há um jogo de faz­de­conta em tudo isso. Sobrevoe a Ilha de Santa Catarina e procure quantas áreas como as descritas na lei existem, além do Costão Golf”, declarou o vereador Nildão (na época do PcdoB, hoje do PT) 2 . O Estudo de Impacto Ambiental 3 previu que o empreendimento aumentaria as receitas municipais através do Imposto Sobre Serviços (ISS) e do IPTU; com a isenção de até 100% da segunda taxa, porém, haverá um argumento a menos para quem destaca os benefícios da geração de renda para o município advinda do Costão Golf. Os consultores da Caruso Jr. também destacaram a valorização imobiliária a ser provocada pelo condomínio: “Com a comercialização dos lotes, há que se supor um incremento no valor dos imóveis do entorno, pois a demanda pela região deverá crescer e deverá ser melhorado o atendimento por serviços de utilidade pública”. De acordo com o corretor de imóveis Jorge Luiz Goerck, um terreno de 360 metros quadrados no Capivari valia R$ 25 mil em 2003, mesmo ano em que o projeto do Costão Golf foi lançado, e hoje gira em torno de R$ 40 mil. Um metro quadrado custaria, portanto, R$ 111 em média, mas já há registros de supervalorização. Uma propriedade 4 de 16,4 hectares que 1 Assim ele disse em ofício enviado para a prefeita Ângela Amin em 12 de julho de 2004. FRANÇA, F. Conivência da Câmara foi na madrugada de domingo [sic]. J or nal­labor atór io Zer o, Florianópolis, mar.­abr. 2005. P. 4. 3 CARUSO JUNIOR, Francisco Caruso et al. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação d o Condomínio Residencial Costão G olf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, mar. 2004. Vol. II, p. 9­27. 4 Disponível em: <http://www.investfloripa.com/detalhes.aspx?codImovel=FTE010>. Acesso em: 2 março 2008.
2 107 fica ao sul do Costão Golf está à venda por R$ 5 milhões – seu metro quadrado estaria avaliado, portanto, em R$ 305. Walter Alperstedt, dono da Pousada do Francês, também colocou o terreno à venda para, literalmente, livrar­se dele. O proprietário reclama que a praia poluída dos Ingleses afastou os turistas e o seu negócio “foi pro brejo” em 1999. Quatro anos depois, decidiu não alugar mais os sete chalés para turistas, mas somente para moradores temporários. “Só pra eu me manter até vender essa desgraça”, jura. Ao ser questionado sobre o preço, diz que não revela. Alguns palpites são feitos e arrancam risadas dele até admitir que está pedindo R$ 2,5 milhões pela propriedade de 11,5 mil metros quadrados – R$ 217 por metro quadrado. Para o dono da pousada, a região é “um atraso de vida” e, por isso, apóia plenamente o Costão Golf. “Sempre passo na frente e acho tudo isso maravilhoso.” Antes do campo de golfe, só havia um pasto, “nada que prestasse”, além de duas, três vaquinhas. A limpeza do terreno, o plantio da grama e as modificações na rua “deixaram o bairro mais civilizado”. Ele conclui sua posição com argumentos conhecidos: haverá mais dinheiro e mais empregos. Por outro lado, o IPTU ficará mais caro com a valorização local. “A cobrança mudou depois de 2003”, conta a economista Fabiana Lalane, que morou na região até setembro de 2007. “Antes do Costão Golf, o metro quadrado valia R$ 60 e agora já vale R$ 100.” Os moradores, de classe média baixa, talvez não consigam bancar o aumento e precisem vender o imóvel para viver em locais mais baratos – a arquiteta Sara Janini perguntou, em audiência pública de 2004, o que seria feito para evitar a troca populacional, mas não obteve resposta. A valorização imobiliária é um dos sete pontos 1 obrigatórios do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), previsto pela lei federal de política urbana chamada Estatuto da Cidade. O estudo deve analisar os efeitos positivos e negativos de um empreendimento sobre a vida da população e da infra­estrutura na área. Cada cidade define os empreendimentos que precisam apresentá­lo; no caso do Costão Golf, isso não foi exigido porque ainda não havia uma lei regulamentada em Florianópolis 2 . Em parecer de março de 2005, a arquiteta Ludimila Lamounier, do MPF de Brasília, contou que o Estudo de Impacto Ambiental do Costão Golf até bastaria se abrangesse os quesitos do Estudo de Impacto de Vizinhança; a consultoria Caruso Jr., porém, não teria aprofundado todos os temas, principalmente a geração de tráfego e demanda por transporte público. Ela enfatizou que o EIV também é necessário quando há alterações de uso de uma 1 Os outros são: adensamento populacional; equipamentos urbanos e comunitários; uso e ocupação do solo; geração de tráfego e demanda por transporte público; ventilação e iluminação; paisagem urbana e patrimônio natural e cultural. Todos esses pontos são previstos pelo artigo 37 do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001). 2 Atualmente a proposta dela está sob análise da Câmara dos Vereadores.
108 área no plano diretor, especialmente do rural para o urbano, como na área do Costão Golf. “Essa mudança implica destinação diversa da usualmente praticada, afetando diretamente os vizinhos.” 1 No pedido da ação civil pública, a procuradora Analúcia Hartmann exigiu o EIV com base em decisão 2 de 2003 do TRF de Porto Alegre, que determinou a obrigatoriedade do estudo a uma obra de grande porte na bacia hidrográfica da Lagoa da Conceição, uma região ambientalmente sensível. A CostãoVille considerou a exigência do MPF pelo EIV um “meio de tentar emperrar” o andamento do empreendimento. Nas duas audiências de conciliação de 2005, o juiz federal substituto Jurandi Pinheiro chegou a solicitar o estudo, mas mesmo assim ele não foi feito. Mesmo diante das incertezas sobre os impactos no Capivari, o corretor Jorge Goerck arrisca a dizer que 60% da comunidade é favorável ao Costão Golf, “uma que vez que sejam tomados todos os cuidados”, e 40% contra. Totalmente a favor, Goerck foi a duas reuniões, em 2004 e 2005, nas quais os empreendedores mostraram à comunidade que não há riscos de contaminação ao aqüífero. “Só que esses ‘defensores’ do meio ambiente não provaram que vai contaminar”, critica, referindo­se às entidades contrárias. “Se o Ministério Público está em dúvida quanto à possibilidade de contaminação, quem sou eu para questionar isso e muito menos esses pseudo­ambientalistas.” Para um grande amigo de Fernando Marcondes, esses “pseudo­ambientalistas” não passam de movimentos ideológicos de minorias. Se dependesse dele, Marcondes ganharia uma estátua em Florianópolis, pois ninguém teria conservado tanto o meio ambiente na cidade quanto o empresário com o Costão do Santinho 3 . Se depender dele realmente, essa estátua talvez seja feita, afinal ele é Luiz Henrique da Silveira, atual governador de Santa Catarina pelo PMDB. 1 Para comentar esse ponto, a arquiteta Ludimila Lamounier se baseou em: Plano dir etor par ticipativo, guia par a a elabor ação pelos municípios e cidadãos. Brasília: Confea; Ministério das Cidades, 2004, p.121. 2 AI 2003.04.01.010070­3, Relator Desembargador Federal Valdemar Capeletti, julgamento em 21 maio 2003, 4ª Turma. 3 SILVEIRA, Luiz Henrique da. “O segundo mandato será muito mais forte”. A Notícia, Joinville, 10 jun. 2007. Entrevista concedida a Cláudio Prisco Paraíso e Carlito Costa.
109 O poderoso aliado e o documento distor cido Sentado na platéia, o jovem Luiz Henrique da Silveira, recém­formado em Direito, impressionava­se com a palestra de Fernando Marcondes de Mattos, assessor econômico do governo estadual, que falava sobre a importância de antever ações com forte impacto no futuro. O evento ocorreu em 1965 em Joinville, maior cidade de Santa Catarina, e Luiz Henrique cita essas palavras até hoje para relembrar o início de uma longa amizade entre dois dos mais poderosos homens da atualidade no estado. Depois de se formar, Luiz Henrique prosseguiu a atuação política da militância estudantil no antigo MDB para iniciar uma vitoriosa carreira de onze mandatos consecutivos, sempre pelo mesmo partido (o PMDB): três vezes prefeito de Joinville, cinco mandatos de deputado federal e outros dois de governador de SC, cargo para o qual foi reeleito em 2006 1 . Embora tenha se destacado nos negócios, Fernando Marcondes também apresenta um currículo político considerável: foi candidato a vice­governador pelo PFL, secretário municipal de Projetos Especiais 2 e secretário estadual do Planejamento e da Fazenda 3 , tudo isso entre meados dos anos 80 e o começo da década seguinte 4 . A antiga ligação do empresário com o mundo político voltou a ficar mais visível quando o governador Luiz Henrique resolveu ajudar o Costão Golf a derrubar o embargo às obras. Em dezembro de 2005, o governador enviou um ofício à Procuradoria­Geral do Estado para pedir intervenção urgente em todos os processos na Justiça Federal contra áreas de empreendimentos que pertencessem ao governo de SC ou estivessem ligadas a águas subterrâneas 5 de seu domínio; a intenção era submeter esses julgamentos à corte estadual, como o caso do Costão Golf. A defesa política se estendeu então para a esfera judicial e iniciou uma disputa pela definição de foro, se seria federal ou estadual. Em janeiro de 2006, o procurador Osmar José Nora solicitou à Justiça Federal que o estado de Santa Catarina entrasse no pólo passivo do processo do Costão Golf e fosse considerado réu, assim como o empreendimento. Ele alegou que o Ministério Público Federal queria, ao exigir o cancelamento das licenças ambientais da 1 Luiz Henrique também já foi presidente nacional do PMDB e ministro da Ciência e Tecnologia no governo de José Sarney. 2 No governo de Esperidião Amin (ex­PDS, hoje PP), entre janeiro de 1989 e abril de 1990. 3 No governo de Vilson Kleinübing (PFL), entre março de 1991 e novembro de 1992. 4 Nas eleições municipais de 2000, Marcondes quase compôs chapa com a prefeita Angela Amin, que enviou projetos favoráveis ao empresário para a Câmara nos anos seguintes. Essa informação foi obtida em: NEVES, Antonio. A Notícia, Joinville, 27 jun. 2000. Disponível em: <http://www1.an.com.br/2000/jun/27/0alc.htm>. Acesso em: 12 março 2008. 5 Constituição Federal, artigo 26, inciso I.
110 Fatma, impedir o uso do Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho, que faz parte do patrimônio do governo de SC. Nora também questionou a legitimidade do MPF para atuar na ação e a competência da Justiça Federal para julgá­la. Na petição inicial da ação civil pública 1 , a procuradora Analúcia Hartmann tinha declarado que os riscos do Costão Golf eram de interesse federal, pois os possíveis danos atingiriam o ambiente da Ilha de Santa Catarina, que pertencia à União. Esse argumento, contudo, perdeu força pouco tempo depois com a aprovação da Emenda n° 46, de 5 de maio de 2005, que excluiu as ilhas costeiras com sede de município, como Florianópolis, do domínio federal 2 . A CostãoVille já havia apontado isso em sua contestação de junho de 2005, mas não obteve a mudança de foro porque o MPF apresentou outro motivo para justificar sua presença na ação: o risco de alteração na zona costeira. “Consagrada a zona costeira como patrimônio nacional 3 , a alteração de seu aspecto natural ou de seus atributos excepcionais deve corresponder a uma necessidade pública ou a um desígnio de desenvolvimento sustentável, o que não é o caso do empreendimento”, explicou Analúcia na petição 4 . Ela foi contrária à entrada do estado de Santa Catarina como réu na ação, ao lado das empresas de Fernando Marcondes, por entender não haver interesse público na defesa de um projeto particular que ameaçava o aqüífero. A posição do governo, advertiu, contrariava o Ministério Público Estadual, que recomendara duas vezes (em 2004 e 2005) que não fossem licenciadas obras de grande porte nos Ingleses. Diante dessas razões, o juiz Jurandi Pinheiro vetou o ingresso do governo estadual. O procurador Osmar Nora recorreu ao TRF em maio de 2006; essa decisão teria violado a Lei da Ação Civil Pública 5 , que permite ao poder público participar de qualquer lado de um processo. “A lei reservou esta decisão ao próprio estado, que entende, como entendeu a Fatma, que o empreendimento não agride ou coloca em risco o meio ambiente”, disse o procurador. O desembargador Márcio Antônio Rocha, relator do TRF, permitiu a entrada do estado de SC, mas manteve o caso na Justiça Federal. Para obter a mudança de foro ou a extinção do processo, Nora entrou com um novo recurso no fim de julho, questionando a legitimidade do MPF e a do Instituto Brasileiro de 1 De 31 03 05. Essa mudança surgiu como Proposta de Emenda à Constituição nº 575 e foi apresentada pelo ex­deputado federal Edison Andrino (PMDB), que já foi prefeito de Florianópolis (1986­88). 3 Constituição Federal, Art 225, § 4º. Outros patrimônios nacionais são a Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Serra do Mar e Pantanal Mato­Grossense. 4 Com base no Plano Nacional Estadual de Gerenciamento Costeiro (Lei federal nº 7.661/88) e pelo Decreto Federal nº 5.300/2004. 5 Lei federal 7.347/85, artigo 5º, § 2º.
2 111 Meio Ambiente (Ibama), que era um dos autores da ação e fazia parte do pólo ativo. Na defesa do procurador estadual, o Costão Golf foi analisado pela Fatma, órgão de SC, porque era um caso de interesse ambiental local – logo, a presença do Ibama não se justificaria. O procurador salientou que o instituto não demonstrou qualquer interesse federal quando pediu para entrar na ação e mesmo assim foi autorizado. Os desembargadores rejeitaram esses argumentos no começo de agosto de 2006. A situação do Ministério Público Federal era legítima para eles, já que a lei 1 permite que a instituição atue na defesa do ambiente; a questão do Ibama não podia ser avaliada pelo TRF porque não foi discutida na Vara Ambiental de Florianópolis. O embargo do Costão Golf então deveria se manter, mas no fim de agosto os agentes da Polícia Federal descobriram que ele estava sendo descumprido. A multa de R$ 200 mil ao empreendimento provocou discussões na mídia catarinense. O ex­governador Luiz Henrique (PMDB) 2 prometeu em entrevista à TV Barriga Verde, rede local de televisão, empenhar­se pessoalmente no segundo mandato a defender os interesses de empresários que não conseguiam instalar projetos turísticos em Florianópolis e no litoral por causa do que ele chamou de “terrorismo ambiental”. O governador citou duas “vítimas”; uma deles era o Costão Golf 3 . A eleição ao governo ocorreu em dois turnos e Luiz Henrique precisou enfrentar o ex­ governador Esperidião Amin (PP) outra vez, depois de derrotá­lo por apenas 20 mil votos em 2002. Na nova disputa, ganhou com uma diferença de cerca de um milhão de eleitores. Grande parte desse desempenho avassalador se deveu às doações que triplicaram na campanha da reeleição e chegaram à R$ 7,5 milhões, conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A Santinho Empreendimentos Turísticos, empresa de Fernando Marcondes de Mattos que controla o Costão do Santinho, ajudou o comitê de Luiz Henrique com R$ 100 mil 4 . Os laços de amizade entre ele e Marcondes foram reforçados por uma viagem no começo de novembro de 2006. 1 Nº 7.347/85. Ele tinha renunciado ao cargo em junho de 2006 para concorrer à reeleição “sem o uso da máquina pública”. 3 Disponível em: <http://www.riosvivos.org.br/canal.php?canal=50&mat_id=9996>. Acesso em: 19 março 2008. 4 Foi a única doação da empresa na eleição de 2006.
2 112 A versão oficial é que Luiz Henrique tiraria alguns dias para descansar, mas a coluna Informe Político do Diário Catarinense1 revelou que o passeio dele teve outros objetivos: O mistério sobre a viagem do governador reeleito à Porto Alegre foi desvendado na Fiesc. Luiz Henrique foi à Tribunal Regional Federal para tentar sensibilizar a corte quanto a uma sentença favorável à reabertura do Costão Golf, no norte da Ilha. Acompanhou o proprietário do empreendimento, o empresário Fernando Marcondes de Mattos. Os dois foram ao tribunal porque, no dia 6 de novembro, o procurador Osmar Nora tinha pedido aos desembargadores que reconsiderassem a decisão de manter o processo na Justiça Federal. Seu novo argumento era um ofício da procuradora Analúcia Hartmann para o Ministério Público Estadual; o conteúdo desse documento foi apresentado de forma distorcida e gerou uma reviravolta no caso. A procuradora da República tinha repassado ao MPE a responsabilidade de um projeto de arborização dos moradores da Rua Angra dos Reis para conter o avanço das dunas dos Ingleses. Essa via está a 300 metros da Favela do Siri, também chamada de Vila Arvoredo, cujas ocupações irregulares ficam sobre o trecho norte do campo de areia. O procurador do estado de SC disse, porém, que a rua fazia parte da favela (o que não é verdade) que contamina o Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho. Por ter uma porosidade grande, as dunas compõem a principal área de recarga do aqüífero e são, ao mesmo tempo, altamente vulneráveis à contaminação. No caso da Favela de Siri, essa poluição ocorreria de fato, embora ainda não seja mensurável. Sem saneamento, os 800 moradores da localidade utilizam caixas d’água ou geladeiras velhas 2 como fossas, mas isso não impede que os resíduos sejam absorvidos pela areia. A tática do governo de Santa Catarina foi a seguinte: se a procuradora se absteve de analisar um projeto da Rua Angra dos Reis e se essa rua fazia parte de uma favela que poluía o aqüífero, portanto o Ministério Público Federal havia expressado não ter interesse na favela. “Esse documento foi concedido pela CostãoVille”, revela Analúcia. “Como é que tiveram acesso a esse documento e coragem de deturpá­lo?”, acusa. O julgamento do recurso ocorreu em 13 de dezembro de 2006. Diante da distorção apresentada, o relator e desembargador Edgard Lippmann Jr. concluiu que o MPF não tinha legitimidade para atuar contra o Costão Golf, acusado de utilizar produtos que poderiam 1 De 26 de novembro de 2006. GAZZONI, Marina Teixeira. Chão de ar eia: Retr ato social, político e ambient al da ocupação das dunas dos Ingleses na Vila do Ar vor edo. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Jornalismo) – Curso de Jornalismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. O trabalho pode ser conferido em: < http://www.cotidiano.ufsc.br/cotidiano/admin/pdf/28.09.07/tccchao.pdf>. Acesso em: 12 março 2008.
2 113 causar contaminação, já que a instituição tinha se isentado de agir em caso idêntico, o da favela que está a apenas dois quilômetros do empreendimento e poluiria o mesmo manancial. Logo, o desembargador reconheceu a incompetência da Justiça Federal para julgar o caso e determinou sua transferência para a corte estadual, que deveria confirmar ou não a liminar que paralisou as obras. O segundo dos três desembargadores, Valdemar Capeletti, acompanhou o voto do relator e selou a mudança. A sessão foi interrompida pelo terceiro juiz, Márcio Antônio Rocha, que pediu vista do processo. Rocha lembrou que apenas o Ibama foi notificado sobre a votação do recurso do estado de SC; sem ser avisado, o MPF não pôde se defender. “O procurador­regional não recebeu o prazo”, confirma a procuradora Analúcia. Diante do placar adverso, ela criticou a acusação distorcida em manifestação judicial de março de 2007. “Foram utilizados argumentos e peças visando confundir os desembargadores federais.” A procuradora acrescentou que a competência não deveria mudar porque há interesse federal na proteção da zona costeira e bens da União (terras de marinha, praia e mar). O TRF recomeçou a sessão em 11 de abril de 2007. Apesar dos protestos da procuradora da República, os juízes Lippmann Jr. e Capeletti mantiveram os votos, enquanto Márcio Antônio Rocha levou em conta os argumentos dela. “O MPF não se mostra omisso, como fez parecer a manifestação do estado de Santa Catarina, em relação a defesa do aqüífero e os possíveis danos causados pela chamada Favela do Siri”, esclareceu Rocha. “Houve má compreensão das finalidades do oficio, pois o que de real existe sobre a atuação do Ministério Público Federal no local é, justamente, ações protetoras, aviadas [executadas] através de ação civil pública 1 buscando a desocupação da área.” O desembargador Rocha declarou que a retirada da Ilha de Santa Catarina do domínio da União não afeta os mecanismos legais de preservação. A discussão sobre a propriedade da Ilha e do aqüífero só tinha relação com patrimônio, mas não com a matéria ambiental, que era a única questão do processo. “O meio ambiente se constitui em direito social, difuso, não apresentando titular específico. O que vale é a necessidade da solução harmônica das questões ambientais, segundo as diretrizes nacionais”, declarou. Para ele, o Costão Golf está claramente em área de zona costeira, patrimônio nacional definido 2 como o “espaço geográfico de interação do ar, do mar e da terra, incluindo seus recursos renováveis ou não, abrangendo uma faixa marítima e uma faixa terrestre”. Os trechos 1 Mais comentários sobre essa ação em: <http://deolhonacapital.blogspot.com/2008/03/entrevisto­trecho.html>. Acesso em: 19 março 2008. 2 De acordo com o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (Decreto Federal 5.300/04), que regulamenta a Lei federal nº 7.661/88.
114 dos municípios onde ocorre essa interação devem ser considerados, em termos de zoneamento ambiental, como zona costeira – isso evidenciaria a diferença entre os conceitos de propriedade e meio ambiente. “Inegavelmente o aqüífero depende dessa interação, pois sendo recurso hídrico em tese finito, a sua renovação depende da preservação do equilíbrio da zona costeira. Como recurso natural, está abrangido 1 pela zona de especial proteção ambiental”, prosseguiu Rocha, achando perigoso impedir a União e os seus órgãos de fiscalização de participar de assuntos ligados à extensa área costeira do país. “Com esse olhar, não se pode negar a existência de interesse federal na adoção de precauções em empreendimento [o Costão Golf] que, pela proximidade, coloque dúvidas sobre possíveis contaminações do aqüífero, inegavelmente localizado no subterrâneo da zona costeira legalmente definida.” O voto dele 2 , portanto, foi contra a mudança de foro porque existia interesse federal na causa do aqüífero, representado pelo MPF e pelo Ibama. Como os outros desembargadores não mudaram de opinião, o placar ficou 2 a 1 e o caso do Costão Golf deveria ir para a Justiça Estadual. A decisão foi divulgada nos jornais catarinenses, mas nenhuma palavra foi publicada ou veiculada sobre os esclarecimentos do desembargador Márcio Antônio Rocha e o documento que forjou a ausência de interesse do Ministério Público Federal na favela que simboliza o crescimento descontrolado de Florianópolis. A ilha que afunda Do topo das dunas dos Ingleses, Glauceli Ramos Branco, a Galega, não sente o frio da areia que pisa descalça e da brisa de fim de tarde de outono que bate no rosto. Natural de Lages, cidade do planalto catarinense, essa mulher morena de cabelos levemente claros está acostumada com baixas temperaturas. O que a incomoda mesmo é a areia que o vento sempre sopra. “É ela que está invadindo o lugar”, responde quando fala sobre uma das ocupações irregulares mais famosas de Florianópolis: a Favela do Siri. Para comprovar sua versão, aponta para baixo, onde a vegetação plantada não conteve a fúria das areias e não poupou uma casa. Quando Galega veio com a família para 1 De acordo com o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (Decreto Federal 5.300/04), que regulamenta a Lei federal nº 7.661/88. 2 A íntegra do voto do desembargador Márcio Antônio Rocha pode ser conferida em: <http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/visualizar_documento_gedpro.php?local=trf4&documento=1527433&ha sh=d89432a305416f88ff57ef77b83bc951>. Acesso em: 12 março 2008.
115 Florianópolis em 1997, a favela ainda não tinha inchado. “A ocupação desordenada é mais recente”, relata ela, que atualmente é presidente da associação dos moradores. Hoje, 800 pessoas vivem na localidade, uma mistura de vários barracos, casas de madeira e algumas de alvenaria.
O trajeto até a favela não começa por vielas e morros, mas pela pavimentada Rua do Siri, que avança por uma faixa de vegetação de restinga e tem residências de classe média, com jardins arrumados e cercas elétricas. Depois dos 200 metros iniciais, tudo o que está à esquerda da rua pode ser considerado ocupação irregular sobre espaços antigos ou atuais das dunas móveis, em uma área semelhante à metade de um triângulo. Na maior parte dessa área há casas de alvenaria, resultado de um processo que começou nos anos 80. “A extração ilegal de areia para fins comerciais abriu caminho para os loteamentos clandestinos de classe média e a pavimentação de ruas em locais onde originalmente estavam as dunas. Já a população carente foi para terrenos onde ainda existia areia, construiu seus barracos e formou a comunidade da Vila Arvoredo [outro nome da Favela do Siri]”, explica Marina Gazzoni, em trabalho de conclusão 1 do Curso de Jornalismo da UFSC, realizado em 2007. Embora os casebres estejam apenas na ponta desse triângulo, somente a Favela do Siri recebe críticas por ocupar áreas de preservação permanente (APP). Com a polêmica do Costão Golf, tornou­se o alvo preferido dos defensores do empreendimento. Enquanto o condomínio é apontado por eles como sinônimo de desenvolvimento sustentável e proteção ambiental, a favela virou mau exemplo e até alvo de denúncia por causa da organização não­ governamental Luzes da Ilha, compostas por moradores da localidade. Na audiência de 9 de fevereiro de 2006, o juiz federal substituto Jurandi Pinheiro autorizou a entrada da Luzes da Ilha na parte de acusação (pólo ativo) do processo judicial contra o Costão Golf. Cinco meses depois, a ONG solicitou ao Ministério Público Federal uma inspeção na área do condomínio para checar o descumprimento do embargo – entre as testemunhas, estavam Galega, sócia da organização Luzes da Ilha, e a presidente Luzanídia Ribeiro D’Ávila 2 . O MPF denunciou o problema à Justiça, a Polícia Federal confirmou a continuidade das obras e o empreendimento foi multado em R$ 200 mil. 1 GAZZONI, Marina Teixeira. Chão de ar eia: Retr ato social, político e ambient al da ocupação das dunas dos Ingleses na Vila do Ar vor edo. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Jornalismo) – Curso de Jornalismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. O trabalho pode ser conferido em: < http://www.cotidiano.ufsc.br/cotidiano/admin/pdf/28.09.07/tccchao.pdf>. Acesso em: 12 março 2008. 2 Luzanídia participou da audiência de 5 de outubro de 2005, na qual Fernando Marcondes tentou impedir a participação de integrantes dos movimentos sociais. As declarações dela estão no Capítulo 4, p. 76.
116 No entanto, o jornal Ilha Capital, do Rio Vermelho, contestou a legitimidade da Luzes da Ilha para atuar no caso do Costão Golf. “A Luzes da Ilha é uma oscip de araque, que incorporou de forma fraudulenta à sua denominação a sigla de organização da sociedade civil de interesse público. A sigla identifica uma qualificação concedida exclusivamente pelo Ministério da Justiça”, acusou a redatora Maria Aparecida Nery 1 , alegando que a ONG registrou formalmente, em dois anos e meio de existência, apenas a ata de constituição, o estatuto e a inscrição no CNPJ. “Sem executar um só projeto em cumprimento aos objetivos estatutários, entre os quais não se inclui a proteção ao meio ambiente, a ONG de fachada e OSCIP de araque deixa como espólio uma procuração dentro da ação contra o Costão Golf. Que ambientalismo é esse?”, questionou a redatora, que, porém, não entrevistou Luzanídia D’Ávila, presidente da Luzes da Ilha – também conhecida como Nika, a dirigente teria se mudado para Porto Alegre no começo de 2007 por motivos desconhecidos e levado todos os documentos da organização. Marcio Porto, integrante do Conselho Comunitário dos Ingleses, avisa que é preciso observar com cuidado as matérias do Ilha Capital, que é a favor do Costão Golf e sofreria influências do empresário Fernando Marcondes. “Os assuntos do jornal não são interesses comunitários, mas exercem grande força sobre a comunidade”, aponta. A política editorial da publicação é defender os grandes empreendimentos na Ilha, que seriam prejudicados por movimentos ideológicos e “forças do atraso”, e criticar as ocupações irregulares espalhadas pela cidade. Números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o número de habitantes em Florianópolis subiu mais de 100% entre 1980 e 2007, passando de 188 mil para mais de 400 mil – no mesmo período, a população do Brasil aumentou aproximadamente 58% 2 . O Sindicato das Indústrias da Construção Civil alerta, contudo, que 16% desses moradores vivem em 64 áreas carentes na Ilha e na parte continental. Elaborado pelo Centro de Centro de Estudos Cultura e Cidadania (Cecca), o livro Uma cidade numa ilha relata que dois fluxos de imigração a Florianópolis 3 iniciaram a partir dos anos 70. O primeiro foi de pessoas de classe média, estimuladas pela implantação da UFSC e de empresas estatais, enquanto o outro era composto por famílias pobres, vindas de áreas 1 NERY, Maria Aparecida. Uma grande farsa contra o Costão Golf. Ilha Capital, Florianópolis, nov. 2007. Disponível em: <www.ilhacap.com.br>. Acesso em: 13 março 2008. 2 BIONDI, Antonio. Crescimento e turismo desordenados ameaçam encantos de Floripa. Site UOL, 25 jan. 2008. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/01/25/ult23u1032.jhtm>. Acesso em: 19 março 2008. 3 CENTRO DE ESTUDOS CULTURA E CIDADANIA. Fundação Nacional do Meio Ambiente e Ministério do Meio Ambiente. Uma cidade numa ilha: relatório sobre os problemas sócio­ambientais da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Insular; CECCA, 1997. 103 p.
117 agrícolas e urbanas em péssimas condições. No caso da Favela do Siri, 85% dos moradores são imigrantes do interior de Santa Catarina e de estados como Paraná e Rio Grande do Sul 1 . Os imigrantes de baixa renda foram atraídos pelas possibilidades de acesso e melhoria de vida na capital, através da oferta de emprego na construção civil e no comércio. “Para esta população não foi criada a infra­estrutura urbana necessária, tendo ela mesma que se localizar o mais perto possível do emprego e dos equipamentos urbanos”, explicam os autores do livro 2 . Sem políticas habitacionais e controle do poder público, áreas de periferia urbana e favelas multiplicaram­se pela cidade. Além dos problemas sociais, essa ocupação descontrolada é grave por causa da diversidade de ecossistemas da Ilha de Santa Catarina, que corresponde a 97% do território de Florianópolis e tem 42% de sua área tombada como APP, conforme dados do Ipuf. Com a falta de espaço em áreas legais, essas famílias acabaram ocupando ambientes frágeis como florestas de morros, manguezais e dunas, sem condições adequadas de vida. De acordo com a obra do Cecca, a migração de pobres é vista na cidade como fonte de desordem e violência, enquanto a de outras classes sociais é encarada como progresso e desenvolvimento. “No entanto, está claro em Florianópolis e, em particular, na Ilha, que, do ponto de vista do meio ambiente, são as classes médias e altas que mais têm contribuído para a destruição e a alteração dos equilíbrios no espaço natural. Seja pela construção de suas residências, desobedecendo à legislação que protege o meio ambiente e regula o ordenamento do território, ou criando uma demanda cada vez maior de um tipo de ocupação profundamente predatória e mercantilista.” 3 Para a procuradora Analúcia Hartmann 4 , a ocupação de áreas de preservação por famílias pobres é uma das causas principais dos problemas ambientais na cidade; a outra são os empreendimentos turísticos, imobiliários e comerciais voltados para as elites. A partir desta visão, pode­se supor que seriam dois lados de uma moeda, questões que se completam e refletem uma mesma situação. 1 GAZZONI, Marina Teixeira. Chão de ar eia: Retr ato social, político e ambient al da ocupação das dunas dos Ingleses na Vila do Ar vor edo. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Jornalismo) – Curso de Jornalismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. O trabalho pode ser conferido em: < http://www.cotidiano.ufsc.br/cotidiano/admin/pdf/28.09.07/tccchao.pdf>. Acesso em: 12 março 2008. 2 CENTRO DE ESTUDOS CULTURA E CIDADANIA. Fundação Nacional do Meio Ambiente e Ministério do Meio Ambiente. Uma cidade numa ilha: relatório sobre os problemas sócio­ambientais da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Insular; CECCA, 1997. 170 p. 3 Ibidem, p. 114. 4 MOSIMANN, Rogério de Souza. Implicações da Inter net nos J or nais e a Pr esença da RBS na Web. 257 f. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Pós­graduação em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.
118 O governador Luiz Henrique (PMDB), entretanto, tem uma visão antagônica: os grandes empreendimentos não são problema, mas solução para que Florianópolis se desenvolva com sustentabilidade e respeito à natureza. Ele aponta o turismo como o motor desse desenvolvimento, através da construção de marinas, campos de golfe e resorts de bandeiras internacionais para trazer turistas ricos e mais dinheiro à cidade. Em entrevista à TV Barriga Verde em abril de 2007, Luiz Henrique defendeu esses grandes empreendimentos e criticou furiosamente as restrições ambientais que atrapalhariam os projetos na Ilha. Ele deixou essa posição bem clara ao citar o caso do Costão Golf: “E a Favela do Siri? Do lado do campo de golfe que não querem deixar o Fernando Marcondes fazer. Por que não se proíbe a proliferação de favelas que jogam, me permita a expressão irada, cocô na praia para provocar doenças nas nossas crianças! Por que não se atua nisso aí para impedir? A favela pode poluir a praia 1 ! Agora o campo de golfe para atrair turista e gerar emprego e renda não pode”. 2 A procuradora federal Analúcia Hartmann critica a visão do governador: “O governo estadual pode entrar com uma ação contra a favela. Ocupação clandestina é atribuição do estado e do município, assim como capacidade de planejamento e poder de polícia”. Em 1999, o Ministério Público Federal cobrou da prefeitura, dos órgãos ambientais e da União uma atitude em relação à Favela do Siri; em 2006, o procurador da República Walmor Alves Moreira ingressou com uma ação civil pública, assim como o MPE 3 . O governo catarinense, porém, prefere se mexer a favor dos empresários. “A sociedade catarinense tem que decidir se quer desenvolvimento ou favelamento. Precisa refletir se deseja mais favelas do Siri ou hotéis de bandeiras internacionais que gerem empregos e melhorem a vida das famílias”, declarou o governador Luiz Henrique 4 , um dia após a maior operação da Polícia Federal contra corrupção ambiental em Florianópolis, em Santa Catarina, e, para alguns comentaristas políticos, no Brasil. *** 1 Supõe­se que ele, na verdade, quis se referir ao Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho. A entrevista pode ser vista em: <http://video.google.com/videoplay?docid=­8286208201407673708>. Acesso em: 14 março 2008. 3 GAZZONI, Marina Teixeira. Chão de ar eia: Retr ato social, político e ambient al da ocupação das dunas dos Ingleses na Vila do Ar vor edo. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Jornalismo) – Curso de Jornalismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. O trabalho pode ser conferido em: < http://www.cotidiano.ufsc.br/cotidiano/admin/pdf/28.09.07/tccchao.pdf>. Acesso em: 12 março 2008. 4 Informação obtida na coluna de Moacir Pereira, da edição de 5 de maio de 2007 do Diário Catarinense.
2 119 Epílogo: A pr isão de Mar condes e a inaugur ação do Costão Golf Eram seis e meia da manhã chuvosa de 3 de maio de 2007 quando Fernando Marcondes de Mattos terminou de correr pela praia. Ao retornar ao Costão do Santinho, o segurança avisou: “A Polícia Federal está lá em cima”. De calção e totalmente encharcado de suor, o empresário foi falar com os policiais e descobriu que vieram prendê­lo. Surpreso, pediu e teve permissão para tomar banho, fazer a barba e trocar de roupa. Sob os olhares dos funcionários, um dos maiores empresários de Santa Catarina voltou constrangido do seu apartamento, prestes a ser levado para a sede da PF em Florianópolis, na Avenida Beira­Mar Norte. 1 A Justiça Federal exigiu a prisão preventiva de Marcondes com base em conversas telefônicas entre o empresário e André Luiz Dadam, ex­coordenador regional da Fatma, que também foi detido. De acordo com Julia Vergara 2 , delegada responsável pelo caso, o Marcondes queria alterar uma portaria do órgão estadual e livrar­se da exigência de EIA/RIMA para o novo empreendimento dele, o conjunto residencial Vilas do Santinho I. André Dadam teria ajudado Marcondes e, em troca, recebera dinheiro para sua campanha a deputado estadual. O juiz federal substituto Zenildo Bodnar, da Vara Ambiental de Florianópolis, afirmou em relatório que “é surpreendente a sua influência [a de Marcondes] e o poder de pressão que exerce na esfera estadual e no órgão de licenciamento [Fatma ]”. Além de Marcondes e Dadam, o juiz decretou a prisão temporária de outras 22 pessoas, a pedido da Polícia Federal. Entre elas, havia outros empresários, três secretários municipais, funcionários públicos e dois vereadores. Todos foram acusados de se envolver na negociação de licenças ambientais, alvarás, mudanças de zoneamento e atos administrativos que teria beneficiado 28 empreendimentos em áreas de preservação da Ilha – o Costão Golf não estava nessa lista. Por estar relacionada a casos de corrupção ambiental, a PF batizou a investigação de Operação Moeda Verde. “É a maior do gênero na área deflagrada no Brasil”, declarou Moacir Pereira 3 , colunista do Diário Catarinense, sobre a operação, que teve repercussão nos principais veículos de comunicação do Brasil, incluindo o Jornal Nacional, da Rede Globo. 1 As informações deste parágrafo foram obtidas em: MATTOS, Fernando Marcondes de. “Estou revoltado e com pesar pelo Brasil”. IstoéDinheir o, São Paulo, n. 504, 23 mai. 2007. Entrevista concedida a Adriana Nicacio. 2 JURGENFELD, Vanessa. Dono de resort diz que prisão foi "grande equívoco". Valor Econômico, São Paulo, 8 mai. 2007. 3 Na coluna de 4 de maio de 2007 do Diário Catarinense.
120 A Operação Moeda Verde abalou Florianópolis porque foi a primeira vez na cidade que autoridades e funcionários públicos foram presos por suspeita de cometer crimes relacionados a licenciamentos ambientais e mudanças do plano diretor. “Era comum ouvir reclamações, comentários e até denúncias que não evoluíam”, escreveu o jornalista Paulo Alceu em sua coluna 1 . “As histórias acabavam criando o seguinte cenário: Você ia iniciar uma obra em Florianópolis. Encaminhava os pedidos de licenças aos órgãos competentes. Um deles sentava em cima da solicitação. Daí entrava em cena um vereador por amizade, aproximação, apresentação. Dava­se início ao tráfico de influência”, detalhou Paulo Alceu 2 . As investigações começaram em maio de 2006, quando o Ministério Público Federal recebeu denúncias de supostas irregularidades na licença concedida pela Fatma para a construção do resort Il Campanario, do grupo imobiliário Habitasul, em Jurerê Internacional. A PF começou a fazer escutas telefônicas a partir de 27 de julho 3 . A partir do Il Campanario, os agentes federais começaram a investigar outros empreendimentos e grampearam 150 mil conversas telefônicas em nove meses de inquérito. Os policiais descobriram a existência de um esquema no qual empreendedores corrompiam funcionários de órgãos ambientais da cidade e do estado (Floram e Fatma) para obter licenças irregulares e escapar das restrições da legislação. Quando o projeto não era compatível com os planos diretores de Florianópolis 4 , alguns vereadores seriam cooptados para aprovar alterações que permitissem a obra. Essa troca de favores incluiria o pagamento de propinas e o uso de carros de luxo. Na operação de 3 de maio de 2007, 170 polícias federais das divisões de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul cumpriram 22 mandados de prisões e outros 30 de busca e apreensão em órgãos públicos, empresas e residências. Os agentes levaram para a sede da PF em torno de R$ 1 milhão, 30 malotes com documentos e oito automóveis de luxo, como um Audi A3, uma Mercedes e duas Cherokee. A chuva tinha parado quando Fernando Marcondes chegou à sede da Polícia Federal. Ele trazia uma mala de couro marrom, sem saber ainda que a prisão poderia durar até cinco 1 Paulo Alceu apresenta atualmente o programa RIC Notícias, da Rede Independência de Comunicação, grupo catarinense filiado à Rede Record. Essas informações da Operação Moeda Verde estão disponível em: <http://www.pauloalceu.com.br/conteudo.php?pagina=conteudo_l&area=pa_conteudo&data=2007­05­05.>. Acesso em: 19 março 2008. 2 Ibidem. 3 Como todos os agentes da área ambiental da Polícia Federal estavam envolvidos na investigação do Il Campanário em julho e agosto de 2006, eles levaram um mês para realizar a inspeção que flagrou o desrespeito ao embargo no Costão Golf no fim de agosto desse mesmo ano. Ver Capítulo 5, A cidade dividida . 4 Existem dois: o do distrito­sede (1997) e dos balneários e do interior da Ilha de Santa Catarina (1985).
121 dias e ser prorrogada, sem saber quanto tempo ficaria. Assim que entrou no prédio, foi prestar depoimento; em cinco horas, respondeu a 90 perguntas sobre o conteúdo das gravações telefônicas 1 . Enquanto isso, a notícia da Operação Moeda Verde era rapidamente espalhada pela cidade. Os acusados desembarcavam dos camburões sob os flashes de fotógrafos, câmaras de televisão e ao som de buzinas de motoristas que apoiavam a atuação da PF. Outros ainda não tinham sido presos, como os vereadores Marcílio Ávila (então do PMDB), que presidia a Santur 2 e se encontrava em Buenos Aires, capital da Argentina, e Juarez Silveira (eleito pelo PTB, mas sem partido na época), apontado como o chefe do esquema 3 . Após ser ouvido, Fernando Marcondes ficou preso por 36 horas e foi liberado na noite de 4 de maio. Na mesma noite, o governador Luiz Henrique da Silveira (PMBD) participava da cerimônia de 172 anos da Polícia Militar, na qual se manifestou publicamente sobre a Operação Moeda Verde pela primeira vez para defender Marcondes e outros empresários presos. Na cerimônia, Luiz Henrique classificou a operação da PF de “pirotecnia federal”, por causa das prisões que ganharam ampla cobertura da imprensa, e criticou a condenação pública contra os empresários 4 . O governador também enfatizou que continuaria lutando por novos empreendimentos de alto nível na Ilha. “Há ações que aumentam a insegurança jurídica. Assim, ninguém vai mais querer investir em Santa Catarina. Não podemos condenar Florianópolis ao atraso”, alarmou 5 . A assessoria de imprensa da Polícia Federal respondeu que não houve “espetáculo” e a presença da mídia foi igual a de outras operações. “A diferença é que, desta vez, os envolvidos são pessoas conhecidas. Se fosse um ‘joão’ qualquer, a avaliação seria outra”, rebateu a assessora Ídia Assunção. Na tarde ensolarada de sábado, dia 5 de maio de 2007, cerca de 50 pessoas foram apoiar e aplaudir a operação em frente à sede da PF 6 . Elas levaram apitos, mudas de flores com os nomes dos suspeitos e cartazes com diferentes mensagens, como “Marcondes de Mattos tem costão quente”, em alusão ao fato de o empresário ter sido solto rapidamente e 1 PEREIRA, Felipe. Advogado nega a compra de licenças. Diár io Catar inense, Florianópolis, 7 mai. 2007. Órgão Oficial de Turismo do Estado de Santa Catarina. 3 O QUE dizem os relatórios da PF. A Notícia, Joinville, 31 mai. 2007. 4 De acordo com o articulista Cláudio Prisco Paraíso, em edição de 6 maio de 2007 do A Notícia , foram presos os empresários responsáveis pelos três maiores empreendimentos de Florianópolis, em lazer e turismo, que gerariam cerca de 5 mil empregos diretos na cidade: Fernando Marcondes, do Costão do Santinho, Paulo Cézar Maciel da Silva, dono do Shopping Iguatemi, e Péricles Druck, presidente do grupo Habitasul. 5 Essa declaração foi publicada por Moacir Pereira, na coluna de 5 de maio de 2007, no Diário Catarinense. 6 Imagens disponíveis em: <http://br.youtube.com/watch?v=J2fRdUSkgV0>. Acesso em: 13 março 2008.
2 122 como um trocadilho com o nome dos empreendimentos dele, o Costão do Santinho e o Costão Golf. No domingo, Marcondes passou em frente à sede da PF, mas dessa vez para ir jantar na casa oficial do governador Luiz Henrique, que fica a poucos metros dali. “O governador me convidou porque ficou bastante preocupado com o meu emocional”, disse o empresário 1 , que concedeu uma entrevista coletiva no Costão do Santinho no dia seguinte, 7 de maio, para refutar as acusações de corrupção no licenciamento do Vilas do Santinho Costão Residence I. Lançado em dezembro de 2006, o projeto imobiliário de R$ 25 milhões da CostãoVille terá 124 apartamentos, com preços entre R$ 270 mil (um dormitório) a R$ 1,5 milhão (cobertura com três dormitórios) 2 . O empreendimento fica em frente à Praia do Santinho, a 400 metros do Costão do Santinho, e Marcondes planeja lançar a primeira das cinco vilas no fim de 2008. Para fazer a obra, o empresário teve de superar a questão da água. Uma portaria da Fatma 3 não permitia o licenciamento de novos projetos de qualquer porte na região dos Ingleses por causa do aqüífero, baseada na recomendação do Ministério Público Estadual de 2005 4 . O objetivo era proteger o Aqüífero Ingleses­Rio Vermelho e evitar o aumento exagerado do consumo. Em sua autobiografia, Marcondes diz que o manancial é uma “dádiva da natureza” e “sua preservação é uma necessidade incontestável” 5 . No entanto, pelo o que a polícia apurou nos grampos, conclui­se que essa posição só vale quando os negócios dele não estão em jogo. A medida de proteção era um problema para o empresário, pois impedia a construção do Vilas do Santinho I. A solução para resolvê­lo chamava­se André Dadam. Dadam tinha saído de seu cargo comissionado de coordenador­regional da Fatma em março de 2006, depois de três anos na função, para disputar uma vaga de deputado estadual. Ex­vereador de Tijucas, cidade da Grande Florianópolis, ele já tinha participado das eleições em 2002, quando obteve apenas 0,14% dos votos válidos e ficou em 134ª posição. Apesar de ter se desligado do cargo, Dadam foi acusado pela Polícia Federal de continuar agindo junto à Fatma, para arranjar favores a empresários. Em 28 de julho de 2006, Marcondes telefonou para Dadam, que tinha comandado as análises sobre o Costão Golf dois 1 TORTATO, Mari. Governador de SC convida para jantar empresário preso em operação da PF. Agência Folha, Florianópolis, 8 mai. 2007. A reportagem sobre o jantar oferecido pelo governador está disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u91995.shtml>. Acesso em: 19 março 2008. 2 WILKE, Juliana. Vilas do Santinho repete sucesso do resort. Gazeta Mer cantil, São Paulo, 27 fev. 2007. 3 De 7 de abril de 2006. 4 Ver Capítulo 3, A melhor água de Santa Catarina não é infinita , p. 76. 5 MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p., p. 238.
123 anos antes e autorizado a construção. Marcondes falou que estava ajudando na campanha do candidato, mas exigiu uma contrapartida: “Então, meu filho, tô fazendo coisa pra ti. Vê se você faz alguma coisa por mim”. Na seqüência, o empresário revelou que o governador Luiz Henrique interferiu para que a Casan fornecesse água ao Vilas I e pediu ajuda a Dadam na análise da portaria que impedia a realização da obra. – Dadam, aquilo ali merece um trabalho grande nosso, sabe? Porque tá…tá meio difícil! – Então tá. – Temos que ver! – Vou dar uma passadinha lá [na Fatma ] agora – promete Dadam. Em 3 de agosto de 2006, André Dadam ligou para Jânio Wagner Constante, diretor de administração da Fatma. Os dois conversaram sobre necessidade de alterar a portaria e decidiram incluir um tópico favorável a Marcondes. – Então, teria que fazer essa retificação na portaria colocando essa situação, dizendo que nos casos em que a Casan avaliar a obra e constatar que tem capacidade do abastecimento público ser efetuado, então a Fatma poderá licenciar – recomendou Dadam. – Tá legal, Dadam, vou dar uma olhadinha nisso aí – respondeu Jânio Constante. Ouvido por agentes da PF em 15 de agosto de 2007, Constante declarou que a portaria da Fatma não chegou a ser alterada, pois verificou­a após a deflagração da Operação Moeda Verde. Mesmo assim, o Vilas I foi aprovado pela Casan e pela Fatma 1 . Em entrevista ao Ambiente Já 2 sobre a superexploração do aqüífero, Cláudio Floriani Jr., superintendente de meio ambiente da Casan, declarou que a companhia podia descumprir a recomendação do MPE contra novos empreendimentos na região dos Ingleses, mas não tinha interesse de fazer isso. Questionado, então, porque a Casan aceitou fornecer água para o Vilas I, ele alegou que o pedido de viabilidade do projeto foi anterior à recomendação do Ministério Público Estadual. “E eles fizeram uma proposta, não estou defendendo, de expansão gradativa. Para nós, é preferível que o empreendimento seja abastecido pela Casan e controlado, do que ser 1 A Fatma concedeu a Licença Ambiental Prévia (LAP) do Vilas do Santinho I em 15 de dezembro de 2006 e a Licença Ambiental de Instalação (LAI) em 22 de junho de 2007, um mês e meio após a Operação Moeda Verde. 2 FRANÇA, Francis. Crescimento urbano de Florianópolis ignora ameaça ao abastecimento de água. Ambient e J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 19 março 2007. Disponível em: < http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=92159>. Acesso em: 10 março 2008.
124 do jeito que é hoje [no Costão do Santinho ], que eles têm poços e tiram o tanto que querem sem nenhum controle”, justifica Floriani Jr. 1 O Ministério Público Estadual elaborou e divulgou duas recomendações contra o licenciamento de novos empreendimentos na região dos Ingleses: a primeira em fevereiro de 2004, contra projetos de médio e longo porte, e a segunda em março de 2005, contra projetos de qualquer porte. Se o pedido de viabilidade do Vilas do Santinho I foi feito antes de uma das duas recomendações do MPE, essa solicitação ocorreu, no mínimo, antes de março de 2005. Por outro lado, a Casan elaborou um ofício 2 sobre a possibilidade técnica de fornecer água para o Vilas I em 10 de maio de 2006. Ou seja, teria levado mais de um ano para elaborar o parecer, o que parece improvável. Entrevistado pela repórter Francis França em janeiro de 2007 3 , Walmor de Lucca, presidente da Casan, declarou que o abastecimento de condomínios como o Vilas do Santinho I seria possível porque a companhia tinha terminado, em dezembro de 2006, uma obra que forneceria água do continente para dois bairros do norte da Ilha, que deixariam de consumir a água do aqüífero. “Os compromissos que a Casan assumiu [um deles com o Vilas I, em agosto de 2006 ] podem ser cumpridos na medida em que o aqüífero está deixando de abastecer algumas regiões, então essa água está sobrando”, garantiu Walmor de Lucca 4 . Outras gravações telefônicas feitas pela Polícia Federal sobre as suspeitas de corrupção no licenciamento ambiental do Vilas do Santinho I revelam conversas sobre doações feitas pela Inplac, empresa de Marcondes, a André Dadam. Em uma das conversas, o empresário reclama que “a conta está grande lá, amigo, tu tá em débito comigo.” Segundo o site do Tribunal Superior Eleitoral, Dadam recebeu em torno de R$ 10 mil da Inplac, mas a Polícia Federal diz que há indícios de que o valor foi maior. De acordo com o Diário Catarinense5 , Marcondes disse que doou R$ 7 mil em material de campanha, através da Inplac, e pagou uma reunião política ao candidato André Dadam. Nessa reunião, teria aparecido o dobro calculado de pessoas. O comparecimento de 1 FRANÇA, Francis. Crescimento urbano de Florianópolis ignora ameaça ao abastecimento de água. Ambient e J á, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 19 março 2007. Disponível em: < http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=92159>. Acesso em: 10 março 2008. 2 Disponível em: <http://www.cmf.sc.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=1743>. Acesso em: 19 março 2008. 3 FRANÇA, Francis. Aqüífero em Florianópolis está saturado, mas pode abastecer grandes empreendimentos, diz Casan. Ambiente Já, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 9 janeiro 2007. Disponível em: <http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=88852>. Acesso em: 19 março 2008 4 Ibidem. 5 Matéria “Empresário diz que não pagou por licença”, de 8 de maio de 2007.
125 mais gente que o combinado poderia explicar o trecho das conversas em que o empresário falou que o preço da campanha estava ficando alto demais. Em 6 de setembro de 2006, Marcondes comentou com Dadam outra preocupação que atrapalhava os planos do Vilas do Santinho I. – Tu podes fazer alguma coisa? Sobre esse negócio do EIA/RIMA? Pra evitar esse troço? Aí eu não consigo lançar esse ano! – reclamou o empresário – Ahm, ahm! – concordou Dadam. – Imagina, EIA/RIMA com audiência pública, porra, tá louco?! Isso aí é uma loucura total! – É, aí complica tudo, né? – Porra, tá louco, imagina! Esse problema foi perfeitamente resolvido dias depois, em 21 de setembro, pela resolução nº 01/2006 do Conselho Estadual do Meio Ambiente 1 . A primeira resolução do órgão naquele ano determinou que os condomínios residenciais com mais 100 unidades habitacionais e menos de 100 hectares de área (o Vilas I tem 21) não deverão mais apresentar um EIA/RIMA, mas somente um Estudo Ambiental Simplificado (EAS) 2 . As audiências públicas nesses casos deixam de ser obrigatórias, mas podem ser convocadas se o Ministério Público ou pelo menos 50 pessoas solicitarem. Na entrevista coletiva que promoveu três dias após sair da prisão, Marcondes defendeu 3 que o seu novo projeto poderia ser feito apenas com um EAS e disse que nunca pediu favor a André Dadam, mas somente agilidade. “Os empreendedores têm que ter um bom relacionamento, ir até o órgão competente, recorrer a vereadores. Se deixar o processo correr sem procurar interferir, certamente ele não sai. A falta de pessoal faz com que os processos se congestionem”, tentou explicar 4 . Marcondes afirmou que Dadam foi apenas o técnico que analisou a licença ambiental do Costão Golf, trabalho que classificou como excelente. “Eles [a Fatma ] foram muito felizes 1 FRANÇA, Francis. Costão Ville lança novo mega empreendimento na Ilha de Santa Catarina. Ambiente Já, Agência de Notícias Especializadas em Meio Ambiente, Florianópolis, 27 setembro 2006. Disponível em: < http://www.ambienteja.info/2006/ver_cliente.asp?id=84162>. Acesso em: 19 março 2008. 2 Ibidem: “De acordo com o EAS [do Vilas do Santinho I], o empreendimento também pode reduzir a pressão da água em horários de pico e aumentar a possibilidade de falta de água em períodos críticos, como a temporada de verão. O estudo sugere a adoção de medidas de controle de desperdício de água, reuso da água da chuva e utilização de pavimentos permeáveis para não interromper a recarga do lençol freático.” 3 JURGENFELD, Vanessa. Dono de resort diz que prisão foi "grande equívoco". Valor Econômico, São Paulo, 8 mai. 2007. 4 Ibidem.
126 nessa licença, foram zelosos.” O empresário fez uma doação para a candidatura do ex­ coordenador da Fatma 1 por acreditar que “ele poderia ajudar nas questões ambientais” 2 . Em 2007, Marcondes viveu um ano de extremos. Em abril, o governo de Santa Catarina conseguiu mudar o foro da ação civil pública contra o Costão Golf para a Justiça Estadual, mas em maio foi detido pela PF. Tentou ofuscar a repercussão desse fato ao lançar, no começo de junho, a autobiografia, Saga de um visionário3 . O coquetel de autógrafos ocorreu no Costão do Santinho, teve mil convidados, entre os quais o governador Luiz Henrique (PMDB), o ex­senador Jorge Bornhausen (Dem) e oito ex­governadores (sete de SC e um do RS). Outro escândalo, porém, abalou a imagem de Marcondes em julho do mesmo ano. Novas gravações da Polícia Federal revelaram diálogos 4 entre ele, os então vereadores Juarez Silveira (sem partido) e Marcílio Ávila (ex­PMDB), e Dário Berger, prefeito de Florianópolis (PMDB), para elaborar e aprovar a chamada Lei da Hotelaria no segundo semestre de 2006. Segundo o relatório da PF, esse projeto de incentivo ao turismo foi criado especialmente para beneficiar o Costão do Santinho com isenção retroativa de 50% no IPTU e ISS a partir de janeiro de 2001 – o resort teria uma dívida estimada de R$ 3 milhões 5 com o município. As falas de Juarez Silveira nos grampos mostram que Marcondes teria doado, em troca, R$ 500 mil não­declarados para a campanha do irmão de Dário, o deputado federal Djalma Berger, eleito pelo PSDB e hoje no PSB. O empresário negou que tivesse ajudado os Berger e reiterou que defendia estímulos fiscais para proteger a rede hoteleira 6 . A Polícia Federal também acusou Marcílio Ávila, que presidia a Câmara dos Vereadores na época, de acelerar o trâmite do projeto para que ele fosse votado até dezembro e entrasse em vigor já em 2007 – em troca, Ávila teria recebido apoio de Marcondes para ser o novo presidente da Santur, órgão de turismo do governo estadual. A Lei da Hotelaria foi aprovada pelos vereadores em 18 de dezembro de 2006, um dia antes do parecer contrário da Procuradoria da Câmara. 1 Que não se elegeu novamente. TEMOS que ter bom relacionamento, diz dono do Costão do Santinho. Diár io Cat ar inense, 7 mai. 2007. 3 MATTOS, Fernando Marcondes de. Saga de um visionár io. 1. ed. Florianópolis: Edeme, 2007. 507 p. 4 Que podem ser vistos em: <http://www.vieirao.com.br/?p=488>. Acesso em: 19 março 2008. 5 Informação obtida em: <http://www.vieirao.com.br/?p=552>. Acesso em: 13 março 2008. Apesar dessa dívida, a empresa responsável pelo resort, a Santinho Empreendimentos Turísticos, contribuiu com R$ 100 mil para a campanha à reeleição de Luiz Henrique da Silveira. 6 Segundo o relatório da PF, o ex­vereador Michel Curi, que ajudou Juarez Silveira na elaboração da Lei da Hotelaria, declarou em depoimento que Marcondes resistia à idéia de aceitar a extensão dos incentivos da lei às micro, médias e pequenas empresas.
2 127 Ameaçado de sofrer processo por calúnia e difamação, Juarez Silveira negou ter dito que Marcondes doara R$ 500 mil à campanha de Djalma Berger, em depoimento à PF em 17 de julho de 2007. “Só que na Câmara, o comentário era como Silveira vai negar as gravações telefônicas da Polícia Federal onde afirmava que houve sim negociação, e reclamava...”, destacou o analista político Paulo Alceu em seu site1 . Sancionada pelo prefeito Dário Berger em 4 de abril de 2007, a Lei da Hotelaria não chegou a entrar em vigor porque não foi regulamentada. Em agosto, depois que as gravações foram reveladas, o Tribunal de Justiça de SC considerou inconstitucionais por completo os artigos 4º e 6º, “que permitiam aos empresários inscritos na dívida ativa (processados pela Prefeitura por não pagar impostos) que obtivessem o perdão de até 50% desses débitos, desde que desistissem de ações na Justiça e comprovassem investimentos feitos a partir de 2001” 2 . A PF finalizou os trabalhos da Operação Moeda Verde em outubro de 2007 e indiciou 54 pessoas, entre os quais estavam Fernando Marcondes, o prefeito Dário Berger, dois vereadores e nove funcionários da Fatma 3 . Depois de 14 meses de investigação, os agentes ouviram 86 depoimentos e acumularam 49 caixas de documentos apreendidos. O inquérito final de 743 páginas foi enviado ao Tribunal Regional Federal de Porto Alegre porque o prefeito Berger, enquadrado em quatro crimes, possui foro privilegiado. Os empreendimentos investigados não foram embargados porque eram alvos de ações criminais e não judiciais. Alguns estão paralisados por causa de ações do Ministério Público Estadual, mas outros prosseguem em andamento, como o Il Campanario, que originou a operação. Até metade de março de 2008, o inquérito permanece sob avaliação dos juízes do TRF. Embora o Costão Golf não esteja na lista dos 28 empreendimentos da Moeda Verde, a procuradora Analúcia Hartmann deixou escapar que “tem coisa específica” sobre o condomínio na investigação da Polícia Federal. Questionada sobre o que seria essa “coisa específica”, ela encerrou o assunto com um sorriso. “Não posso te contar”, disse para mim durante uma entrevista em dezembro de 2007. 1 Disponível em: <www.pauloalceu.com.br/conteudo.php?pagina=conteudo_l&area=pa_conteudo&data=2007­ 08­29>. Acesso em: 19 março 2008. 2 COSTA, Carlito. Parte de lei inconstitucional, diz Tribunal de Justiça. A Notícia, Joinville, 7 ago. 2007. 3 Quatro das seis pessoas que analisaram o Costão Golf estão nessa lista por causa do licenciamento do Il Campanario: André Dadam, o engenheiro sanitarista Alexandre Confúcio Lima, o geólogo Mário Altamiro Viera Alano e a bióloga Marli Joner da Silveira. O diretor Jânio Constante e o ex­coordenador Dadam foram indiciados devido ao caso do Vilas do Santinho I.
128 O empresário Fernando Marcondes foi indiciado por corrupção ativa nos casos do Vilas do Santinho I 1 e da Lei da Hotelaria. Quando o seu nome foi listado no inquérito final, ele afirmou que não tinha mais nada a dizer por considerar a Operação Moeda Verde um assunto superado 2 . Suas atenções estavam voltadas para as obras do Costão Golf, que tinham recomeçado semanas antes, em setembro. Cem operários trabalhavam rapidamente; a estrutura do clube de golfe ficaria pronta em três meses e o campo seria inaugurado em um grande evento. “A procuradora queria que o embargo levasse cinqüenta anos!” O clima é de festa no Costão Golf. O céu azul da manhã de 16 de dezembro de 2007 brilha com a mesma intensidade dos dias anteriores, quando houve o primeiro torneio oficial do clube. Cerca de 400 pessoas vieram prestigiar a inauguração oficial do campo. Algumas circulam com carrinhos de golfe pelo terreno, enquanto outras conversam sob as tendas brancas que foram erguidas para o evento. Pequenas palmeiras enfeitam a entrada e duas moças com camisas e bonés da Peugeot distribuem sorrisos, ao lado de carros da marca francesa. Vasos com orquídeas vermelhas e roxas pendem do teto e balançam com o vento, que faz ranger a estrutura metálica das tendas. Almofadas, tapetes e pufes brancos decoram o ambiente, além de propagandas idílicas do Costão Golf, Costão do Santinho e Vilas do Santinho I. Entre os convidados, estão políticos, empresários, dirigentes de órgãos ligados ao meio ambiente, lideranças comunitárias, jornalistas e artistas. O governador Luiz Henrique e o prefeito Dário Berger vieram, assim como os ex­vereadores Juarez Silveira e Marcílio Ávila, ambos aparecendo pela primeira vez em evento público 3 desde que foram cassados na Câmara por causa da Operação Moeda Verde. No entanto, a grande estrela da festa é a modelo e empresária Luiza Brunet. Todos querem tirar foto ao lado dela, que foi garota propaganda da nova campanha publicitária do Costão Golf, até que Fernando Marcondes de Mattos se prepara para discursar. O empresário veste uma chamativa camisa azul com estampas de flores e abacaxis. Em tom bem humorado, 1 André Dadam foi indiciado por corrupção passiva e advocacia administrativa, crime no qual um funcionário público patrocina interesse privado. 2 CAVALLAZZI, João; PEREIRA, Felipe Pereira; VARGAS, Diogo. Os detalhes do inquérito. Diário Catar inense, 28 out. 2007. 3 Informação colocada pelo jornalista Moacir Pereira em seu blog, em 16 de dezembro de 2007. Disponível em: <http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?source=DYNAMIC,blog.BlogDataServer,getPalavra&template =3948.dwt&section=Blogs&blog=291&coldir=1&busca=1&topo=4023.dwt&pg=1&palavra=cassados>. Acesso em: 19 março 2008.
129 sua esposa Iolanda diz para algumas amigas que ele está usando essa camisa para mostrar que “teve que descascar muitos abacaxis” para implantar o Costão Golf 1 . Depois de declarar que o dia era especial para a CostãoVille e para Florianópolis, Marcondes enfatiza a atividade do golfe no mundo e defende a importância de seu empreendimento na cidade. Aplausos, aplausos e mais aplausos ecoam pelas tendas. O governador Luiz Henrique discursa em seguida e afirma que o Costão Golf vai inaugurar uma “nova fase na vida da cidade”, com turismo de qualidade. O prefeito Dário Berger comemora: “Somos todos vitoriosos. Vencemos as resistências, as adversidades e barreiras de quem não quer a evolução de Florianópolis” 2 . Dois meses depois, no fim de fevereiro de 2008, uma chuva pesada cai sobre a região dos Ingleses. Apesar das tempestades de verão, as obras no Costão Golf estão em ritmo regular; os operários devem terminar toda a infra­estrutura do condomínio (ruas, sistema de energia, comunicação, estação de esgoto) até abril ou, no máximo, maio. A partir dessa conclusão, as primeiras casas poderão ser construídas. A um quilômetro e meio dali, a recepcionista Taissa sorri na entrada do prédio da administração do Costão do Santinho e diz que passará o recado para a secretária Fabiana. Enquanto ela sobe, funcionários circulam pelos corredores, mas não é possível reparar neles e no ambiente por muito tempo. Em menos de dois minutos, Taissa desce e avisa que a entrevista com o “Dr. Marcondes” sobre o Costão Golf já pode ser feita, antes mesmo do horário previamente combinado. A sala de Marcondes fica no primeiro andar, ao lado da escada, com vista para o corredor. Considerado de um dos maiores empresários de Santa Catarina, ele tem uma sala normal, com folhas empilhadas sobre a mesa, livros em prateleiras – a única coisa que se destaca à primeira vista é a pequena estátua de um jogador de golfe. Marcondes está sentado, com os ombros caídos, e parece cansado, um pouco entediado. É um homem de altura mediana. Os grisalhos cabelos estão aparados; o rosto não tem curvas, é quadrado, com queixo saliente e nariz pontudo. A camisa preta que veste pesa no escritório moderadamente iluminado. As venezianas estão puxadas até o fim e a chuva cai escondida lá fora. Sem pedir explicações sobre a entrevista ou fazer comentários sobre assuntos gerais, o empresário começa a responder as primeiras perguntas mecanicamente. 1 Informação colocada pela jornalista Estela Benetti em seu blog, em 16 de dezembro de 2007. Disponível em: < www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?source=DYNAMIC,blog.BlogDataServer,getPalavra&template=3948.d wt&section=Blogs&blog=280&coldir=1&busca=1&topo=4023.dwt&pg=1&palavra=abacaxis>. Acesso em: 19 março 2008. 2 Coluna de Cláudio Prisco Paraíso, edição de 17 de dezembro de 2007 d’A Notícia .
130 As obras vão bem, a freqüência de até 100 jogadores nos torneios mensais é um sucesso, a Licença Ambiental de Operação, que permite a construção das casas, já foi obtida, mas ainda falta o alvará de funcionamento. Tudo respondido sem rodeio, sem excessos. O primeiro assunto que desperta Marcondes é o teleférico, que permaneceu longe das discussões nos últimos três anos por causa das atenções focadas no campo de golfe. Marcondes diz que o projeto do equipamento está em exame e espera obter a aprovação final dele nos próximos meses. O valor da obra ainda não foi definido porque há mais de um projeto sob análise. Em 2004, as dunas pertenciam à União na época do licenciamento ambiental e o empreendimento precisava de um acordo com a Secretaria de Patrimônio para poder utilizar a área pública e o espaço aéreo. O empresário não obteve esse acordo a tempo e a Fatma retirou o teleférico do licenciamento. No ano seguinte, a emenda constitucional retirou a Ilha de Santa Catarina do domínio federal e as dunas passaram a pertencer ao estado de Santa Catarina, de acordo com Marcondes: – A própria secretaria [de Patrimônio da União ] abdicou de qualquer coisa. Então, isso foi resolvido pelo estado, as dunas são do governo do estado de Santa Catarina. – O governo chegou a publicar um decreto em 2006... – Claro, claro, para utilizar, né? O decreto nº 4869 foi publicado em 17 de novembro de 2006 1 pelo então governador Eduardo Pinho Moreira (PMDB), que assumiu o cargo naquele ano depois que Luiz Henrique renunciara para concorrer à reeleição “sem o uso da máquina pública”. A medida permite que CostãoVille instale o teleférico nas dunas, cabendo à empresa conseguir as autorizações ambientais. Depois de fazer perguntas técnicas sobre o equipamento, comento com Marcondes sobre o projeto de conservação do lagartinho­da­praia, espécie ameaçada de extinção que vive nas dunas. Ele parece ficar ligeiramente confuso: – Lagartinho, o que é isso? – pergunta. – O lagartinho­da­praia. É uma espécie ameaçada de extinção que foi encontrada aqui nas dunas dos Ingleses. É uma espécie encontrada no litoral do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. – Sim, mas o que isso tem a ver com o que nós estamos falando? – Com o teleférico. É que eu vi o projeto... 1 Apenas alguns dias após a visita de Luiz Henrique e Marcondes ao Tribunal Regional Federal de Porto Alegre.
131 – Sim, mas o que tem a ver o teleférico com o lagartinho? Respondo que o projeto de conservação do animal cita o Parque das Dunas, mas não cita o teleférico. – Não cita? – Não cita o teleférico. – Ah, mas tá na mesma lei. – Não, mas o projeto... – Que projeto? – pergunta Marcondes outra vez. – O projeto de conservação do lagarto. – Tu sabe que eu não conheço esse projeto. Quem fez esse projeto? – Foram o biólogo Glauco [Fernando Jost] e outro funcionário da Caruso Jr. [o biólogo Ivo Ghizoni Jr.]. – É, não sei. Mas isso não afeta em nada. Se fosse uma estrada...dizer que nós vamos ter quatro, cinco basizinhas [bases das torres do teleférico ], isso não afeta o lagarto em absolutamente nada. O próximo tema é processo judicial contra o Costão Golf. Marcondes desperta mais um pouco. – Que processo tais dizendo? – O processo da ação civil pública. Teve a mudança da competência... – Foi julgada a incompetência da Justiça Federal [em abril de 2007 ] para analisar o processo. E com isso ele se extinguiu, não existe mais o processo. – Mas o Ministério Público Federal entrou com recurso contra essa decisão. – Ah, mas recurso pode entrar. Agora, o processo foi extinto. Hoje, ele está extinto. Pode ser que o Superior Tribunal de Justiça altere alguma coisa, que eu não acredito, mas hoje não existe mais o processo, ele está extinto. O advogado Rodrigo Brisighelli Salles, que preside e representa a entidade ambiental Aliança Nativa na parte de acusação (pólo ativo) da ação civil pública, diz que essa declaração não faz sentido, depois de me ouvir comentá­la durante uma entrevista realizada no começo de março de 2008. “O processo não foi extinto. Tá aguardando o julgamento do recurso especial do Ministério Público Federal e do Ibama [no STJ ].” Salles também esclarece que o processo está parado e a liminar que paralisou as obras do Costão Golf continua valendo. “A decisão [que mudou a competência ] não deu efeito suspensivo [à liminar ].” Ou seja, a CostãoVille não poderia ter reiniciado as obras. “Eles simplesmente não obedecem”, queixa­se o advogado.
132 Por outro lado, Marcondes fala que o embargo já está liberado desde abril, quando houve a decisão do TRF de Porto Alegre. – O embargo caiu então em abril, mas as obras, pelo o que me disseram lá no Costão Golf, só reiniciaram em setembro... – É, porque tem a publicação, tem não sei o que, tem uma processualística lá meio chata. Então nós levamos três, quatro meses até terminar, porque tem que publicar, tem que não sei o que. – tentou desconversar. Pergunto quais foram os prejuízos acumulados em quase dois anos de obras paralisadas. Marcondes desperta de vez. – Dez milhões de reais nós perdemos. Por uma coisa sem – irrita­se e eleva o tom da voz – nenhum fundamento científico! Zero! Zero! Zero! Não é 0,1, é zero, zero! – O senhor acha então que a atuação do Ministério Público Federal... – Irresponsável – a voz falha um pouco – totalmente irresponsável! Não tem fundamento, não tem fundamento. Não quiseram aceitar os pareceres das maiores autoridades do Brasil! Simplesmente isso, não aceitam, um absurdo. O campo de golfe é altamente benéfico para o aqüífero. Os professores [da Hidroplan e da USP ] disseram, não sou eu que estou dizendo isso, tô repetindo, porque aumenta a base, são 220 mil metros quadrados de, de... – recarga... – que vão servir para essa chuva – aponta para a janela – Essa chuva tá entrando no aqüífero. Se fosse casa, vai para a rede pluvial, vai para o mar. Os quatro maiores geólogos de água subterrânea do Brasil fizeram teste, fizeram tudo, até nem queriam fazer! Eles disseram assim “fazer para que”, porque eles já sabiam que era besteira, gastar dinheiro... – O senhor gastou quanto com todos esses estudos, o da UFSC, o da Hidroplan e o da USP? – Ah, meu deus, imagina, nem sei, com advogados e estudo, meu deus, sei lá, dois milhões. Um absurdo. Mesmo com os prejuízos, o empresário garante que não esteve perto de abandonar o projeto. Na seqüência, ele nega que tenha pedido ajuda ao governador Luiz Henrique no processo judicial; quem entrou no caso foi a Procuradoria­Geral do estado de Santa Catarina. – Foi o governador Luiz Henrique que solicitou... – Quem pede isso é a procuradoria do estado 1 – rebate. 1 Em ofício de 29 de dezembro de 2005, o governador Luiz Henrique pediu intervenção da Procuradoria­Geral em casos como o do Costão Golf.
133 – A procuradoria do estado já estava acompanhando o caso? – Claro. – Mas você acha que a participação do governo nesse caso... – Na Justiça não afeta em nada. – Claro, mas politicamente... – É, sei lá. Daqui a pouco é pior. – Você e o governador são amigos há muito tempo? – Somos, há quarenta anos. Daqui a pouco é pior porque aí… – Marcondes pára de falar. – E a viagem que vocês dois fizeram para Porto Alegre, ao TRF? – Sim, ele fez uma visita para alguns amigos e esteve lá no tribunal manifestando a importância do projeto. O projeto é vital para Florianópolis. Quem não pensa isso é porque não sabe das coisas. Nos minutos seguintes, a conversa gira em torno do impacto econômico do Costão Golf para Florianópolis, da possibilidade de expandir o campo de golfe para 18 buracos e da origem do projeto. – Como é que a idéia de se fazer um campo de golfe sobre o aqüífero passou pela sua cabeça na época? – Esse pessoal que trabalha há vinte anos, o Ricardo Agüero e o Angel Reartes [projetistas do Costão Golf], estão cansados de examinar esse assunto [o uso de fertilizantes e agrotóxicos], então me tranqüilizaram completamente. Tudo o que eles disseram os especialistas confirmaram. – Mesmo sendo uma região vulnerável, tendo esses problemas das fossas e da captação descontrolada... – Isso já é velho... – Sim, o aqüífero já estava ameaçado. – Mas nós estamos ajudando e não contribuindo para a degradação. – Mas o senhor não ficou preocupado no começo que poderia prejudicar? – Não, ao contrário. O problema são as fossas mesmo e não ter mais recarga do aqüífero. É casa, é casa, é casa, terreninhos de duzentos, trezentos metros quadrados, aí é problema.
Marcondes não acredita que vá faltar água na região por causa desses problemas porque a Casan estaria bastante atenta e monitoramentos permanentes estariam sendo feitos,
134 inclusive com a ajuda do Costão Golf. Ele admite, porém, que não se pode mais aumentar a captação de água, a Casan vai ter que arrumar água de fora. – Em relação às discussões sobre os riscos, que você disse que não existem, mas para o Ministério Público existem, você não acha que o EIA/RIMA poderia ter sido mais completo, detalhado tudo assim no começo já para eliminar as dúvidas? – Não, eles nunca leram. Nunca leram nada – franze o rosto. – Você tem certeza? – Claro que tenho! – Mas técnicos do Ministério Público Federal chegaram a analisar o estudo. – Nem estudaram. – E a procuradora Analúcia Hartmann me disse que, em várias audiências, ela sugeriu listar as dúvidas sobre o campo de golfe para realizar uma perícia judicial, enquanto vocês do Costão queriam realizar mais estudos... – Ela não queria fazer coisa nenhuma – critica e depois silencia. – Por que não? – Porque ela não queria terminar o projeto. Ela queria que o embargo levasse cinqüenta anos! É isso que ela queria. – Mas nas audiências de conciliação, em nenhum momento... – Nunca quis o acordo! O juiz propôs várias vezes “vamos tentar um acordo”, ela disse que não tem acordo. Esse negócio da perícia judicial teve um encaminhamento, fizemos uma listagem das coisas, aí ela fez outra de 150 coisas, não queria acerto. A perícia judicial à qual Marcondes se refere foi determinada pelo juiz federal substituto Zenildo Bodnar em 2 de outubro de 2006, na mesma decisão que multou o Costão Golf em R$ 200 mil por desrespeitar a paralisação das obras. A CostãoVille tentou utilizar parte desse valor para custear a inspeção judicial, mas Bodnar rejeitou a proposta. O juiz convocou três hidrogeologistas da Universidade Federal do Paraná para garantir que os exames fossem imparciais. “O juiz Zenildo me telefonou para fazer o trabalho de perícia naquela área. Aceitei a incumbência e desde então tenho permanecido aguardando notícias para iniciar os trabalhos. Sequer enviei os custos para a realização dos trabalhos porque não houve seqüência [continuidade]!”, revela um dos especialistas, o doutor Ernani Rosa Filho, por e­mail1 . 1 Enviado em 19 de setembro de 2007.
135 A perícia estava marcada para janeiro de 2007, mas foi suspensa devido à mudança de foro em dezembro do ano anterior, e a multa não chegou a ser paga. A procuradora Analúcia Hartmann reclama que o recurso do governo estadual, de novembro de 2006, coincidiu com a marcação da perícia e a inviabilizou. “Isso demonstra o medo que eles tinham da perícia.” O fim? A procuradora Analúcia Hartmann trabalha em frente ao computador enquanto fala sobre o retorno das obras no Costão Golf. Quando quer esclarecer algo com mais calma, ela pára de digitar. De acordo com Analúcia, a ação civil pública contra o empreendimento está parada, a liminar que paralisa a construção permanece válida até o julgamento de todos os recursos no Superior Tribunal de Justiça e as obras não podiam ter reiniciado. A procuradora da República acredita que esses recursos, com sorte, sejam analisados em fevereiro de 2008 1 . “O julgamento pode levar anos”, adianta. Ela também critica a decisão do Tribunal Regional Federal que passou a competência do processo para o foro estadual. “Esse foi um caso muito especial que passou para o estado. Foi julgado de maneira bem estranha”, comenta, argumentando que houve vários casos semelhantes em que o TRF decidiu que, tendo o MPF na ação, a Justiça Federal deveria julgá­la. Já é dezembro de 2007 e faltam apenas doze dias para a inauguração oficial do campo do Costão Golf, mas Analúcia parece tranqüila. Ela alega que o Ministério Público não agiu contra o reinício da construção porque não recebeu essa informação oficialmente; o MPF precisaria receber isso através de uma denúncia de órgãos estaduais ou da população. “O risco é deles. A Justiça pode mandar derrubar”, acrescenta em relação ao descumprimento do embargo. E a possibilidade de se criar um fato consumado com a continuidade e o término de todas as obras? Para a procuradora, isso é problema do Judiciário. “Nós, do Ministério Público, não trabalhamos com isso. É responsabilidade do Judiciário decidir. Nós achamos que deve e pode demolir.” A CostãoVille planeja terminar, no mínimo, seis casas até o fim de 2008, além da sede social do Costão Golf. Dos 100 lotes a que tem direito, a incorporadora já vendeu 30. A intenção é concluir todo o projeto, incluindo o teleférico e as vilas residenciais dos Altos do Costão Golf, até o fim de 2009. *** 1 No entanto, isso não ocorreu até março de 2008.
136 Refer ências bibliográficas Sobr e o tema CARUSO JUNIOR, Francisco Caruso et al. Estudo de Impacto Ambiental para Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, 2004. Vol. I, 367 p. __________________. Estudo de Impacto Ambiental par a Implantação do Condomínio Residencial Costão Golf, Sítio do Capivari – Distrito de Ingleses do Rio Vermelho. Florianópolis, 2004. Vol. II, 334 p. __________________; STADNIK, Marciel; TREBIEN, Darci. Complementações ao EIA­ RIMA: Estudo de Impacto Ambiental. Florianópolis, ago. 2005. CENTRO DE ESTUDOS CULTURA E CIDADANIA. Fundação Nacional do Meio Ambiente e Ministério do Meio Ambiente. Uma cidade numa ilha: relatório sobre os problemas sócio­ambientais da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Insular; CECCA, 1997. 248 p. FERREIRA, Tânia Márcia Machri. Distrito de Ingleses do Rio Ver melho – Flor ianópolis: um espaço costeiro sob a ação antrópica. 151 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999. GAZZONI, Marina Teixeira. Chão de areia: Retrato social, político e ambiental da ocupação das dunas dos Ingleses na Vila do Ar voredo. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Jornalismo) – Curso de Jornalismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. GUEDES JÚNIOR, Alexandre. Áreas de pr oteção ambiental para poços de abastecimento público em aquíferos costeiros. 185 f. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção) – Programa de Pós­Graduação em Engenharia de Produção, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005. GUIMARÃES, Zoraia Vargas. Os r ecursos hídr icos utilizados para abastecimento populacional e o desenvolvimento ur bano em Flor ianópolis. 178 f.. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999.
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138 Repor tagens de r efer ência LAPIERRE, Dominique; COLLINS, Larry. Esta noite a liber dade. 7. ed. São Paulo: Difel, 1983. 598 p. SÁNCHEZ, Gonzalo. La Patagonia vendida: Los nuevos dueños de la tierra. Buenos Aires: Marea, 2006. 277 p.
139 Apêndice Lista de perguntas enviadas à Casan 1. Área, volume e profundidade média do aqüífero 2. Quando a Casan começou a captar água do aqüífero? Por que outras praias da ilha receberam essa água antes do que Ingleses? 3. Quando a Casan implantou o sistema de abastecimento nos Ingleses? 4. O Sistema Costa Norte atende quantas pessoas nos Ingleses? E no total? 5. Histórico do volume explotado anualmente, nos últimos cinco anos 6. Há quantos poços da Casan nos Ingleses e no Rio Vermelho? 7. Qual a profundidade média dos poços? 8. Quantos poços da Casan têm área de proteção? 9. A ocupação desordenada está prejudicando os poços da Casan? Como? Algum desses poços será fechado? 10. Novos poços serão abertos? Quanto isso custaria para a Casan? 11. Quantos funcionários da Casan trabalham nos Ingleses? 12. Qual é a vazão total (L/s) dos poços atualmente? 13. Qual foi a vazão média anual da Casan nos últimos cinco anos? 14. Qual é a estimativa de desperdício da rede de abastecimento de água? 15. Quais são os principais fatores que provocam esse desperdício? 16. A vazão máxima do aqüífero é de 393 ou 400 L/s? 17. Desde quando a vazão máxima é ultrapassada? 18. A estimativa de poços irregulares continua sendo de 6 mil? Quantos estão desativados? 19. Quais providências estão sendo tomadas contra as ponteiras irregulares? 20. O cadastramento das ponteiras já foi iniciado? Caso não, por quê? 21. O selo de qualidade Casan para o setor hoteleiro já foi criado? 22. A Lei nº 11.445/2007 obriga os cidadãos a utilizarem a rede pública de abastecimento de água e a concessionária cobrar a taxa mesmo se não há utilização do serviço? A Casan está fazendo isso? 23. Qual foi a alteração na recarga do aqüífero depois do estudo feito pela EPT? 24. Qual a estimativa do rebaixamento do aqüífero nos últimos cinco anos, visto que lagoas das dunas e o Rio dos Ingleses não existem mais? 25. Há indícios de salinização em algum ponto do aqüífero? Caso sim, quais? 26. Qual é o plano de expansão da Casan nos Ingleses e no Rio Vermelho? 27. O Costão Golf não se encontra na área de expansão dos poços da Casan? Isso não pode prejudicar os planos da Casan? 28. O Costão Golf tem interesse em se expandir para os terrenos ao sul. Isso não poderia sobrecarregar o abastecimento da Casan e prejudicar a abertura de novos poços? 29. Quais os impactos verificados pela falta de saneamento na região do aqüífero? 30. Há algum ponto do aqüífero com elementos químicos presentes na água que estão acima dos níveis permitidos? Se sim, quais pontos e quais elementos? 31. Quanto a Casan já investiu no saneamento de Ingleses e Rio Vermelho? 32. Quanto custaria a implantação de uma rede de saneamento que atendesse toda a região dos Ingleses e Rio Vermelho? Há projetos? 33. Existe algum programa de preservação do aqüífero sendo elaborado?
140 34. Quais as outras alternativas de abastecimento para o norte da ilha? Quanto custaria? 35. Há projetos de extensão do sistema Pilões no norte da ilha? Custaria quanto? 36. A empresa já capta água do rio Tijucas? Quais cidades e quantas pessoas são abastecidas? 37. Desde quando a Casan comercializa água do aqüífero através de copinhos e garrafas plásticas? Por quê? Isso não prejudica o abastecimento público? 38. Qual foi a quantidade de copinhos e garrafas comercializadas em 2005 e 2006? 39. Qual foi o volume total dos copinhos e das garrafas em 2005 e 2006? 40. Este volume correspondeu a quanto do volume explotado em 2005 e 2006? 41. Quanto a Casan faturou com a venda de copinhos e garrafas em 2005 e 2006? 42. Quais são as estimativas de quantidade, volume e faturamento para 2007? 43. Quanto a Casan faturou com a exploração do aqüífero nos últimos cinco anos? 44. Quanto a Casan investiu nos Ingleses nos últimos cinco anos?
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