capítulo um
Um encontro em Argentia
Quando George Washington escolheu um local para a fundação do novo “Distrito Federal” do país, não foi muito feliz na escolha. De cerca de 160 quilômetros
quadrados de terrenos nas duas margens do rio Potomac, oferecidas por Maryland
e Virginia, o primeiro presidente selecionou o território mais próximo de sua casa
em Mount Vernon — um quadrilátero de pastagens e de pântanos infestados de
malária, situados na maioria no nível do mar, e alguns deles até mesmo abaixo.
Durante os meses de verão, a cidade, batizada em homenagem ao fundador, é tão
quente, úmida e inóspita que foi certa vez classificada como um posto insalubre
pelo Ministério das Relações Exteriores britânico.
Embora Pierre L’Enfant tivesse traçado avenidas majestosas e projetado
magníficos templos de mármore para a capital, Washington tinha, por volta de
1939, muitos quilômetros de desoladas regiões favelizadas habitadas por negros
empobrecidos. De fato, a capital tinha em sua população um terço de negros — e
adotava uma rígida segregação. Na cidade, na qual existiam 15 mil latrinas externas, dificilmente se achava comida que não fosse frita. Os afortunados comiam em
um dos restaurantes da rede Child’s, em que quarenta centavos de dólar pagavam
uma refeição comercial especial composta de vagens com purê de batata e rosbife.
Nos dias úteis, ao pôr do sol, um exército de burocratas federais esgueirava-se da
cidade, em trólebus da Capital Transit, para suas casinhas compradas com hipotecas de cinco mil dólares a juros de 3%, em busca de algum alívio para o calor,
recorrendo a ventiladores Westinghouse pretos que agitavam o ar com suas pás
de bronze. Durante os verões letárgicos da cidade, quem tinha dinheiro suficiente
fugia de vez de Washington.
O domingo 3 de agosto de 1941 encontrou a capital nas garras do calor, com
temperaturas que se elevavam acima dos 32 °C.1 As folhas dos olmos e dos sicômoros
pendiam murchas na névoa úmida. A fedentina dos esgotos a céu aberto permeava
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a cidade, o asfalto derretendo-se em suas amplas avenidas. Alguns nativos da cidade
se dirigiam ao Griffith Stadium, a sede do American League Senators, para assistir a
um jogo de beisebol. O presidente Franklin Delano Roosevelt, num estado a que o
secretário de Interior, Harold Ickes, chamou “de inócua falta de costume”, ficou enfiado
em seu quarto de dormir no segundo andar na Casa Branca. Em maio de 1933, a
Westinghouse tinha instalado aparelhos de ar condicionado nas lareiras de seis dos
quartos do segundo andar. E isso tornou a vida quase tolerável para FDR.
Um Congresso carrancudo debatia os méritos de prorrogar o prazo de convocação ao serviço militar. Poucos “cavernícolas”, como eram conhecidos os autênticos
nativos da cidade, prestaram grande atenção à informação publicada nos jornais
de sua cidade — o Post, o Times-Herald, o Evening Star e o Daily News — de que
Roosevelt havia decidido fugir ao calor do verão e ir pescar no litoral da Nova
Inglaterra, em seu iate de quatrocentas toneladas, o Potomac, ancorado em New
London, Connecticut. Sexto iate presidencial, o Potomac era o antigo Electra, um
cúter da Guarda Costeira dos EUA. FDR tinha mandado colocar blindagem de aço
no casco porque temia que o Sequoia, o iate de madeira de Herbert Hoover, fosse
suscetível a incêndios.
Às dez horas da manhã daquele quente e abafado 3 de agosto, o trem especial
do presidente, o Ferdinand Magellan, parou na Union Station. O vagão presidencial,
construído pela Association of American Railroads, dispunha de dois elevadores
para erguer e baixar a cadeira de rodas do presidente. As janelas eram à prova de
balas, as laterais, de pesada chapa blindada, e o piso tinha concreto reforçado com
aço para defender de bombas colocadas no leito da ferrovia. Soldados armados
de baioneta protegiam cada cabeça-de-ponte no itinerário até New London. O
estranho é que Roosevelt havia mantido em segredo, tanto para a família quanto
para sua equipe da Casa Branca, a excursão de pescaria. Até o Serviço Secreto tinha
sido enganado. De New London, o Potomac seguiu viagem até Point Judith, em
Rhode Island, e daí para a enseada de Martha’s Vineyard. Ao chegar lá, o iate foi
recebido por um flotilha de barcos de guerra dos EUA e Roosevelt foi transferido
para o cruzador pesado Augusta, de 11.500 toneladas e oito polegadas, nau capitânia da frota do Atlântico. O comitê de recepção incluía os almirantes Ernest J.
King e Harold R. Stark e os generais George C. Marshall e Henry H. “Hap” Arnold.
Não foram convidados para a viagem o secretário da Guerra, Henry L. Stimson,
o secretário da Marinha, Frank Knox, e o secretário de Estado, Cordell Hull. O
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veleiro retornou pelo canal de Cape Cod. No convés, para que o vissem todos os
jornalistas, um homem vestido de branco com uma longa piteira entre os dentes.
Na que foi chamada “uma das aventuras secretas mais bem guardadas e surpreendentes da história moderna”,2 FDR tinha se livrado de sua comitiva mais próxima
e se dirigia a todo vapor rumo a baía de Placentia, na Terra Nova. Por fim, havia
chegado a hora de travar conhecimento com Winston S. Churchill — e discutir o
futuro do mundo ocidental.
Embora a idéia de um encontro Roosevelt-Churchill tivesse sido debatida durante meses nas duas capitais, a causa imediata do encontro na baía de Placentia
foi a invasão alemã à União Soviética em junho de 1941. Churchill tinha prevenido
Joseph Stalin de que Hitler estava prestes a esfaqueá-lo pelas costas, mas o líder
soviético não tinha feito nada para preparar seus militares para o assalto. O ataque
veio como surpresa estratégica. Nos longos dias do final de julho no Hemisfério
Norte, os aviões alemães praticamente destruíram a força aérea soviética, enquanto
pontas-de-lança blindadas penetraram fundo no território soviético, cercando e
capturando centenas de milhares de soldados russos. Poucos observadores militares em Londres ou Washington acharam que os soviéticos conseguiriam resistir
por mais de um mês; um milagre poderia lhes ganhar tempo por seis semanas.
Churchill não se deu por achado. Ao saber do ataque, entrou quase em seguida nas
ondas de rádio para oferecer a Stalin uma aliança e promessas de máxima ajuda
que fosse capaz de fornecer. De fato, ele tinha muito pouca ajuda para mandar, e
para enviá-la, apenas uma rota marítima muito arriscada, que passava ao largo dos
campos de aviação no norte da Noruega, para Archangel e Murmansk. O primeiro
comboio só partiu meses depois.
A entrada dos soviéticos na guerra foi uma potencial dádiva dos céus para
a Grã-Bretanha, caso a União Soviética conseguisse sobreviver. Foi um grito de
alerta para Roosevelt. Desde a primavera anterior a guerra ia mal para os ingleses.
Os esforços para fortalecer a Grécia contra a invasão italiana tinham naufragado
por causa da intervenção alemã. As forças hitleristas tinham caçado os ingleses e
milhares de seus aliados australianos, expulsando-os da Grécia, ao mesmo tempo
em que conquistavam a Iugoslávia. Depois tinham invadido Creta por via aérea e
tomado a ilha. Churchill estava preocupado com Francisco Franco, que talvez permitisse aos soldados alemães cruzar o sul da Espanha para atacar Gibraltar. Desde
a chegada do general Erwin Rommel, a guerra no norte da África se transformara
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numa batalha renhida e instável; a concentração de forças alemãs ameaçava agora
o Egito e o canal de Suez. E na Batalha do Atlântico os submarinos alemães continuavam a causar pesadas baixas nas embarcações britânicas e aliadas.
Durante todas essas circunstâncias, o presidente parecia letárgico, e até impassível, congelado na indecisão. Harry Hopkins, confidente e conselheiro do presidente,
foi “totalmente incapaz de explicar essa súbita reviravolta, de uma posição de força
[no começo daquele ano] para uma de fraqueza aparentemente despreocupada”. Ele
a atribuiu às batalhas constantes e desgastantes com os isolacionistas, cada vez mais
radicais.3 O biógrafo de Roosevelt, Kenneth S. Davis, atribuiu a inatividade de FDR
a “sua cautela e suspensão de julgamento, que ainda era determinada até certo ponto
pela saúde precária”. Durante semanas Roosevelt era acometido, com freqüência,
por persistentes problemas de sinusite e uma falta geral de “vigor”.4 Agora, com as
tropas soviéticas em franca retirada, FDR novamente parecia voltar à vida.
A entrada súbita da União Soviética na guerra teve enormes implicações para
os EUA e complicou ainda mais o já complexo padrão das relações anglo-americanas. Surgiram boatos nos EUA, espalhados por isolacionistas e anglófobos, de
que a Inglaterra estaria usando suprimentos de guerra produzidos nos EUA para
celebrar lucrativos acordos comerciais com a América Latina. Em breve Roosevelt
decidiu que o país devia ajudar a Rússia, como já estava ajudando a China contra
o Japão, mas ele não tinha certeza do tipo de socorro efetivamente necessitado
pelos soviéticos, nem quanto ao uso que seria dado aos recursos. Preocupavamno os convênios secretos que Churchill talvez tentasse fazer com Stalin, em troca
de uma promessa, da parte dos soviéticos, de continuar na guerra até a vitória ou
até o amargo final. Roosevelt estava plenamente consciente de que Churchill tinha
enviado ao norte da África e ao Oriente Médio quantidades maciças de munições
fornecidas pelos americanos e dezenas de milhares de soldados. A medida foi vista
como insensata por alguns de seus conselheiros militares, diante da permanente
ameaça às Ilhas Britânicas. Roosevelt não estava pessimista quanto às chances
dos ingleses naquele cenário de guerra, mas, na verdade, não conseguia entender
por que Churchill estava disposto a arriscar tanto naquele lugar. Quanto a isso,
sem dúvida, a suspeita de que a ajuda americana — e, mais tarde, os soldados
americanos — estivesse dando sustentação aos objetivos imperialistas britânicos
desempenhou um papel significativo no pensamento americano. Afinal de contas,
os EUA não tinham nenhum investimento “a leste do canal de Suez”. Roosevelt
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também estava ansioso para usar o período de relativa calma no Atlântico, previsto
por seus chefes militares, para aumentar a participação naval dos EUA na região.
Roosevelt precisava aprender muita coisa, e sem demora.
Em 11 de julho de 1941, portanto, Roosevelt tinha convocado Hopkins à Casa
Branca. Queria que ele fosse diretamente a Londres para se encontrar com Churchill e propor uma reunião em futuro próximo. Embora Roosevelt tivesse muitas
preocupações em mente, seu principal objetivo era amarrar a um conjunto comum
de objetivos de guerra o primeiro-ministro britânico. Em parte, isso iria afastar o
temor de que Churchill fizesse acordos com Stalin, ou qualquer outro, sem a participação dos EUA. Também definiria, antes que o país fosse concretamente arrastado
ao conflito, a questão dos objetivos exatos pelos quais iria lutar, na probabilidade
de que o fizesse, além de lutar em defesa própria.
Aqui estava outra diferença significativa que surgira entre Churchill e Roosevelt.
FDR era um progressista. Do tipo cauteloso, é bem verdade, mas, ainda assim, um
homem que acreditava que o governo tinha um papel preponderante em garantir
um padrão básico de vida para todos os cidadãos. Sua política do New Deal tinha
evoluído de um programa majoritariamente voluntário, destinado a fortalecer o
moral, e se transformado num abrangente programa governamental de legislação
do bem-estar, seguridade social, leis trabalhistas padronizadas e fortalecimento
dos sindicatos. Agora Roosevelt queria um New Deal para o mundo. Fortemente
pressionado pela mulher, Eleanor, e por outros partidários renitentes do New Deal,
Roosevelt tinha tentado convencer Churchill a adotar um conjunto coerente de
objetivos de guerra, tais como democracia universal, liberdade de credo, relações
comerciais mais livres e autodeterminação, metas não muito distintas de alguns dos
Catorze Pontos pelos quais Woodrow Wilson se havia empenhado publicamente
quando os EUA entraram na Primeira Guerra Mundial.
Churchill resistiu. Não estava inclinado a comprometer a Inglaterra com princípios que pudessem minar seus laços imperiais, tais como a autodeterminação da
Índia e a eliminação dos Acordos de Ottawa de 1932, que garantiam prioridades
comerciais entre os Domínios auto-administrados da Comunidade Britânica, como
o Canadá, a Austrália e a própria Grã-Bretanha. Acima de tudo, porém, Churchill
acreditava que a Grã-Bretanha ainda estava lutando pela própria vida e que o alívio
em relação aos bombardeios aéreos noturnos, em maio de 1941, quando Hitler
enviou ao leste a Luftwaffe para preparar a invasão da União Soviética, não passava
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de uma trégua temporária. Se a Rússia caísse, então suas gigantescas reservas de
petróleo e outras matérias-primas estariam à disposição de Hitler, assim como
estaria a indústria bélica. Nesse caso, a Inglaterra enfrentaria uma segunda Batalha
da Inglaterra — mais terrível e mais incerta em seu desfecho do que tinha sido a
primeira. Aquele não era o momento para idéias mirabolantes sobre a construção
de um mundo melhor após a vitória; a vitória ainda estava muito duvidosa.
Mas quando, numa tarde de calor no jardim de Downing Street, no 10, logo após
sua chegada, Hopkins propôs o encontro, Churchill ansiava por se encontrar com
Roosevelt. O encontro pessoal daria a ele uma oportunidade a mais para conquistar Roosevelt e discutir questões de premente preocupação para a Grã-Bretanha.
Entre essas a principal, naturalmente, era a entrada dos EUA na guerra — assunto
sobre o qual FDR decididamente não desejava falar. Mas também havia a questão
pendente das relações nipo-americanas, que vinham se deteriorando aos poucos
desde que o Japão invadira a China em 1937. Churchill temia um ataque japonês
às possessões britânicas no Sudeste Asiático. Se isso acontecesse, e se os EUA continuassem afastados do conflito, mais um prego seria enterrado no caixão britânico.
Churchill queria alguma garantia de Roosevelt de que este não fraquejaria em sua
postura contra o expansionismo japonês, ou melhor, um compromisso de declarar
guerra ao Japão se este atacasse as possessões britânicas. E, por último, preocupava-o
também a ajuda americana à Rússia, e em que medida essa ajuda poderia impactar
o fornecimento americano de material bélico ao Reino Unido.
Ao meio-dia de 3 de agosto de 1941, Churchill embarcou num trem especial
que o levou, juntamente com sua comitiva, rumo ao norte, em direção a Scapa Flow,
onde o couraçado Prince of Wales aguardava seus importantes passageiros. Churchill
levou consigo um grupo numeroso. Insistiu em que Hopkins o acompanhasse, dando ao americano uma longa viagem marítima para se recuperar da viagem rápida
e extremamente cansativa que fizera em visita a Stalin. O chefe do Estado-Maior
Geral Imperial, general sir John Dill, e o primeiro lorde-do-mar, sir Dudley Pound,
representavam, respectivamente, o Exército e a Marinha. O vice-marechal-do-ar, sir
Wilfred Freeman, representava a RAF. Sir Charles Portal, comandante da RAF, e o
major-brigadeiro Hastings “Pug” Ismay, principal conselheiro militar de Churchill,
ficaram no país para dar assistência ao vice-primeiro-ministro Clement Attlee e
ao Gabinete de Guerra na ausência do primeiro-ministro. Churchill providenciou
para que o ministro da Produção de Guerra, lorde Beaverbrook, viajasse de avião
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à Terra Nova para encontrar o grupo na chegada. Também na viagem marítima
estavam sir Alexander Cadogan, subsecretário de Estado para as Relações Exteriores, o amigo e consultor científico de Churchill, o professor Fred Lindemann
(conhecido como “o Profe”), o secretário-assistente do Gabinete de Guerra, L.C.
Hollis, e muitos outros integrantes da comitiva pessoal. Também convidou dois
jornalistas, embora houvesse combinado com Roosevelt que manteriam a imprensa
afastada desse encontro secreto.
Em 4 de agosto o Prince of Wales partiu de Scapa Flow, dirigindo-se ao oeste
sob chuva pesada. Em breve deixaria para trás sua escolta de destróieres. Um dos
jornalistas ingleses, H.V. Morton recordou mais tarde:
Os mergulhos monstruosos de um grande couraçado são tão deliberados e
lentos que não lembram os movimentos de qualquer outra embarcação; na
verdade, não lembram em absoluto os movimentos de um navio: é como se
uma grande usina metalúrgica, ou uma fábrica (...) estivesse voando instavelmente pelo ar. Quase tão alarmantes quanto os movimentos são os sons
de um couraçado na tempestade (...) súbitos choques e estrondos ferozmente
poderosos, como se o barco tivesse atingido um rochedo ou levado um pontapé de algum monstro marinho de passagem, seguido por um incômodo
silêncio, no qual objetos metálicos caem com estrépito e se ouve ao longe
homens correndo com botas pesadas sobre tombadilhos de aço.5
Na manhã de 9 de agosto, três destróieres da Marinha dos EUA surgiram à vista
para escoltar o Prince of Wales até a baía de Placentia. Às nove da manhã, horário
local, o navio aportou. Churchill passou um telegrama ao rei George VI: “Com
humilde respeito, cheguei em segurança e visitarei o presidente esta amanhã.”6
Situada no ponto extremo sudoeste da Terra Nova e recentemente arrendada,
a base americana da baía de Placentia estava agitada como uma colméia. Os civis
tinham sido evacuados da cidade de Argentia, e agora milhares de trabalhadores
e soldados americanos trabalhavam 24 horas por dia na construção de um campo
de aviação, hangares e uma marina. No correr do tempo, Washington acabaria por
despejar 45 milhões de dólares naquele sítio. Os morros rochosos que cercavam
Ship Harbour se enfeitavam de matas verdes e enevoadas.
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um natal em washington
As equipes de trabalho ficaram surpresas quando às 9h24 da quinta-feira, 7
de agosto de 2001, a esquadra naval americana, formada por de dois cruzadores
pesados e cinco destróieres, veio navegando e lançou âncora na entrada da baía.
Maior ainda foi a surpresa quando, passados dois dias, exatamente às nove da manhã, apareceu outra flotilha de quatro vasos de guerra: uma divisão de destróieres
da Marinha dos EUA escoltando o couraçado Prince of Wales, de deslumbrante
pintura. A manhã cinzenta de chuva miúda tinha muita neblina e ventos frios,
quando o navio de guerra fundeou ao lado do Augusta, embarcação em que estava
viajando o presidente americano. Apesar de todo o segredo, agentes alemães em
Lisboa tiveram notícia do encontro iminente; na noite de 4 de agosto a rádio alemã
o havia anunciado ao mundo.
Os americanos eram os anfitriões oficiais e logo puseram mãos à obra. Graças à visita de Hopkins à Inglaterra naquele mesmo ano, Roosevelt tinha muito
presente que os ingleses estavam vivendo com rações reduzidas, com escassez
de doces e cigarros; portanto, distribuiu 1.950 caixas de presente que continham
cigarros, frutas frescas e queijo. Tripulantes da Marinha dos EUA distribuíram
grande quantidade de cigarros e caramelos. As tripulações da Marinha Real e da
Marinha Real Canadense, sabendo que os barcos de guerra americanos estavam
em regime de “lei seca” desde o tempo do presidente Wilson, contribuíram com
bebidas alcoólicas. Entretanto, apesar da franca cordialidade, muitos elementos da
Marinha Real ficaram aflitos diante da ingenuidade dos americanos em relação à
guerra em geral e às extremas dificuldades da Inglaterra em particular. O coronel
(depois vice-marechal-do-ar) W.M. Yool folheou uma pilha de revistas americanas
recentes e ficou chocado com a descoberta de que as “principais preocupações” do
público americano pareciam ser “1) eliminar o cheiro de suor; 2) desobstruir os
intestinos; e 3) deitar-se na praia com uma loura”.7 O que não reparou foi que a
nação estava mais mobilizada pela 56a rebatida válida consecutiva de Joe DiMaggio
que pela guerra na Europa.
Pouco depois do meio-dia de sábado, 9 de agosto, Churchill, vestido com uniforme azul de Elder Brother da Trinity House (a organização que administra os
faróis e o litoral britânicos), subiu a bordo do Augusta ao som dos acordes de “God
Save the King”. Estava esfuziante por ter a oportunidade de defender sua causa com
Roosevelt cara a cara, longe do olhar feroz da circunspecção pública. “Dava para
pensar que Winston tinha sido alçado aos céus para conhecer Deus!”8 FDR, vestido
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com um terno Palm Beach de lã bege, se adiantou com um efusivo “até que enfim
nos encontramos”. Mas depois as relações começaram rapidamente a se deteriorar.
Aos americanos não agradou o fato de Churchill ter trazido consigo dois jornalistas,
ainda que ambos estivessem proibidos de deixar a embarcação britânica.9
“Isto é bem a cara dos ingleses”, assinalou com azedume o almirante King.10
Roosevelt, temendo o que lhe faria a imprensa americana se permitisse à imprensa inglesa dar o furo jornalístico, imediatamente mandou um avião Grumman a
Gander Lake, para trazer ao local diversos fotógrafos do Exército. Então Churchill
cometeu um sério deslize ao se declarar encantado de encontrar FDR em pessoa
pela primeira vez. Os dois já tinham se encontrado em 1918, num jantar no Gray’s
Inn, em Londres; e Roosevelt ficou meio decepcionado com o fato de, naquela noite
distante, não ter aparentemente impressionado o primeiro-ministro. Descobriuse, então, que os visitantes tinham trazido uma equipe de 21 pessoas, quando os
anfitriões contavam com apenas 15. Mas logo que os ânimos se acalmaram, foi só
“Winston” pra cá, “Franklin” pra lá.
Até o rabugento e anglófobo almirante Ernest J. King, comandante da Frota
Atlântica dos EUA, interpretou o papel de anfitrião generoso. Nove anos antes,
em sua tese na Escola de Guerra Naval, tinha retratado a Marinha Real como um
potencial inimigo. “No futuro as questões de comércio, de navegação e de poderio
naval poderão levar a uma guerra”,11 escreveu. Agora, em Argentia, ele começou a
gostar do almirante Pound. Ambos compartilhavam a mesma visão da centralidade
do cenário de guerra do Atlântico.
Naquela noite Roosevelt ofereceu um jantar formal no salão do capitão do Augusta. FDR, que estava isento da proibição de álcool vigente na Marinha, impressionou
os convidados ao misturar martínis, usando um gim seco especial e um possante
vermute argentino. Depois disso, os visitantes foram agraciados com suntuoso banquete em meio à luz de velas, que brilhavam sobre as pratarias. O prato principal foi
frango assado, ervilhas na manteiga, omelete de espinafre e batata-doce caramelada;
seguiu-se uma salada de tomates em fatias, queijos sortidos e biscoitos cream-crackers;
a sobremesa incluiu sorvete de chocolate, biscoitinhos e brevidades.
Após o jantar, Roosevelt pediu ao convidado uma avaliação da situação corrente.
Com o habitual charuto Corona de vinte centímetros firmemente preso entre os
dentes, o primeiro-ministro deslumbrou os anfitriões como uma resenha improvisada e extensiva da guerra. Habituado à condição de centro das atenções, FDR
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um natal em washington
brincava nervoso com o pincenê, fazia rabiscos na toalha da mesa com um fósforo
queimado e esfregava os olhos que ardiam com tanta fumaça. Tinha perdido para
Churchill o primeiro round.
O ego de Roosevelt não era menor do que o de Churchill. Seu forte sentido de
autoconfiança, a crença na própria capacidade de conseguir resultados, seu desejo
de deixar uma marca no mundo haviam-no ajudado a superar crises pessoais e
políticas. Haviam-no levado à liderança do país por intermédio da pior depressão
econômica de sua história e uma segunda guerra mundial. Agora ele estava sendo
empurrado para segundo plano em seu próprio cruzador — assim como o havia
sido, em certo sentido, no mundo em geral, desde que Churchill assumira o posto
de primeiro-ministro. Os discursos de Churchill galvanizavam o mundo livre. Sua
imagem — desafiadora, estável, decidida — lançava o olhar firme das capas da
revista Time, Life, Colliers e Newsweek, da primeira página dos jornais Washington
Post e New York Times. A imagem de Churchill cintilava nas telas dos cinejornais
pelo mundo afora, inspecionando os estragos dos bombardeios, cumprimentando
os aviadores britânicos, sendo aclamado pelo povo inglês. Churchill era exuberante,
erudito, o líder de uma nação em guerra, enquanto ele — o presidente dos EUA
— pisava com cuidado entre as necessidades dos militares de seu país, o crescente
clamor pela intervenção na guerra e os protestos ainda estridentes de anglófobos e
isolacionistas. Muitos anos depois da guerra, lorde Halifax, o embaixador britânico
em Washington durante a maior parte da guerra, recordou: “Tenho certeza de que
ele (Roosevelt) tinha inveja (de Churchill). Marshall me disse que o presidente
não estava empolgado com a idéia da visita de Winston. Este sabia demais sobre
questões militares; além disso, dormia escandalosamente tarde.”12
Por trás das cenas, os estrategistas ingleses e americanos se juntaram em grupos
para lidar com potenciais estratégias futuras. Os ingleses, de Churchill a Pound, e a
Dill, tinham vindo dispostos a discutir aspectos específicos da estratégia de guerra.
Os americanos não. Como recordaria posteriormente o general Marshall:
Aos ingleses teria agradado chegar muito mais longe. Ficavam nesse negócio
todos os dias — o dia inteiro —, numa base de ação guerreira muito definida.
Nós estávamos em posição de mobilizar e equipar o Exército. De que maneira
isso deveria ser administrado de nosso lado era questão ainda a decidir. Portanto, não estávamos preparados para dar a eles nenhum conselho fixo.13
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Uma segunda diferença importante se revelou de forma ainda mais gritante.
Para os americanos a estratégia dos ingleses parecia modelada pelo episódio de
Somme em 1916, pela lembrança de milhões de jovens levados ao próprio massacre
num gigantesco e sangrento beco sem saída feito de trincheiras, arame farpado,
metralhadoras e gás. Os ingleses desejavam evitar a todo custo a horrenda chacina
da frente ocidental, e assim estabelecer uma estratégia “indireta”, na qual a Alemanha seria derrotada não pela invasão direta, mas sim pelo bombardeio aéreo, o
bloqueio, a propaganda, o fomento de grupos de dissidência e de resistência, e só
no final pelas operações súbitas de ataque e recuo em sua periferia. Essa “estratégia
fabianista”* horrorizava os americanos, principalmente George Marshall. Para ele,
a lição da Primeira Guerra Mundial era simples e óbvia: mais uma vez a guerra
teria de ser vencida por uma maciça ofensiva terrestre na Europa sob ocupação
alemã, até a entrada em Berlim.
As reticências de Marshall se fundavam parcialmente no fato de as forças dos
EUA não estarem em posição de intervir nas relações européias. Em 1939 ele tinha
herdado um exército e uma força aérea de apenas 225 mil homens; e, embora por
ocasião do encontro em Argentia já tivesse elevado aqueles números para perto
de 1,5 milhão, isso ainda não era adequado sequer para a defesa do Hemisfério
Ocidental. Assim, em Washington, um dos planejadores de Marshall, o major Albert
C. Wedemeyer, estava só naquele momento colocando os toques finais daquele que
se tornaria o “Programa da Vitória” de setembro de 1941: o levantamento de um
exército de umas 215 divisões de 8,8 milhões de homens, dos quais cinco milhões
seriam mobilizados para além-mar.14 L.C. Hollis lembraria mais tarde: “Na época,
as idéias dos americanos estavam girando em torno de um exército de uns quatro
milhões de homens, número que nós insistíamos ser excessivamente grande e que
envolveria desperdício de recursos humanos e capacidade fabril.”15 Naquele estágio
não havia esperança de acordo.
Além disso, o Congresso tinha obrigado Marshall a assumir, naquela etapa
agitada, mais uma tarefa onerosa: em sua qualidade de chefe do Estado-Maior
do Exército dos EUA, tocou-lhe a total responsabilidade pela decisão de que tipo
de aparato militar — exército e forças armadas aéreas — poderia ser poupado de
atuação doméstica e mandado ao estrangeiro para ajudar os Aliados, e qual era
*
Relativa ao general romano Fábio, o Temporizador, cujo comportamento nos campos de batalha era
extremamente prudente (N. do E.).
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um natal em washington
vital no plano doméstico para fortalecer as defesas americanas. Tratava-se de uma
escolha hobbesiana. Não importa o que Roosevelt quisesse fazer, não importa o que
Churchill pedisse, Marshall era o homem que tinha de sancionar a ajuda militar.
Ele era responsável perante o presidente, seu comandante-em-chefe, e também
perante o Congresso. E aos olhos do público ele estava numa posição ambígua:
enquanto os intervencionistas queriam que enviasse ao Reino Unido toda a ajuda
americana possível, os isolacionistas, dentro e fora do Exército, exigiam que a defesa
das Américas tivesse prioridade. De toda forma, os ingleses não se comoviam com
os apuros de Marshall.
O clímax da histórica reunião — cujo codinome oficial foi Riviera — acabou
sendo a manhã de domingo, 9 de agosto. Quase como numa deixa, uma brisa suave
partiu o chuvoso céu cor de chumbo, deixando passar a luz do sol. Atravessando a
baía cintilante, o destróier McDougal levou Roosevelt, sem chapéu e trajando terno
azul de abotoadura dupla, até o Prince of Wales. Reunindo toda a força de suas débeis
extremidades inferiores, FDR andou a extensão toda do convés do navio para ir ao
encontro do anfitrião, que envergava o uniforme do Royal Yacht Squadron.
O que se seguiu foi um verdadeiro ágape de solidariedade cristã. Na melhor
tradição da Marinha Real, o capitão J.C. Leach leu a lição, retirada de Josué 1:1-9:
“Ninguém te poderá resistir todos os dias da tua vida; como fui com Moisés, assim
serei contigo; não te deixarei, nem te desampararei. Sê forte e corajoso...” Palavras
que visavam diretamente a Roosevelt. Seguiu-se uma profusão de hinos, todos
selecionados por Churchill: “O God, Our Help in Ages Past”; “Onward, Christian
Soldiers”; e “Eternal Father, Strong to Save”. Será que Churchill sabia que este
último era o hino pessoal de Roosevelt? Ou será que ao cantar os hinos estava
simplesmente apelando para a Marinha dos EUA? Muitos ficaram comovidos na
grande multidão. Hollis recordaria depois: “Integrantes das marinhas britânica e
americana se fundiram numa massa, no imenso tombadilho. Notava-se que todos
nós parecíamos saber a letra dos hinos...” O jornalista H.V. Morton
observava os dois homens sentados nos lugares de honra, o homem alto e
o homem mais baixo vestido de azul, que juntos representavam o povo da
Inglaterra e dos EUA; e eu ficava imaginando o que, em tal momento, lhes
passava pela mente. Churchill estava emocionalmente afetado, como eu
sabia que ficaria. Seu lenço deixou furtivamente o bolso...16
um encontro em argentia
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O almoço, a que o almirante King chamou “refeição singela”, foi servido no salão
dos oficiais do Prince of Wales. O cardápio, impresso com as armas do primeiroministro no cabeçalho, era suntuoso segundo qualquer critério: salmão defumado e
caviar, faisão assado, sobremesa, champanhe, vinhos e conhaque. O dia, de grandes
emoções, foi encerrado com um jantar leve no Augusta. Após a refeição, enquanto
Roosevelt e Churchill esvaziavam seus cálices de conhaque e consumiam Camels
e Coronas, o assunto se voltou para o Império. Elliott Roosevelt, que serviu em
Argentia como assessor especial do presidente, recorda que mais tarde o pai afirmou
que não “pretendera ser apenas um sujeito boa-praça” a ser usado para “ajudar o
Império Britânico a sair de apuros”. Agora, o presidente lembrou calmamente ao
primeiro-ministro que os EUA representavam a liberdade de comércio. “Nada de
barreiras artificiais (...) mercados abertos para uma saudável competição.”17
Churchill respondeu que não era intenção da Inglaterra renunciar à posição
comercial favorecida que tinha entre os domínios e que lhe fora concedida pelos
Acordos de Ottawa. As caçoadas leves foram do papel dos ingleses na Índia ao dos
americanos nas Filipinas. Terminado o pugilato, Roosevelt se despediu por aquela
noite daquele a quem chamou “velho conservador autêntico, da escola tradicional”.
Durante todo o intervalo, suas respectivas equipes tinham estado elaborando um
comunicado conjunto. Este ficaria na História como a Carta do Atlântico.
O historiador Theodore Wilson descreveu a Carta do Atlântico como “o resultado mais duradouro” da “primeira conferência de cúpula”; ele “no decorrer da
guerra aparecia de vez em quando, como um centavo de cobre — ora um constrangimento, ora um prazer para seus os criadores”.18 Os dois lados não tardaram
em alcançar um acordo sobre sete quesitos: que não buscavam expansão, territorial ou de outra ordem; que não desejavam ver “nenhuma mudança territorial
que não estivesse de acordo com os desejos livremente expressados das pessoas
envolvidas”; que eles iriam “respeitar os direitos de todos os povos de escolher a
forma de governo sob a qual iriam viver”; que iriam “levar a efeito a mais completa
colaboração entre todas as nações, no campo econômico”; que depois da destruição da “tirania nazista” eles se empenhariam em criar um mundo livre “de medo e
escassez”; queriam garantir liberdade “dos altos-mares e oceanos”; e que eles iriam
criar um “sistema mais amplo e permanente de segurança geral” por intermédio
do desarmamento geral. Contudo, em relação ao oitavo ponto, referente ao livre
comércio, houve forte desacordo.
28
um natal em washington
Enquanto Roosevelt e Churchill discutiam grandes estratégias em escala
global, o subsecretário de Estado, Sumner Welles, encerrou-se com sir Alexander
Cadogan, do Ministério das Relações Exteriores, para tratar de uma questão que
ameaçava torpedear as conversações em Argentia: a exigência americana de que o
fornecimento de suprimentos de guerra fosse associado à suspensão dos Acordos
de Ottawa de 1932. As conversas foram sérias e diretas. Welles não queria voltar
para Washington e enfrentar a ira de Cordell Hull, o secretário de Estado que Cadogan considerava “um velho obstinado” e “medonho”, sem ter vencido na questão
dos Acordos de Ottawa. Esses eram importantes porque Hull e outros americanos
queriam ver sua revogação ligada ao Empréstimo e Arrendamento.
Tudo o que a Inglaterra havia adquirido aos EUA nos 18 meses iniciais da guerra
tinha sido comprado e pago. Mas os recursos ingleses estavam limitados. No outono
de 1940, o Reino Unido tinha começado a ficar sem dinheiro. A questão havia sido
discutida em meados de dezembro, na reunião ministerial em Washington. Roosevelt e seu secretário do Tesouro, Henry Morgenthau Jr., queriam ter certeza de que
os ingleses liquidariam todas as suas propriedades, no valor aproximado de dois
bilhões de dólares, antes que os EUA passassem a prestar assistência direta ao Reino
Unido. Quando chegou o momento, entretanto, uma opção discutida foi fornecer
munições à Inglaterra “mediante convênios de arrendamento (...) [de] navios ou
qualquer outra propriedade que pudesse ser emprestada, devolvida ou colocada
no seguro”.19 Roosevelt tinha decidido agir de acordo com essa diretriz. Pediria
ao Congresso que aprovasse uma abrangente nova legislação de “Empréstimo e
Arrendamento”, capaz de dar a ele o poder de emprestar ou arrendar munições de
fabricação americana a qualquer nação que, ao utilizá-las, estivesse contribuindo
diretamente para a defesa dos EUA.
Uma forma de Roosevelt explicar o Empréstimo e Arrendamento foi dizer que
os EUA não podiam simplesmente permitir ao “velho símbolo do dólar, tolo e bobo”
restringir o desejo do país de ajudar as democracias. E por meio de uma analogia
doméstica — que, em caso de incêndio, qualquer um emprestaria ao vizinho, sem
ônus, uma mangueira de jardim, pedindo apenas que esta fosse devolvida depois
de apagado o fogo —, ele tentou convencer a imprensa de que a Inglaterra deveria
simplesmente “pegar emprestado” aquilo de que precisasse, devolvendo-o após
a guerra.20 Para o senador Robert A. Taft, de Ohio, que se recusou a aceitar o argumento de FDR de que a sobrevivência da Inglaterra era vital para a defesa dos
um encontro em argentia
29
EUA, isso equivalia a pedir a alguém que devolvesse um chiclete mascado! Mas do
episódio surgiu a Lei de Empréstimo e Arrendamento, de março de 1941, rotulada
Decreto 1.776. Churchill a considerou “O terceiro climatério do ano, depois da
queda da França e do ataque alemão à URSS”.
Mais que qualquer outra medida projetada por Roosevelt para manter à tona
a Inglaterra, a Lei de Empréstimo e Arrendamento revelava os nervos expostos
existentes na raiz das relações anglo-americanas. O que estava em jogo era dinheiro,
bilhões e bilhões de dólares, e muito provavelmente o futuro equilíbrio de poder
no mundo anglo-saxão. Consta que Roosevelt não tinha ilusão de que a derrota da
Inglaterra não representasse um desastre para os EUA. Mesmo assim, ele abordava
as negociações do Programa de Empréstimo e Arrendamento com um olho atento
a seus adversários políticos no Congresso e no país, e com um agudo senso do
interesse nacional americano. Assim, passou a Morgenthau instruções claras de
procedimento: em troca da ajuda praticamente ilimitada, os ingleses deveriam ser
espremidos até estourar e ser espoliados de praticamente tudo o que possuíssem nos
EUA e em qualquer outro lugar. Embora estivesse disposto a estender um crédito
imediato de um bilhão de dólares, FDR insistiu em que a Inglaterra “deveria colocar uns dois bilhões” de saída “como caução”. Morgenthau, por sua parte, exigiu
“cem centavos em troca de cada dólar” por todo e qualquer item “emprestado” à
Inglaterra.21 O governo de Sua Majestade deveria primeiramente encaminhar ao
Tesouro dos EUA a revelação integral de sua posição financeira, depois vender seus
títulos e ações e investimentos nos EUA pelo preço apurado, qualquer que fosse, e
finalmente dar em garantia a produção de ouro da África do Sul, para cobertura de
déficits. Na tentativa de aplacar a sanha dos adversários do presidente no Congresso,
Morgenthau prometeu à Comissão de Relações Exteriores do Senado, dominada
pelos republicanos, que “cada dólar de propriedade, imóveis ou ações que qualquer
cidadão inglês possuísse nos EUA” teria de ser vendido para pagar pelos bens de
guerra, “cada um dos dólares”. O secretário do Tesouro então informou à Comissão
de Relações Exteriores da Câmara que exigiria em pagamento por materiais bélicos
todo o ouro sul-africano que Londres recebeu em 1941. Para tornar mais palatável
aos americanos a Lei de Empréstimo e Arrendamento, Morgenthau encomendou a
Irving Berlin que compusesse uma canção para o Tesouro, “Any Bonds Today?”. A
composição tornou-se o tema do programa semanal da CBS Treasury Hour, estrelado por artistas como Fred Allen, Mickey Rooney e Judy Garland. Para mostrar
30
um natal em washington
aos ingleses que estava falando sério, no final de dezembro FDR mandou à África
do Sul um navio para recolher 120 milhões de dólares em ouro.22
Churchill estava zangado, porém sua condição era de pedinte. A reação pessoal
que teve ao envio por Roosevelt do navio de ouro foi de que o gesto lembrava “o
cobrador de impostos recolhendo as últimas posses de um devedor indefeso”.23 No
entanto, o pior ainda estava por vir. Hull, o secretário de Estado, localizou na lei uma
oportunidade finalmente caída do céu de — nas palavras do historiador Warren F.
Komball — “quebrar a concha daquela ostra, o Império Britânico”. Especificamente, a Lei de Empréstimo e Arrendamento podia ser aplicada para desmantelar o
sistema de preferências imperiais estabelecido em Ottawa em 1932. Atormentado
pelo diabetes e a tuberculose, o rabugento secretário Hull insistia em que os EUA,
no intuito de evitar os problemas de dívida ocorridos na Primeira Guerra Mundial, simplesmente solicitasse depois da guerra a devolução de navios e aviões não
avariados, e “anistiasse” o restante dos suprimentos do Programa de Empréstimo e
Arrendamento em troca de uma suspensão dos Acordos de Ottawa. Ademais, Hull
se convencera de que os ingleses estavam adulterando a contabilidade e escondendo
seu patrimônio global, estimado por ele em 18 bilhões de dólares.
No final, acabaram se impondo as propostas de Hull, que John Maynard Keynes
chamou “propostas ensandecidas”. Morgenthau simplesmente não estava disposto a
brigar com Adolf Hitler e também com o Departamento de Estado. “Toda vez que
o presidente me pede para fazer alguma coisa, o sr. Hull fica emburrado e perde as
estribeiras”, lamentava-se Morgenthau. “Estou farto de ser o saco de pancadas do
presidente na questão das relações exteriores.”24 Roosevelt havia colocado Harry
Hopkins na folha de pagamento da Casa Branca como um assessor especial de
Empréstimo e Arrendamento, com salário de dez mil dólares anuais. Na ocasião
do ataque a Pearl Harbor, os EUA se haviam apropriado de 13 bilhões de dólares
para empréstimo e arrendamento, mas só tinham mandado à Inglaterra um bilhão
de dólares em equipamento.
Dadas as origens do Programa de Empréstimo e Arrendamento, Sumner Welles
tinha pouco espaço de manobra em Argentia. Ele não poderia voltar a Washington
levando menos do que aquilo que fora exigência formal de Hull. Welles insistia em
que ficassem no comunicado de Argentia as palavras — “[desfrutar] o intercâmbio
econômico mais livre possível, sem discriminações, sem controle de câmbio, sem
um encontro em argentia
31
preferências econômicas utilizadas para objetivos políticos”. Frio e arrogante como
sempre, ele sabatinou Cadogan de que isso não era “uma questão de fraseologia”,
mas sim “uma questão de um princípio vital”.
Quando Churchill foi informado disso, reclamou que Roosevelt estava “tentando
destruir o Império Britânico”. FDR, descontraído em seu terno cinza e camisa de
colarinho aberto, sentou-se confortavelmente na cabine do almirante do Augusta e
ficou inabalável. Churchill, irritado diante da posição irrevogável de Welles, lançou
uma barreira constitucional — os Domínios teriam de ser consultados individualmente. Ele sabia que era um desejo desesperado de Roosevelt que fosse emitida de
Argentia uma proclamação retumbante, e assim, com a ajuda de Hopkins, a quem
certa vez prometera em brincadeira elevá-lo ao posto de par do reino como “Lord
Root of the Matter”,* Churchill agregou uma cláusula desconcertante: “Dada a devida
consideração às obrigações vigentes deles.”25 Isto, naturalmente, revelou a posição
de regateio dos Estados Unidos e enfureceu Welles, mas FDR concordou.
Agora o primeiro-ministro podia garantir ao Gabinete de Guerra que ele tinha
ficado firme na questão dos Acordos de Ottawa; FDR podia garantir a Hull que
todas as questões comerciais seriam reguladas na grande conferência de cúpula
do final, depois da derrota das potências do Eixo. Mas o Ministério das Relações
Exteriores em Londres considerou a Carta do Atlântico pouco mais que uma
afirmativa pretensiosa de vagos princípios americanos. “Um documento terrivelmente nebuloso”, descreveu-o Oliver Harvey, “repleto de todos os velhos clichês do
período da Liga das Nações”. Roosevelt, na terminologia de críquete do secretário
de Estado das Relações Exteriores, Anthony Eden, havia “mandado ao primeiro-ministro uma bola rasteira muito rápida”.26 Muitos partidários de Roosevelt
ficaram surpresos de que ele não tivesse incluído no documento “liberdade de
religião”. Outros ficaram decepcionados de que FDR, talvez recordando o fracasso de Wilson com a Liga das Nações, e como sempre agudamente consciente do
sentimento isolacionista no país, tivesse vetado a inclusão de qualquer referência
a uma futura “organização internacional”. No final, o documento foi simplesmente
mimeografado e distribuído. Não lhe foi aposta nenhuma assinatura, já que isso
poderia fazê-lo parecer um “tratado” — o que, naturalmente, exigiria a ratificação
do Senado.
*
Algo como “lorde Xis do Problema” (N. da T.).
32
um natal em washington
Roosevelt tinha sua declaração de objetivos de guerra, sua principal razão para o
encontro, e a aquiescência dos ingleses para a missão conjunta a Moscou conduzida
por Averell Harriman e lorde Beaverbrook, destinada a determinar em primeira
mão o que Hopkins não tinha conseguido descobrir — o que era exatamente que
os russos precisavam, e por quanto tempo eles podiam durar. Churchill recebeu
um endosso pouco entusiástico a sua estratégia do Oriente Médio, mas nenhuma
garantia sólida de Roosevelt de que o Japão seria devida e claramente advertido em
relação a um possível ataque que cometesse contra as posições britânicas. Ele recebeu, sim, uma firme promessa de mais suprimentos, e a garantia de que a presença
da Marinha dos EUA no Atlântico Norte Central seria grandemente fortalecida.
A partir daquele momento, os navios americanos iriam desempenhar um papel
preponderante em escoltar comboios da Costa Leste da América do Norte até as
águas territoriais da Islândia. Entretanto, Churchill não recebeu uma declaração
de guerra dos americanos, somente um enigmático aceno de Roosevelt de que,
embora o país não fosse declarar guerra, ele a iria fazer, e se tornar “cada vez mais
provocador. Se os alemães não gostassem, que atacassem as forças americanas”.27
Então, o que tinha acontecido em Argentia? Churchill deixou um registro detalhado do encontro, mas só do modo como ele o viu. Como tantas cúpulas desde
então, essa “primeira cúpula” importa mais pelo estilo que pela substância. Os dois
líderes tinham se avaliado mutuamente. Cada um tinha uma compreensão melhor
do que motivava o outro. As várias equipes tinham começado a sondar suas preocupações e necessidades em caso de uma guerra comum. Enquanto o general “Hap”
Arnold, ao ouvir o pedido dos ingleses de seis mil bombardeiros acima da cota
que a República estava produzindo na ocasião, considerou uma sorte ter escapado
com as calças, os ingleses saíram com uma noção do grau de desabastecimento
da despensa dos americanos. Especificamente, Roosevelt tinha saído com uma
impressão mais definida do poder de persuasão e da perseverança de Churchill,
mas também de sua dedicação à preservação do Império Britânico. Churchill teve
a experiência direta da pouca inclinação de Roosevelt em assumir uma postura
firme sem recorrer a rodeios. Ele agora sabia quanto o presidente era um “driblador solerte”. Roosevelt havia privado Churchill do que ele mais desesperadamente
queria levar consigo para casa: uma promessa americana de entrar na guerra. O
“inescrutável homem misterioso da política americana” permanecia inescrutável.
Mais uma vez o “malabarista” tinha mantido todas as bolas no ar.
um encontro em argentia
33
Um dos biógrafos mais competentes de Roosevelt, James MacGregor Burns,
concluiu: “ambos tinham se divertido, propagandeado, se adulado, se irritado, se
suplantado mutuamente e cedido espaço um ao outro; a amizade deles tinha sobrevivido intacta, se aprofundado e estava pronta a enfrentar as pressões mais pesadas
que viriam”.28 Felix Frankfurter, juiz da Suprema Corte muito conhecido por suas
cartas bajuladoras a FDR, foi realista pela primeira vez: “E como todos os eventos
históricos verdadeiramente grandes, o que definiu o escopo da realização não foi
o dito nem o feito. O que sempre importa são as forças liberadas — as impalpáveis
forças espirituais, as esperanças, os objetivos, os sonhos e os esforços.”29
O resultado mais importante da conferência, no que diz respeito a Churchill,
foi intangível, segundo ele informou depois ao Gabinete de Guerra. “O primeiroministro disse que ficou íntimo do presidente. Das seis refeições que fizeram juntos,
cinco foram no navio do presidente.”30 A conferência foi, portanto, mais um passo
no relacionamento que Churchill descreveria mais adiante como tendo sido “fomentado por mim com extremo desvelo”.31 Mas em particular, Churchill se desesperou
com os resultados da reunião. Nenhuma declaração conjunta de objetivos bélicos
valia o papel em que estava escrita, enquanto os EUA ainda fossem uma nação
não-beligerante e que sequer mostrava sinais de se transformar em beligerante.
No final de agosto ele escreveu a Hopkins uma carta pessoal:
Devo lhe dizer que uma onda de depressão atravessa o Gabinete e outros
círculos bem informados daqui, em relação às numerosas garantias dadas
pelo presidente sobre não ter compromissos e não estar mais perto da guerra
etc. Temo que isso venha a se refletir no Parlamento. Se 1942 começar com
a Rússia derrotada e a Inglaterra deixada por conta própria, podem surgir
perigos de todo gênero. Não creio que Hitler vá favorecer de algum modo
(...) Você deve saber de mais alguma coisa que se possa fazer. Se você puder
me dar alguma esperança, eu lhe agradeço.32
Naturalmente, Hopkins não pôde.
Às 16h47 da terça-feira, 12 de agosto, o Prince of Wales levantou âncora em meio
a uma garoa cinzenta. As tenebrosas nuvens pesadas tinham se fechado novamente.
Quando a poderosa belonave passou deslizando, a banda do Augusta atacou o “Auld
Lang Syne”. O almirante King destacou três destróieres para escoltar discretamente
34
um natal em washington
os ingleses até a Islândia. Beaverbrook trazia consigo de volta a casa diversos filmes,
incluindo, maliciosamente, a comédia de Laurel and Hardy [O gordo e o magro]
Saps At Sea [Marujos improvisados].
No mesmo dia em que Churchill partiu de Argentia, Roosevelt recebeu um
atordoante lembrete da condição isolacionista dos EUA: por 203 x 202 votos, o
Congresso aprovou a prorrogação da Lei de Seleção e Treinamento do Serviço
Militar. O America First Committee tinha bombardeado o Capitólio com um
milhão de cartões-postais de repúdio à declaração de guerra. Mulheres vestidas de
preto, cobertas de véus pretos, tinham tomado um banco numa sala de recepção
próxima à câmara do Senado, chorando e se lamentando contra a proposta de
prorrogação da convocação militar. Robert Sherwood, o redator de discursos do
presidente, recordou que a notícia da votação apertada tinha “caído como bombas
inimigas no convés do Augusta e do Prince of Wales”.33 No âmbito pessoal, FDR
ficou furioso ao descobrir que Fala, seu cãozinho terrier escocês, parecia uma
galinha depenada, já que muitos marinheiros lhe haviam cortado cachos de pêlo
para levar como recordação.
Uma vez de volta a Washington, no Dia da Marinha, 27 de outubro de 1941,
Franklin Roosevelt chocou a nação com uma declaração espantosa: “Os EUA tinham
sido atacados, o tiroteio tinha começado.” Antes que os ouvintes conseguissem apreender a magnitude da declaração, Roosevelt continuou: “Tenho em meu poder um
mapa secreto, feito na Alemanha pelo governo de Hitler — pelos planejadores da
nova ordem mundial.”34 O mapa mostrava as Américas do Sul e Central divididas
em cinco imensos estados-vassalos alemães, incluindo o canal do Panamá. E mais,
o documento revelava sinistros planos germânicos de abolir todas as religiões e
substituí-las por um credo nazista único. O Congresso imediatamente fez emendas
ao Ato de Neutralidade para permitir aos navios americanos transportar armas
diretamente para a Inglaterra. O sigilo oficial, informou o presidente à imprensa
no dia seguinte, impedia que ele mostrasse o mapa aos jornalistas.
O “fidalgo astucioso de Hyde Park” havia, de fato, jogado uma cartada perigosa.
Ele tinha plena ciência de que Londres havia instalado um escritório especial de
falcatruas em Nova York, o Gabinete Britânico de Segurança, a cargo de sir William
Stephenson. Um ás da aviação da Primeira Guerra Mundial, Stephenson, cujo
codinome era “Intrépido”, comprara o mapa a um mensageiro alemão que tinha
sofrido um misterioso “acidente” em Buenos Aires. Stephenson tinha entregado o
um encontro em argentia
35
mapa ao coronel americano William “Wild Bill” Donovan, que o entregou à Casa
Branca. “Hoje sabemos que o mapa foi produzido pelo serviço secreto alemão na
Argentina, e após sua captura tinha sido ‘retocado’ pela fábrica de falsificações
de Stephenson, a ‘Station M’, no Canadá. Roosevelt, em vez de ter sido enganado
pelo serviço secreto inglês, tinha usado essa ‘falcatrua’ britânica para servir a seus
próprios objetivos.”35
No Atlântico, a “guerra de tiros” já tinha começado. Os destróieres americanos
foram os primeiros alvos. Em setembro de 1941 um submarino alemão atacou o
Greer. Em outubro outro “tubarão cinza” causou os primeiros danos durante o ataque ao Kearny. E no último dia do mês, o Reuben James tornou-se a primeira baixa
de guerra da Marinha. Ainda assim, os americanos pareciam mais interessados no
jogo de futebol Army x Notre-Dame do que no ataque do submarino alemão ao
Reuben James. Para muitos deles, que ainda se lembravam bem do Lusitania, isso
parecia uma reprise da História. Para o almirante King, era um lembrete de que
a guerra estava próxima e os EUA, despreparados. “Temo que seja preciso contar
aos cidadãos a amarga verdade”, ele escreveu a um amigo, “de que a guerra não se
luta com palavras, nem promessas, nem vitupérios, mas sim com as realidades do
perigo, da provação e da matança”.36
Adolf Hitler teve um ataque de fúria quando recebeu a notícia sobre a reunião
de Argentia. Já em junho de 1940, ele tinha derramado para Benito Mussolini sua
amargura em relação a Roosevelt. O presidente americano, segundo informou ao
Duce o Führer, invejava o sucesso dos fascistas em superar seus problemas econômicos e se enchera de ódio pelas conquistas fascistas. O único recurso de Roosevelt
era tentar engrandecer a própria nação à custa do Império Britânico.37 Agora, em
14 de agosto, era Hitler quem sentia muita raiva e inveja diante da cúpula dos anglo-saxões. Ele organizou mais uma conferência com Mussolini, e em 29 de agosto
divulgou um comunicado virulento, no qual jurava “destruir o perigo bolchevique”
e também a “exploração plutocrática” dos anglo-saxões.38
No outro lado da cidade, o ministro de Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels,
reconheceu o perigo potencial da Carta do Atlântico. Os oito pontos do documento
eram demasiado evocativos dos Catorze Pontos do presidente Wilson em 1918, e
podiam encontrar eco entre o povo alemão. Ele usou três páginas de seu diário
para denunciar a carta como “um típico produto de propaganda”, um “blefe propa-
36
um natal em washington
gandístico” e uma “manobra de propaganda totalmente imbecil”. Mas um relatório
secreto da Schutzstafell (SS) acerca do ânimo da população alemã concluiu que a
reunião em Argentia não tinha causado grande preocupação entre as massas. Isso
tranqüilizou Goebbels, assim como a votação apertada no Congresso dos EUA
sobre a prorrogação da convocação para o serviço militar. Ele tinha certeza de que
Washington estava condicionando ao resultado da guerra no Leste uma possível
entrada na guerra européia.40 E nisso não estava errado. Mas não podia saber que,
no mesmo instante em que estava anotando aqueles pensamentos, pilotos japoneses
estavam sendo treinados para o audacioso golpe contra Pearl Harbor, que deixaria
em choque os EUA e galvanizaria Roosevelt de tal forma como nenhum outro
acontecimento isolado de sua vida tinha feito.
capítulo dois
A esfinge da Pennsylvania Avenue
Franklin Delano Roosevelt continua a ser um enigma. Para seus contemporâneos, e também para os estudiosos subseqüentes, ele desafia explicações fáceis.
Cientistas políticos recorreram a clichês do tipo “idealista prático” e “realista idealista” para retratá-lo. Os historiadores recorreram a metáforas literárias tais como
“a esfinge da Pennsylvania Avenue” e o termo “o fidalgo astucioso de Hyde Park”.
Seus colaboradores chamavam-no simplesmente “o Chefe”. Roosevelt admitia sem
rodeios que era enganador, trapaceiro e dissimulado. Seus adversários acrescentaram
epítetos como desonesto, fraudulento e ditatorial. Os adversários mais maldosos
referiam-se a Roosevelt apenas como “aquele homem”. Os extremamente mesquinhos, como “o megalomaníaco aleijado da Casa Branca”.1
E adversários era o que havia em abundância. Na extrema esquerda, o líder comunista Earl Browder acusava FDR de realizar até “mais completa e brutalmente”
que Herbert C. Hoover, seu antecessor, “o ataque capitalista contra as massas”. Na
extrema direita, o fascista William Dudley Pelley chamava Roosevelt de “a forma
mais baixa de verme humano — pelos critérios cristãos”. A família de J.P. Morgan
mantinha fora de vista os jornais com fotos “daquele homem”. H.L. Mencken, o sábio
de Baltimore, falava sem piedade das ambições políticas de FDR: “Se amanhã ele
se convencesse de que a defesa do canibalismo lhe garantiria os votos de que tão
desesperadamente precisa, ele começaria na próxima quarta-feira a engordar um
missionário no quintal da Casa Branca.” Um dos vizinhos de Roosevelt no vale do
rio Hudson denunciou-o como “um boçal presunçoso” e prontamente exilou-se nas
Bahamas até que Roosevelt já não ocupasse a Casa Branca. Outro crítico atacou-o
cruelmente com o comentário: “Se você fosse um homem honesto, Jesus Cristo
não o teria aleijado.” Um clube campestre de Connecticut proibiu que o nome dele
fosse mencionado “como uma medida preventiva contra a apoplexia”. E no Kansas
um homem se encerrou em seu porão anticiclone, jurando não voltar a emergir
38
um natal em washington
até Roosevelt ter deixado a Presidência. Enquanto se encontrava encerrado, sua
mulher fugiu com um caixeiro-viajante.
Roosevelt levava na esportiva até os ataques mais virulentos. Gostava de pensar
que os fins justificavam os meios, e que podia separar a tática da estratégia. Durante um momento de franqueza em maio de 1942, com Henry Morgenthau Jr.,
seu parceiro fidalgo do vale do rio Hudson, FDR confessou: “Como você sabe, eu
sou um malabarista, e nunca deixo a mão direita saber o que a mão esquerda está
fazendo.” No entanto, Roosevelt sustentava que todas as suas ações, mesmo velhacas,
tinham um propósito mais profundo. “Talvez eu seja totalmente incoerente, e, além
disso, estou perfeitamente disposto a enganar e dizer inverdades”, ele informou
a seu secretário do Tesouro, “se isso me ajudar a ganhar a guerra”.2 Não admira
que o embaixador britânico, lorde Halifax, alegasse que lidar com a Casa Branca
de Roosevelt era como “dar socos em trouxas de algodão”.3 O chefe de Halifax,
Anthony Eden, secretário de Estado das Relações Exteriores, foi menos caridoso.
Após um encontro particularmente frustrante com FDR, na Casa Branca, durante
a guerra, Eden viu no presidente um “conspirador, que ficava habilmente fazendo
malabarismo com bolas de dinamite, cuja natureza era incapaz de entender”.4 O
candidato republicano que em 1932 concorreu à Presidência no mesmo pleito que
Roosevelt, Herbert Hoover, deu-lhe o rótulo de um “camaleão que veste xadrez”. Sir
Isaiah Berlin chamava-o simplesmente “um dos poucos estadistas do século XX ou
de qualquer outro que parece não temer de modo algum o futuro”.5
Dada a falta de consenso em relação ao 32o presidente, surpreende ver quanto
é volumoso o registro documental sobre Roosevelt. Samuel Rosenman editou 13
volumes dos Public Papers [documentos públicos] de Roosevelt e 32 volumes de suas
Press Conferences [entrevistas coletivas]. Elliott Roosevelt produziu dois volumes
de cartas pessoais, Personal Letters, do pai; e Warren F. Kimball, três volumes da
Complete Correspondence entre Roosevelt e Winston S. Churchill. E rio Hudson
acima, numa propriedade de 13,35 hectares perto de Hyde Park, Nova York, encontra-se o maior monumento a Roosevelt e suas obras: a Biblioteca Presidencial.
Aninhada em Springwood, a mansão que seu pai James tinha comprado em 1867, a
Biblioteca e Museu Franklin Delano Roosevelt contém mais de dez mil documentos
digitalizados. No entanto, o estudioso sério sai dali decepcionado, esmagado pela
profusão de documentos abundantemente conhecidos, mas decididamente pouco
honestos. Acima de tudo, o estudioso praticamente não consegue ter um insight de
a esfinge da pennsylvania avenue
39
FDR, o homem, e suas relações com os outros, pois as cartas e mensagens são frias
e informativas. De fato, o visitante se surpreende ante a grande ausência de cartas
pessoais detalhadas, de qualquer teor; o homem se orgulhava de confiar ao papel o
mínimo possível. Em janeiro de 1942, por exemplo, ele informava orgulhosamente
a lorde Beaverbrook, durante a conferência de Arcádia, que ele não tinha “escrito,
no espaço de um ano, mais que uma dúzia de cartas de próprio punho — e mesmo
assim elas, em média, não excedem página e meia”.6 Roosevelt sequer permitia que
fossem feitas anotações durante as reuniões ministeriais.
Desde o começo o presidente tinha um conhecimento íntimo do que não confiou
a sua biblioteca. Na inauguração da Seção Museológica, em 30 de junho de 1941,
apenas oito dias depois da invasão estarrecedoramente bem-sucedida de Hitler à
União Soviética, Roosevelt parecia estar num ânimo insolitamente positivo. Quando
perguntado do motivo para tanta exaltação, teria replicado, segundo consta: “Estou
pensando em todos os historiadores que virão aqui pensando que vão achar respostas a suas perguntas.”7 Isso era puramente rooseveltiano. E ele aparentemente
recebeu muita ajuda para manter longe da inspeção do público os materiais críticos.
O historiador que mergulha nas mais de quatrocentas páginas do volume de The
Foreign Relations of the Unites States, que trata da Conferência de Washington 19411942, fica exasperado diante da dieta constante de “não foi encontrado nenhum
registro oficial dessa discussão”, inscrição anotada em documentos britânicos pelos
editores americanos.8 É difícil evitar a conclusão de que no seletivo processo de
escolha teve participação o “fidalgo astucioso de Hyde Park”.
O Roosevelt público, naturalmente, é muito conhecido. Ele nasceu em Hyde
Park, Nova York, em 30 de janeiro de 1882, filho único de James e Sara Delano
Roosevelt. A família Roosevelt fazia parte da fidalguia de proprietários de terras e
da velha classe mercantil, envolvida em comércio, finanças, ferrovias, navegação
e imóveis. Claes Martenszen van Rosenvelt, o primeiro do clã, chegou a Nova
Amsterdã no século XVII. Os Delanos também eram uma família do ramo de
navegação e comércio, que em ocasiões não esteve acima de praticar pirataria por
encomenda e o hediondo “comércio da China”.* A carreira acadêmica de Franklin
incluiu todas as escolas “certas”, mas dificilmente alcançou distinções: depois de
*
Parte do qual compreendia a venda de ópio, numa época em não pesavam restrições sobre a compra
do produto e seus derivados (N. da T.).
40
um natal em washington
cursar Groton School e Harvard College, ele freqüentou a escola de direito da
Columbia University e passou no exame da Ordem dos Advogados de Nova York,
mas nunca se preocupou em completar o mestrado. No Dia de São Patrício de 1905,
o ex-presidente Theodore Roosevelt — do ramo familiar radicado em Oyster Bay
— deu em casamento sua sobrinha Eleanor a seu primo em quinto grau Franklin,
uma cerimônia simples na casa nova-iorquina da tia de Eleanor, a sra. Henry Parrish
Jr. Depois o casal viajou em lua-de-mel pelo Reino Unido e pela Europa.
Em 1910, o democrata Franklin Roosevelt concorreu ao Senado pelo Estado
de Nova York — tendo antes obtido de Theodore Roosevelt a promessa de que não
faria campanha contra ele — e foi vitorioso num distrito em que desde a Guerra
Civil só tinha havido uma vitória dos democratas. Franklin mostrou que era uma
geração à parte dos outros políticos ao passear em seu Maxwell vermelho de dois
cilindros, sem pára-brisa nem capota, pelo município de Dutchess, solidamente
republicana. O novo senador ganhou rapidamente uma reputação de politicamente
ousado e cruel. “Eu era um canalha terrivelmente mesquinho quando comecei na
política”, ele recordaria anos mais tarde. Em 1913, o presidente Woodrow Wilson
nomeou-o secretário-assistente da Marinha, um posto que o “Tio Ted” tinha usado
como degrau para chegar à Presidência. Com certeza, daquela época em diante,
FDR considerou a Marinha de certa forma “sua”. Chegou até a lhe cooptar o hino,
“Eternal Father, Strong to Save”, como seu próprio.
Na qualidade de secretário-assistente da Marinha, Roosevelt observou diretamente muito do idealismo, do internacionalismo e da ascendência moral do presidente Wilson. Em 1918, Eleanor descobriu cartas secretas de amor de sua própria
secretária social, Lucy Mercer, dirigidas a seu marido.9 Ela ofereceu a Franklin o
divórcio, mas a mãe dele, Sara, ameaçou deserdá-lo caso ele abandonasse a família. Indubitavelmente, a descoberta dessas cartas por Eleanor desempenhou um
papel importante na posterior aversão que ele sentia a confiar coisas ao papel. Em
1920 Roosevelt concorreu à Vice-Presidência na chapa do malogrado candidato
democrata James M. Cox.
Em 21 de agosto de 1921 abateu-se sobre ele a tragédia pessoal. Enquanto
visitava sua residência de verão na ilha de Campobello, em New Brunswick, no
Canadá, ele contraiu poliomielite. Tinha 39 anos de idade. A doença acarretou
paralisia motora (parcial) da cintura para baixo. Com seus 1,88m de altura, Roosevelt se viu confinado a uma estreita cadeira de rodas sem braços, e nunca mais
a esfinge da pennsylvania avenue
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pôde caminhar sem ajuda de pesadas muletas canadenses, ou muletas axilares,
ou bengalas, ou o braço de um filho ou assistente para servir de apoio. Graças a
um acordo de cavalheiros com a imprensa, jamais foram publicadas fotografias
que mostrassem a deficiência física do presidente — um fato inconcebível na atualidade. O Serviço Secreto confiscava o filme de qualquer fotógrafo que violasse
a regra da proibição de fotos. Das mais de 35 mil fotografias que fazem parte da
Biblioteca Franklin D. Roosevelt, sobreviveram apenas duas que mostram FDR
na cadeira de rodas.
Em 1928 Roosevelt foi eleito governador do Estado de Nova York por 25 mil
votos, apesar de Herbert Hoover ter levado o estado por ampla margem para os
republicanos. Dois anos mais tarde, FDR arrebatou Nova York por um recorde de
setecentos mil votos e voltou a emergir como figura nacional na política presidencial dos democratas. Nas eleições de 1932 ele derrotou facilmente o desenxabido
Hoover na disputa pelo cargo mais elevado do país, recebendo 22,8 milhões de
votos, enquanto seu opositor recebia 15,8 milhões (472 votos no colégio eleitoral
contra 59 para Hoover). A revista Time proclamou-o Personalidade do Ano. Em
4 de março de 1933, Franklin Delano Roosevelt foi empossado como o 32o presidente do país.
A imagem pública do novo presidente tinha sido cuidadosamente construída.
Em centenas de fotografias e de rolos de filmes de entrevistas coletivas, ele parecia
efervescente e radiante, a verdadeira personificação do espírito empreendedor
americano. Roosevelt gostava de posar para os fotógrafos com a volumosa cabeça jogada para trás, um amplo sorriso no rosto de largas mandíbulas, o pincenê
reluzente pousado no alto do nariz, os olhos cintilantes, o eterno cigarro Camel
encaixado numa piteira de marfim e espetado para o alto num ângulo petulante.
Ele conseguia, numa mesma frase, encantar e imitar, exaltar e humilhar. Jack Bell,
que fazia a cobertura da Casa Branca para a Associated Press, captou a essência
do estilo Roosevelt:
Para falar, usava frases de manchetes de jornal. Ele interpretava, ele emocionava; ele se zangava, ele sorria. Ele era persuasivo, e era exigente; era filosófico, e era elementar. Ele era sensível, e era irracional; era benevolente, e era
malicioso. Ele era satírico, e era conciliatório; era engraçado, e era soturno.
Ele era excitante. Ele era humano. Ele era matéria de jornal.10
42
um natal em washington
Roosevelt tinha uma memória magistral e um estoque praticamente inesgotável de anedotas. Ele conseguia contornar questões difíceis como poucos
ocupantes daquele poderoso cargo tinham conseguido. Era exímio em plantar
uma semente a respeito de qualquer tema dado — e depois recuar rapidamente
sem explorar a questão, agregando seu habitual comentário: “Naturalmente,
rapazes, isso é extra-oficial!” Em meio a tudo isso, nas palavras de seu secretário
de Interior, Harold I. Ickes, ele mantinha o jogo escondido, pouco revelando em
infindáveis horas de palavreado.
Franklin Roosevelt foi o criador do moderno corpo-a-corpo com a imprensa.
Presidentes anteriores exigiam que as perguntas fossem escritas e submetidas com
antecedência. Agora, para deleite dos repórteres, as entrevistas coletivas se transformaram numa troca espontânea de parte a parte. Conforme recordou David Brinkley,
Roosevelt convidava os repórteres a entrar na sala de reuniões de imprensa da Casa
Branca, na qual eles “ficavam de pé em semicírculo ao redor da escrivaninha coberta de cigarros, piteiras, cinzeiros, porta-retratos, pesos de papel e uma coleção de
miniaturas de bandeiras, canetas, lembrancinhas e suvenires”.11 A discussão sempre
corria solta, com o presidente habilidosamente a conduzi-la na direção desejada. Se
os repórteres falhavam em pegar de imediato a deixa que ele estava dando, Roosevelt interpunha um prestativo “Se eu estivesse escrevendo a história para vocês, eu
diria...” Fotógrafos armados de câmaras pretas Speed Graphic dirigiam seus flashes
ao rosto largo do presidente, e no dia seguinte FDR estaria olhando para milhões
de leitores, de uma ponta a outra do país, em matérias de primeira página. Em 1934
a revista Time voltou a proclamá-lo Personalidade do Ano.
Naturalmente, nem todos os poderosos da imprensa estavam enamorados do
“fidalgo astucioso de Hyde Park”. Liderando a matilha dos que odiavam o presidente,
além dos representantes do grupo Hearst, estavam o coronel Robert R. McCormick,
do Chicago Tribune, Eleanor “Cissy” Patterson, do Times-Herald de Washington, e
o irmão dela, o capitão Joseph Patterson, do Daily News de Nova York. Conquanto
Roosevelt desprezasse os jornais deles, tratava de lê-los religiosamente — em geral
de manhã na cama, enrolado num velho roupão cinza manchado e puído, tomando
café e fumando furiosamente. Com o tempo, aprendeu a neutralizar o veneno dos
jornais por intermédio das “conversas” radiofônicas, sua “rede de comunicação” com
o povo americano. E ele esperou para obter sua vingança. Quando Joseph Patterson,
que durante anos havia combatido o suposto “ditador”, veio à Casa Branca, quatro
a esfinge da pennsylvania avenue
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dias depois de Pearl Harbor, oferecer à nação seus serviços, FDR admitiu graciosamente que na verdade só tinha uma tarefa de tempo de guerra para o proprietário
do Daily News — que ele relesse todos os editoriais malévolos contra o governo
Roosevelt que seu jornal tinha publicado ao longo dos últimos seis meses. Patterson
não resistiu e deixou a Casa Branca com lágrimas nos olhos.12
Roosevelt era excelente para falar. Foi sua a primeira grande voz do rádio americano. A maioria da população nunca tinha visto um presidente. Agora, milhões se
sentavam na sala de visitas ou na cozinha de suas casas e sintonizavam seus rádios
para escutar aquela voz forte e vibrante sendo transmitida do salão de recepções
diplomáticas no subsolo da Casa Branca, no que um repórter em maio de 1933
descreveu como “uma conversa ao pé da lareira”. Especialmente nos dias sombrios
de 1941, o presidente tinha muita competência em usar essa mídia para alcançar o
público. Ex-editor-chefe do jornal estudantil de Harvard, The Crimson, Roosevelt
refinava múltiplos rascunhos de discursos preparados por uma talentosa equipe
de redatores, antes de lê-los com delicioso ritmo, cadência e claridade. O professor
Lloyd James, assessor lingüístico da BBC, sugeriu certa vez que a dicção de FDR
servisse de padrão para o mundo de língua inglesa.13
Mas a língua que ele falava não era a da classe alta, fosse essa a do vale do rio
Hudson em Nova York ou do grupo de Cliveden em Londres. A sua era antes
uma linguagem sintonizada com os pensamentos e sentimentos do americano
médio. Seus discursos eram pontuados por analogias domésticas, como aquela
da mangueira de jardim, que ele usou em março de 1941 para discutir os méritos
do Programa de Empréstimo e Arrendamento, antes que esse fosse aprovado.
Ele tinha divulgado que suas comidas favoritas eram aquelas nas quais “a gente
pode encontrar substância”, como ovos mexidos, caldeirada de peixe, sanduíche
de queijo quente e cachorro-quente. Numa época (1941) em que o país cantava
aos berros sucessos como “Deep in the Heart of Texas” e “Chattanooga Choo
Choo”, FDR confessava que sua preferida ainda era “Home on the Range”. Ele
era capaz de recitar o preço médio de nove entre dez produtos primários comuns, tanto daquela época quanto de uma década antes. Admitiu abertamente
sua obsessão pela filatelia e deixou de herança uma impressionante coleção de
1,2 milhão de selos, a maioria dos quais ele desprezava como sendo pouco mais
que “figurinhas”. Um público que o adorava encantava-se diante da atenção que
o presidente derramava sobre seu amigo da Casa Branca, “Murray, o fora-da-lei
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um natal em washington
de Fala Hill”. Mais conhecido simplesmente como Fala, o terrier escocês lhe fora
presenteado em novembro de 1940 por sua prima, Margaret “Daisy” Suckley, e iria
encontrar Churchill pela primeira vez na Conferência de Argentia, em agosto de
1941. O público americano, amplamente abstêmio, perdoou de imediato a ocasional fotografia de FDR com uma coqueteleira e taças de martíni ou coquetéis
Orange-Blossom pousados numa salva de prata ao lado de sua cadeira. Milhões
de americanos tinham em suas casas a foto do presidente, por vezes um simples
recorte de jornal.
Os famintos, os pobres e os humilhados do mundo viam Roosevelt qual um
semideus, como nenhum outro presidente americano antes ou depois dele. Sua
fama se espalhou, chegando tão longe quanto as aldeias remotas da Calábria
no sul da Itália, onde o médico antifascista exilado Carlo Levi ficou surpreso de
encontrar uma cabana de camponeses após outra com estampas baratas de dois
“anjos da guarda”, normalmente penduradas na parede acima da cama; a “heróica,
implacável, misteriosa” Madona de Viggiano, uma “deusa tectônica ancestral”; e o
“benevolente e sorridente” Franklin D. Roosevelt, um “Zeus todo-poderoso”.14 Ele
tinha se transformado no Grande Comunicador quatro décadas antes que tal rótulo
fosse colado no ídolo do celulóide Ronald Reagan.
Em termos de mentoria, Franklin Delano Roosevelt recebeu grande quantidade
desta, tanto de seu “Tio Ted” quanto de seu padrinho intelectual, Woodrow Wilson.15
Naturalmente, FDR acabou ficando com o resíduo das visões wilsonianas de sua
época de secretário-assistente da Marinha. Como Wilson, ele abrigava um forte
temor em relação ao militarismo prussiano na Europa e ao “perigo amarelo” no
Extremo Oriente. À semelhança de Wilson, ele depositava suas esperanças para o
futuro numa China democrática cristã, nos mercados livres e no livre comércio,
e na validade universal do ideal democrático. E, como Wilson, ele detestava a influência negativa do colonialismo europeu. Mais tarde, como presidente, ele não
esteve acima de tomar emprestado sem qualquer prurido os conceitos wilsonianos.
A proclamação de Roosevelt em janeiro de 1940 das “Quatro Liberdades” — direito
de livre expressão, liberdade de celebrar seu credo, estar livre das necessidades e
estar livre do medo — tinha um evidente paralelo com o programa de Catorze
Pontos de 1918. Sua declaração (com Churchill) da Carta do Atlântico em agosto
de 1940 era pura retórica wilsoniana. Sua criação das Nações Unidas no dia de
Ano-Novo de 1942 ecoava claramente a antiga Liga das Nações, de Wilson. Ele via
a esfinge da pennsylvania avenue
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a presidência como um lugar de liderança moral, mas como o primeiro Roosevelt,
ele também a considerava uma tribuna para a intimidação.
E sem jamais ter sido um ideólogo, Franklin Roosevelt tinha um sentido daquilo
que viria a ser chamado o “estilo de vida americano”. Malgrado seus antecedentes
de membro da elite, ele sentia uma obrigação de transformar o mundo num lugar
melhor para os menos afortunados. Seu otimismo se fundava na consciência e
na responsabilidade social. Tinha uma capacidade incomum de entender o que
desejavam os americanos comuns. Ele acreditava que pela exportação dos valores
americanos fomentaria a paz mundial e a estabilidade. Tinha uma sólida fé na
raça dos anglo-saxões e seu Deus cristão. Acreditava no processo eleitoral e na
vigência da lei — ainda que nem sempre acreditasse nos tribunais, como atestou
o esquema quixotesco a que recorreu em 1937, o de “inchar” o Supremo Tribunal
com nada menos de seis juízes adicionais para garantir a aprovação da legislação
do New Deal. Não tinha pruridos em identificar o mal e escancará-lo ao escrutínio público. Sabia como contornar as burocracias estratificadas e como controlar
os atritos entre seus acólitos. Abe Fortas, um advogado do New Deal, nativo do
Tennessee, observou prescientemente a respeito de seu chefe: “Ele era um verdadeiro Toscanini. Sabia como reger uma orquestra e em que momento favorecer os
primeiros violinos ou favorecer os trombones. Ele sabia como empregar e como
manipular as pessoas.” Numa rara manifestação de argúcia, o vice-presidente
Henry A. Wallace observou que FDR “conseguia manter todas as bolas no ar sem
perder as próprias”.16
No âmbito público, Roosevelt se movia com cautela e equilíbrio; em privado,
com amplo propósito e (na maior parte das vezes) coerência. Do ponto de vista
administrativo, aquilo que — nas palavras de um de seus maiores admiradores — se
apresentava como “confusão e exasperação no nível operacional” era, na verdade,
“uma teoria competitiva de administração”, projetada para manter sob controle uma
burocracia em rápida expansão.17 O que para um historiador era “infinita plasticidade” na escolha dos meios, era para o secretário da Guerra, Henry Stimson, “bem
parecido com caçar um raio de sol errante dentro de uma sala vazia”. Dois terços de
seus problemas, observou Stimson em novembro de 1941, se originavam do “sistema
caótico e contraditório de administração precária” adotado por Roosevelt.18
Segundo o historiador William E. Leuchtenburg, Franklin Roosevelt foi o “primeiro presidente moderno” dos EUA. Ao longo de quatro mandatos, ele conservou
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um natal em washington
coesa uma tênue coalizão de eleitores de minorias étnicas e de baixa renda nos
grandes centros urbanos e eleitores brancos de baixa renda nos estados do Sul. Ele
manipulava a imprensa. Ele oprimia e bajulava o Congresso para que este aprovasse
as leis que propunha. Mantinha para si as alavancas do poder. Gostava do estranho
recurso do veto presidencial. De fato, ao final de seu segundo mandato Roosevelt
havia lançado mão de quase um terço do total de vetos de todos os seus antecessores
desde 1792. Amigos e inimigos diziam em piada que o presidente usava seu poder
de veto — em medidas que contemplavam desde alojamentos para pombos até a
legislação tributária — só para lembrar ao Capitólio que este estava sendo vigiado.
Ele entendia de poder executivo e não era avesso a empregá-lo. Apreciava a singular
natureza da composição política da sociedade americana. O século americano foi
de sua autoria. E na altura em que Roosevelt terminou, tinha estabelecido o cargo
de executivo do presidente, ou aquilo que agora se conhece amplamente como “a
presidência imperial”.
Afinal de contas, ele se transformou no presidente de mais longa permanência
no governo (12 anos) nos EUA, coisa que provavelmente continuará a ser, e quebrou
o tabu referente ao terceiro mandato, chegando mesmo a governar durante parte
de um quarto mandato. Muito em função dele o Congresso ratificou, em fevereiro
de 1951, a 22a Emenda à Constituição, no que foi chamado um “repúdio póstumo”,
limitando um presidente a dois mandatos.
Os dois primeiros mandatos de Franklin Roosevelt foram talvez os mais tempestuosos e calorosamente debatidos na história dos EUA. Entre 1933 e 1938, ele
forçou a aprovação pelo Congresso de uma atordoante profusão de leis sociais destinadas a realizar o que ele chamou “uma correção permanente das graves falhas
de nosso sistema econômico”. O chamado New Deal afetou tudo, da agricultura
ao setor bancário, da habitação a questões dos veteranos, das leis trabalhistas às
leis comerciais, e das obras públicas à aposentadoria individual. No processo, os
americanos ficaram afogados numa sopa de letrinhas de siglas — CCC, FDIC,
FHA, HOLC, ICC, NRA, PWA, SEC, TVA, WPA, para citar apenas algumas —,
no que o historiador George Brown Tindall chamou de “estado agenciador”.19
Roosevelt procurou criar um governo que atuasse como um “agenciador honesto”,
que fosse capaz de agir como mediador entre os grandes grupos de interesses e
fomentasse a concorrência.
a esfinge da pennsylvania avenue
47
Talvez o mais importante foi que Roosevelt trabalhou para criar um “Novo
Contrato”, que, segundo o historiador David M. Kennedy, pode ser resumido
numa simples palavra: segurança. “Segurança no emprego, segurança do ciclo de
vida, segurança financeira, segurança de mercado”; estas, argumenta Kennedy,
constituíam o leitmotiv de tudo o que estava tentando aquele novo estilo de “administração esclarecida” de Roosevelt. Precisava haver segurança para “indivíduos
vulneráveis”, segurança para “capitalistas e consumidores, para trabalhadores e
empregadores, para corporações e fazendas e proprietários de casas e banqueiros e construtores também”.20 Grande parte da legislação sobreviveu por todo o
restante do século XX; uma parte dela foi revogada depois de 1938, e outra parte
somente no começo do século XXI. Toda ela intensificou o poder do governo
nacional — poder que a tempestade que se armava na Europa tornaria de valor
inestimável no futuro próximo.
Como tantos presidentes dos EUA, Franklin D. Roosevelt acreditava que entendia mais de relações exteriores do que os enfatuados ocupantes do novo edifício do
Departamento de Estado, no lúgubre setor de Foggy Bottom. Como tantos presidentes dos EUA, ele procurou contornar os canais diplomáticos oficiais mediante
o envio de uma legião de representantes especiais — a Londres, Berlim, Roma,
Moscou e eventualmente a Vichy e Madri. E como tantos presidentes dos EUA,
Roosevelt achava que entendia os líderes estrangeiros e conseguia se comunicar
com eles melhor do que o Departamento de Estado. Entretanto, o desempenho da
política exterior de FDR na década de 1930 foi, de fato, menos que brilhante; alguns
críticos rotularam-no um apaziguador enrustido. Ele não o era, mas seus esforços
para encontrar o perfeito equilíbrio entre isolacionistas e intervencionistas com mais
freqüência confundiam do que revelavam. Quando o primeiro-ministro britânico
Neville Chamberlain anunciou em setembro de 1938 que iria a Munique encontrar
Herr Hitler, o “gerente da firma”, para alcançar um acordo sobre como retalhar a
Tchecoslováquia — sem dúvida o ponto alto do apaziguamento —, Roosevelt redigiu pessoalmente um telegrama para Londres com apenas duas palavras: “Bom
sujeito.” Tal comentário ironizava a bazófia do presidente ao governador-geral do
Canadá, lorde Tweedsmuir,* de que em caso de guerra na Europa os EUA “entra*
Lorde Tweedsmuir era o autor de romances populares como Prester John e Thirty-Nine Steps, publicados sob o pseudônimo de John Buchan (N. do A.).
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um natal em washington
riam no dia seguinte”; ao primeiro-lorde do Almirantado britânico, Duff Cooper,
de que os EUA viriam em socorro “dentro de três semanas”; e ao rei George VI, de
que os EUA estariam em guerra no minuto em que as primeiras bombas alemãs
caíssem sobre Londres.21
Entre todos os países europeus, a Alemanha era o que FDR alegava conhecer
melhor do que seus diplomatas de carreira. Em parte, isso se devia à sua familiaridade com aquela nação. A partir de 1891, tinha sido levado pelos pais a Bad
Nauheim não menos que oito vezes. Enquanto seu pai enfermo passava pelas curas
no famoso spa das montanhas Taunus, Franklin freqüentava por seis semanas uma
escola primária. Em 1901, aos 19 anos, ele teve oportunidade de conhecer o Kaiser
Guilherme II, enquanto velejavam pelos fiordes noruegueses. Convidado a subir a
bordo do iate imperial para o chá, Franklin roubou um lápis que trazia as marcas
dos dentes do Kaiser. Anos depois, durante a lua-de-mel, ele voltaria à Alemanha.
A familiaridade, pelo menos nesse caso, gerou o desdém. Com seus pais holandeses e germanófobos o jovem Franklin aprendeu a desprezar os alemães. A
exemplo de sua mãe, Sara, ele se referia aos alemães sentados à mesa de refeição
como “suínos”. Ele lhes imitava o sotaque e difamava o país. Quando visitou a
Europa como secretário-assistente da Marinha, em 1919, considerou torpes e imbecilizados os prisioneiros de guerra alemães semimortos de fome e seminus, e
os abordou agressivamente pelas alegadas atrocidades deles. Roosevelt acreditava
que o “militarismo prussiano” constituía a alma e o coração do Reich bismarquiano
— agressivo e perigoso, instável e indigno de confiança.
Uma vez na Presidência, Roosevelt pouco alterou suas opiniões pessoais. Ele
recordava ao Departamento de Estado, em todas as oportunidades, o fato de que
tinha estudado na Alemanha e que falava a língua do país. Em breve as relações
teuto-americanas constavam de, nas palavras do secretário de Estado, Cordell Hull,
“incriminações e recriminações”.22
Por vários meses em 1933 Roosevelt retardou deliberadamente a indicação de
um embaixador para Berlim. Em diversas ocasiões daquele mesmo ano, ele afastou
sondagens de Roma a respeito de um pacto das quatro potências, destinado a aliviar algumas das cláusulas mais severas do Tratado de Versalhes (1919). Quando
o embaixador William Dodd finalmente chegou à Alemanha, um de seus primeiros atos foi liderar um boicote ao Congresso do Partido Nazista em Nuremberg.
a esfinge da pennsylvania avenue
49
As relações rapidamente se pautaram por uma espiral ascendente de afrontas
diplomáticas. Em maio de 1933, durante uma visita feita a Washington pelo mais
alto executivo financeiro da Alemanha, Roosevelt e Hull deixaram o presidente
do Reichsbank, Hjalmar Schacht, esperando, sem convidá-lo a sentar, enquanto
fingiam procurar documentos — e depois lhe disseram com jovialidade que Hitler
era o homem certo para a Alemanha! Roosevelt constantemente culpava Berlim
pelo fracasso do desarmamento, e repetidamente exigia contra a Alemanha um
bloqueio econômico ou um embargo moral às armas. Ao embaixador Joseph C.
Grew, um espírito congênere de seus dias em Groton e Harvard, ele simplesmente
informou que tinha forte preconceito contra os alemães.23 Certa vez declarou que
a fronteira da América era o Reno — e depois impugnou imediatamente a citação
como uma “deliberada mentira”. Numa entrevista coletiva fez a festa dos repórteres
com histórias inventadas sobre a maneira como o serviço secreto de Adolf Hitler
estava sendo seguido pelo serviço secreto de Joseph Goebbels, que estava sendo
seguido pelo serviço secreto do Exército, que estava sendo seguido pela Gestapo.
A começar pela retirada à Alemanha em 1935 do estatuto de nação mais favorecida, Roosevelt, Hull e Morgenthau enfrentaram cada ofensiva da política externa
da Alemanha — remilitarização da Renânia, anexação da Áustria, desmembramento da Tchecoslováquia — com obrigações punitivas e restrições. Em outubro
de 1938, o presidente ameaçou colocar os agressores “em quarentena”. Em abril de
1939 ele exigiu que Benito Mussolini se abstivesse de realizar agressão contra 31
países da Europa e do Oriente Próximo. Hitler limitou-se a cobrir tais pronunciamentos de desprezo e ridículo. A revista Time proclamou o Führer Personalidade
do Ano de 1938.
Esse verniz gelado sobre as relações teuto-americanas, contudo, foi conveniente
para Roosevelt, já que ele não tinha uma política para a Alemanha. Para sermos
justos, os relatórios conflituosos chegavam a ele de todos os quadrantes, dos quais
o Departamento de Estado não era último. Norman Davis, que tinha representado
os EUA na Conferência de Desarmamento de Genebra, aconselhou o presidente
a tentar a “conciliação política” com Hitler. Breckinridge Long, prestes a ser apontado subsecretário, recomendou ao presidente o livro Mein Kampf [Minha luta]
como um tônico “eloqüente” contra “o comunismo e o caos”. Hull, um veterano da
Guerra Hispano-Americana, garantiu a FDR que era melhor pensar em Hitler e
nos alemães como foram nos dias dos poetas do século XVIII Goethe e Schiller.
50
um natal em washington
O embaixador Joseph Kennedy comunicou de Londres que apoiava tanto a política
racial da Alemanha quanto suas metas econômicas no Leste Europeu. O brilhante,
porém indeciso Adolf A. Berle, informou ao “Chefe”, pelo qual havia sido plantado
como seu assessor pessoal de segurança no Departamento de Estado (por vezes
mencionado simplesmente como “Estado”) para espionar Hull, que seria melhor
endossar uma Grande Alemanha juntamente com o Império Austro-Húngaro
reconstituído. A quem ele deveria dar ouvidos?
A crítica oficial não era bem-vinda. Quando o embaixador Dodd continuou
corajosamente a enviar relatórios que criticavam Adolf Hitler e o nazismo, a princípio foi considerado por Hull “ligeiramente enlouquecido”, e depois chamado
a Washington por Roosevelt, e finalmente enviado de volta a Berlim — só para
descobrir, na chegada à capital alemã, que tinha sido exonerado pelo presidente!
Quando Truman Smith enviou informes detalhados da maciça concentração de
recursos da força aérea alemã, estes não despertaram uma reação imediata. Quando em 1938 o general Albert Wedemeyer voltou aos EUA carregado de novidades
sobre a escalada militar da Alemanha, pouca gente escutou. Afinal de contas, ele
tinha um nome alemão e ficava facilmente impressionado.
Em parte por causa de conselhos antagônicos e em parte por causa de sua
predileção pessoal, Roosevelt enviou à Europa certa quantidade de representantes
especiais, que lhe enviariam relatórios diretos. A cavalgada incluiu William Bullitt,
Samuel Fuller, Sumner Welles, Hugh Wilson, William R. Davis e James D. Mooney.
Em cada instância, a diplomacia pessoal de Roosevelt praticada por enviados de
confiança alcançou exatamente o oposto do efeito desejado pelo presidente. Adolf
Hitler e seus prepostos ficaram no mínimo lisonjeados pela atenção do presidente. Eles afetavam moderação ao mesmo tempo em que fortaleceram a própria
resolução diante do que percebiam como fraqueza da parte de Roosevelt. Quando
na primavera de 1940 Sumner Welles fez uma extensa viagem à Alemanha, representando FDR, o ministro da Propaganda, Goebbels, ficou encantado. A visita de
Welles despertou “atenção mundial”, anotou Goebbels em seu diário. Adolf Hitler
tinha sido “honesto e franco” com Welles. Os ingleses, ele imaginava, “podem ir se
envenenar com sua própria peçonha”.24
Decorridas seis semanas, o tom dos alemães tinha mudado inteiramente. No
dia 10 de maio de 1940, a Wehrmacht deflagrou sua invasão em massa no oeste,
esmagando velozmente à sua passagem as forças belgas, holandesas e francesas.
a esfinge da pennsylvania avenue
51
Trinta dias depois, John Cudahy, um proeminente isolacionista e embaixador dos
EUA em Bruxelas no período de janeiro de 1940 a janeiro de 1941, visitou o Führer
em seu covil alpino, o Obersalzberg, próximo a Berchtesgaden. Com a vitória no
oeste aparentemente assegurada, Hitler tirou as luvas de pelica que tinha usado
durante a missão Welles. Segundo advertiu Cudahy (e por intermédio deste, os
isolacionistas dos EUA), ele iria considerar que a escolta americana à navegação
transatlântica constituía “um ato de guerra”. As insinuações de que a Alemanha
estivesse planejando invadir o Hemisfério Ocidental foram descartadas por ele
como “infantis” e “tolas”, e “semelhantes a alegações de que os EUA planejassem
conquistar a Lua”. Ridicularizando sobre a declaração de Roosevelt de que a fronteira
dos EUA se estendia ao Reno, o Führer jurou que “nunca tinha ouvido um alemão
proclamar que a fronteira do Reich corresse ao longo do rio Mississippi”.25 Em sua
chegada aos EUA, Cudahy publicou imediatamente a entrevista com Hitler no
New York Times e depois na revista Life. Naquele verão Adolf Hitler ordenou aos
americanos que fechassem seus dez principais escritórios consulares na Alemanha.
A breve lua-de-mel das relações teuto-americanas tinha terminado.
A União Soviética foi outro país que Roosevelt achou que entendia. Por volta
da metade da década de 1930, ele havia concluído que a União Soviética já não era
mais um estado revolucionário. Lenin se fora. Trotsky estava no exílio. Muitos dos
velhos bolcheviques estavam mortos. Por via do toque meigo de Stalin, o comunismo tinha se transformado em “uma forma alterada de socialismo estatal”. Stalin
era um mero homem do povo, à espera do momento certo para abrir os vastos
mercados da União Soviética aos artigos americanos. Embora em Washington os
“rooseveltianos” reconhecessem que Stalin perseguia grupos religiosos, eles ainda
assim argumentavam que o caminho de progresso para a paz, a democracia e a
justiça social era com freqüência um caminho turbulento. E o progressista “Grande
Líder e Mestre” do povo soviético não seria preferível aos imperialistas anacrônicos
que governavam em Londres e Paris? Em razão dessa visão cor-de-rosa da União
Soviética, dificilmente seria uma surpresa o fato de os analistas americanos não
disporem de informações detalhadas sobre o sistema industrial ou as instalações
militares dos soviéticos.
De forma mais trágica, Roosevelt e sua claque de assessores criou o que o historiador Dennis J. Dunn chamou de uma “teoria pseudoprofunda da convergência”,
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um natal em washington
segundo a qual a União Soviética e os EUA estariam percorrendo trajetórias convergentes. Enquanto Roosevelt estava afastando seu país do capitalismo do laissezfaire para o socialismo estatal do bem-estar social, Stalin estava abandonando o
totalitarismo em favor da socialdemocracia.26 Tanto Washington quanto Moscou
estavam tramando uma política de “seguridade coletiva” contra os ditadores fascistas. O pluralismo era inevitável; os fins justificavam os meios.
A visão radiosa de Roosevelt sobre Stalin e o regime soviético sobreviveu aos
julgamentos simulados do final da década de 1930 e até mesmo à matança de
centenas de milhares de adversários políticos de Stalin. Durante todo o período, o
embaixador Joseph Davies e o adido militar, coronel Philip R. Faymonville, forneceram ao presidente um fluxo contínuo de conversa oca. Os julgamentos simulados,
eles informaram, eram justos e honestos, por terem removido “traidores” e “quinta-colunistas”. Era uma cirurgia contra a conspiração. Para Davies, os oficiais do
Exército Vermelho levados a julgamento eram trotskistas e bonapartistas. Ele enviou
um jovial cabograma a Hull, dizendo que “pelo presente foi removido o perigo do
Corso”. Estaria recordando vagamente uma aula de História sobre a Revolução
Francesa de seus dias na Universidade de Wisconsin? Quando em maio de 1937,
no decorrer de uma visita a Londres, o embaixador compartilhou com Churchill
a visão que tinha dos julgamentos, o primeiro-ministro britânico lhe agradeceu
com sarcasmo por esse “conceito inteiramente novo da situação”.27
A percepção que Roosevelt tinha de Stalin e da União Soviética começou
a mudar em 1939, quando Roosevelt nomeou Laurence A. Steinhardt, um rico
advogado da firma Guggenheimer, Untermeyer e Marshall para substituir Davies
em Moscou. Steinhardt era bem relacionado na comunidade judaica de Nova
York. Analítico, brilhante, articulado, espirituoso e fluente em três línguas, era especialmente atraente para Roosevelt. Steinhardt, que por longo tempo considerou
a terra dos czares perseguidora dos judeus, tinha admiração pela União Soviética.
Foi nomeado embaixador em 5 de março de 1939.
O novo embaixador, que não era nenhum ideólogo, trouxe para o posto uma
noção de justiça do Antigo Testamento, um sentido altamente desenvolvido
de moralidade objetiva e uma grande dose de pragmatismo. De forma alguma
adepto de baboseiras sociológicas como a teoria da “convergência”, exigia em vez
disso “reciprocidade” nas relações soviético-americanas. Concessões feitas por
Washington, argumentava, precisavam estar ligadas a concessões feitas por Moscou.
a esfinge da pennsylvania avenue
53
Ficou chocado diante do Pacto de Não-Agressão Nazi-Soviético de 1939 e do papel
subseqüente de Stalin no quarto desmembramento da Polônia. Steinhardt informou
a Hull que a União Soviética estava agindo como o principal aprovisionador de
material bélico a Hitler, como um “parceiro silencioso” daquele. Indignou-se diante
da invasão de Stalin à Finlândia em novembro, porque o povo finlandês tinha sido
o único a quitar sua dívida de guerra com os EUA.
No começo Steinhardt pareceu realizar uma mudança lenta, porém segura,
nas percepções de Roosevelt em relação a Stalin e à União Soviética. No final de
1939 o presidente parecia alimentar dúvidas quanto ao comportamento russo,
chegando a parecer mobilizado pelo conceito de reciprocidade de Steinhardt.
Condenou a invasão soviética à Finlândia e pouco depois surpreendeu Hull e Welles
exigindo de repente que os EUA “respondessem a cada contrariedade causada
pelos soviéticos com uma contrariedade aqui contra eles”.28 Lançou uma convocação de “embargo moral” contra empresas dos EUA que comercializassem
produtos aeronáuticos com a União Soviética. Mas depois sua ambivalência voltou a se afirmar. Começou a ignorar os informes cada vez mais amargos, porém
realistas, de Steinhardt, enviados da “utopia comunista” e recebeu em silêncio
o progressivo assédio soviético da missão diplomática americana em Moscou.
Agentes da polícia secreta seguiam os diplomatas dos EUA ao banheiro nos locais
públicos. Eles reduziram o fornecimento de alimentos. Primeiro racionaram o
fornecimento de gás e depois o cortaram. Despejavam pilhas imensas de neve
diante da embaixada e instalaram microfones pelo prédio inteiro. E submetiam
a revistas físicas os diplomatas que deixavam o país. Pior ainda: Roosevelt desdenhou a (comprovada) acusação de que Stalin tinha agentes como Alger Hiss
trabalhando para ele no Departamento de Estado. Seus adversários tiveram
um prato cheio, sugerindo uma ligação entre Roosevelt e Stalin. H.L. Mencken
formulou as coisas de maneira talvez mais cruel: “O sorriso do filho-da-puta
da Casa Branca e o sorriso de Holy Joe em Moscou têm muito em comum.”29 A
comparação era escandalosa, naturalmente, mas encontrou ressonância juntou
aos conservadores que durante todo o tempo tinham acreditado que, para a liberdade dos EUA, o maior perigo isolado era o próprio Roosevelt. O insulto os
fortaleceu em sua oposição a qualquer intervenção dos EUA na guerra. Foi assim
que a própria ingenuidade de FDR em relação a Stalin prejudicou os esforços
muito reais de Roosevelt para ajudar a Inglaterra.
54
um natal em washington
Quando se tratava de entender a Grã-Bretanha, Roosevelt estava em terreno
mais sólido. Ele falava a língua local, tinha visitado a capital, encontrara alguns
de seus líderes, estava a par de sua história e sabia conversar sobre sua literatura.
Em Groton ele tinha devorado a Illustrated London News. Admirava as tradições e
instituições britânicas. Tinha a seu dispor no Departamento de Estado um sólido
grupo de diplomatas de carreira que tinham servido na corte de Saint James. Da
mesma forma, podia invocar uma legião de adidos militares navais com conhecimento detalhado sobre as forças armadas britânicas. Estava lidando com uma
democracia, com um governo eleito popularmente e com líderes familiarizados
com o troca-troca do consenso político — não estava lidando com um “bandido
caucasiano” (Stalin) ou um “pintor austríaco” (Hitler).
Mas no nível pessoal, Roosevelt levou para a mesa de negociação sua parcela de
obstáculos. Muitas coisas separavam Roosevelt e Churchill. Enquanto estudava em
Harvard, o jovem Franklin tinha liderado um movimento de ajuda aos bôeres durante a Guerra dos Bôeres de 1899-1902. Em suas primeiras visitas à Grã-Bretanha, ele
e, sobretudo, sua mulher Eleanor se ofenderam diante da arrogância e do egoísmo da
elite classista. “Excesso de Eton e Oxford”, tripudiou Roosevelt. Nos Estados Unidos,
FDR se irritava com o esnobismo dos diplomatas britânicos — e principalmente
de suas mulheres, que se ressentiam de terem sido enviadas para “aqueles ermos”.
Em sua opinião, muitas delas tinham convenientemente esquecido quem tinha sido
vencedor da Guerra Revolucionária Americana. Certa vez Roosevelt comentou com
seu adversário republicano à Presidência, Wendell L.Willkie, que os ingleses eram
velhacos e tinham de ser tratados como tal. Quando em março de 1941, no auge de
um intenso debate sobre empréstimo e arrendamento, o embaixador britânico em
Washington, lorde Lothian, desabafou num momento de descuido: “Bem, rapazes,
a Grã-Bretanha está falida; é o dinheiro de vocês que nós queremos”,30 semelhante
deslize resumiu para muitos americanos o que seria a Inglaterra.
No nível formal, havia a questão do Império Britânico, com letra maiúscula. O
imperialismo era visto com repulsa por muitos americanos, talvez em conseqüência
da origem do país como colônia britânica. Com o presidente Wilson, Roosevelt tinha aprendido a desprezar o império em todas as suas formas. Era algo que cheirava
a exploração e racismo. Aquilo o separava dos Churchills do mundo anglófilo. Para
ele, no mundo progressista o próprio conceito de “império” era arcaico. Restringia
o livre movimento de capitais e de bens. Roosevelt conhecia bem a história mili-
a esfinge da pennsylvania avenue
55
tante daquele império, que sob a rainha Vitória (1837-1901), e durante cada ano
do reinado desta, tinha estado em guerra em algum lugar do planeta. O império
era responsável, ao menos em parte, pela deflagração da Grande Guerra, porque a
corrida imperialista tinha colocado as potências européias umas contra as outras e
deslanchado uma tresloucada corrida. Assim, FDR tinha tantas suspeitas de Churchill
e seus congêneres quanto tinha de Neville Chamberlain e a “turma de Birmingham”
de fabricantes de armas. Além disso, a Conferência de Paz de Paris em 1919 tinha
degenerado numa sórdida disputa em torno das colônias arrancadas à Alemanha.
A recusa de Londres em assegurar liberdade à Irlanda escarnecia do princípio de
autodeterminação implícito nos Catorze Pontos de Wilson. Para Roosevelt, a Índia
e a Indochina se converteram em símbolos da avareza e da ganância européias.
Ele visitou o Egito e o Irã, Gâmbia e o Marrocos. Nunca pôs os pés em Londres
durante a guerra, apesar dos reiterados convites feitos por Churchill.
Como Roosevelt jamais confiava ao papel seus pensamentos profundos, só
podemos supor as linhas gerais de sua política em relação à Grã-Bretanha. Ele
era um dedicado estudante de geografia, que não tinha aprendido simplesmente
com sua coleção de selos, nas palavras mordazes de Anthony Eden. Conhecia seu
Alfred Thayer Mahan* e apreciava o fato de que o oceano Atlântico era a linha de
subsistência da América para Europa e vice-versa. Entendia que a frota britânica e,
em escala menor, a frota francesa eram as garantidoras dessas vias marítimas vitais.
Nenhuma das duas frotas deveria cair jamais nas mãos de um inimigo. Roosevelt
era o paladino das democracias. Ele desprezava os alemães em geral e o nacionalsocialismo em particular. Ficou revoltado com as políticas anti-semitas de Hitler.
Ele também, no entanto, tinha o dedo firmemente pousado sobre o pulso da
nação e sabia que o país era profundamente isolacionista. Trezentos estudantes
da universidade que ele cursou, Harvard, assinaram uma petição informando ao
presidente que eles jamais “seguiriam nas pegadas dos estudantes de 1917”. Arthur
M. Schlesinger Jr., na época um calouro em Harvard, recordou em sua biografia
que nenhuma das querelas nacionais de sua vida — sobre o comunismo no final
dos anos 1940, sobre o macarthismo na década de 1950, sobre o Vietnã na década
de 1960 — de tal forma “demoliu as famílias e as amizades tanto quanto o grande
debate de 1940-1941”. Na Universidade de Yale, 1.486 estudantes e membros do
*
(1840-1914). Oficial da Marinha dos EUA e historiador, autor de livros sobre o papel do poder marítimo
(N. da T.).
56
um natal em washington
corpo docente juraram jamais ir à guerra, “nem mesmo se a Inglaterra estiver à
beira da derrota”. Os signatários incluíam Kingman Brewster, um futuro presidente
de Yale, e Gerald R. Ford, um futuro presidente dos EUA.31
No nível nacional, o movimento America First, com a ajuda de figuras públicas
tais como Charles Lindbergh, o coronel Robert McCormick, Lilian Gish, o padre
Coughlin, Henry Ford e Alice Roosevelt Longworth, havia se organizado em setecentas assembléias, no final da primavera de 1941, reunindo cerca de um milhão
de membros. Era uma coleção poliglota de “pacifistas, gente que odiava Roosevelt,
gente que odiava a Grã-Bretanha, anticomunistas, anti-semitas, admiradores da
Alemanha, imperialistas americanos, devotos dos grandes negócios, e [de] quem
odiava a Europa”. Poucos meses antes de Pearl Harbor, Lindberg admitiu publicamente que só três grupos desejavam que a República entrasse na guerra: “Os
britânicos, os judeus, e administração Roosevelt.”32
Mas Roosevelt também tinha um exército de defensores convictos de que a
primeira linha de defesa da América passava pela Inglaterra.33 O Committee to
Defend America by Aiding the Allies [Comitê para defesa dos EUA pela ajuda
aos Aliados] era um verdadeiro Quem é Quem nos EUA. Ele incluía estrelas de
Hollywood, como Tallulah Bankhead e Helen Hayes; os roteiristas e romancistas
Louis Adamic, Eugene O’Neill e Robert Sherwood; os financistas Herbert Lehman
e J.P. Morgan; os historiadores Henry Steele Commager, Carl J. Friedrich e Edward
Meade Earle; e o pugilista Gene Tunney. Igualmente, o comitê tinha sua parcela
de figuras políticas, como o secretário de Guerra, Henry L. Stenson, o congressista
J.W. Fullbright e Dean Acheson, do Departamento de Estado. Ao final da década
de 1940 o comitê tinha estabelecido seiscentas assembléias pelo país afora.
Uma pesquisa Elmo Roper feita em 1939 constatou que 62% dos americanos
favoreciam a neutralidade; uma mera fração de 2% estava querendo ir à guerra.
A população de origem irlandesa e alemã obviamente não tinha grandes amores
pelo império de Churchill. Mas muitos outros americanos achavam que a “guerra
para terminar todas as guerras” de 1917-1918 tinha sido um abjeto fracasso. A
Alemanha tinha sido derrotada ao custo de cerca de 126 mil vidas americanas, e,
no entanto, aqui estava ela novamente em 1939, pronta e a se lançar a mais uma
guerra de conquista. Nem a Grã-Bretanha nem a França tinham feito um esforço
significativo para reembolsar suas vastas dívidas de guerra. Nenhuma das duas
se mostrara disposta a derramar o sangue para neutralizar Hitler enquanto este
a esfinge da pennsylvania avenue
57
construía sua máquina de guerra. Por que o Novo Mundo deveria novamente se
arregimentar em socorro ao Velho Mundo? “O que recebemos da Primeira Guerra Mundial”, perguntavam muitos nos EUA, “senão guerra, dívidas e George M.
Cohan?”34 Nas palavras do historiador David Reynolds, o país era “culturalmente
anglófilo” e “politicamente anglófobo”.
Ambigüidade e ambivalência correspondiam exatamente à intenção de Roosevelt, em especial nos 27 meses decorridos entre a invasão alemã da Polônia e o
ataque a Pearl Harbor. A realidade subjacente com que ele precisou lidar foi a de
que, num mundo em guerra, os EUA ainda eram praticamente impotentes. Em meados de 1941 os efetivos do Exército e da Força Aérea dos EUA, de quase 1,5 milhão
de homens (tendo partido de 225 mil homens pouco depois de George Marshall
ter-se tornado chefe do Estado-Maior), eram inadequados até mesmo para a defesa do Hemisfério Ocidental. No final de setembro daquele ano, o Departamento
de Guerra admitiu que somente uma divisão de infantaria, duas esquadrilhas de
bombardeiros e três grupos de perseguição estavam prontos para combate. Além
disso, os dez planejavam dar baixa a seus velhos alistados e retirar do serviço federal todas as unidades da Guarda Nacional. Para o futuro, cogitavam-se meros
10% de crescimento nas forças terrestres. Na melhor hipótese, os EUA poderiam,
em algum ponto distante, talvez conseguir se comprometer com o envio de 16
divisões ao estrangeiro.
Recentemente os historiadores vêm aplicando a Roosevelt termos descritivos
como “ambíguo”, “ambivalente” e “irresoluto”. Eles acusaram o presidente de jogar
“xadrez diplomático”, de “ter ficado em cima do muro” quando foi preciso exercer
liderança, de escolher sempre “o caminho de menor resistência”, de constantemente
não conseguir “nem pegar nem largar”, de substituir “ação por palavras, políticas
por condenação”, de agir “secretamente como agente de conciliação”, e de retirar
ou de quebrar dezenas de promessas, feitas principalmente à Grã-Bretanha. Talvez
a mais cáustica dessas acusações seja a do historiador Frederick W. Marks III. A
política externa de Roosevelt entre 1933 e 1941, escreveu Marks, foi como uma
casa construída sobre a areia: “A chuva caiu, a enxurrada veio, os ventos sopraram
e golpearam a casa e ela caiu.”35
Talvez. Semelhantes ataques ao legado de Roosevelt não constituem novidade.
Desde 1945 eles têm sido o prato de resistência dos historiadores diplomáticos.
58
um natal em washington
Robert Dallek foi, em 1979, um dos primeiros estudiosos de vulto nos EUA a
abordá-los.36 Indubitavelmente, durante 12 anos Roosevelt cometeu sua parcela
de erros na condução da política externa da República, admitiu Dallek, porém, no
total o balanço foi positivo. O presidente entendeu muito melhor do que muitos de
seus antecessores ou sucessores que o tecido político americano é delicadamente
complexo. Ele tinha presenciado o fato de que “a ação efetiva no exterior” era
impossível sem “consenso confiável no plano doméstico”. Ele tinha aguardado por
“acontecimentos dramáticos no estrangeiro” para “conquistar o apoio nacional”
de um país dividido para suas medidas essencialmente pró-Aliados. Ele tinha se
recusado a “impor à nação uma escolha pouco palatável ao proclamar a guerra”
prematuramente.
Além disso, Roosevelt tinha permanecido no comando das prioridades nacionais. Ele havia se recusado a abandonar aos cães da guerra as políticas nacionais.
Graças a uma “mistura de realismo e idealismo, de metas práticas de curto prazo
ligadas à visão de lucros de longo prazo”, Roosevelt habilidosamente havia “atravessado as corredeiras”, nas palavras de um de seus assessores, Adolf A. Berle. Acima
de tudo, e por tortuosos que fossem os meios, e por longa que fosse a viagem, FDR
tinha conseguido manter sua bússola moral. Uma frase do discurso anual sobre o
estado da União que proferiu na sessão conjunta do Congresso em janeiro de 1942
vem colocá-lo acima de muitos outros políticos: “Nunca houve — e nunca pode
haver — uma solução conciliatória bem-sucedida entre o bem e o mal.”
capítulo três
O fidalgo de Chartwell
Quando tomou posse como primeiro-ministro do Reino Unido, em 10 de maio
de 1940, Churchill tinha 65 anos. Estava na idade em que a maioria dos homens já se
aposentou. De fato, havia mais de dez anos que sua vida política parecia ter chegado
ao fim. Já em 1931 o autor de diários políticos Harold Nicholson o havia descrito
como “um velho estadista”, um espírito em declínio, que se queixava de ter perdido
“seu antigo poder de luta”. Outro colega de Churchill tinha registrado em 1936 que ele
já não possuía “a mesma agilidade de outrora em entender os pontos principais”.1
Desde o dia em que a Grã-Bretanha e a França declararam guerra à Alemanha,
sua voz tinha sido a única no governo britânico a chamar constantemente para
uma ação decisiva. Sua imaginação fértil havia tramado esquemas para atrapalhar
os planos de guerra da Alemanha, cortando o fluxo de suprimentos aos alemães,
tomando iniciativas. Mas num gabinete amplamente composto pelos próprios
homens que tão recentemente se haviam empenhado em favor da conciliação
— Neville Chamberlain, o secretário de Relações Exteriores, lorde Halifax, sir
Samuel Hoare, Leslie Hore-Belisha, sir John Simon, lorde Hankey e outros —, ninguém deu ouvidos a Churchill. Agora, na esteira da conquista alemã da Noruega,
enquanto a Wehrmacht começava a invadir a França, a Dinamarca, a Holanda e a
Bélgica, Churchill herdou do primeiro-ministro Chamberlain o manto da liderança.
Rapidamente formou um Gabinete de Guerra que constava dele próprio e de Clement Attlee, líder do Partido Trabalhista, juntamente com A.V. Alexander Arthur
Greenwood e Ernest Bevin, também do Partido Trabalhista; Archibald Sinclair;
líder do Partido Liberal, e Neville Chamberlain, lorde Halifax e Anthony Eden.
Churchill assumiu a importantíssima posição de ministro da Defesa, pondo-se no
comando direto do lado operacional da guerra. Enganou-se redondamente quem
imaginou que Churchill não tinha a força de vontade e a imaginação necessárias
para liderar a Grã-Bretanha naquele momento extremamente perigoso. Em 13 de
60
um natal em washington
maio, com as tropas alemãs começando a penetrar profundamente nas defesas da
França, Churchill deu uma desafiadora definição de sua política:
Direi à Câmara o mesmo que disse aos que entraram para este governo: “Só
tenho para oferecer sangue, labuta, lágrimas e suor.” Temos perante nós uma
provação de teor o mais cruento. Temos perante nós muitos e longos meses
de luta e de sofrimento. Perguntam-me: qual é a nossa política? Posso dizer:
fazer a guerra no mar, na terra e no ar, com todo o nosso poder e com toda a
força que Deus nos possa dar; fazer guerra a uma monstruosa tirania, jamais
superada no sombrio e lamentável catálogo dos crimes humanos. Essa é a
nossa política. Perguntam-me: qual é o nosso objetivo? Posso responder
numa palavra: vitória — vitória a todo o custo, vitória apesar de todo o
terror, vitória, por longo e difícil que talvez seja o caminho; porque sem
vitória não haverá sobrevivência.2
Churchill nasceu em Blenheim Palace, a sede ancestral de sua família em
Oxfordshire, em 30 de novembro de 1874. A família desfrutava dos privilégios da
sociedade inglesa de alta classe, mas seu pai, lorde Randolph Churchill, não possuía
riqueza. A fortuna da família pertencia ao primo de Churchill, Charles Richard John
Spencer (“Sunny”) Churchill, nono duque de Marlborough. Sunny era o herdeiro
de Blenheim e demais haveres da fortuna Marlborough que já não tivessem sido
esbanjadas por seu pai, o oitavo duque.
Os pais de Churchill eram distantes. O pai, um homem frio, severo, egocêntrico, com dotes de oratória e forte convicção conservadora democrática, tinha
sido um jovem e brilhante astro em ascensão na política, durante a infância de
Winston. Em 1886, com apenas 37 anos, chegou à elevada posição de Chancellor
of Exchequer (ministro da Fazenda) no governo conservador de lorde Salisbury.
Mas então, meio ano depois, num estupendo ato de suicídio político, renunciou ao
cargo. Sua carreira jamais se recuperou. Em abril de 1874 soube-se que ele tinha
sido acometido de sífilis, possivelmente até mesmo antes de seu casamento com a
mãe de Churchill, a beldade Jenny Jerome, natural dos EUA. A doença acabou por
matá-lo em janeiro de 1895, quando Winston mal completara 21 anos. No ínterim,
proibida de ter relações sexuais com o marido, lady Randolph Churchill tornou-se
uma das grandes cortesãs do final da era vitoriana na Inglaterra.
o fidalgo de chartwell
61
Demasiado enredado nos escombros da própria carreira política e de seu
casamento que se deteriorava, lorde Randolph quase não dava genuína atenção
ao jovem Winston. Quando o fazia, era severo demais para demonstrar carinho
ou entusiasmo pelo filho. A mãe de Churchill amava claramente o menino, mas
com sua vida focalizada em atender lorde Randolph e perseguir seus próprios romances, ela também dava pouca atenção a Winston. Assim, o começo da infância
deste, passado no internato, presenciou um fluxo constante de cartas que escrevia
aos pais implorando que o visitassem, que lhe dessem atenção, que o aprovassem.
Nenhuma delas obteve sucesso.
Churchill quase não conseguiu terminar os estudos em Harrow, seu internato.
Não obteve pontuação para ser admitido a uma universidade inglesa. Mal pôde
se enfiar na Real Academia Militar em Sandhurst, depois de três tentativas nos
exames de admissão, e com ajuda de muitas aulas particulares. Ali eram treinados
os oficiais do Exército. Era quase inteiramente uma escola prática para militares,
muito fraca em assuntos acadêmicos e certamente não equivalia à universidade ou
à escola de direito, no que tangia às disciplinas humanísticas ou científicas. Mesmo
depois de admitido, Churchill, por falta de boas notas na admissão, não conseguiu
se classificar para a infantaria. Em vez disso, foi posto na cavalaria, para profunda
consternação do pai.
Para todos os efeitos, Churchill educou a si próprio. Ainda no colégio interno
foi atraído pela história da Inglaterra; e despercebidas entre suas notas medíocres
de admissão à Sandhurst estavam notas muito altas naquela disciplina. Porém, o
que marcou o verdadeiro começo de sua aprendizagem foi o primeiro posto militar
no estrangeiro, ocupado em 1896, na Índia, com sua unidade, o 4o Regimento de
Hussardos. Ao contrário do típico oficial de cavalaria britânico de sua época, cujos
interesses mais profundos variavam do jogo de pólo às mulheres, aos charutos e aos
esplendores da alfaiataria, Churchill estava decidido a melhorar sua compreensão
do mundo a seu redor — porque ele estava agudamente consciente de sua própria
ignorância. Um dia antes de sua partida para a Índia, alguém usou, numa conversa
com ele, a palavra “ética”. Churchill pensou no significado da palavra, suas raízes, seus
usos. Mais tarde, na Índia, refletiu: “Mas o que era a ética? (...) eles nunca a mencionaram para mim em Harrow ou Sandhurst (...) aqui em Bangalore não havia quem
pudesse me falar sobre ética, a qualquer preço. De tática eu entendia um pouco; de
política, tinha uma visão; mas um esboço erudito e conciso da ética era uma novi-
62
um natal em washington
dade que não poderia ser obtida em âmbito local.3 Nem tampouco os significados
de outros conceitos importantes. Ele concluiu que teria de descobri-los.
Churchill encomendou da Inglaterra caixotes de livros; outros foram enviados
pela mãe; nas tardes longas e quentes ficava lendo a monumental História do
declínio e queda do império romano, de Edward Gibbon, a Constitutional History
of England, de Henry Hallam, The Martyrdom of Man, de Winwood Reade, e as
histórias de Thomas Babington Macauley e outros historiadores chamados de “conservadores”.4 Essas leituras iniciais, com sua pesada ênfase na História, no império,
no darwinismo social — contra o pano de fundo da majestade exótica da Índia
sob o domínio britânico, como só um jovem oficial de cavalaria britânico podia
vivenciar — moldou grande parte de seu pensamento posterior.
Churchill começou a ver a História como uma grandiosa marcha humana em
direção à melhoria e à realização. O progresso e a civilização — não sem seus espasmos, e começos, e retrocessos — eram conceitos interligados. Roma tinha caído,
e com sua derrocada a marcha do progresso se atrasara mil anos. Mas o império
— governado, organizado, administrado benignamente, com o uso da força apenas
suficiente para atravessar as isoladas crises que vez ou outra lhe cruzassem a trajetória — era o grande motor do progresso. A compreensão que tinha dos clássicos
que lera, combinada com as crenças paternalistas de seu pai de que as classes altas
da sociedade britânica eram, em última análise, responsáveis pelo bem-estar dos
pobres e tinham o sagrado dever social de vista aliviar a condição, moldou-lhe as
opiniões políticas.
O autodidatismo de Churchill deixou-o em sua crescente biblioteca de Bangalore
com um suntuoso banquete posto à sua frente, composto de palavras e expressões
inglesas, conceitos e constructos; e com o talento para as frases dramáticas que já se
evidencia nas cartas de escolar aos pais, ele desenvolveu um poder extraordinário
sobre a língua escrita. Conforme escreveu o biógrafo William Manchester:
Ele (...) exibia um estilo sublime e ressoante, em que cintilavam expressões
do século XVIII, derivadas de Gibbon, Johnson, Macauley e Thomas Peacock, e em que pulsavam os ecos clássicos de Demóstenes e Cícero, mas que
eram singularmente dele próprio (...) Sua sensibilidade pela língua inglesa
era sensual, quase erótica; quando ele cunhava uma frase, ficava a sugá-la,
girando-a ao redor do palato para lhe extrair o pleno sabor.5
o fidalgo de chartwell
63
É difícil que tamanha flexibilidade imaginativa da escrita de Churchill pudesse
emergir se ele tivesse vivenciado uma educação clássica da universidade britânica,
e que dizer se tivesse se esfalfado sobre as pilhas de livros de alguma empoeirada
biblioteca jurídica?
Na época, conforme observou posteriormente sua amiga Violet Bonham Carter,
“sua relação com toda e qualquer experiência era direta”. Ela era a filha de Herbert
Henry Asquith, que se tornou líder do Partido Liberal e primeiro-ministro em
1908. Seu pai e outros homens de formação universitária da classe deles tinham
construído “seus celeiros intelectuais armazenando as colheitas do passado”. O
conhecimento que tinham da ética, da filosofia, da economia, da história e da
geografia era indireto, recebido dos professores e de outros estudantes. Mas tudo
o que Churchill aprendeu foi descoberto por iniciativa própria. “Sua abordagem à
vida era repleta de ardor e surpresa. Mesmo as eternas verdades lhe pareciam uma
estimulante descoberta pessoal (...) em termos intelectuais era bastante desinibido
e nem um pouco tímido. Para ele nada era trivial.”6
Mas a exuberância de Churchill também podia resultar contraproducente.
Freqüentemente suas idéias, uma vez fixadas, eram como entalhadas na pedra.
Nesse caso, de nada valiam as provas oferecidas pelos sentidos, ou a insistência dos
que o cercavam. Dele escreveu o filósofo e historiador Isaiah Berlin, no começo da
década de 1960: “O senhor Churchill as alterou muito pouco no decurso de uma
longa e tempestuosa carreira.”
Se alguém quiser descobrir as opiniões dele sobre as grandes e persistentes
questões de nosso tempo, só precisará se dedicar a descobrir o que o sr. Churchill disse ou escreveu sobre determinado assunto em qualquer período de sua
longa e excepcionalmente articulada vida pública, em particular durante os anos
anteriores à Primeira Guerra Mundial; verá que são espantosamente poucas as
instâncias em que suas opiniões sofreram alguma mudança apreciável em anos
posteriores.7
Naquelas instâncias em que Churchill esteve errado, ou mal orientado, ou
demasiado influenciado por sua época — provavelmente o melhor exemplo é a
obstinada oposição à autonomia da Índia —, sua coerência de propósitos conseguiu
acarretar desastre pessoal. Na instância excepcional em que ele foi muito mais
64
um natal em washington
presciente que as pessoas a seu redor, sua obstinação se provou uma bênção para
a humanidade. Foi o caso da ameaça de Adolf Hitler e do nazismo.
Churchill deixou sua primeira marca antes mesmo de ir para a Índia. Em
outubro de 1895 recebeu permissão do Exército para ir a Cuba observar a guerra
que grassava ali entre o exército espanhol e os nacionalistas cubanos ávidos de
independência. Ao mesmo tempo combinou o envio de matérias sobre o conflito
para o jornal londrino Daily Graphic — sua primeira missão jornalística. Em Cuba
encontrou-se debaixo de fogo em algumas ocasiões; e em Cuba adquiriu seu amor
da vida inteira por charutos. Publicadas as matérias, seu arranjo incomum como
adido militar e correspondente de guerra provocou certa estranheza nos círculos
militares. Porém, antes que houvesse conseqüências do episódio, Churchill partiu
para a Índia com o 4o Regimento de Hussardos.
Embora estacionado em Bangalore, na Índia Meridional, Churchill conseguiu
ser temporariamente designado para a fronteira noroeste, cenário constante de
lutas entre os soldados britânicos e os rebeldes muçulmanos. Mais uma vez tomou
parte em escaramuças, fazendo a reportagem da ação para o jornal londrino Daily
Telegraph. Seus relatos foram publicados em 1898, sob o título de The Story of the
Malakand Field Force. O segundo livro, The River War (1899), narrava suas experiências com o Exército no Sudão, principalmente na Batalha de Omdurman, na
qual participou de uma das dez últimas cargas de cavalaria da História britânica.
Esse livro, que também se baseava em matérias enviadas ao jornal, teve boas vendas e reforçou a apresentação de Churchill como jornalista ao público instruído
da Grã-Bretanha.
É um tanto duvidoso que algum dia Churchill tenha considerado o Exército
— ou mesmo o jornalismo — algo além de um degrau para chegar à política. Ele
optou por ser um homem público e adotar a profissão política não só para impulsionar a própria carreira, mas também para resgatar o desperdício do potencial
de seu pai. Conforme confidenciou a Violet Bonham Carter depois da morte de
Randolph Churchill, “acabaram-se todos os meus sonhos de camaradagem com ele,
de entrar no Parlamento a seu lado e em seu apoio. Só me restava perseguir seus
objetivos e inocentar sua memória”.8 Para tal fim ele cultivou sua fama e glória e se
equipou ainda mais para uma carreira política pela prática da arte da retórica — a
arte de falar em público. Nesse particular foi dificultado pela falta do preparo que
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poderia ter tido numa universidade ou na defesa de causas jurídicas, e também por
uma discreta deficiência da fala — tinha certa dificuldade em pronunciar as letras
r e s. Mas seu entusiasmo característico, reforçado pelo domínio já prodigioso do
vocabulário da língua inglesa, não tardou em superar ambos os empecilhos. Churchill aprendeu a compor minuciosamente cada discurso, a memorizá-lo e ensaiá-lo
por horas diante do espelho. Tinha por objetivo alcançar uma “presença surpreendente”. Num ensaio inédito registrou seus pensamentos sobre a importância da
retórica. “De todos os talentos conferidos aos homens (...) nenhum é tão precioso
quanto o dom da oratória.”9 Em 1899 renunciou à patente no Exército e concorreu
ao Parlamento como candidato conservador, por uma comarca decididamente de
operários. Foi derrotado.
Aquele foi um mal que veio para bem. Quando pouco depois teve início na África
do Sul a Guerra dos Bôeres, Churchill novamente se pôs em campo para registrar
o conflito, dessa vez para o jornal Morning Post. Foi capturado pelos bôeres, que
emboscaram um trem blindado no qual ele estava, porém conseguiu escapar. Com
os jornais dando a notícia de seu sumiço de um campo de prisioneiros dos bôeres
e a subseqüente chegada ao território neutro português e a volta a Londres, ele se
transformou em um herói nacional. Quando em 1930 concorreu ao Parlamento
uma segunda vez, foi eleito. Embora nominalmente um conservador, tal qual o pai,
Churchill se desgastava sob a disciplina partidária e ficou especialmente irritado
quando os conservadores foram se distanciado do livre comércio e resistiram a
qualquer movimento no sentido de conceder autonomia à Irlanda. Em 1904, na
Câmara dos Comuns, transferiu-se para a bancada liberal.
Em 1905, quando o Partido Liberal arrebatou o poder, Churchill foi designado
subsecretário do Colonial Office, sob o comando de sir Henry Campbell-Bannerman. Assim começou sua meteórica ascensão ao poder. Três anos depois Asquith
sucedeu Campbell-Bannerman e elevou Churchill ao Gabinete, na qualidade de
presidente da Câmara de Comércio; em 1911, para sua imensa satisfação, Churchill
foi elevado a primeiro-lorde do Almirantado. Vigoroso, jovial, confiante, intrometido, iconoclasta, ele preparou a Marinha Real para a guerra. Em 4 de agosto de
1914 a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha e a frota estava pronta. Quando
a guerra ficou estagnada numa batalha de atrito na frente ocidental, Churchill
preconizou um rápido ataque naval através do estreito de Dardanelos, para eliminar da guerra a Turquia e virar o flanco da Alemanha. No final, a campanha foi
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desastrosa — mais por culpa de outros na execução concreta que por culpa de
Churchill. No entanto, por ser o homem no comando, ele foi, em última análise,
considerado responsável. Quando Asquith persuadiu os conservadores a formar
um governo de unidade nacional na primavera de 1915, o posto de Churchill no
Almirantado foi parte do preço exigido pelos Tories.* Churchill foi exonerado.
Quando não conseguiu assegurar uma posição de certa importância no novo
Gabinete de Guerra, solicitou uma patente no Exército e seguiu rumo à frente
ocidental no outono de 1915, como major. Em janeiro do ano seguinte recebia o
comando de um batalhão.
Churchill tinha 42 anos quando partiu para sua quarta e mais sangrenta guerra.
Em qualquer guerra o comando bem-sucedido é jogo para homens jovens, mas
Churchill parecia quase indiferente aos arredores deploráveis, à fadiga e aos perigos sempre presentes da frente ocidental. Foi um comandante corajoso, solícito
e engenhoso. Esteve muito perto de ser morto num bombardeio de que foi alvo a
artilharia, mas não parecia dar importância maior ao grande risco que correra. A
experiência não lhe agradou, mas cumpriu seu dever para com seus homens e seu
país sem maiores reflexões sobre o fato de, apenas um ano antes, ter comandado
a marinha mais poderosa do mundo e agora ser o oficial comandante de apenas
oitocentos soldados na margem mesma da batalha. Entretanto, não renunciou à
cadeira na Câmara dos Comuns, e por volta de maio de 1917, ávido por voltar ao
centro do poder, retornou ao Gabinete a pedido de David Lloyd George, para o
posto de ministro das Munições.
Tal qual se batera antes na guerra, agora ele se batia na política. Em qualquer
causa que defendesse, ele o fazia por completo, e com empenho e pouca preocupação
visível em relação às conseqüências. Violet Bonham Carter observou:
Ele se deixava dominar a tal ponto pelas próprias opiniões que, com freqüência, não levava em consideração as dos outros, até como fator prático
numa situação. Nunca ficava de ouvido encostado no chão. Tampouco lhe
teria interessado grandemente a mensagem recolhida, ainda que a tivesse
ouvido. Era sua própria mensagem a que o preocupava, e que estava decidido a transmitir.10
*
Outra designação para simpatizante ou membro do Partido Conservador (N. do E.).
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Na transmissão da mensagem, por vezes esquecia, ou não valorizava muito, a
realidade de que a política é a arte do possível. Uma vez tomada uma posição em
determinada questão, sua visão se estreitava. Ignorava os ataques pelo flanco. Como
um navio de guerra a disparar seus canhões, ele partia a todo vapor no rumo do
objetivo, quer sua causa fosse bem fundamentada ou fosse mal avaliada. Essa precipitação e a teimosia levaram Chamberlain a temer que Churchill se transformasse
facilmente em escravo da própria retórica:
No Gabinete, já o observei começar com um comentário casual (...) e depois,
quando lhe vem à mente uma imagem ou comparação, avançar com grande
animação (...) sua fala vai ficando cada vez mais rápida e impetuosa, até que
em poucos minutos ele não quer ouvir mencionar a possibilidade de oposição
a uma idéia que só lhe havia ocorrido alguns minutos antes.11
Churchill continuou a ser um turbilhão até o começo da década de 1950, quando
a idade o deixou alquebrado. Ele foi soldado, correspondente de jornal, político,
orador, escritor, colunista e pintor. Aprendeu a voar e quase se matou no processo
de aprender. Foi responsável por grande parte da reconstrução de sua amada residência de campo, Chartwell — uma propriedade de mais de 121 mil hectares que
comprou em setembro de 1922 —, principalmente seus jardins, piscinas e lagos.
Passou a maior parte de sua vida trabalhando, mesmo durante as chamadas férias.
Nunca ficava parado. No decorrer da vida escreveu ou editou mais de cinqüenta
livros e escreveu milhares de matérias jornalísticas, colunas, ensaios e discursos.
Desde o começo da década de 1920 seu principal meio de vida foi escrever.
Seus primeiros livros foram todos compilações de matérias jornalísticas, reunidas apressadamente para ganhar dinheiro e fama. Hoje são curiosidades históricas.12 Mas seu trabalho posterior constou invariavelmente de obras em vários
tomos. The World Crisis [A crise mundial], sua história pessoal da Primeira Guerra
Mundial, escrita no começo dos anos 1920, teve cinco volumes. Sua biografia do
primeiro duque de Marlborough teve quatro volumes. Sua biografia do pai em
dois volumes reuniu mais de oitocentas páginas. Uma História dos povos de língua
inglesa, que completou parcialmente antes da Segunda Guerra Mundial, mas que
só foi publicada na década de 1950, tinha quatro volumes. Sua obra mais famosa,
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pela qual recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, foi a série Memórias da Segunda
Guerra Mundial, em seis volumes, publicada entre 1948 e 1953 — um best-seller
internacional de carreira vertiginosa.
Os textos históricos de Churchill definiram suas idéias sobre a História em si,
o papel da Grã-Bretanha na História e o destino político do mundo conforme
ele o via. Segundo escreveu Isaiah Berlin, “a categoria dominante do sr. Churchill,
o sistema organizador exclusivo e central de seu universo moral e intelectual, é
uma imaginação histórica tão forte, tão abrangente, que enquadra a totalidade do
presente e a totalidade do futuro num quadro de um passado rico e multicolorido”.13 Seus livros de História são também a ligação entre sua história pessoal — sua
vida, seus antecedentes, suas conquistas, sua marca na História, seu destino — e
a História extensiva da civilização, como ele a teria definido. Já foi observado que
tanto o início quanto o final de suas obras históricas foi sua experiência pessoal14
— de filho, de descendente da casa de Marlborough, de primeiro-lorde do Almirantado, de ministro das Munições, de confidente de Lloyd George no Gabinete,
durante a Primeira Guerra Mundial, e de homem que liderou a Grã-Bretanha na
Segunda Guerra. Ao mesmo tempo, ele não tinha a pretensão de escrever História
como teria feito um historiador “profissional”. Em seus relatos históricos pessoais
das duas guerras mundiais, ele se percebeu como um cronista, registrando os fatos
qual os conheceu, para o registro ser usado por outros que tentassem escrever a
História daquela época.15
Da história escrita por Churchill não há melhor exemplo do que Memórias da
Segunda Guerra Mundial. Com exceção da primeira metade do primeiro volume,
The Gathering Storm, todos os livros são fundamentalmente autobiográficos. A
história do papel que desempenhou nos acontecimentos vai sendo tecida por
Churchill juntamente com grandes trechos de seus discursos, de correspondência
que enviou e recebeu, de memorandos e relatórios que escreveu, e da narrativa de
terceiros. Essa técnica — que se procura desencorajar nos estudantes de História
— é conhecida como história “de tesoura e cola”. No caso de Churchill, o processo se
destinava não só a apoiar sua versão das ocorrências, mas também a deixar registro
da matéria-prima da história que ele usou para estruturar a narrativa. Sabedor de
que muitos documentos de que lançou mão não veriam a luz durante anos, possivelmente décadas, recorreu a esse meio perfeitamente razoável de pôr em registro,
de sua perspectiva, a história da guerra. Também pode ter sido a forma encontrada
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por Churchill — que não tinha treinamento formal em coleta de provas históricas
nem em redação de narrativas históricas — de reivindicar um lugar entre os que
tinham por ofício escrever história como atividade de subsistência.
Churchill via o conhecimento do passado como uma chave para entender o
presente e ter um insight do futuro: “Quanto mais longe você enxerga em retrospecto, mais longe consegue ver diante de si”, escreveu certa vez. “Isso não é um
argumento filosófico ou político — qualquer oculista pode lhe dizer que isso é
verdade.”16 Freqüentemente olhava o passado com nostalgia dos sinais exteriores
e da pompa de outras eras. Seu hábito de usar peças de sua grande coleção de uniformes, chapéus e casacos, na maior parte de cunho militar ou cerimonial, também
pode ter sido uma parte da forma de se ligar com o próprio passado. Ao mesmo
tempo, entretanto, ele conseguia muito ser um homem do presente, e até do futuro.
Churchill empurrou a Marinha Real a fazer a conversão de combustível do carvão
para o óleo. Foi apologista do tanque. Era fascinado por aeronaves e seu potencial,
e instintivamente entendeu a ameaça representada pela rápida construção de uma
moderna força aérea na Alemanha.
A preferência de Churchill por coisas do passado não era tão importante para o
núcleo de seus valores e idéias quanto era sua crença de que a História podia revelar
verdades imutáveis sobre o progresso e a civilização. Como escreveu certa vez o
historiador inglês J.H. Plumb, “a História estava no coração de sua fé; ela permeava
tudo o que ele tocava, e era a corrente principal de sua política e o segredo de sua
imensa maestria”.17 Robert Rhodes James talvez o tenha expressado melhor:
Nenhum exame da carreira política de Churchill na década de 1930
poderia ignorar a significação do tom e do estilo de seus escritos históricos. Seu senso de história era mais emocional que intelectual, mas
é nesse período de sua vida que se tornam particularmente manifestas
a dominância de sua fé no destino histórico da Inglaterra e sua visão
romantizada do passado. Grande parte de sua aversão por [Ramsay] MacDonald [primeiro-ministro trabalhista] e [Stanley] Baldwin e [Neville]
Chamberlain [primeiros-ministros conservadores] se apoiava na aversão
sentida pelo que considerava a traição cometida por eles à grandiosidade
e ao destino da Inglaterra.18
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