A GESTÃO DEMOCRÁTICA DO ENSINO PÚBLICO COMO CAMPO DE DISPUTA
DE PROJETOS POLÍTICOS ANTAGÔNICOS – DEMOCRÁTICO E NEOLIBERAL
Neila Pedrotti Drabach¹ – UFSM
[email protected]
Resumo: Os princípios democráticos que, legalmente, revestem a gestão do ensino público, refletem,
ao mesmo tempo, o atendimento às reivindicações das forças civil-democráticas e aos princípios
neoliberais de descentralização e redução da interferência do Estado nas questões sociais. Frente a
isso, este trabalho objetiva discutir de que forma a gestão democrática está atrelada a uma nova
estratégia regulatória do sistema de ensino, com vistas a atender ao projeto neoliberal de sociedade, e
em que medida esta modalidade de gestão pode traduzir-se em práticas emancipatórias.
Palavras-chave: democracia; neoliberalismo; políticas públicas educacionais.
Abstract: The democratic principles which legally involve the management of public education
reflect, at the same time, the conceding to the demands of the democratic civilian forces and to the
neoliberal principles of decentralization and reduction of State interference in social issues. With this
in mind, this work aims to discuss how the democratic management is chained to a new regulatory
strategy in the education system, in order to attend the neoliberal project of society, and how much this
management approach can translate itself into emancipatory practices.
Keywords: democracy; neoliberalism; educational public policies.
No percurso da História da Educação Brasileira, a democracia sempre foi tema da
pauta das reivindicações dos atores sociais envolvidos neste processo. Presente em diferentes
momentos da educação pública, o desejo pela democracia permeia o acesso à educação
escolar, o conhecimento, o ensino, o exercício da cidadania e mais recentemente, tornou-se
marco nas lutas pela descentralização das decisões no campo educacional, ou seja, pela
democratização da sua gestão, sem perder de vista as reivindicações históricas.
No contexto de reabertura política do Brasil, marcado pelo fim da ditadura militar,
enquanto regime político, é assegurado na Constituição Federal de 1988, no Art. 206 § VI, a
gestão democrática do ensino público, na forma da lei. Segundo Vieira (2006), a Gestão
Democrática, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma conquista da forças civildemocráticas, marcada pelo contexto de movimentos e protestos de abertura política do Brasil
nos anos 80, coincide com um contexto em que assolava no país os “raios” de um projeto
político-econômico-ideológico globalizado: o neoliberalismo.
O projeto neoliberal de sociedade tem como um de seus fundamentos a
descentralização das funções do Estado, através do repasse destas funções à sociedade civil.
Sendo assim, pode-se indagar se esta abertura à democracia, ou seja, a descentralização, não
está também atrelada à operacionalização deste projeto político-econômico?
3
No âmbito educacional as perguntas, questionamentos, dúvidas, incertezas e
inseguranças permeiam constantemente nossas ações, uma vez que não há caminhos préestabelecidos a percorrermos. No entanto, são estes elementos que movem, positivamente,
nossa prática enquanto sujeitos históricos, pois proporcionam a instabilidade necessária para
nos lançarmos na busca de respostas que, mesmo provisórias, nos fazem avançar.
Frente a isso, este trabalho objetiva discutir de que forma a gestão democrática está
atrelada a uma nova estratégia regulatória do sistema de ensino, com vistas a atender ao
projeto neoliberal de sociedade, e em que medida esta modalidade de gestão pode traduzir-se
em práticas emancipatórias. Ancorada em uma perspectiva dialética de compreensão dos
fatos, parte-se, inicialmente, para algumas considerações sobre a função das políticas públicas
e seu redimensionamento a partir da ideologia neoliberal, quando estas passam a ser guiadas
pelo poder regulatório do mercado. Posteriormente, com base na teoria sociológica de
Boaventura de Sousa Santos, discute-se uma alternativa aos limites dessa racionalidade
economicista no campo educacional, tendo como base os prolegômenos da racionalidade
cosmopolita.
Esta base teórica justifica-se, à medida que a razão cosmopolita, permeando a reflexão
acerca dos princípios e práticas da gestão democrática, abre possibilidades de estabelecer uma
compreensão profunda e crítica, desvelando as alternativas credíveis à intensificação do
processo democrático na escola e na sociedade como um todo. Esta possibilidade está
assentada na idéia de que este modelo de racionalidade não tem como fundamento identificar
novas totalidades, e sim elucidar novas formas de pensar tais totalidades e conceber novos
sentidos de transformação social, através de um processo que leve em consideração os
diferentes saberes, experiências e cultura locais.
Num tempo marcado pelo estreitamento das possibilidades de avanço do social e do
político, através do cerceamento do mercado pelas políticas neoliberais globais, é desejável o
trabalho de abertura de espaços nestes campos, a fim de construir novos significados e
sentidos frente ao quadro que se apresenta.
POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS E SEU REDIMENSIONAMENTO A PARTIR
DO NEOLIBERALISMO
A educação configura-se como um campo social marcado pela tensão decorrente dos
diversos projetos e interesses em disputa, uma vez que se constitui em um espaço de luta
privilegiado no processo de conquista da hegemonia política e cultural na sociedade. Em
4
função disso, é alvo de profundas modificações, à medida que se alteram os quadros político,
econômico e social de referência.
Revisitando os campos de estudo e pesquisas em Políticas Públicas, depreende-se que
estas têm sido o resultado da ação do Estado em relação às demandas “que emergem da
sociedade e de seu próprio interior, sendo a expressão do compromisso público de atuação
numa determinada área a longo prazo” (CUNHA & CUNHA, p.12, 2002). Às áreas de
atendimento das políticas públicas são, comumente, entendidas como educação, saúde,
previdência, habitação, saneamento, etc.
No entanto, nos marcos de uma sociedade de conflitos, desigualdades sociais e de
poder, o “pano de fundo” das políticas públicas ultrapassa as demandas sociais, sendo o
resultado de uma gama maior de fatores de diferentes naturezas. Segundo Ahlert (2004, p.
48), “elas são o resultado do jogo de poder determinado por leis, normas, métodos e
conteúdos que são produzidos pela interação de agentes de pressão que disputam o Estado”.
Identificados como agentes de disputa, estão os políticos, os partidos políticos, os
empresários, os sindicatos, as organizações sociais e civis. Esta situação permite-nos
compreender as vicissitudes dos caminhos na construção de políticas públicas que emanam
das demandas do campo educacional.
A década de 90 tornou-se um campo fértil na proposição de mudanças para o campo
educacional. A luta da sociedade civil e dos setores organizados do campo da educação
ganhou força a partir da redemocratização do país, na década de 80. Com a promulgação da
Constituição Federal de 1988, guiada por princípios de democratização da sociedade como
um todo, os atores escolares viram traduzida a possibilidade de mudanças para os rumos da
educação nacional. Estas possibilidades estariam garantidas com a elaboração da nova Lei de
Diretrizes e Base para a Educação Nacional, do Plano Nacional de Educação e da elaboração
de Leis de Gestão Democrática, em nível Estadual e Municipal, ambos assegurados na
Constituição.
No entanto, também se torna fértil neste momento a possibilidade de adentramento da
ideologia neoliberal na política de governo do país. O governo Fernando Collor de Mello
(1990-1992) inaugura esta política, dando continuidade o governo Itamar Franco (1992-1994)
e os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), às ações neoliberais nos diferentes
setores da sociedade.
Neste contexto, novo elemento entra na disputa das ações do Estado em relação às
políticas púbicas, com forte expressão. O neoliberalismo trouxe para o campo educacional
certa desvinculação do Estado de suas funções com este, ao mesmo tempo em que imprimiu
5
novas demandas a esta esfera social, tendo como princípio orientador as necessidades do
mercado.
Neste sentido, os movimentos de mudança e de proposição de políticas públicas para a
educação acabam por definir-se a partir de novos contornos, não mais aqueles desejados pela
sociedade civil. No caso do Plano Nacional de Educação², Lei 10.172/01, a proposta coletiva
elaborada pela sociedade, a partir da realização dos I e II Congressos Nacionais da Educação
(CONEDs), tomou outros rumos quando de sua efetivação enquanto Lei, após passar pelo
Congresso Nacional.
No seu processo de aprovação entraram em disputa dois projetos de Plano: o da
sociedade civil e o do governo FHC. Para Valente & Romano (2002, p. 98) as duas propostas
traduziam dois projetos conflitantes de país. De um lado, tínhamos o projeto
democrático e popular, expresso na proposta da sociedade. De outro,
enfrentávamos um plano que expressava a política do capital financeiro
internacional e a ideologia das classes dominantes, devidamente refletido nas
diretrizes e metas do governo.
Enquanto o projeto da sociedade reivindicava o fortalecimento da escola pública
estatal e a democratização da gestão educacional, o projeto do governo defendia a
permanência de uma política educacional assentada em dois pilares principais: “máxima
centralização da formulação e da gestão política educacional, com o progressivo abandono,
pelo Estado, das tarefas de manter e desenvolver o ensino, transferindo-as, sempre que
possível para a sociedade” (VALENTE & ROMANO, 2002, p. 99).
Em meio à sociedade atual, caracterizada pela política e ideologia neoliberal, o Estado
não se encontra apenas sob a atuação dos governos nacionais, mas está inserido dentro de um
processo de governação mais amplo. O neoliberalismo surge como um projeto políticoideológico globalizado, configurando-se como estratégia para enfrentar a crise do capitalismo,
na década de 70. Aliado a isso, não só a economia passa a ser determinada globalmente, mas
também as proposições para as diferentes esferas da sociedade, dentre elas a educação – uma
vez que, para o neoliberalismo, a educação cumpre um papel estratégico no desenvolvimento
da economia, através da produção do “Capital Humano³”.
No campo educacional, cumprem decisivo papel na formulação das políticas públicas
nacionais os organismos internacionais, de caráter intergovernamental (Fundo Monetário
Internacional - FMI, Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento – BIRD,
Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, Organização das Nações Unidas – ONU,
Organização Mundial do Comércio – OMC, Organização das Nações Unidas para a educação,
6
ciência e cultura – UNESCO, Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF), que
possuem estreita ligação aos interesses do mercado. Tais organismos “produzem” sua
participação nos sistemas nacionais de ensino através da promoção de conferências
internacionais (Conferência Internacional de Educação para Todos, Comissão Internacional
sobre a Educação para o Século XXI, etc) para a discussão dos problemas ligados à
humanidade, dentre eles os concernentes à educação. Tais conferências se intitulam altamente
democráticas, pois se compõe por representantes de todos os países, criando, assim, uma
atmosfera de maior legitimidade social.
Estes empreendimentos internacionais, resultam na formulação de leis gerais, que
compõe uma agenda fixa para a educação (TEODORO, 2001), ou, nas palavras de Dale
(2001), uma agenda globalmente estruturada. A partir disso,
A formulação de políticas educativas, particularmente nos países de periferia
(e da semiperiferia) do sistema mundial, começou a depender, cada vez mais
da legitimação e da assistência técnica das organizações internacionais, o
que permitiu, nos anos sessenta, uma rápida difusão das teorias do capital
humano e da planificação educacional, núcleo duro das teorias da
modernização, tão em voga neste período de euforia, em que a educação se
tornou um instrumento obrigatório da auto-realização individual, do
progresso social e da prosperidade econômica (HUSÉN, 1979 apud
TEODORO, 2001 p. 127).
No campo educacional, os constantes empreendimentos, estudos e publicações das
organizações internacionais cumprem
(...) um decisivo papel na normalização das políticas educativas nacionais,
estabelecendo uma agenda que fixa não apenas as prioridades, mas igualmente as
formas como os problemas se colocam e equacionam, e que constituem uma forma
de fixação de um mandato, mais ou menos explícito, conforme a centralidade dos
países (TEODORO, 2001 p. 128).
Um exemplo da ação dos organismos internacionais no campo educacional é o próprio
Plano Nacional de Educação. Segundo Valente & Romano (2002, p. 99)
O fundamento da Lei nº 10.172/2001 encontra-se na política educacional
imposta pelo Banco Mundial ao MEC. O texto assume, como fio condutor, o
conhecido e esperto modo de legislar das elites: no que interessa aos “de
cima” (no caso, a política do governo) temos uma lei com comandos
precisos, num estilo criterioso, detalhista e, regra geral, auto-aplicável. No
que interessa aos “de baixo” e que eventualmente não tenha sido possível ou
conveniente suprimir, recorre-se à redação “genérica”, no mais das vezes,
sujeita a uma regulamentação sempre postergada.
7
Deste campo de disputa de interesses econômicos e projetos de sociedade, resultam
textos legais produzidos a partir de uma linguagem ambígua e híbrida, no qual está contido
tanto o discurso oficial, quanto o alternativo. Sandra Corazza, apesar de estar falando do tema
do currículo, expressa uma idéia que vem ao encontro do que vimos presenciando no contexto
da formulação de políticas públicas educacionais:
Este é o nosso “horror” político: descobrir que aqueles currículos, que
considerávamos “nossos”, estão também “capitalizados”, “globalizados”,
“neoliberalizados”. Que eles dizem a mesma coisa que aqueles currículos
contra os quais lutamos. Que, talvez, já tenha chegado o tempo em que a
dissipação das diferenças nos leva a não saber mais quem somos, o que
queremos, o que propomos. Em que a dispersão dos limites nos leva a não
identificar mais pelo que educamos e estudamos, pesquisamos e escrevemos,
lutamos e vivemos (2001, p.106).
O caminho percorrido até então neste texto, teve o intuito de apontar para os percursos
na construção das políticas públicas educacionais, no contexto da sociedade guiada pelo
neoliberalismo. Deparamo-nos com o hibridismo do discurso presente nos textos que
legitimam as políticas educacionais, ferindo a luta por um projeto democrático de sociedade,
uma vez que o resultado mascara os reais anseios da sociedade. Os discursos alternativos são
cooptados pelo ideário neoliberal, promovendo uma hibridização que dissimula a pluralidade
dos sentidos em disputa.
Alertando para a perversidade do momento atual para o campo educacional, passamos
a discutir de que forma o projeto de gestão democrática, transformado em Lei, está envolto
pelos interesses e princípios neoliberais. Reconhecendo os limites desta discussão, em função
da complexidade dos fatores que estão envoltos, ao mesmo tempo ressalta-se que ainda não
seja possível a total consistência de nossas percepções sobre fatos e fenômenos sociais, é
necessário “tecer esses diferentes fios, inclusive os que ainda são desconhecidos, mas que em
sua invisibilidade colorem a vida com os sonhos e a utopia de possibilidades de mudanças”
(LEITÃO, 2004, p. 34).
A GESTÃO DEMOCRÁTICA DO ENSINO PÚBLICO: NO INTERSTÍCIO ENTRE OS
PROJETOS DEMOCRÁTICO E NEOLIBERAL
Nesse contexto, marcado pela supremacia do mercado, a educação emerge como um
dos principais elementos nessa etapa de mudança. Encontra-se no campo educacional a
possibilidade de aumento da produtividade e eficiência dos trabalhadores, por isso o grande
empreendimento em reformas educacionais, as quais visam traduzir estes interesses
8
econômicos e promover a garantia de subsistência do modo de produção capitalista. Neste
sentido, elucida-se como um dos principais desafios desvelar o hibridismo dos discursos
produzidos e veiculados no meio educacional, a fim de distinguir a racionalidade e os
interesses que lhes subjazem.
Para compreender os fundamentos que configuram este cenário, é necessário que
reportemo-nos ao contexto histórico, o qual retrata os dinamismos de sobrevivência do modo
de produção capitalista. Na década de 70, o modo de produção capitalista vive uma crise
político-econômica. Dentre os fatores apontados como causas: estava seu regime de
acumulação, o fordismo, e o modelo de Estado de Bem-Estar Social. O modelo produtivo –
idealizado pelo empresário estadunidense Henry Ford (1863-1947) – assentava-se em uma
escala de rígida hierarquia e especialização de tarefas, tendo como pressuposto a idéia de que
“a produtividade do trabalho podia ser aumentada por meio da decomposição e fragmentação
dos processos de trabalho, a partir do conjunto rigoroso de práticas de controle do trabalho,
assim como de tecnologias e hábitos de consumo” (MARQUES, 2006, p. 508). O Estado de
Bem-Estar Social – teoria econômica desenvolvida por Keynes – por sua vez, traduzia-se na
proposta de um Estado interventor na economia, a fim de “regularizar o ciclo econômico e
evitar assim as flutuações dramáticas no processo de acumulação do capital” (INSUANI,
1991, apud BIANCHETI, 1999, p. 24), garantindo o crescimento da produção, o consumo, o
emprego e a provisão pública das políticas sociais (BIANCHETTI, 1999).
Em meio à crise destes modelos – de acumulação capitalista e de política Estatal,
devido à sua fragilidade em conter as contradições intrínsecas ao capitalismo, surgem, nos
países centrais, novas formas de arranjo da produção e de Estado, fortalecendo-se aí as
características do modelo econômico de produção toyotista, ou pós-fordista4, e do Estado
Neoliberal.
Ao atuar como organizador das relações no mundo do trabalho, o toyotismo trouxe
para este meio os princípios da flexibilização, o trabalho em equipe, a participação, a
autogestão (autonomia), entre outros. A reformulação no modelo Estatal é decorrente destas
mudanças na base produtiva, uma vez que enquanto no fordismo necessitava-se de uma base
estatal forte na economia, com o toyotismo, o Estado deve afastar-se, descentralizando suas
funções para o mercado e a sociedade civil – teoria neoliberal.
Assim, de um modelo hierárquico de produção e um Estado centralizador, passamos a
ter ênfase no trabalho coletivo, na participação, na autonomia e na descentralização. Tais
vocábulos, identificados, historicamente, com um projeto democrático de sociedade passam a
9
ser cooptados, adquirindo novos sentidos no âmago do projeto neoliberal. De acordo com
Lima (2002, p.31), no contexto do neoliberalismo:
autonomia (mitigada) é um instrumento fundamental de construção de um
espírito e de uma cultura da organização-empresa; a descentralização é
congruente com a ‘ordem espontânea’ do mercado; respeitadora da liberdade
individual e garante a eficiência econômica; a participação é essencialmente
uma técnica de gestão, um fator de coesão e consenso”. Assim, nesta
perspectiva, “conceitos como ‘autonomia’, ‘comunidade educativa’,
‘projecto educativo’, continuarão a ser convocados, e até com maior
freqüência, mas como instrumentos essenciais de uma política de
modernização e racionalização, como metáforas capazes de dissimularem os
conflitos, de acentuarem a igualdade, o consenso e a harmonia, como
resultados ou artefactos, e não como processos e construções colectivas.
A implantação do projeto neoliberal de sociedade, em âmbito global, trouxe dilemas
para o Brasil. Dagnino (2004), aponta para o momento histórico atual, como um período
perverso de confluência entre o projeto neoliberal e o projeto democrático. A perversidade5 é
decorrente do fato de que ambos os projetos, embora apontando para direções opostas,
requerem uma “sociedade civil ativa e propositiva”:
A disputa política entre projetos políticos distintos assume então o caráter de
uma disputa de significados para referências aparentemente comuns:
participação, sociedade civil, cidadania, democracia. Nessa disputa, onde os
deslizamentos semânticos, os deslocamentos de sentido, são as armas
principais, o terreno da prática política se constitui num terreno minado,
onde qualquer passo em falso nos leva ao campo adversário. Aí a
perversidade e o dilema que ela coloca, instaurando uma tensão que
atravessa hoje a dinâmica do avanço democrático no Brasil (Id. Ibid. p. 97).
Neste cenário, a desejada Gestão Democrática do Ensino Público surge multifacetada.
De um lado, guardadora de um projeto democrático com vistas à ampliação dos espaços de
cidadania e construção de uma educação de qualidade, de outro, como estratégia do
gerencialismo econômico global, que tem por objetivo atrelar o ensino ao desenvolvimento do
economia. De acordo com Marques (2006, p. 511),
A gestão democrática das Unidades Escolares públicas brasileiras ganha
terreno institucional quando passa a ser defendida pelo Estado neoliberal,
como forma de garantir a eficiência e eficácia do sistema público de ensino.
Por isso, não tem significado, muitas vezes, avanços na construção de uma
escola pública de qualidade, que atenda aos interesses da maioria da
população brasileira.
10
A perversidade no campo educacional parece estar situada nos ideais da
democratização da gestão, no qual é possível identificar a confluência de dois projetos,
oriundos dos projetos democrático e neoliberal de sociedade: a Gestão Democrática e a
Gestão Gerencial6. Enquanto para o projeto democrático a participação tem fins mais amplos,
como “contribuir para que instituições educacionais articuladas com outras organizações da
comunidade, possam participar da construção de uma sociedade fundada na justiça social, na
igualdade e na democracia” (PNE, Proposta da Sociedade Brasileira, 1997, p. 50), para o
projeto neoliberal, a gestão gerencial, embora fazendo uso dos mesmos propósitos
democratizantes, valoriza a participação de forma funcional, ou seja, apenas técnica de gestão
e é utilizada muito mais como forma de atenuar conflitos e/ou divergências do que como
espaço de tomada de decisões, negociações (LIMA, 2001).
Baseada nas configurações do modelo de produção toyotista, a gestão gerencial
baseia-se em práticas de avaliação a posteriori, como forma de monitoramento da organização
e funcionamento interno de instituições ou organizações sociais. No caso das instituições
educacionais ao invés de um controle rígido interno, como no caso da administração baseada
no modelo fordista, os inúmeros índices de avaliação cumprem a função de um controle
externo mascarado, justificado em função da garantia de um padrão mínimo de “qualidade”,
atuando como uma estratégia de regulação do sistema de ensino.
A visão neoliberal prevalece nas políticas públicas de modo geral e particularmente na
gestão da educação, de forma a mantê-las atreladas ao desenvolvimento econômico. A luta da
sociedade civil pela participação/controle social das ações voltadas ao campo educacional,
parece hoje traduzir-se em regulação social.
De acordo com Mousquer (2003, p. 42),
Atualmente, as políticas públicas estão enraizadas na concepção do domínio
da razão instrumental, em que o próprio homem, na sua dinâmica
constitutiva, apropria-se dos interesses dessa mesma racionalidade,
obedecendo a critérios definidos pelos interesses materiais e sociais da vida
moderna. Esse interesse está sendo cada vez mais identificado com a lógica
de uma racionalidade econômica resultante do sistema capitalista. O ritmo de
valorização é de uma velocidade ímpar e impede que as questões relativas à
justiça social e à autoridade política do mundo da vida transcendam para a
vivência cotidiana.
Sendo a política educacional o cerne do sistema de ensino público, é aí que se instalam
e definem os rumos e funções da educação, de acordo com os interesses e projetos político-
11
econômicos predominantes na sociedade. No entanto, admitindo a concepção dialética da
história, considera-se que a tal situação não está pré-determinada, podendo adquirir contornos
diferenciados.
Embora a Gestão Democrática contenha pressupostos de identificação com os
interesses econômicos atuais, ressalta-se que este processo resguarda possibilidades de
construção de um espaço público democrático, uma vez que a concretização das políticas
públicas só é possível no momento em que se traduz em de práticas sociais.
A POSSIBILIDADE DE PRÁTICAS EMANCIPATÓRIAS DE GESTÃO DEMOCRÁTICA
No percurso de construção da Gestão democrática, a racionalidade economicista
atravanca os processos de mudanças que a democracia exige, pois atua na imposição de novas
formas de controle do social. O avanço das propostas provenientes de forças que atuam na
democratização é compelido pela interferência desta racionalidade que se impõe como única e
verdadeira, não levando em conta as experiências, a subjetividade, o cotidiano, os clamores e
as demandas sociais.
Dessa forma, impulsionar o debate e a construção de práticas democráticas implica,
conseqüentemente, na diminuição dos espaços de domínio da razão instrumental e promoção
dos princípios de uma nova forma de racionalidade: a razão cosmopolita (SANTOS, 2002b).
Este tipo de razão aponta para a possibilidade de avanço democrático à medida que anuncia a
superação de modelos até então considerados como verdades únicas, abrindo espaços para a
valorização de saberes e experiências que iluminem alternativas à construção de práticas
democráticas e emancipatórias.
A razão cosmopolita, compondo a base epistemológica dos processos de gestão,
contribui com alguns pressupostos que visam vislumbrar caminhos que levem à
democratização do saber e dos poderes de decisão. Dentre eles destacamos: a valorização das
experiências, saberes e peculiaridades locais.
A valorização do local traz consigo a possibilidade de ensejar condições para a ação, a
partir dos saberes, cultura e experiências locais. É pensar, dialogar, construir tendo em vista
uma realidade com suas peculiaridades sociais, econômicas, culturais, políticas e históricas.
Trata-se também da valorização do local como uma fonte de conhecimento, inversamente à
inclinação hierárquica e reducionista do conhecimento ao saber científico (SANTOS, 1987).
12
No processo de tradução das políticas educacionais em práticas sociais que se
sobreponham àquelas que descaracterizam a identidade local, ao impor mascaradamente a
identidade de outros locais, a valorização do local representa grande potencial, pois atua na
oposição aos processos de localismos globalizados, através dos quais um grupo, uma
entidade, um sistema, uma nação impõem arbitrariamente, através da globalização de um
fenômeno local, sua cultura, seus valores, suas leis, suas políticas, seus ideais, sua ideologia.
Neste sentido, a materialização da política de gestão democrática pode traduzir-se em
prática emancipatória de construção da cidadania, quando da efetivação de relações realmente
participativas, pois
a possibilidade de uma sustentável e justa construção democrática
começa em nível local. Este tipo de desenvolvimento acena fortemente
para a liberdade, pois tende a propiciar a autonomia, a consciência e a
participação cooperativa da maioria. Trata-se do envolvimento num
processo que poderá ser em longo prazo um conjunto de estruturas e
experiências locais para, então, produzir possíveis alternativas como
possibilidades de ampliação frente aos receituários impostos em nome
da democracia (MOUSQUER, 2004, p.203).
A valorização do local, enquanto expansão das falas dos diferentes atores sociais e
socialização de suas experiências e saberes, contribui para a formação de decisões coletivas,
condição básica para o exercício da cidadania. Este procedimento viabiliza a expansão do
debate acerca da democracia para além dos muros da escola, à medida que abre espaço para
as diferentes e discordantes vozes, promovendo a construção de relações mais democráticas
que conduzem a um compromisso efetivo por parte dos envolvidos. Dessa forma, alargam-se
as possibilidades de sucesso na tradução de políticas públicas, como a Lei de Gestão
Democrática, para realidades concretas, a partir dos pressupostos de um projeto
democratizante de sociedade.
NOTAS
1 Pedagoga - Professora do Núcleo de Educação Infantil Ipê Amarelo – CE/UFSM e Especializanda em Gestão
Educacional – CE/UFSM.
2 O Projeto de Lei do Plano Nacional de Educação deu entrada na Câmara dos Deputados em 10 de fevereiro de
1998, apenas em 2001 o Presidente Fernando Henrique Cardoso sanciona a Lei.
3 A teoria do Capital Humano “incorpora em seus fundamentos a lógica do mercado e a função da escola se
reduz a formação dos “recursos humanos” para a estrutura da produção. Nessa lógica, a articulação do sistema
educativo com o sistema produtivo deve ser necessária. O primeiro deve responder de maneira direta à demanda
do segundo” (BIANCHETTI, 1999, p. 94).
4 Embora já concebido na década de 50, no Japão, apenas na década de 70 o toyotismo adquire maior projeção,
em virtude de sua adaptação às necessidades produtivas.
13
5 Por perversidade, Dagnino (2004, p. 96) entende como “fenômeno cujas conseqüências contrariam sua
aparência, cujos efeitos não são imediatamente evidentes e se revelam distintos do que se poderia esperar”.
6 Modelo de administração empresarial resultante do regime de produção toyotista, que se fundamenta na busca
por maior eficiência na produção.
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a gestão democrática do ensino público como campo de